Você está na página 1de 20

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/265634126

A teoria geral dos campos de Pierre Bourdieu: uma leitura

Article · June 2011


DOI: 10.18569/tempus.v5i2.979

CITATIONS READS

2 258

3 authors, including:

Miguel Ângelo MONTAGNER


University of Brasília
49 PUBLICATIONS   140 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Estudos sobre Ciência View project

Brazilian Bioethics Network View project

All content following this page was uploaded by Miguel Ângelo MONTAGNER on 16 April 2015.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Tempus - Actas de Saúde Coletiva - Antropologia e Sociologia da Saúde: novas tendências

A teoria geral dos campos de Pierre Bourdieu: uma leitura

Miguel Ângelo Montagner


Sociólogo, Mestre e Doutor em Saúde Coletiva.
Professor da Pós-Graduação em Ciências da Saúde e Cátedra UNESCO de Bioética
da Faculdade de Saúde – UnB
montagner@unb.br, montagner@hotmail.com
Maria Inez Montagner
Cientista social. Mestre e Doutora em Saúde Coletiva
Departamento de Medicina Preventiva e Social da FCM -Unicamp.
inezmontagner@hotmail.com

RESUMO:
Este artigo analisa as obras de Pierre Bourdieu, e por meio delas, realiza um esboço de uma teoria geral dos
campos, ausência assumida pelo autor e por ele encarada como um vade-mécum. A despeito desse temor e
do perigo de reducionismo inerente a tal tarefa, julgo importante ensaiar essa síntese, dadas a complexidade
do pensamento do autor aliada a uma escrita por vezes acachapante e barroca, as imprecisões de tradução, a
existência de textos não traduzidos e, por fim, lacunas explicativas da própria proposta de Bourdieu. À luz de
meus próprios trabalhos e investigações, proponho o conceito de epifania como chave de um prolongamento
possível de seus trabalhos, neles introduzindo um caráter epistemológico que açambarque também os aspectos
de transformação dos habitus dos agentes sociais e dos grupos sociais, contrapondo, dessarte, os aspectos de
mudanças sociais inscritos nos habitus individuais aos aspectos mais deterministas necessariamente enfatizados
a revezes na obra bourdieusiana. Com este artigo, espero contribuir com conceitos e ferramentas capazes de
fundamentas pesquisas na área da saúde, ainda carente de referenciais teóricos estruturais advindos das ciências
sociais.
Palavras-chave: Pierre Bourdieu, teoria geral dos campos, habitus, epifania.

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 255


ABSTRACT: Pierre Bourdieu’s general theory of fields: a reader
This article examines the Pierre Bourdieu’s works, and through them, makes a sketch of a general theory of fields,
absence accepted by the author and he regarded as a vade mecum of their work. Despite this fear and danger of
reductionism inherent in this task, I think it important to test this synthesis, given the complexity of thought of
Bourdieu combined with his style of writing sometimes Baroque, the inaccuracies of translation, the existence of
non-translated texts to the Portuguese, and finally, explain the shortcomings of Bourdieu’s own proposal. In light
of my own work and researches, I propose the concept of epiphany as the key to a possible extension of their
work, by analyzing epistemological aspects of transforming the habitus of social agents and social groups. With
this article, I hope to contribute with concepts and tools to the researches in public health field, which needs, in
Brazil, theoretical contributions from the social sciences.
Keywords: Pierre Bourdieu, General theory of fields, habitus, epiphany.

RESUMEN: La teoría general de los campos de Pierre Bourdieu: una lectura


Este artículo analiza las obras de Pierre Bourdieu y, por medio de estas, esboza una teoría general de los campos,
ausencia asumida por ese autor, que la consideró como un vademécum de su producción. A pesar de ese
temor y del riesgo de reduccionismo, inherente a esa tarea, considero importante ensayar esa síntesis, dadas
la complejidad del pensamiento del autor, aliada a un estilo a veces abrumador y barroco, las imprecisiones de
la traducción, la existencia de textos no traducidos y, aún, vacíos explicativos en la misma obra de Bourdieu. En
base a mis trabajos e investigaciones propongo el concepto de epifanía como elemento clave para una posible
extensión de los trabajos del autor, introduciendo en estos un enfoque epistemológico que abarque los aspectos
de transformación de los habitus de los agentes sociales y de los grupos sociales, contrastándose, de esa forma,
los aspectos de modificaciones sociales inscritos en los habitus individuales con los aspectos más deterministas
que necesariamente son a veces enfatizados en la obra bourdieusiana. Con este artículo espero contribuir
con conceptos e instrumentos capaces de fundamentar investigaciones en el área de salud, que aún necesita
referenciales teóricos estructurales provenientes de las ciencias sociales.
Palabras clave: Pierre Bourdieu, teoría general de los campos, habitus, epifanía.

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 256


Bourdieu costumava deplorar o fato
O meio-saber é mais vitorioso que o saber de possuir disposições ao borboleteio
inteiro: ele conhece as coisas de modo mais (dispositions papillonnes), de não ter jamais
simples do que são, o que torna sua opinião
mais compreensível e mais convincente. expendido tempo com uma divulgação
Nietzsche. Humano, demasiado humano. específica por meio de uma apresentação
Aforismo 578. completa de seus trabalhos, a ausência de
livros mais palatáveis ao grande público
Não é a virtude que pode fundar uma
ordem intelectual livre; é uma ordem e uma sistematização expressa de suas
intelectual livre que pode fundar a virtude obras. Costumava chamar esse esforço de
intelectual. “manualização” de si mesmo, e percebia
Pierre Bourdieu. As regras da Arte.
mais interesse em realizar outras pesquisas e
desenvolver outros temas que escrever uma
INTRODUÇÃO
obra pura e simples sobre sua metodologia2.
Meu esforço aqui será o de esboçar ou
Como resultado, deixou um largo
recensear uma teoria geral dos campos nas
espaço para conjeturas teóricas e
obras de Pierre Bourdieu, uma espécie de
possibilidades a serem analisadas. Se, por
execução póstuma de uma proposta antiga
um lado, uma manualização do autor pode
do autor. Se ele constata que “um projeto
reduzir suas teorias e ameaça proporcionar
de uma teoria geral não seja absurdo” e
um pretenso ar de familiaridade com uma
propõe até mesmo uma mediação entre uma
obra propositalmente complexa, por outro,
“monografia ideográfica e a teoria formal e
acredito que uma apresentação consistente
vazia”1, acredito que visava o que seria uma
da obra do autor, elidindo inicialmente
“teoria de médio alcance”. Apesar disto,
as questões mais espinhosas e os textos
esta foi uma tarefa inacabada, mesmo se
mais herméticos, e sugerindo chaves
perseguidos tenazmente, nos vários campos
interpretativas que não esgotem e nem
sociais, os elementos para a confecção
enrijeçam a perspectiva do leitor, pode valer
de tal teoria. Após realizar essa tentativa,
mais e significar um alento para os novos
procuraremos aprofundar as raízes dessa
pensadores em ciências sociais, às voltas
teoria geral e ampliaremos um pouco
com uma densidade teórica quase sem par
o escopo desse trabalho, relacionando
na moderna sociologia e, ainda, proporcionar
a teoria de Bourdieu as suas origens
luzes para uma penetração, no futuro, mais
weberianas, o que acreditamos elucidar mais
amiudada de seus conceitos.
satisfatoriamente a teoria geral dos campos
(TGC) desenvolvida pelo autor.
No Brasil, a excelente introdução à
obra de Bourdieu apresentada por Miceli3,
Por fim, esperamos que esta teoria
segue como uma referência incontornável,
dos campos possa contribuir para dar
mas elucida nossa tese: nesse texto, o
consistência e fundamentação aos estudos
grande conceito aprofundado é o de
a se realizar na área da saúde, sobretudo do
habitus, tratado de forma arqueológica; e o
ponto de vista bourdieusiano.
de campo não é referido como um conceito

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 257


em si, mas adjetivado como simbólico e específico e, nos casos nos quais ainda não
cultural. Isto demonstra que essa introdução existia um determinado campo, a sua própria
estava na charneira da obra bourdieusiana, inauguração fundadora (considerando que
e muito champanhe iria estourar em torno os intelectuais são os operadores da criação
da utilização desse conceito, que elidiria, em simbólica). Passou a ser corriqueiro pessoas
alguns momentos, mesmo o de habitus. Em investirem na análise de setores sociais,
uma construção posterior, Ortiz4 já desenha nomeando-os como campo e, em seguida,
e toma seu tempo na análise do conceito de tornarem-se especialistas nesse campo,
campo, e então, tematiza alguns invariantes como no exemplo da “terceira idade” na
do funcionamento desses espaços sociais. França, apontado por Lenoir 7.
De minha parte, procurei ressaltar a obra
de Bourdieu no campo da saúde, primeiro Por outro lado, o conceito de habitus
realizando um balanço teórico da teoria exige uma hermenêutica pouco evidente
bourdieusiana e suas possibilidades para e um arsenal de provas não negligenciável.
tratar o tema da saúde5 e, em seguida, Ele demanda apelo a variáveis geracionais,
por meio de uma recensão dos trabalhos quantitativas, grupais, de efeitos de
do autor e de seu grupo na área da saúde, trajetórias, de análise histórica de grupos
publicados em sua maior parte na revista no tempo; do mesmo modo no caso da
Actes de la recherche en sciences sociales 6. análise de um campo, mas envolve também
variáveis menos objetivas, mais qualitativas
De certa forma, procuramos atualizar e subjetivas. Mesmo se conseguimos
e complementar esse esboço quanto objetivar estatisticamente um habitus, resta
ao conceito de campo, buscando uma inanimada toda a sua dimensão de ethos, de
generalização. conteúdos de imagens e representações.
Outro argumento pode ser aduzido: não
O conceito de campo e sua genealogia desenvolvemos ainda, na sociologia,
elementos de captação e sistemas de análise
O conceito de campo surge na obra
capazes de bem determinar a “linguagem
de Bourdieu em um período mais tardio,
corporal”, ou por outra, a hexis como ela se
e de certa forma eclipsou seu primeiro
nos apresenta. Mesmo se exemplificada e
conceito fundamental, o de habitus. O fato
analisada externamente, falta uma técnica
se deve, para o bem ou para o mal, que o
alentadora e eficaz no manuseio desse tipo
conceito proporciona ganhos heurísticos
de dado. Um ensaio muito convincente e já
evidentes no trabalho de pesquisa, sem
clássico foi realizado por Gregory Bateson8,
remeter ao corpus teórico de Bourdieu.
no qual catalogou e expôs o repertório
Vale dizer, pode e passou a ser utilizado de
das técnicas corporais dos nativos de Bali,
forma heterônoma, sem a concorrência
para mostrar os esquemas de classificação
do par teórico representado pelo habitus.
embutidos nessas técnicas e que exprimem
Sua utilização permite, como se fora uma
o estilo ou o habitus que preside o uso do
profecia auto-realizável, ao mesmo tempo
corpo.
uma análise de um determinado espaço social

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 258


Por outro lado, o uso do habitus são longamente analisadas e não se pode
representa uma aceitação ou uma adesão ao ainda sistematizar uma teoria geral dos
ponto de vista bourdieusiano, que poucos campos11. Bourdieu delimita espaços sociais
autores estão dispostos a confessar ou específicos nos quais o produto do trabalho
aceitar. Isto pode ser constatado analisando de um intelectual encontra pessoas capazes
os conteúdos teóricos dos autores e de compreender esse resultado artístico em
companheiros que com ele trabalharam e seus próprios termos, e só neles.
publicaram na revista Actes de la recherche
en sciences sociales, na qual a grande maioria O que seria o projeto criador? Um
dos trabalhos sobre a saúde e a doença projeto essencialmente individual e
que se utilizaram do conceito de campo, idiossincrático que formaria os leitores
o fizeram sem o concurso do habitus, após sua emergência, ou então, um puro
escolhendo sobretudo a noção mediadora epifenômeno das determinações sociais? A
de “representação social” 9, 10. resposta é seguramente colocada em termos
de um conceito mediador, o de habitus,
A gênese do conceito de campo pode mas nesse caso muito mais influenciado
ser pensada como o resultado de uma pelo espírito do tempo, pela consciência de
necessidade de situar os agentes portadores classe, pela hegemonia histórica do que pela
de um habitus dentro do espaço no qual esse consciência e liberdade individual.
mesmo habitus havia sido engendrado sob o
pecado original da dominação e que, para Essa aproximação das invariantes
tanto, pressupôs um arcabouço estável no estruturais é traduzida em Bourdieu por
qual essa dominação se reproduziria. um conceito dinâmico, onde as variáveis
geracionais, de grupos, de classe, de sexo
Quando esboça as relações entre um e até mesmo de capacidades pessoais
artista - um criador imbuído de um projeto integram uma luta pela legitimidade. Essa
intelectual - e um espaço onde essa obra será legitimidade, como no caso religioso, passa
recebida, Bourdieu começa a construção pelo domínio e posse de um elemento
de seu horizonte teórico mais geral, simbólico específico, imanente ao espaço
discorrendo sobre o campo intelectual e social delimitado e determinado por esse
suas características. Neste texto encontram- elemento. Isso tudo está contido na definição
se já esboçadas diversas propostas que algo selvagem do conceito de campo, logo
o autor iria enriquecer e desenvolver na página inicial do artigo, definição que traz
futuramente11. De fato, o foco está na o tradicional rigor e perenidade na obra de
relação entre o criador, a obra e o campo no Bourdieu. Salvo por pequenas alterações,
qual ele estava inserido: a idéia é entender ela permanece a mesma até as derradeiras
as relações de força que se estabelecem obras.
entre essas instâncias e de que maneira
elas interferem na produção de um artefato Nessa imagem do autor, o campo
cultural. Assim, as relações entre os diversos intelectual apresenta peculiaridades. É
campos - intelectual, político e outros – não composto de esferas de ação particulares. A

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 259


“esfera do legítimo”, composta por instâncias uma “primeira elaboração rigorosa da noção
sociais de legitimação reconhecidas como saiu de uma leitura do capítulo de Wirtschaft
as universidades, as academias, as galerias und Gesellschaft consagrado à sociologia
e museus, tem pretensões ao universal e religiosa”13. Nesse trabalho, Bourdieu
ao atemporal. Nessa esfera encontram-se deslancha definitivamente uma teoria dos
todas as artes ditas nobres, como a música campos e começa a propor conceitos como
clássica, a escultura, a literatura, a pintura interesse, capital simbólico, poder simbólico,
e o teatro, artes que possuem sistemas de dentre outros12. O objetivo era entender
transmissão e reprodução de suas regras, como o carisma se rotiniza através de
capazes de unificar os valores ideais e as grupos de interesse, dispostos a legitimar,
formas de consagração destas produções reproduzir, interpretar e acumular o poder
culturais. simbólico, por via de estratégias diversas.

Já a “esfera do arbitrário” é composta, Nessa primeira tópica, que abrange


por sua vez, de instâncias de legitimação diversos textos, Bourdieu começa a incluir as
não reconhecidas socialmente enquanto relações entre o que ele denomina “campo
tais, como a publicidade, as revistas, a mídia do poder” e o “campo da produção” dos
ligeira, eventos públicos, exposições etc. bens simbólicos. Com a introdução desta
Entre as duas dimensões, resta um espaço noção, o autor procura explicar os efeitos
de formas de produção cultural liminares, dentro do campo que não obedecem à lógica
que podem assumir ares de legítimo, quando de legitimação interna, o capital simbólico
tratadas de forma culta, e ares de popular, se específico. Assim, começa a destrinchar as
analisadas através do gosto não cultivado. relações complexas entre as formas de poder
Assim, o jazz, a fotografia e o cinema podem temporais e o modo de funcionamento
ser o material de um investimento intelectual interno de cada campo. Nesse sentido, ele
refinado e por esta via serem guindados ao desenvolve em dois textos coetâneos alguns
status de uma arte (pelo menos parte desse pontos relativos a essa problemática.
tipo de produção) ou relegados a uma arte
menor, popularesca11. O primeiro, quanto ao campo
religioso, desenvolve a tese da retradução,
Neste artigo encontra-se subentendido reinterpretação e revalidação dos conteúdos
o paralelo entre o universo religioso religiosos em termos de habitus individuais
e o mundo intelectual, retomando os ou grupais, com afinidades eletivas prévias
escritos de Weber sobre a gênese do e que se desenvolvem de acordo com as
campo religioso e das religiões, mesmo estratégias de racionalização do campo da
sem expor explicitamente essa tese neste religião, isto é, as interpretações religiosas
texto. Isto aconteceria mais tarde em Une são vazadas em formas diretamente
interprétation de la théorie de la religion de acordo com os habitus grupais dos
selon Max Weber12. Nesse segundo artigo, praticantes e das instituições encarregadas
Bourdieu apresenta claramente o conceito da rotinização do carisma inicial da igreja14.
de campo e, como afirmou posteriormente,

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 260


No outro texto do período, o autor para estratégias de subversão, utilizadas
trabalha as relações entre o campo da pelos que intuem e prevêem, baseados em
produção erudita, restrito e específico, e o suas próprias interpretação das condições
grande campo da indústria cultural15. Nele se objetivas vigentes no campo e de suas
percebe as tensões entre os dois campos e próprias possibilidades, meios que visam a
as formas de que se revestem as lutas pela mesmo fim, a “tomada” do poder simbólico,
legitimação das obras intelectuais vis-à-vis os isto é, a consagração da vanguarda, mas por
poderes temporais. meio de um adiamento e todo um trabalho
de mudança e/ou acumulação do que é
Um campo possui uma autonomia considerado legítimo. Vale dizer, ambas as
relativa que varia de acordo com o maior estratégias mudam no tempo e se tornam
ou menor peso dado às forças internas ao obsoletas desde que os valores internos
campo como definidoras do que é legítimo ao campo mudem e as apostas sofram
ou ilegítimo; quanto menos autônomo, revoluções periódicas.
mais um campo está sujeito às inferências
externas e aos poderes temporais. A configuração teórica do conceito de
campo remete à dinâmica da regularidade
Por outro lado, esta autonomia do social. Um campo traz em si mesmo
estabelece as condições para uma luta as condições de sua própria reprodução.
concorrencial interna ao campo, realizada Isto inclui os meios de formação de novos
pelos integrantes que aceitam a illusio inicial, integrantes(escolas, grupos formais,
e que a acatam como, ao mesmo tempo, academias, universidades); inclui as
condição e direito de entrada. Os que instâncias de consagração, responsáveis
partilham da illusio podem livremente lutar pela regulação do que é legítimo e o que é
pela legitimidade no campo e pela própria desvalorizado, ou seja, os ritos de instituição
definição do que é legítimo. balizados e consagrados pelas instituições e
dispositivos do campo, como as premiações,
Essa luta concorrencial passa por toda
o auxílio e o fomento à pesquisa, os
uma pletora de estratégias empregadas
financiamentos de novos projetos etc.;
pelos agentes sociais. Elas estão diretamente
inclui as instâncias e os modos de seleção
influenciadas por aspectos geracionais, pois
dos novos integrantes ou postulantes a tal,
na cadeia de sucessão de cada campo há
como os concursos, os sistemas e as regras
uma dinâmica de conservação e mudança
de avaliação dos lugares disponíveis aos
contínua. Isso cria espaço para estratégias
agentes.
de conservação, levadas a cabo pelos
“herdeiros naturais” ou aqueles que O próprio campo simbólico pode sofrer
naturalmente, dentro da dominação social grandes alterações a partir das influências
em vigor, têm maior probabilidade de fazer de outras ordens sociais, como do poder
valer seus direitos de assumirem os melhores político, o poder econômico e até mesmo
postos, à custa de menores esforços ou de o poder religioso. Bourdieu define o campo
esforços equivalentes. Cria também o espaço intelectual em oposição a esses três poderes

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 261


sociais, como uma diferenciação histórica, puro”, vazado no prestígio interpares, de
possível inicialmente dentro das sociedades visada internacional, baseado na capacidade
européias e graças a uma série de fatores criativa e de inovação propriamente interna
específicos. à ciência.

Essa abordagem assemelha-se em Essa dicotomia central gera


muitos pontos a maneira usada por Merton conseqüências como o “efeito de halo”, um
para perscrutar as origens da ciência e a sua efeito do poder científico institucional que
relação com as sociedades ocidentais, em leva os pesquisadores na base da pirâmide
particular a sociedade inglesa da Revolução da hierarquia de cientistas a impregnar de
Industrial16. Neste trabalho Merton avalia as qualidades científicas excepcionais aqueles
condições de surgimento de um novo grupo que detêm os poderes institucionais em um
social oriundo da classe média de profissionais determinado momento de um campo17.
voltados a um determinado ramo na divisão
social do trabalho, o do conhecimento Esse efeito proposto encontra uma
científico; e ainda o modo como esse novo metáfora perfeita na descrição feita por
escalão ganha autonomia a ponto de criar Machado de Assis em termos literários, no
suas instâncias de auto-avaliação, como a conto Teoria do Medalhão, que representa
Sociedade Real de Londres, nas quais os a teoria em ato da construção da trajetória
intelectuais avaliavam publicamente o saber social de um medalhão. Sua teoria corrosiva
produzido por seus pares, sancionando ou penetra em todos os recantos do social
proibindo esses novos conhecimentos. O e descreve a “teoria da reprodução” da
que Merton buscava eram as origens do que sociedade. Baseada em uma hexis específica,
ele denominava a “comunidade científica”, uma “compostura de medalhão” sinalizada
seus meios de funcionamento, suas normas pela gravidade vazia, essa práxis é um ofício,
e seu ethos, tudo fundamentos de sua nova fruto de um treino (socialização) levado a
autonomia. Contrariamente a Merton, a cabo pelos trâmites de um espaço social, para
definição de comunidade científica em se atingir “a arte difícil de pensar o pensado”.
Bourdieu está longe de ser homogênea Esta práxis evita todo engajamento em
e portadora de um ethos único, mas se idéias precisas, mantém-se nos ambientes
encontra clivada por habitus em conflito. de consenso e de poder, faz uso constante
da citação adjetiva, da publicidade que
No caso da ciência, Bourdieu propõe advém da ligação da assinatura pessoal a
ainda duas lógicas centrais que dividem temas do momento, mas sem controvérsias
o campo em oposições derivadas dos profundas. Machado propõe a participação
poderes que ele denomina “capital científico em comissões, em eventos, em todas as
institucional”, ligado aos poderes temporais situações de promoção pessoal, embora
(econômicos e políticos), vazados no sem o uso de qualquer capacidade crítica.
controle institucional e administrativo do
dispositivo acadêmico em geral e nos poderes Outro efeito refere-se ao resultado
locais das redes sociais, e o “capital científico inverso: os desprovidos de capital social

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 262


ou institucional, mesmo se competentes estivesse contida em germe nessa primeira
cientificamente, encontram-se na situação configuração teórica, ele passa a estudar
de dependência dos poderes institucionais, e sistematicamente os diversos campos sociais,
dessarte percebem-se sistematicamente sob além desse primeiro que ele denominava
o “efeito Lucas ou do filho pródigo”, pois que campo intelectual. Esse programa apontava
este privilegia os herdeiros naturais do capital que existem vários campos na sociedade
simbólico que têm toda a liberdade para e eles estão numa cadeia de relações
criar, dilapidar, tomar distâncias e contrariar assimétricas e hierarquicamente situadas.
as linhas de força de um campo e mesmo Pode-se mesmo afirmar que os campos são
assim retomar sua posição, seu lugar por áreas concretas do mundo social e suas
excelência na ordem natural ou naturalizada. relações são historicamente construídas.
Esse efeito onera os desprovidos do mundo Dessa forma, as relações entre os campos
acadêmico, pois o trabalho de conversão são entre campos dominantes e campos
do habitus original naquele exigido pelo dominados, e os agentes podem usar a
campo acresce o número de obstáculos e estratégia migratória entre eles, através da
sobredetermina onerosamente a trajetória “conversão”. Esta concepção de Bourdieu
do cientista nesse espaço18. foi por ele materialmente vislumbrada nos
móbiles de Alexander Calder, nos quais
Nesse modelo da TGC, as relações a mobilidade do conjunto está ligada à
entre agentes sociais tomam a forma de uma interdependência entre os subconjuntos e
luta de trincheiras pela hegemonia dentro de os campos individuais.
cada campo, e há a formação de vanguardas
e grupos conservadores, já consagrados e A partir da fundação da revista
que mantêm as posições de prestígio. De Actes de la recherche en sciences sociales,
certa forma, mutatis mutandis, essa postura Bourdieu inaugura todo um programa de
sobre os intelectuais assemelha-se àquela pesquisas sobre diversos temas, até então
de Gramsci, que postulava os intelectuais considerado pouco nobres. Investe no
orgânicos como os produtores das estudo do campo científico19 e toma o campo
interpretações do mundo e como os sujeitos da alta costura como objeto para ilustrar a
da construção das ideologias. criação carismática20; em seguida realiza
uma grande pesquisa sobre a “anatomia
Essa é o que podemos chamar de do gosto” e elucida os modos e os estilos
primeira tópica bourdieusiana, que será de consumo na sociedade francesa de
ampliada e incluirá uma miríade de campos acordo com as classes sociais21, publicando
e aplicações específicas, partindo de um La distinction em 1979. Por fim, evidencia-se
esboço que Bourdieu13 apresenta sobre que a reiteração cronológica de pesquisas
o poder simbólico e que constitui um foi um efeito buscado estrategicamente por
verdadeiro programa de pesquisas que ele Bourdieu, com o objetivo de “levar a um
desenvolveria posteriormente. nível de generalidade e de formalização mais
elevado os princípios teóricos envolvidos no
Se bem que a TGC bordieusiana

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 263


estudo empírico de universos diferentes e as limite dos campos e suas características são
leis invariantes de estrutura e da história dos uma construção teórica e histórica. Assim, o
diferentes campos”13. conceito de campo passa a ser um instrumento
heurístico, capaz de iluminar a análise
Todo esse investimento gera um das “posições” dos agentes envolvidos
enriquecimento de suas propostas de análise em uma determinada arena social, suas
dos campos, e torna a dinâmica da TGC mais “disposições” e a partir daí suas “tomadas
cristalizada em uma segunda tópica, relatada de posição” dentro do campo. Destarte, o
principalmente em Questões de sociologia - estudo dos campos se complexifica e torna-
1980 e As regras da arte - 1992, aprofundada se uma teoria geral da ação dos indivíduos,
a seguir. com conotações de funcionamento global
dentro da sociedade. Empregando até o
A partir de sua consagração e eleição
limite o argumento de Weber em relação
para o Collège de France, busca uma análise
à lógica do universo religioso, ou seja, de
do campo político22, 23 e começa a se
que o carisma inicial e todas as formas do
interessar pelo papel do campo acadêmico
poder de suscitar obediência tendem a
na composição do poder24 resultando em
passar por uma rotinização específica a cada
Homo academicus - 1984 e La noblesse d’Etat
conteúdo carismático e a cada tipo de poder
- 1989. Nessas duas últimas obras, procura
espiritual, Bourdieu passa a empregar a
relacionar sistematicamente o campo da
alegoria e a retórica econômica de maneira
produção simbólica ao espaço social em
geral, exacerbando uma possível leitura
que outras instâncias de poder assumem
economicista em suas obras. Se bem que
proeminência e decidem externamente
essa interpretação seja mais palatável,
as forças que agirão sobre e influenciarão
promova uma facilidade de assimilação de
o próprio campo. Esse universo recebe o
seus trabalhos e divulgue facilmente suas
nome de campo do poder, lugar geométrico
idéias, o emprego constante dessa retórica
no qual se daria o embate entre diversos
significou um cavalo de tróia em sua obra,
poderes como o econômico, o político e o
ao abrir a possibilidade de críticas gratuitas
simbólico, sobretudo um espaço social no
e repetidas à náusea, fruto de uma leitura
qual se estabelecem as dominações entre
ligeira. Acusado como reducionista, teve
os campos. De novo e de várias formas, essa
o dissabor de defender-se de si mesmo,
composição parece a de “sociedade civil”
pois seus críticos passaram a empregar a
em Gramsci, para a ele dimensão na qual
metáfora econômica como uma reductio ad
se resolvem e consolidam as hegemonias e
absurdum.
registra-se o consenso.
Nessa segunda configuração teórica,
Nessa nova dinâmica, o campo pode
o “carisma” weberiano toma corpo então
ser definido menos como uma “substância”,
nas estruturas relacionais do social, pois
como um espaço concreto da sociedade
a capacidade de encontrar pessoas ou
real e mais como um espaço abstrato e
seguidores aptos a aceitar a dominação
representacional, no qual as definições do

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 264


está inscrita no habitus, após terem existido resistências, seja qual for o fundamento
primordialmente no mundo social. O carisma, desta probabilidade”25. Este poder
traduzido em poder simbólico, objetiva-se inominado pode ser a fonte da “violência
nos espaços sociais e em suas configurações. simbólica”, que se comete sem deixar marcas
Podemos perceber que esse poder espiritual ou vestígios, pois não tem uma origem
acaba por se traduzir no conceito de “poder conhecida ou clara, ou seja, uma violência
simbólico”, uma capacidade de encontrar sem legitimação específica. No caso do poder
mando sem que seu fundamento seja interno aos campos sociais, teríamos então
claramente e socialmente designado, um uma dominação, nos termos weberianos “a
poder que se desconhece enquanto tal. probabilidade de encontrarmos obediência
Esse poder pode tornar-se uma violência a uma ordem de determinado conteúdo,
simbólica, pois é exercido sem possibilidade entre determinadas pessoas indicáveis”25.
de defesa, sem apelo a uma norma, regra ou Esta lógica está apresentada por Weber
ordem coletiva pública e explícita: no trecho em que discute a sociologia da
dominação e as formas de transição entre
O poder simbólico, poder subordinado, poder e dominação25. Parece ser esse o caso
é uma forma transformada, quer dizer,
na TGC de Bourdieu, mas de forma aplicada
irreconhecível, transfigurada e legitimada,
das outras formas de poder: só se pode aos diversos campos culturais.
passar para além da alternativa dos
modelos energéticos que descrevem as Nessa segunda tópica, o poder torna-
relações sociais como relações de força e se mais complexo e pode ser exercido com
dos modelos cibernéticos que fazem delas
relações de comunicação, na condição de a cumplicidade dos capitais hauridos dos
se descreverem as leis de transformação diversos campos; pode ser convertido de
que regem a transmutação das diferentes um campo a outro, ou então de uma parte
espécies de capital em capital simbólico e,
dominante do campo a uma parte dominada
em especial, o trabalho de dissimulação
e de transfiguração (numa palavra, de de outro campo, de uma parte dominada em
eufemização) que garante uma verdadeira um campo para uma parte dominante em
transubstanciação das relações de força outro. Essa miríade de estratégias faz parte
fazendo ignorar-reconhecer a violência
que elas encerram objetivamente e das lógicas intra e intercampo. Como forma
transformando-as assim em poder de afrontar sua vida, o agente segue seu
simbólico, capaz de produzir efeitos reais senso prático, baseado em suas afinidades
sem dispêndio aparente de energia 13.
eletivas, afetivas e efetivas para traçar sua
Poder-se-ia então assumir o poder trajetória.
simbólico como um tipo de poder despido da
legitimação de um campo, um tipo “puro” e De toda forma, o que sobressai em
espraiado por todo o espaço social. Ele seria todas as duas tópicas é uma constância de
então, num paralelo, o tipo geral de poder vários tipos de dominação que perpassam
definido por Weber, aquele que “significa os campos e os definem de forma relacional.
toda probabilidade de impor a própria Pode-se mesmo afirmar que sua TGC
vontade uma relação social, mesmo contra permaneceu devedora das elucubrações de
Weber a respeito das formas de dominação

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 265


possíveis dentro das sociedades. As grandes um “intelectual específico” em Foucault: a
linhas de força que sempre delimitaram postura bourdieusiana fez eco à proposta
as dinâmicas dos campos baseiam-se nos de Weber da separação entre a vocação
três tipos de dominação propostos na científica e vocação política, mas resgata,
obra weberiana, a dominação tradicional, a todavia, um espaço de autonomia relativa
racional-legal e a carismática. Essas formas e de atuação do intelectual baseado na
de dominação são baseadas em formas legitimação conquistada a duras penas nas
específicas de crenças, que as legitimam e sociedades. Para o autor:
fundamentam.
O intelectual é uma personagem
Propomos aqui uma utilização latente bidimensional que não existe e não subsiste
como tal a não ser que (e apenas se) esteja
por parte de Bourdieu, não explícita, e
investido de uma autoridade específica,
conformada pelo seu próprio habitus, dessas conferida por um mundo intelectual autônomo
categorias tipo ideais e puras de Weber, nas (ou seja, independente dos poderes religiosos,
análises e na configuração que empresta a políticos, econômicos) do qual respeita as
leis específicas, e que (e apenas se) empenhe
sua TGC. Isso se revela mesmo em sua postura sua autoridade específica em lutas políticas.
de recusa racional do engajamento político Longe de haver, como se crê comumente,
clássico, mas sim da atividade política como uma antinomia entre a busca de autonomia
(que caracteriza a arte, a ciência e a literatura
resultado da práxis científica, da escolha
ditas ‘puras’) e a busca da eficácia política,
dos objetos, da elucidação de conteúdos é aumentando sua autonomia (e, com isso,
não manifestos do mal estar social. Assim, a entre outras coisas, sua liberdade de crítica
proposta de Bourdieu é tanto uma demissão com relação aos poderes) que os intelectuais
podem aumentar a eficácia de uma ação
quanto ao papel de “intelectual orgânico” política cujos fins e meios encontram seu
em Gramsci quanto uma recusa ao perfil de

Fig. 1: Conjunto de Mandebrot

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 266


princípio na lógica específica dos campos de campo.
produção cultural 26.

Bourdieu coloca à prova sua proposta, A grande imagem da teoria geral dos
a de um corporativismo do universal, campos e a que melhor se adapta a esse
na confecção e publicação de A Miséria construto parece ser a de um conjunto de
do Mundo, que marca um engajamento fractais, que se interpenetram. Como um
público e político mais claro, iniciado nos motivo, uma estrutura contínua e irregular,
anos 90. Na mesma linha, a publicação d’A o fractal permanece coerente e obedece
dominação masculina acompanha essa a algumas invariantes estruturais, sem
guinada. A sugestão de uma realpolitik perder a regularidade no tempo. Sua lógica
da razão capaz de fortalecer a autonomia matemática é não-euclidiana, e como no
intelectual, concebida como uma forma de campo, muitas vezes a menor distância
preservar ganhos históricos dos intelectuais entre dois lugares ou postos, não é uma
como produtores dos bens simbólicos reta, mas uma curva, uma reconversão
específicos, navega na valorização da simbólica, a escolha de uma estratégia de
verdade científica em detrimento das razões “desinteresse”, de negação dos objetivos
políticas. Para ele, “é sem dúvida de uma ou uma curva tática. Essa lógica particular
verdadeira internacionalização do campo não é, sem a excluirmos, a lógica racional e
das ciências sociais que poderíamos esperar instrumental, pois ela passa pela retradução
a contribuição mais eficaz ao progresso da simbólica específica ao campo.
autonomia científica”27.
Como no fractal que gera o conjunto
Nesse universo atua o intelectual de Mandelbrot, Figura 1.
bourdieusiano. Podemos imaginar o
Como um campo, sua estrutura
espaço social em Bourdieu como um
construída historicamente permanece e se
grande conjunto de campos condicionados,
reproduz, assumindo formas ligeiramente
alterados, influenciados, eliminados e
diferentes de acordo com as oposições
recriados continuamente e historicamente.
e confrontos que encontra e pelos quais
Os grandes efeitos de atração e repulsão
passa. Mesmo mantendo sua “homologia
que condicionam a autonomia e a
estrutural”, cada nova configuração mantém
existência desses espaços especiais e
as características centrais da antiga. Essa
específicos do mundo social são as fontes
revolução permanente faz parte da própria
de legitimação presentes na sociedade,
lógica de funcionamento do campo, e como
as fontes primárias de poder, as formas
no fractal, mantém sua identidade, e a illusio
engendradas historicamente de dominação
dos que participam do campo permanece a
nas sociedades contemporâneas. Assim, os
mesma.
campos são atravessados por diversos tipos
de legitimidades, umas mais importantes
A TGC seria um variado conjunto de
que outras; mas com uma mais relevante
fractais que se sobrepõem, interpenetram-
de todas e que define o capital central do
se e que estabelecem novas composições

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 267


espaciais e regionais a partir dessas novas e leigos inclinados a aceitá-la como forma
ligações. As grandes linhas e invariantes de poder social, muitas vezes impessoal.
são as lógicas de legitimação dita puras em A aceitação da técnica e da ciência como
Weber, e que se modificam e se transformam uma ideologia legitimadora de outras
quando em contato com outras lógicas dominações inconscientes é uma constante
de legitimação, prevalecentes em cada nas sociedades modernas, a par com uma
um dos campos. Essa mistura torna-se ressurreição de doutrinas evolucionistas e
uma retradução específica a cada campo de fundo biológico e outras maravilhas da
particular, onde o capital simbólico é regional dialética societária28.
e específico, mas também obedece a leis
mais gerais ligadas ao espaço social total. De todo modo, essa circularidade na
TGC de Bourdieu é devedora e desaguadouro
De todo modo, as lógicas imanentes da própria teoria weberiana, no fundo e
dos campos são atravessadas pelas fontes na forma uma teoria baseada na força e na
de legitimação dos bens simbólicos e dos revolução causada pelo carisma, de figuras
produtores como grupo social. O campo plenas de força criativa e de capacidade
científico sofre fortes restrições das lógicas de ação29. Essa assunção do mundo como
de dominação racionais imanentes das “vontade e representação”, no centro da
instituições de financiamento das pesquisas, concepção filosófica de Schopenhauer,
da institucionalização dos cientistas em aprofundada por Nietzsche, é uma tônica
grupos nos quais o trabalho se hierarquiza herdada pela vertente weberiana, mesmo
e coletiviza, dos interesses econômicos das se Bourdieu recusa com todas as letras
grandes corporações que investem e se e por inúmeras vezes a sucumbir a uma
beneficiam dos resultados da tecnociência explicação voluntarista e individualista da
e de inúmeras outras fontes que obedecem história. Como enfatiza assim a permanência
a lógicas instrumentais. Por outro lado, as do habitus, parece mesmo improvável para
explicações científicas sofrem uma acirrada o sujeito escapar das malhas do social, do
concorrência, especialmente nas ciências peso das estruturas societárias, construções
humanas, de tradicionais formas de narração humanas naturalizadas.
do real, da prática do métier intelectual
realizada por grupos consuetudinários, A aporia não resolvida em sua
antigos, com regras e ethos diferenciados, teoria da ação passa pela impossibilidade
concorrentes em potencial na legitimação latente em explicar a hysteresis de todo e
da “verdade” cientifica. qualquer habitus por meio de causas sociais
explícitas, buscando inspiração de fatores
Poderíamos acrescentar a essas fontes probabilísticos ou idiossincráticos. Para
de dominação na sociedade moderna, uma Bourdieu, um habitus se torna manifesto
fonte recente, mas nem por isso menos claramente quando o campo se altera
eficaz, a legitimação em razão dos artefatos em situações de completa reformulação
tecnológicos em si mesmos. Essa legitimação e mudança, e ele permanece o mesmo
tecnológica encontra cada vez mais adeptos através de uma propriedade de inércia,

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 268


de hysteresis. Essa palavra grega significa herdeiros da lógica da conservação social.
deficiência e remete a uma capacidade
traduzida no conceito da física natural As trajetórias individuais e coletivas
na qual ele significa a propriedade de um são afetadas por eventos e sucessos de
sistema que não obedece diretamente ou incontáveis maneiras, e nem toda incrustação
imediatamente às forças aplicadas, pois a das características sociais e de grupo nas
sua reação é lenta ou então ele não retorna personas individuais, via habitus, ocorre de
ao ponto inicial antes da aplicação da força: modo conservador e de manutenção da
isso significa que o estado geral do sistema ordem social, ainda que estatisticamente
é parcialmente determinado por forças essa seja uma tendência majoritária e, por
internas ou por reações intrínsecas, todas vezes, a incorporação de motivos de negação
a acontecer naquele momento específico. e alteração do habitus grupal ou de classe
Esse comportamento individual é justamente esteja no limite da quase impossibilidade. De
o que permite demonstrar um efeito de todo modo, o pessimismo não significa um
afastamento do agente das determinações determinismo. Caberia então um programa
grupais e de classe, um afastamento de seu de pesquisa atento aos “dispositivos” de
habitus individual em relação ao habitus de mudança e de contra-adestramento, que
seu grupo, através do senso prático, como pudessem tornar os corpos indóceis e, os
postulou Bourdieu30. habitus, capazes de hysteresis.

De toda forma, essa propriedade é Como constatamos em nosso estudo


relativamente rara e acontece com pouca de grupos de pesquisadores de uma
freqüência, pois pelo inventário do embate instituição, os traços distintivos de uma
entre “possibilidades de vida” e “escolhas de vanguarda são marcadores sociais presentes
vida”, o papel das escolhas transcendentais nos habitus individuais construídos ao longo
parece pequeno. da socialização primária, secundária e até
terciária. Esses cientistas, ora consagrados,
Mesmo aceitando todo o pessimismo guardavam em suas memórias coletivas o
e o insustentável peso da estrutura social, reconhecimento de que “algo estava fora
resta-nos deslanchar e completar uma teoria da ordem” em suas trajetórias e explicavam
da ação dos agentes que contemple os raros este fato de diversas maneiras, mesmo
e imponderáveis casos de subversão exitosa se recorrendo à “ilusão biográfica”. Essa
dos campos sociais, a partir dos sujeitos. Se hysteresis pôde ser constatada, em alguns
os campos sociais são capazes de conter casos específicos, por meio da objetivação
sua própria negação e engendrar agentes da trajetória grupal, no que nomeei biografia
que o contestem e subvertam, intelectuais coletiva de personas coletivas: ao quantificar
orgânicos contra-hegemônicos, a lógica os indicadores grupais de produção científica
geral dos campos não seria exclusivamente e de práticas de pesquisa, percebeu-se
reprodutiva e teríamos assim a possibilidade um padrão comum e diferenciado devido
da ação das vanguardas e de novas ordens à expressão do habitus em diferentes
de legitimação propostas por agentes, não situações de trabalho na instituição18.

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 269


Uma proposta teórica dois tipos.

Podemos sugerir o conceito de Essa compreensão gestáltica, que


“epifania” como um contraponto ao peso nada tem de milagrosa e na qual permanece
das estruturas sociais. A etimologia da a conseqüência de vários eventos sociais
palavra indica sua origem francesa, língua e de inúmeros eventos biográficos, ocorre
na qual ela significa a festa católica em durante e dentro de uma trajetória individual
comemoração aos reis magos – o Dia de (ou do grupo), como a definia Bourdieu. No
Reis. Já em português assumiu o significado entanto ela não se resume a um efeito, um
de aparição ou manifestação divina. Uma resultado de uma causa suficiente. A epifania
descrição primorosa de uma epifania pode engloba também, em parte, o acaso e, em
ser constatada na obra de outra escritora boa parte, as idiossincrasias identitárias das
brasileira, Clarice Lispector, que usou deste pessoas. De todo modo, ela ocorre de forma
recurso em diversas passagens de seus rara ou extemporânea na história de vida das
contos ou romances como A paixão segundo pessoas, e pode mesmo nunca ocorrer. Não
G.H., uma autora cuja visão em filigrana obstante, mesmo rara, ela pode iluminar
da alma humana apresentava com grande concretamente a trajetória de um indivíduo
riqueza esse processo pouco tematizado ou de um grupo.
na sociologia. Como conceito, refere-se ao
momento de compreensão instantânea, do Essa influência pode ser discreta
se dar conta, momento de esclarecimento e durar anos; intensa e durar pouco; ou
súbito do contexto da própria vida de um moderada e exercer um poder constante.
indivíduo ou grupo de indivíduos. É o ponto Destas três maneiras, a epifania permanece
histórico, o momento social específico no agregada ao núcleo central que identifica
qual se elucida um conteúdo de saberes e uma personalidade e torna-se um caráter
afetividades referentes a uma configuração definido e constante.
biográfica, tanto do ponto de vista emotivo
Esse momento raro projeta um
quanto racional.
entendimento racional e emotivo de todas,
Esse conceito está profundamente ou boa parte, das regras morais, sociais,
ligado ao sentido histórico de uma trajetória grupais e familiares de um indivíduo; ele
individual ou um conjunto de trajetórias mostra ou dá vazão a uma nova maneira de
de uma biografia coletiva de uma persona enxergarmos novas possibilidades, novos
coletiva, sentido compreendido dessarte caminhos, a intuição de novas maneiras
de uma forma clara, tanto por meio de um de ação e de sentir as constrições sociais
estímulo racional como por um catalisador incorporadas no habitus pessoal. Assim, uma
afetivo. Nesse caso, a dimensão racional panóplia de escolhas e opções é oferecida
tanto pode preceder quanto ser posterior a partir, e somente após, uma epifania.
à dimensão das emoções, que por sua vez O habitus estará deste modo sutilmente
podem ser conscientes ou inconscientes, alterado, e essa esmaecida diferença
geralmente uma mescla heterogênea dos aspergirá suas benesses e seu novo senso

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 270


do jogo sobre os momentos nos quais os contrasta e se contrapõe aos “obstáculos
caminhos e atitudes apontarem para a “visão epistemológicos”, esse ato corresponde
de mundo” apresentada pela epifania. a esses empurrões do gênio científico que
contribui com avanços inesperados o curso
Há sem dúvida uma série de do desenvolvimento científico32. Da mesma
coincidências entres os trabalhos de Berger forma, somente o agente embebido da
e Luckmann e Bourdieu. Esse processo história do grupo pode ser capaz de instaurar
gestáltico pode ser comparado à noção uma nova prática, por menos extraordinária
de “alternação”, como proposto por ou inovadora que ela seja.
Berger e Luckmann31, uma re-socialização
secundária que altera radicalmente toda a Por fim, podemos imaginar que
personalidade do sujeito, estabelecendo a epifania pode ser positiva, na qual as
um corte abrupto na trajetória individual possibilidades antevistas e a realidade
e biográfica. Essa alternação, no nosso compreendida apontam para conteúdos de
caso, seria uma conseqüência da epifania avanço pessoal e de vida; pode por assim
inicial, que coloca o sujeito em contato dizer ser negativa, onde o indivíduo percebe
com uma realidade desconhecida, e talvez, dolorosamente sua situação de vida e seu
só intuída; esse evento levaria o agente a, papel, às vezes miserável, no mundo.
gradativamente, realizar essa alternação,
em um processo mais regular e contínuo. Esse conceito pode ajudar a elucidar
Esse processo de mudança permanece o papel das vanguardas e como os grupos
devedor da existência ou não de “estruturas sociais e as pessoas podem passar por esse
de plausibilidade”, responsáveis por permitir processo e adquirirem um poder carismático
a completa integração de um novo habitus diferente, não explicável pelo estado
pelo agente social, ao manter um conjunto de passado e atual da própria sociedade.
dispositivos suficiente para dar sustentação
A epifania pode ocorrer, pois ela
à nova realidade conquistada. A epifania
representa uma assimetria sistêmica entre
por si mesma é um fator fundamental de
o campo e o habitus, uma exceção que
consciência de si e de nossa posição no
deve ser pensada como um paradoxo,
mundo, ou em um determinado campo
uma contradição dialética entre estruturas
social. Obviamente a busca e a perseguição
sociais e sujeitos. Esta contradição está
dessas estruturas devem ser realizadas
dentro do sujeito, inculcada pelos processos
pelo indivíduo, ao contrário do caso das
de socialização; e emerge quando algum
“instituições totais” de Goffman, que
elemento discordante ligado, seja ao
imergem o indivíduo e o obrigam a sofrer
momento histórico, seja a uma idiossincrasia
a alternação, ainda que essas estruturas
pessoal (resultado de uma socialização
totais ainda existam correntemente nas
imperfeita ou mal sucedida), dispara, como
sociedades modernas.
um catalisador, a epifania, relance “mágico”
Esse tipo de ação, para Bachelard, de percepção de possibilidades de mudança
constitui um ato epistemológico, que e alternação, relance de libertação da nossa

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 271


condenação ao social. 7. Lenoir R. L’invention du «troisième âge» et la
constitution du champ des agents de gestion de la
Em resumo, nossa proposta vieillesse. Actes de la recherche en sciences sociales.
seguramente não esgota todas as 1979;26-27(Classes d’âge et classes sociales):57-82.
interpretações da obra de Bourdieu, vasta e
8. Bateson G. Les usages sociaux du corps à Bali.
que se espraia por inúmeros espaços sociais.
Actes de la recherche en sciences sociales. 1977(14).
No entanto, esperamos ter contribuído para
elucidar melhor este complexo trabalho, 9. Montagner MÂ. A teoria da prática de Bourdieu
alinhavando uma teoria relacional dos e a sociologia da saúde: revisitando as Actes de la
campos, que poderia ser aplicada ao mundo recherche em sciences sociales. [Dissertação de
social e a áreas ainda não completamente Mestrado]. Campinas: Unicamp; 2003.
estudadas. No nosso caso interessa
10. Montagner MÂ. Sociologia Médica, Sociologia da
especialmente seu uso no campo da saúde,
Saúde ou Medicina Social? Um Escorço Comparativo
neste universo do provimento do bem-estar
entre França e Brasil. Saúde Soc. 2008;17(2):193-210.
e, por que não, da felicidade humana. Se
algo nesse sentido for obtido, terá valido o 11. Bourdieu P. Champ intellectuel et projet créateur.
esforço aqui empreendido. Les Temps Modernes. 1966 novembre;246(Problèmes
du structuralisme):865-905.
REFERÊNCIAS
12. Bourdieu P. Une interprétation de la théorie de la
1. Bourdieu P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: religion selon Max Weber. Archives européennes de
Marco Zero; 1983. sociologie. 1971;XII(I):3-21.

2. Bourdieu P, Delsaut Y. Entretien sur l’esprit de 13. Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro:
la recherche. In: Delsaut Y, Rivière M-C, editors. Difel; 1989.
Bibliographie des travaux de Pierre Bourdieu. Pantin:
14. Bourdieu P. Gênese e estrutura do campo
Les temps des Cerises; 2002.
religioso. In: Miceli S, editor. A economia das trocas
3. Miceli S. A força do sentido. In: _____. editor. A simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1998. p. 27-78.
economia das trocas simbólicas. 5ª. ed. São Paulo:
15. Bourdieu P. Campo do poder, campo intelectual
Perspectiva; 1998.
e habitus de classe. In: Miceli S, editor. A economia
4. Ortiz R. A procura de uma sociologia da prática. In: das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1998.
_____. editor. Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática; 2002. p. 183-202.
p. 7-29.
16. Merton RK. Sociologia: teoria e estrutura. São
5. Montagner MÂ. Pierre Bourdieu, o corpo e a Paulo: Mestre Jou; 1970.
saúde: algumas possibilidades teóricas. Ciênc saúde
17. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma
colet. 2006;11(2):515-26.
sociologia clínica do campo científico. São Paulo:
6. Montagner MÂ. Pierre Bourdieu e a saúde: uma Unesp; 2004.
sociologia em Actes de la Recherche en Sciences
18. Montagner MÂ. A consagração das vanguardas:
Sociales. Cad Saúde Pública. 2008;24:1588-98.
memória e biografia coletivas das práticas científicas

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 272


na FCM da Unicamp [Doutorado]. Campinas - SP: 31. Berger P, Luckmann T. A construção social da
Unicamp; 2007. realidade. Petrópolis: Vozes; 1989.

19. Bourdieu P. Le champ scientifique. Actes de la 32. Bachelard G. Epistemologia: trechos escolhidos.
recherche en sciences sociales. 1976 juin;2-3:88-104. Rio de Janeiro: Zahar; 1977.

20. Bourdieu P, Delsaut Y. Le couturier et sa


griffe:contribution à une théorie de la magie. Actes de
la recherche en sciences sociales. 1975; 1: 7-36.

21. Bourdieu P, Saint-Martin M. Anatomie du goût.


Artigo apresentado em 26/10/2010
Actes de la recherche en sciences sociales. 1976; 11:
Aprovado em 23/11/2010
2 -112.

22. Bourdieu P. La représentation politique.


Éléments pour une théorie du champ politique. Actes
de la recherche en sciences sociales. 1981;36-37:3-24.

23. Bourdieu P. Décrire et prescrire. Note sur les


conditions de possibilité et les limites de l’efficacité
politique. Actes de la recherche en sciences sociales.
1981;38:69-73.

24. Bourdieu P. Épreuve scolaire et consécration


sociale. Les classes préparatoires aux Grandes écoles.
Actes de la recherche en sciences sociales. 1981;39:3-
70.

25. Weber M. Economia e sociedade. Brasília: UnB;


1994.

26. Bourdieu P. As regras da arte: gênese e estrutura


do campo literário. São Paulo: Cia das Letras; 1996.

27. Bourdieu P. La cause de la science: comment


l’histoire sociale des sciences sociales peut servir le
progrès de ces sciences. Actes de la recherche en
sciences sociales. 1995 mars 106-107.

28. Habermas J. Técnica e ciência como ideologia.


Lisboa: Edições 70; 2001.

29. Fleischmann E. Weber e Nietzsche. In: Cohn G,


editor. Sociologia: para ler os clássicos. Rio de Janeiro:
Livros Técnicos e Científicos; 1977.

30. Bourdieu P. Le sens pratique. Paris: Minuit; 1980.

Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva 273

View publication stats

Você também pode gostar