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26/08/2019 Folha de S.

Paulo - Contardo Calligaris: Pichações - 19/06/2008

São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2008


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CONTARDO CALLIGARIS

Pichações
O pichador impõe sua assinatura na
cidade como as grifes tentam fazê-lo no
corpo da gente

NA SEMANA passada, em São Paulo, um


estudante de artes visuais da Belas Artes
recrutou 40 pichadores para pichar sua
escola. Ele declarou que esse seria seu
trabalho de conclusão de curso, "uma
intervenção para discutir os limites da arte
e o próprio conceito de arte". A "prova" foi
interrompida por seguranças e pela polícia.
Nos anos 1950, em Milão, vi minha
primeira pichação. Era um resto do
passado. O fascismo (sobretudo em seus
sobressaltos finais, em 1944) escrevia
motos triunfalistas pelos muros da parte da
Itália que ainda controlava. No caso, a
escrita original dizia "venceremos",
assinado pelo "M" de Mussolini. Alguém
completara a inicial "M" de maneira que o
signatário daquela patética declaração
fosse Macário, um comediante famoso. O
regime tinha coberto a pichação com uma
mão de tinta, mas ela continuava legível.
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Duplo escárnio: na pichação e na futilidade


da tentativa de apagá-la. Nos anos 1960,
pichei a minha parte. Já contei esta
história: numa noite de 68, com amigos,
cobri a universidade de Milão com o nome
de um novo semanal: "Servir ao Povo".
Outros pichadores, em horas mais altas do
que as da gente, acrescentaram, embaixo
de nossas pichações, um comentário (com
o qual, aliás, eu concordava): "Eu não sirvo
a ninguém, que o povo se sirva sozinho".
Nesses dois casos, as pichações eram
políticas: tentavam envolver o leitor no
diálogo e, eventualmente, na ação.
As coisas mudaram. Nos anos 1980, no
metrô de Nova York, os vagões eram
cobertos por dois tipos de "intervenções"
(que nem sempre eram fáceis de
distinguir). Os grafites quebravam a
monotonia urbana inventando e impondo
uma revolta estética. As pichações
propriamente ditas eram "tags",
assinaturas: delimitavam, no espaço
público, as zonas de influência e de alcance
das gangues -como quando um cachorro
demarca seu território depositando um
pingo de urina em cada poste.
A resposta da prefeitura foi o trabalho
incansável de apagar; o cuidado com a
coisa pública não desistiria: "A rua é de
todos -se você a assina de noite,
apagaremos seu nome de dia, a cada dia".
Claro, a distinção entre grafites e pichações
não é estanque. Um pichador, como Jean-
Michel Basquiat, tornou-se um grande
artista, em grafites e telas, e algumas raras
pichações têm uma beleza caligráfica.
Além disso, nem todos os pichadores de
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hoje são apenas "assinatários"


compulsivos; alguns se consideram
vanguarda artística -devem pensar, por
exemplo, que eles assinam os muros como
Marcel Duchamp podia assinar um urinol
e, pela virtude de sua assinatura,
transformá-los em arte.
Mas o gesto de Duchamp era, entre outras
coisas, a denúncia irônica e premonitória
de uma arte em que a assinatura do artista
contaria mais do que o objeto produzido.
Ao passo que, a partir dos anos 1980, em
sua grande maioria, os "tags" (marcas e
assinaturas) parecem participar do espírito
da época: eles manifestam uma paixão
abstrata de marcar o mundo não por mérito
ou por graça, mas a ferro e fogo. No fundo,
a vontade de pichar, hoje, é o equivalente
"hip", "pop" e violento, no hábitat urbano,
do que leva as grifes a querer "tatuar" o
corpo da gente.
Alguém dirá que o pichador, numa
sociedade de "egos" vaidosos, tenta apenas
conquistar um lugar ao sol.
Cá entre nós, não é verdade que, no Brasil
de hoje, por mais desigual e injusto que o
país seja, o jeito que sobra para deixar sua
marca consista em contribuir à feiúra e à
brutalidade ambientes pichando a
assinatura da gente. Há mais o que fazer,
inclusive no campo das intervenções
urbanas não autorizadas pelo poder
público.
Ao jovem estudante da Belas Artes,
aconselho que se debruce sobre as
"intervenções" produzidas o tempo todo
por artistas nacionais. Uma que acho
tocante, entre tantas, é a de Tom Lisboa
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com suas polaroides invisíveis, em Curitiba


(www.sinTOMnizado.com.br/tomlisboa).
Se eu fosse a Belas Artes, constituiria um
júri isento de artistas, arquitetos e
professores e proporia ao candidato um
teste: que ele olhe para dez fotografias da
paisagem urbana paulistana e diga não o
que ele conhece (isso, provavelmente, ele
consideraria intolerável e repressor), nem
suas especulações sobre arte ou sociedade,
mas, simplesmente, o que ele vê. Se ele
souber ver, bom, que sua pichação valha
como trabalho conclusivo.
Afinal, ele está terminando um curso de
artes visuais.

ccalligari@uol.com.br

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