1. Nos crimes previstos na lei de licitações (LL) o bem jurídico protegido é a
moralidade administrativa. O autores desses crimes sujeitam-se a dois tipos de sanções: a penal e a administrativa (perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo), ambas aplicadas pelo órgão jurisdicional. Nos crimes previstos no CP também aplica-se a pena de perda de cargo, mas essa perda não é automática se a pena privativa aplicada não ultrapassar um ano. Nos crimes previstos na lei de licitações, por seu turno, independentemente do quantum da pena ou do fato do crime não ter se consumado, a perda do cargo é automática. 2. A competência para processar e julgar os delitos previstos na LL é da justiça federal nos casos em que forem praticadas violações a bens, interesse ou serviço da União, suas autarquias ou empresas públicas. Nos demais casos, a competência é da justiça estadual. 3. O conceito de servidor público da LL é lato: são servidores todos aqueles que exercem cargo, função ou emprego público, mesmo sem remuneração. São, ainda, equiparados a servidor público aqueles que exercem cargos, empregos ou funções nas paraestatais, bem como nas fundações públicas e empresas estatais. Quando o autor do crime ocupar cargo em comissão ou de função de confiança, a pena é acrescida em 1/3. 4. Crime de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade (art. 89). Também responde pelo delito, com a mesma pena, quem “tenha comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade”, beneficiando- se da dispensa ou inexigibilidade ilegal. O tipo penal prevê três condutas (tipo misto alternativo). Por tratar-se de tipo misto alternativo a prática de duas ou mais dessas condutas não gera concurso de crimes. É crime formal, e portanto não há se falar em prejuízo efetivo ao erário para sua consumação. Os tribunais superiores, porém, possuem decisões no sentido de que a configuração do delito exige a demonstração de prejuízo ao erário (STJ e 2ª turma do STF; o pleno do STF tem decisão no sentido contrário, da inexigibilidade do dano efetivo ao erário para configurar o delito, destacando porém, no caso julgado, que não estaria configurada a intenção da autora para praticar o delito, mas sim interpretação equivocada e erro do administrador). O crime é próprio em relação às práticas de dispensa e inexigibilidade ilegais (só pode ser cometido por servidor), mas não em relação ao que está previsto no parágrafo único do art. 89 (quem “tenha comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade”, beneficiando- se da dispensa ou inexigibilidade ilegal). 5. Crime de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da ajdudicação do objeto (art. 90). Existe um especial fim de agir relacionado a esse tipo, qual seja, o intuito de obter vantagem, para si ou para outrem, decorrente de adjudicação do objeto. Por tratar-se de tipo misto alternativo a prática das duas condutas (frustrar e fraudar) não gera concurso de crimes. O crime é próprio, pois só pode ser praticado pelo participante de procedimento licitatório. É crime formal, a significar que a consumação ocorre com a efetiva realização do procedimento fraudulento, ainda que o fim pretendido (a adjudicação do objeto da licitação) não seja obtido. Admite tentativa. 6. Crime de patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante à administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo poder judiciário. O sujeito ativo do delito é o servidor público, mas ele pode ser praticado também de forma indireta, por interposta pessoa, quando haverá concurso de pessoas. A conduta típica é centrada no verbo patrocinar (advogar) interesse privado junto à administração. Elemento subjetivo é o dolo. Para a consumação não basta o simples patrocínio: é preciso que a licitação seja instaurada ou o contrato seja celebrado. A isso se soma uma condição objetiva de punibilidade: a invalidação da licitação por decisão do poder judiciário. Trata-se, assim, de crime material. Não admite tentativa. 7. Crime de admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais. O sujeito ativo do crime é o servidor público e, no segundo caso (concorrer com a consumação da ilegalidade) o contratado. O objeto material é o contrato administrativo que foi modificado, prorrogado ou o pagamento efetuado por preterição de ordem. A conduta é expressa pelos verbos admitir, possibilitar ou dar causa e, na segunda parte do tipo, pagar. O elemento subjetivo é o dolo. A consumação se dá com a prática de qualquer das condutas, ainda que não ocorra dano efetivo à administração. Trata-se de crime formal, com exceção do delito em que incorre o contratado, que deve obter a vantagem indevida para que o delito seja consumado em relação a ele. 8. Crime de impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato do procedimento licitatório. Sujeito ativo é qualquer pessoa, não apenas funcionário público. Trata-se, assim, de crime comum. O objeto material é o ato da licitação que sofreu com impedimento, perturbação ou fraude. O elemento subjetivo é o dolo e a consumação se dá com o impedimento, a perturbação ou a fraude. Trata- se, assim, de crime material. A tentativa é admitida. 9. Crime de devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo. Sujeito ativo é o servidor público ou qualquer que tenha tido acesso aos dados em razão de seu cargo ou função. O objeto material é a proposta que deveria ser mantida em sigilo. A conduta é caracterizada pelo verbo devassar ou proporcional que terceiro possa fazê-lo. A consumação dá-se no momento em que o sigilo é quebrado pela devassa. É admitida tentativa. 10. Crime de afastar ou procurar afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo incorrendo na mesma pena quem desiste de licitar em razão de vantagem oferecida. É um crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Na segunda parte só pode ser praticado por participante de licitação que desistir dessa participação após receber vantagem de qualquer tipo. O afastamento ou a tentativa de afastamento se dá por algum dos meios que o tipo prevê: violência, grave ameaça ou oferecimento de vantagem. Na segunda parte a conduta se caracteriza pelo recebimento de vantagem e afastamento do processo licitatório. No caso de procurar afastar licitante, a tentativa é equiparada a consumação (crime de atentado). Trata-se de crime formal, pois independe de dano à administração. A tentativa é impossível pois a modalidade tentada é equiparada à consumação. 11. Crime de fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente valendo- se, para tanto de um conjunto variado de práticas (elevação arbitrária de preços, venda de mercadoria falsa ou deterioridade, entrega de uma mercadoria por outra, alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria, etc.). O sujeito ativo é o licitante ou contratado. O crime é de forma vinculada, pois as possibilidades de fraude puníveis são previstas pelo tipo. A prática de mais de um dessas condutas fraudulentas constitui um único crime (tipo misto alternativo). A consumação se dá quando ocorre dano à administração. Trata-se, pois, de crime material. Admite tentativa. 12. Crime de admitir em licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidônio. Incide na mesma pena aquele que, declarado inidônio licite ou celebre contrato com a administração. Sujeito ativo é o servidor público e, na segunda parte, o participante de licitação. O elemento subjetivo é o dolo, e há quem defenda que o dolo deve incluir a ciência do servidor relativamente a inidoinedade da empresa. Trata-se de crime formal que não exige resultado naturalístico para sua consumação: basta a admissão ou celebração do contrato. A declaração de inidoinedade está prevista na lei 8.666/93 como uma sanção. 13. Crime de obstar, impedir ou dificultar, injustamente, a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento de registro do inscrito. Na primeira parte o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (Habib discorda desse entedimento, lecionando que apenas o servidor público é sujeito ativo do delito em tela), e não apenas o agente público. Na segunda, apenas o agente, tratando-se de crime próprio. Existem alguns elementos normativos no tipo: obstar, impedir ou dificultar injustamente e promover indevidamente. É que se o obstáculo, impedimento ou dificuldade for justo (amparado por lei) e a promoção de alteração for devida não há, obviamente, crime. Elemento subjetivo é o dolo. A consumação ocorre com a mera ação de obstar, impedir ou dificultar e não exige que não ocorra, de fato, a inscrição (crime formal). Na segunda parte, consuma-se com a alteração, ainda que não ocorra prejuízo para administração ou o terceiro. Só é admitida tentativa na segunda parte. 14. Nos crimes previstos na LL, existindo multa, ela reverterá para a Fazenda Pública correspondente (a do ente política cujo bem jurídico foi atingindo pelo delito). A multa deve ser calculada em índices percentuais e tomar como base o valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente. Esses índices percentuais não poderão ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. Conforme entendimento jurisprudencial do STJ, a existência de prejuízo ao erário é condição para determinar o ressarcimento ao erário. 15. Os crimes previstos na LL são de ação penal pública incondicionada, sendo admitida a ação penal privada subsidiária da pública, nas circunstâncias em que essa é admitida. Qualquer pessoa pode provocar o MP nos casos dos crimes acima (delatio criminis). Magistrados, membros dos Tribunais de contas e dos sistemas de controle estão obrigados por lei a comunicar ao MP a prática de qualquer desses crimes de que tomem conhecimento no exercício de suas funções. 16. Observação final: Quanto à existência de dano e ao tipo subjetivo, o pleno do STF e a Corte Especial do STJ entendem que para se configurar o crime na lei de licitações há a necessidade do dolo específico, a intenção de causar prejuízo ao erário, e o efetivo resultado. Desse modo, seria penalmente irrelevante a conduta formal de alguém que desatente as formalidades da licitação, quando não há consequência patrimonial para o órgão público. O dolo genérico não seria suficiente, portanto, para levar o administrador à condenação por infração à Lei de Licitações.