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Ilhéus – BA
2019
Zidelmar Alves Santos
Ilhéus – BA
2019
S237 Santos, Zidelmar Alves.
Quando o presente revisita o passado: deslocamen-
tos em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves /
Zidelmar Alves Santos. – Ilhéus, BA: UESC, 2019.
87 f.
CDD 869.09
ZIDELMAR ALVES SANTOS
Banca Examinadora:
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11
1
Discutem-se essas e outras abordagens acerca do texto literário de autoria brasileira
afrodescendente a partir do Capítulo 1, item 1.2, página 25.
11
Carolina Maria de Jesus (2007), que fez muito sucesso nos anos 1960, mas
que passou por um posterior período de esquecimento, ganhou mais
visibilidade nas últimas décadas, o que ratifica a importância desses
movimentos.
Nesse cenário surge Ana Maria Gonçalves (2017): a escritora é natural
de Ibiá, Minas Gerais, e, após anos morando em São Paulo, decidiu “mudar de
ares” e visitar a Bahia. Já residindo em Itaparica, publicou, em 2002, seu
primeiro romance: Ao lado e a margem do que sentes por mim (GONÇALVES,
2017b). Em 2006, lançou, por uma grande editora, sua segunda obra: Um
defeito de cor, romance que teve muita aceitação por parte do público e pela
crítica, tornando-a conhecida em todo o país.
Um defeito de cor, dessa maneira, contrasta com a imensa maioria dos
romances escritos por autores negros, já que foi publicado por uma editora
consagrada (Record). Importa salientar que se trata de uma obra de autoria
feminina negra, na qual o protagonismo é exercido por uma mulher africana, o
que por si só já demonstra sua importância em meio ao atual cenário político-
social brasileiro.
Esta narrativa pode ser considerada um romance histórico sobre a trajetória
de Kehinde, personagem que, após ser escravizada no Daomé, África, acaba
sendo transportada para o Brasil no início do século XIX, tendo que enfrentar
todos os problemas relacionados à sociedade escravista. A violência, as
dificuldades na luta pela sobrevivência e o racismo foram as barreiras enfrentadas
na sua busca pela liberdade. A representação dos acontecimentos históricos, bem
como o trânsito entre personagens reais e fictícias constroem uma atmosfera que
envolve o leitor pelas 952 páginas da obra.
Deve-se salientar que essa obra literária de Gonçalves dá voz a uma
mulher negra que enfrenta enormes obstáculos na luta pela sobrevivência e
pela criação de seus filhos. Inspirado nas trajetórias de Luiza Mahin,
personagem que teria sido uma das líderes da revolta dos escravos malês,
ocorrida em Salvador no ano de 1835, e do poeta e advogado abolicionista Luiz
Gama, seu filho, Um defeito de cor parece representar diversos problemas da
sociedade brasileira atual, como a intolerância religiosa, o preconceito com as
minorias e a violência contra a mulher.
12
Isto posto, a escolha do romance de Gonçalves como corpus desta
pesquisa justifica-se, tendo como objetivo analisar o fenômeno do deslocamento,
partindo do pressuposto de que ele está na raiz da problemática racial no Brasil.
Observa-se que Um defeito de cor é marcado pela forte relação existente entre a
história e a ficção, visto que se trata de uma narrativa baseada em acontecimentos
importantes da história brasileira e da diáspora africana.
Assim, compreende-se a necessidade teórica da utilização de textos
escritos por autores que refletem sobre a problemática diaspórica. Pensadores
relacionados aos estudos culturais e pós-coloniais, como Stuart Hall (2003;
2006), Paul Gilroy (2001) e Hommi Bhabha (1998), dentre outros, fornecem
subsídios para se pensar o hibridismo e a questão da identidade no mundo
pós-colonial. Considerando a literatura produzida nos países marcados pela
colonização como uma resposta aos valores etnocêntricos e da classe
dominante, fica nítida sua aproximação do texto de autoria negra ou afro-
brasileira.
Dessa maneira, no Capítulo 1, “Deslocamentos no romance afro-
brasileiro contemporâneo”, discute-se, de início, em que ponto a escrita pós-
colonial se aproxima do texto afro-brasileiro, considerando-se Um defeito de
cor como parâmetro para essa observação. Consequentemente, as
características da escrita pós-colonial são abordadas, bem como a questão da
percepção dos deslocamentos enquanto sentidos de diáspora e resistência.
Posteriormente, realiza-se uma discussão acerca das implicações
teórico-críticas do romance afro-brasileiro. São apresentadas diversas visões
sobre o que seria a produção literária de autoria negra ou afro-brasileira, sendo
esta última a concepção adotada neste trabalho, como dito anteriormente.
Destacam-se as já mencionadas abordagens de Bernd, Cuti e Duarte. Salienta-
se também a questão do cânone, visto que, conforme Roberto Reis (1992), ele
não pode ser desassociado do exercício do poder. Muitas instâncias
legitimadoras, afinal, continuam excluindo as minorias, como pode-se perceber
na recente polêmica na eleição da Academia Brasileira de Letras – ABL. A
tentativa de minar a representatividade das classes subalternas é evidenciada
quando uma das mais importantes escritoras do país na atualidade recebe
apenas um de trinta e cinco votos possíveis, caso de Conceição Evaristo.
13
No Capítulo 2, “Deslocamento e suas implicações em Um defeito de
cor”, problematizam-se os deslocamentos na obra de Ana Maria Gonçalves,
considerando os pressupostos teóricos de Stuart Hall (2006) acerca da
existência de uma “crise de identidade” nos sujeitos que habitam o mundo
moderno. A ideia de “contemporaneidade” proposta por Agamben (2009)
também dá orientação para compreender os deslocamentos promovidos pela
autora do corpus analisado.
Como aspecto importante e subsequente da pesquisa, a relação
existente entre a história e a ficção é analisada considerando as
características referentes ao romance histórico, na obra em questão.
Pesavento (2003), por exemplo, fornece as bases para compreensão dessa
relação, bem como Stuart Hall (2006) para a questão dos deslocamentos
identitários existentes no romance.
Após apresentar uma breve revisão da fortuna crítica da obra, tem início
a análise dos deslocamentos da personagem Kehinde, levando-se em conta
sua trajetória desde a infância no reino do Daomé, no início do século XIX, sua
estada no Brasil como escrava e liberta, bem como seu retorno ao continente
africano em meados do mesmo século.
Pretende-se assim, contribuir para o debate acerca da literatura afro-
brasileira, sublinhando-se, entre outros aspectos, o forte caráter de denúncia
do texto de Ana Maria Gonçalves em relação ao passado escravagista de
nosso país. Além disso, destaca-se, sobretudo, na leitura de Um defeito de cor,
a dimensão emancipatória da arte literária, ao apontar que, para a conquista da
liberdade, assim como Kehinde, é preciso lutar, resistir em meio a
deslocamentos vários e desafiadores: pois, no âmago do termo deslocar, está
implicado, de variados modos, o incontornável sentido de mudança.
14
1 DESLOCAMENTOS NO ROMANCE AFRO-BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
15
pesquisador, na produção literária nacional, tal conceito “não só existe como se
faz presente nos tempos e espaços históricos de nossa constituição enquanto
povo; não só existe como é múltipla e diversa”. Desse modo, essa literatura
possui um papel reivindicatório a partir de suas denúncias, que demonstram a
falta de representatividade das populações marcadas pela diáspora negra na
“história oficial” do Brasil.
A literatura afro-brasileira afirma-se, assim, através da conjunção de
elementos que lhe são próprios: a autoria, a temática, o ponto de vista, a
linguagem e o público, conforme Duarte (2008). Não se trata apenas de uma
produção escrita por afrodescendentes. A junção desses pontos de
convergência, ao mesmo tempo em que “constitui uma vertente da literatura
brasileira, chega para abalar a inteireza do todo, da unicidade antes existente”
(DUARTE, 2013, p. 149).
Em sentido lato, tal concepção coloca a literatura afro-brasileira no bojo
da escrita pós-colonial, visto que essa se manifestou enquanto uma resposta
aos valores dominantes de países europeus que subjugaram diversas
populações ao redor do mundo. Trata-se da reescrita da história dos povos
marcados pela dominação colonial, bem como a valorização das culturas e dos
sujeitos que foram subalternizados, como populações autóctones, negros,
mulheres, homossexuais, dentre outras minorias.
Em O local da cultura, Hommi Bhabha (1998) reforça que o caráter de
testemunho dos países subdesenvolvidos e de suas minorias foi decisivo para
a emergência dos estudos pós-coloniais. Segundo Bhabha (1998, p. 239), as
perspectivas pós-coloniais:
16
sobre as figuras do colonizador e do colonizado, no final da década de 1950,
revela que o racismo sustenta e amplia as diferenças entre ambos, valoriza
essas diferenças em benefício do primeiro e prejuízo do outro e busca afirmar
que tais diferenças são definitivas.
Antes de se destacar como um importante crítico do colonialismo,
Memmi viveu décadas em uma Tunísia marcada pela dominação francesa, o
que o caracteriza como sujeito que vivenciou as relações de poder entre
colônia e metrópole. Tal vivência permitiu-lhe desenvolver forte crítica ao
colonialismo. De modo semelhante, a experiência colonial foi refletida nos
trabalhos de muitos estudiosos, em diferentes tempos e contextos, como Frantz
Fanon (1968; 2008) e Stuart Hall (2003), por exemplo. Segundo Bonnici (2009, p.
267), a cultura e a literatura constituem o campo de estudos da crítica pós-colonial
e é seu papel examiná-las “durante e após a dominação imperial europeia, de
modo a desnudar seus efeitos sobre as literaturas contemporâneas”. A escrita
pós-colonial, mais precisamente a literatura, vai assumir esse viés contestatório
que busca equilibrar a balança das relações de poder.
A publicação de Orientalismo no ano de 1978, por Edward Said (1990), é
apontada por muitos como um dos marcos iniciais desse campo de estudos, que se
distancia/diferencia dos estudos culturais pela sua ênfase na análise das literaturas
dos países marcados pelo colonialismo e imperialismo europeu. Entretanto, embora
o termo “pós-colonial” tenha surgido nos anos 1970, ele se solidifica, enquanto
conceito, a partir da publicação, em 1989, do livro The empire writes back: theory
and practice in post-colonial literatures, de autoria de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e
Helen Tiffin (2004). Os autores consideram como pós-colonial
[...] all the culture affected by the imperial process from the moment of
colonization to the present day. This is because there is a continuity of
preoccupations throughout the historical process initiated by
European imperial aggression (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN,
2
2004, p. 2) .
2
[...] toda a cultura afetada pelo processo imperial desde o momento da colonização até os
dias atuais. Isso porque existe uma continuidade das preocupações em todo processo
histórico iniciado pela agressão imperial europeia (tradução nossa).
17
destarte, ultrapassa a noção simplista do que vem depois ou após a
colonização, assumindo o termo “pós” um viés contestatório, por meio do qual
se problematizam as agressões históricas causadas pelos processos de
dominação colonial europeia.
Assim, as literaturas dos países que foram colônias da França, Espanha
e Portugal, bem como as demais “produções literárias dos povos colonizados
pelas potências europeias entre os séculos XV e XX” (BONNICI, 1998, p. 9)
também se enquadram na perspectiva pós-colonial. Thomas Bonnici (1998, p.
11-12) afirma que o desenvolvimento das literaturas pós-coloniais, em geral,
passou por três etapas:
18
do século XIX e início do século XX foram suprimidos e relegados ao
esquecimento. O recente interesse acadêmico por essa produção é uma
conquista histórica de diversos movimentos negros que lutaram, ao longo das
últimas décadas, pela publicação e circulação da produção literária dos
afrodescendentes, bem como pela representatividade das populações negras em
espaços reconhecidamente excludentes, como a televisão, só para citarmos mais
um exemplo.
No romance em estudo, a protagonista feminina narra sua própria
história, as culturas dos povos subalternizados são valorizadas e os
personagens negros são dotados de complexidade. Por meio da literatura, o
cânone historiográfico é questionado, pois é confrontada a concepção de que
no país existe uma democracia racial, tema debatido e questionado há décadas
na academia.
Um defeito de cor promove, assim, muitos deslocamentos em relação ao
centro hegemônico. A discussão de temáticas polêmicas em uma narrativa que
se passa ao longo de quase todo o século XIX ratifica essa posição. A obra de
Ana Maria Gonçalves é carregada, assim, de sentidos diversos que evidenciam
as histórias de luta e resistência das populações subalternizadas.
19
baseada no binarismo não é adequada para a compreensão de uma identidade
cultural marcada pelo sincretismo, como a caribenha, por exemplo.
Seguindo essa tendência, Paul Gilroy (2001) analisa a diáspora africana
comparando-a com a judaica, apresentando traços que vinculam esses “povos
diferentemente dispersados”. O autor ressalta que os estudiosos africanistas se
apropriaram do conceito de diáspora a partir dos anos 1950 para designar a
dispersão de diversas populações africanas no mundo pós-colonial: “Os temas
de fuga e sofrimento, tradição, temporalidade e organização social da memória
possuem um significado especial na história das respostas judaicas à
modernidade” (GILROY, 2001, p. 382). Esses temas são associados às ideias
de dispersão, exílio e escravidão e passaram a representar a diáspora africana.
Importa salientar que diversos povos do continente africano já
praticavam a mobilidade antes da travessia do Atlântico. No entanto, embora a
diáspora de tais populações não tenha se restringido à travessia para o Novo
Mundo, foi nas Américas que atingiu seu ápice. Segundo Knight, Talib e Curtin
(2010, p. 888), “a diáspora africana foi muito mais importante nas Américas que
na Europa e na Ásia. No início do século XIX, a população afro-americana total,
livre e assujeitada, correspondia a cerca de 8,5 milhões de pessoas”, dentre as
quais, em 1810, 2,5 milhões se encontravam no Brasil. Os autores citados
apontam que:
20
Nesse contexto, para um negro africano ou afrodescendente, estar numa
grande cidade colonial, como a Salvador do século XIX, possibilitava que
tivesse mais chances de sobrevivência em meio à dura realidade imposta. A
mobilidade, se não adquiria sentido de liberdade, dava ao indivíduo certa
autonomia nos deslocamentos diários nas ruas e praças da cidade, além do
contato com pessoas de diversos grupos sociais, em comparação ao
escravizado que trabalhava na plantation.
Um defeito de cor representa essa situação, ao demonstrar o
deslocamento da personagem Kehinde entre as duas realidades do trabalho
servil na colônia brasileira: a do campo e a da cidade. A vida na cidade grande,
com seu caráter mais cosmopolita, fez Kehinde ter contato e
aprender/apreender aspectos de diversas culturas, sejam elas subalternizadas,
como as etnias iorubá e hauçá, ou representantes da classe dominante, como
portugueses e ingleses. A Salvador do século XIX era, portanto, uma cidade
diaspórica, onde os trânsitos culturais não respeitavam as fronteiras étnicas.
A noção de diáspora, percebida por Gilroy sob o conceito de “Atlântico
Negro”, considera a cultura e os deslocamentos como elementos fundamentais
para a compreensão da fluidez das fronteiras culturais nas sociedades
marcadas pela diáspora. Os constantes fluxos culturais apontam para a
construção de sociedades hibridas, nas quais o entrelaçamento das diversas
culturas evidencia a fluidez das fronteiras étnicas e nacionais. A região das
Antilhas, com a intensificação do fluxo migratório e das trocas culturais com a
Grã-Bretanha ao longo do século XX, é outro exemplo nítido. No entanto, as
identificações com os lugares de origem permanecem.
Stuart Hall, ao discorrer sobre o livro Narratives of Exile and Return, de
Mary Chamberlain (1998), revela a permanência dos elos após deslocamentos
de barbadianos para a Grã-Bretanha. Considerando que numa realidade
marcada pela diáspora as identidades se tornam múltiplas, o sociólogo indica
que a associação com as culturas de origem permanece forte após algumas
gerações, mesmo em um mundo onde os locais de pertencimento de
determinadas populações já não podem ser considerados as únicas fontes de
identificação.
A situação de retorno cria um problema para o sujeito diaspórico, já que
acarreta uma dificuldade natural em se religar à sua terra de origem:
21
Muitos sentem falta dos ritmos de vida cosmopolita com os quais tinham
se aclimatado. Muitos sentem que a ‘terra’ se tornou irreconhecível. Em
contrapartida, são vistos como se os elos naturais e espontâneos que
antes possuíam tivessem sido interrompidos por suas experiências
diaspóricas. Sentem-se felizes por estar em casa. Mas a história, de
alguma forma, interveio irrevogavelmente (HALL, 2003, p. 27).
22
pois ainda que as culturas tenham seus locais, não podemos mais dizer com
facilidade de onde se originam.
Segundo Maria Nazareth Fonseca (2011, p. 20):
23
Sobre a literatura do colonizado, descreve três estágios: no primeiro, “o
intelectual colonizado prova que assimilou a cultura do ocupante”, produzindo
narrativas que compartilham os mesmos valores dos metropolitanos. Em um
segundo momento, o colonizado “sofre um abalo e resolve recordar”, período
em que ele se sensibiliza com seus pares, mas por ter conexões com a
metrópole, se utiliza “de uma estética de empréstimos e de uma concepção de
mundo descoberta sob outros céus” (FANON, 1968, p. 184-185). E no terceiro,
chamado de combate:
24
a resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que
ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial
e histórico. Momento negativo de um processo dialético no qual o
sujeito, em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das
interações onde se insere, dá um salto para uma posição de distância
e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os
laços apertados que o prendem à teia das instituições.
25
1.2 Literatura afro-brasileira: questões teórico-críticas
26
Os crescimentos do público e da demanda justificam, para esse
pesquisador, “as responsabilidades dos agentes que atuam nos espaços
voltados para a pesquisa e produção do conhecimento, em especial nas
instituições de ensino superior” (DUARTE, 2014, p. 260). Daí a necessidade de
se discutir os conceitos de literatura negra e literatura afro-brasileira, ampliando
o debate, inclusive, para além dos muros da academia.
Nos textos “Literatura afro-brasileira: um conceito em construção” e “Por
um conceito de literatura afro-brasileira”3, Duarte (2008; 2014) analisa várias
proposições acerca da acepção de literatura negra, construindo um quadro
elucidativo sobre as divergências entre as diversas perspectivas teóricas sobre
o tema. Se por um lado, os autores vinculados aos Cadernos Negros,
possuíam um viés de militância, percebido pela identificação com a concepção
proposta por Ironildes Rodrigues, que compreende a literatura negra pelo
pertencimento étnico e pela discussão dos problemas enfrentados pela raça
negra, por outro, alguns escritores, como Muniz Sodré, Nei Lopes e Joel Rufino
dos Santos, pertencem a uma linha “menos empenhada em termos de
militância” (DUARTE, 2014, p. 261).
Concepções marcadas pelo reducionismo temático, como a de Benedita
Gouveia Damasceno, incluiriam no campo da literatura negra autores brancos,
como Jorge de Lima, visto que o pertencimento étnico não seria tão relevante
para a pesquisadora (DUARTE, 2014, p. 261). Duarte aponta que Domício
Proença Filho contribui com uma visão conciliadora, que abarca tanto o
pertencimento étnico quanto o viés temático:
3
Esse texto constitui-se em uma versão ampliada do texto anterior.
27
atitude compromissada” (grifo do autor). Isso ratifica a existência de uma
literatura sobre o negro e de uma literatura do negro. Segundo Duarte (2014, p.
262), entretanto, uma concepção de literatura negra que abarca essas duas
perspectivas:
28
mais importantes escritoras brasileiras da atualidade, o fato de ser uma
mulher negra de origem humilde pode ter tido peso na recusa dos votantes
em integrá-la ao quadro de imortais de uma instituição majoritariamente
branca e masculina.
Roberto Reis (1992, p. 70), ao discorrer sobre o cânone, ressalta que
esse conceito não pode ser desassociado da questão do poder, pois “os que
selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão
de acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.)”.
Dessa maneira, os escritores negros, ao se articularem em espaços para
divulgação de suas obras, como no caso do grupo Quilombhoje, não estão se
isolando da produção considerada nacional, como entende Proença Filho.
Estão, sim, buscando um espaço para reinvindicação das demandas de
pessoas que foram silenciadas e excluídas ao longo de séculos.
A escrita, dessa maneira, com seu caráter reivindicatório e denunciador
das condições de vida das populações subalternizadas, constitui uma
ferramenta de resistência para essas pessoas. Conceição Evaristo (2009, p.
18), considerando a violência física e restrições sofridas pelos
afrodescendentes durante o período escravocrata e pelas relações raciais na
sociedade brasileira, ressalta que “coube aos brasileiros, descendentes de
africanos, inventarem formas de resistência que marcaram profundamente a
nação brasileira”. Uma literatura que se afasta dos valores canônicos seria
uma dessas formas, já que vai de encontro à escrita “veiculada pelas classes
detentoras do poder político-econômico” (EVARISTO, 2009, p. 18).
A visão da escritora acerca da literatura afro-brasileira indica que os
processos de escrita são contaminados pela subjetividade ou vivência dos
autores. Evaristo (2017), dessa forma, utiliza o termo “escrevivência” para
caracterizar a sua escrita enquanto mulher negra, acreditando que:
29
Assim, a autora revela que sua intenção, enquanto mulher negra que
escreve a partir de suas vivências, é “acordar os da Casa Grande, incomodá-
los em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2017). A literatura afro-brasileira,
nessa perspectiva, assume um papel que reivindica espaço não apenas para o
a escrita afrodescendente, mas para o texto de autoria da mulher negra, com
ela se representando.
Esse posicionamento demonstra que Evaristo é uma escritora engajada
e dedicada à reflexão sobre a produção literária dos afrodescendentes. Assim
como Cuti, dentre outros, ela transita entre vários gêneros literários, além de
ter experiência acadêmica, produzindo ensaios e artigos científicos. Essa
atividade diversificada permite que ambos tenham visão distinta da literatura
afro-brasileira ou negro-brasileira, como prefere Cuti, já que seu campo de
estudos é mais amplo. Isso permite a esses autores, além de escreverem
obras literárias, refletirem sobre sua área de atuação, o que os diferem de
pesquisadores que ficam restritos à crítica literária ou à literatura
propriamente dita.
Zilá Bernd (1988), em Introdução à literatura negra, aponta a existência de
um elemento específico, o “eu enunciador”, como fundamental para a composição
do texto negro. Para a pesquisadora, não basta que o escritor tenha a cor da pele
negra, tampouco que se utilize da temática, como no caso dos autores
mencionados:
30
conceitual, acaba relativizando-o, indicando que quaisquer pessoas sem
descendência afro-brasileira podem integrar esse campo literário.
Duarte expõe a existência de outras vertentes conceituais, como a que
relaciona o romance negro à narrativa policial, a exemplo do proposto por
Ruben Fonseca (1992). Essa multiplicidade de concepções acerca da literatura
negra acaba enfraquecendo e limitando “a eficácia do conceito enquanto
operador teórico e crítico.” (DUARTE, 2014, p. 264).
Por sua vez, o escritor e pesquisador Luís Silva, o já mencionado Cuti
(2010), utiliza o termo “negro-brasileiro” para definir o campo, pois considera
que o termo “negro” possui um viés político, contestatório e reivindicatório. O
pesquisador, que foi um dos principais articulistas do grupo Quilombhoje e
idealizador, com Hugo Ferreira, dos Cadernos Negros, afirma:
31
Literatura Brasileira está ligada a uma tradição fraturada, característica das
áreas que passaram pelo processo de colonização”. A ideia de tradição
fraturada demonstra que as culturas dos países que foram marcados pela
dominação colonial não conseguem romper de vez com os valores tradicionais
ao mesmo tempo em que buscam assumir ou construir novos valores. Segundo
Pereira (2018, p. 2), “a marca de nossa identidade literária pode estar no
reconhecimento dessa fratura, que nos coloca no intervalo entre a aproximação
e o distanciamento das heranças da colonização”.
A concepção “negro-brasileira”, proposta por Cuti, parece menos
abrangente e pode levar a interpretações que desconsideram a experiência e
os reflexos da diáspora dos povos africanos nas populações afrodescendentes
no Brasil, já que as vivências em África e na travessia do Atlântico,
aparentemente, não exercem influência na escrita negro-brasileira. Essa, por
sua vez, não descenderia da literatura africana:
32
épocas mais distantes como Domingos Caldas Barbosa, Luís Gama e Maria
Firmina dos Reis, quanto à de escritores contemporâneos, como Nei Lopes,
Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves.
Constitui o campo da literatura afro-brasileira a produção literária de
escritores que assumem sua etnicidade afrodescendente, privilegiam temáticas
relacionadas à cultura afro-brasileira, identificam-se com a linguagem e as
formas de expressão dessa comunidade, bem como posicionam os
negros/afrodescendentes como sujeitos de suas próprias histórias, buscando
subverter “imagens e sentidos cristalizados pelo imaginário social oriundo dos
valores brancos dominantes”. (DUARTE, 2013, p. 149). Duarte, como citado
anteriormente, aponta os cinco elementos que sustentam o texto afro-brasileiro,
a saber: a autoria, a temática, o ponto de vista, a linguagem e o público.
Deve-se ressaltar que, desde o período imperial brasileiro, muitas obras
de autoria negra foram invisibilizadas pelas instâncias sociais e canônicas. Um
exemplo é o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (2017), publicado
originalmente no ano de 1859:
O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia
contar vinte e cinco anos, e que ria franca expressão de sua
fisionomia: deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem
formado. O sangue africano fervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à
odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que
herdara de seus pais, e que o nosso clima e a servidão não puderam
resfriar, embalde — dissemos — se revoltava, porque se lhe erguia
como barreira o poder do forte contra o fraco (REIS, 2017, p. 7).
33
a denúncia da escravidão, bem como “os dramas vividos na modernidade
brasileira, com suas ilhas de modernidade cercadas de miséria e exclusão”. No
gênero romanesco, essas temáticas aparecem em obras de Machado de Assis,
Lima Barreto e Paulo Lins, em obras como Memórias póstumas de Brás Cubas,
Triste fim de Policarpo Quaresma e Cidade de Deus, respectivamente.
Não obstante, Duarte atenta para o fato de que a temática afro-brasileira
não deve ser compreendida isoladamente, já que nada impede que autores
brancos escrevam sobre assuntos relativos aos negros e sua cultura. O tema
deve ser considerado a partir de sua interação com a autoria e o ponto de vista,
mas o reducionismo temático deve ser evitado.
A “autoria” é um elemento que gera controvérsias por implicar “a
consideração de fatores biográficos ou fenotípicos, com todas as dificuldades
daí decorrentes e, ainda, a defesa feita por alguns estudiosos de uma literatura
afro-brasileira de autoria branca” (DUARTE, 2014, p. 268). Duarte aponta que
alguns autores, apesar de afrodescendentes, não reivindicam essa condição,
alertando também para o perigo do reducionismo sociológico:
34
Assis, dentre outros, são destacadas como exemplos de textos que demonstram
o ponto de vista dos autores.
No que diz respeito à “linguagem”, Duarte (2014, p. 273-274) revela que
um vocabulário marcado por expressões linguísticas oriundas da África, bem
como práticas discursivas que busquem contrariar os “sentidos hegemônicos
da língua” denunciam o texto afro-brasileiro. A ressignificação de estereótipos
cristalizados pela sociedade racista, que atribui sentidos pejorativos para
palavras como “crioulo” ou “mulata”, assim como para características físicas do
negro, pois o cabelo “duro”, por exemplo, é reconhecido sinônimo de
inferioridade. Seria configurada, assim, uma nova ordem simbólica, na qual a
literatura, conforme Bernd (1988, p. 89), “se torna o espaço da destruição de
uma simbologia estereotipada, onde, por exemplo, a noite, o preto, o escuro,
enfim, tudo o que se relacione à cor negra, é associado ao mundo das trevas,
do mal ou do pecado”.
A formação de um “público” leitor seria o último alicerce que caracteriza
o texto afro-brasileiro. Ao direcionar sua escrita para um determinado segmento
da população, o escritor parte das demandas desse público, atuando como
“porta-voz da comunidade” (DUARTE, 2014, p. 276). Os trabalhos do coletivo
de autores negros Quilombhoje, por exemplo, com a publicação da série
Cadernos Negros, demonstram que essa busca pelo público ultrapassa as
instâncias do meio editorial tradicional, pois:
35
adentrar em alguns espaços reconhecidamente canônicos4. Esse fato pode ser
observado pela inclusão de obras de autoria afro-brasileira como referências
obrigatórias em vestibulares e/ou editais de programas de pós-graduação,
como é o caso dos romances Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo (2003) e
Mandingas da mulata velha na cidade nova, de Nei Lopes (2009). A obra de
Carolina Maria de Jesus (2007), Quarto de despejo: diário de uma favelada,
tem ressurgido nesse cenário após grande sucesso editorial nos anos 1960 e
1970 e posterior esquecimento nas décadas seguintes, o que indica que o
retorno dessa autora aos espaços canônicos está relacionado às conquistas
dos movimentos sociais, bem como à aceitação de escritores negros a partir
das lutas de tais movimentos. A publicação de Um defeito de cor, de Ana Maria
Gonçalves (2006), por uma grande editora, e sua vitória no tradicional prêmio
Casa de las Américas também são indicativos do vigor do texto afro-brasileiro.
A citada obra de Ana Maria Gonçalves, aliás, tem ganhado, ao longo dos
anos, elogios da crítica especializada e rendido diversos trabalhos acadêmicos.
Um defeito de cor reúne, com maestria, as cinco características apontadas por
Duarte para a composição do texto afro-brasileiro: a temática, nesse caso, a
escravidão; a autoria feminina negra; um ponto de vista favorável às
populações negras, que coloca a protagonista Kehinde e demais personagens
negras como sujeitas de sua própria história; uma linguagem que valoriza os
negros física e intelectualmente; e a capacidade de discutir temas tão caros à
comunidade negra, como a violência contra as mulheres, levando essa e outras
questões para o grande público.
Segundo Duarte (2014, p. 277), “da interação dinâmica desses cinco
grandes fatores – temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público – pode-
se constatar a existência da literatura afro-brasileira em sua plenitude”. Isso
demonstra não apenas a qualidade, mas a pertinência do texto de Gonçalves
em meio ao cenário político e social brasileiro na atualidade.
O debate sobre a literatura afro-brasileira e as demais vertentes
mencionadas foi benéfico, deste modo, para a produção literária dos
afrodescendentes. A opção por uma vertente não impõe a recusa de outra,
4
É importante salientar que Machado de Assis e Lima Barreto destacam-se na historiografia
literária nacional, sendo considerados autores canônicos.
36
mas aponta caminhos e possibilidades para os escritores, além de um
horizonte de expectativas para o público leitor do texto afro-brasileiro.
37
2 DESLOCAMENTO E SUAS IMPLICAÇÕES EM UM DEFEITO DE COR
38
historiográfico clássico, já que, ao questionar o status quo vigente,
confrontando estereótipos racistas e demonstrando que diversas populações
negras, ainda que assujeitadas ao sistema escravista, lutavam pelo controle de
suas próprias histórias, a autora, por meio da literatura, questiona a “história
oficial” da sociedade brasileira.
De acordo com Jaime Ginzburg (2012, p. 200), Gonçalves faz parte de
um grupo de escritores que “se afastam de uma tradição brasileira, no interior
da qual é necessária uma presença (como personagem ou narrador) que
corresponde, no todo ou em parte, aos valores da cultura patriarcal”. O que o
leitor encontra em Um defeito de cor é justamente o contrário: a exaltação dos
valores das sociedades africanas, de diversas populações que foram
subjugadas pelas mãos opressoras do colonizador.
Gonçalves se distancia de um modelo que “prioriza homens brancos, de
classe média ou alta, adeptos de uma religião legitimada socialmente,
heterossexuais, adultos e aptos a dar ordens e sustentar regras.” (GINZBURG,
2012, p. 200). A autora deu protagonismo a uma mulher negra que foi
escravizada, que cultua os voduns e orixás e luta para conquistar objetivos
difíceis de serem alcançados pelas mulheres negras em uma sociedade
marcada pelo sistema patriarcal: a educação/alfabetização, a liberdade, a
sobrevivência, por exemplo.
Levando em conta o recorte proposto por Ginzburg, que considera como
contemporânea a literatura brasileira produzida a partir do ano de 1960 até os
dias atuais, a constituição de uma narrativa descentrada ratifica a importância
da obra analisada para a citada produção literária, pois o descentramento pode
ser compreendido “como um conjunto de forças voltadas contra a exclusão
social, política e econômica” (GINZBURG, 2012, p. 201). O centro,
39
(2009), assinala a relevância do romance de Ana Maria Gonçalves no campo
simbólico-cultural, pois
40
2.1 Trajetórias críticas: deslocamentos e resistência
41
Daomé. É ela quem tem a missão de redigir suas memórias, na esperança de
que estes escritos cheguem às mãos de seu filho. Segundo Le Goff (1990, p.
423), a memória “remete-nos a um conjunto de funções psíquicas, graças às
quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que
ele representa como passadas”. A lembrança do passado, desse modo,
atualiza-o, fazendo um deslocamento para o presente vivido pela narradora.
Gonçalves constrói uma personagem que, ao registrar as suas
memórias por meio da escrita, rompe a barreira do esquecimento,
esquecimento este que foi, durante séculos, imposto às populações africanas
e/ou afro-brasileiras, numa tentativa explícita de silenciá-las. Afinal, conforme
Le Goff (1990, p. 426):
42
Gonçalves (2017, p.16-17) também sugere que o filho perdido de
Kehinde seria o poeta e advogado abolicionista Luiz Gama, embora a autora
não cite explicitamente o seu nome. Anote-se que Sud Mennucci (1938)
publicou, em O precursor do abolicionismo no Brasil, a transcrição de uma
carta que Luiz Gama escrevera, em tom autobiográfico, a Lúcio de Mendonça.
Nessa carta, Gama fala sobre sua mãe, Luíza Mahin, descrevendo suas
características físicas, bem como seu envolvimento em revoltas ocorridas em
Salvador na primeira metade do século XIX (MENUCCI, 1938, p. 19-26).
A narrativa composta por Gonçalves, ao transitar entre a história e a
ficção, chega a seu narratário com ares de “história real”. A autora utilizou um
artificio literário que visa transmitir ao leitor certa credibilidade e “atestar” a
veracidade da história narrada. Isso pode ser observado pela suposta leitura e
transcrição, pela autora, das memórias de Kehinde, respaldada em bibliografia
diversificada, indicada ao final do livro. Ana Maria Gonçalves, dessa maneira,
entrega uma história que pode ser lida como depoimento (da personagem
Kehinde), como uma longa carta endereçada a um filho, tornando-se mais
fluídas as barreiras entre realidade e ficção.
Outra estratégia narrativa da autora está no fato de a protagonista
escrever textos na esperança de que estes sejam entregues a seu filho. Ela
acaba, de certa forma, dialogando diretamente com o leitor, pois a partir do
nascimento de Omotunde, a referida personagem passa a utilizar o pronome
de tratamento “você” para se referir a seu narratário. Fica nítido, dessa
maneira, um deslocamento que possibilita ao receptor duas visões sobre a
narrativa, uma de dentro e outra de fora da história.
Essas e outras questões colaboraram com a estrutura e organização do
romance e propiciaram a ampliação do debate intelectual sobre a referida obra,
considerando o pouco tempo desde sua publicação original. Em doze anos, Um
defeito de cor já ultrapassa 15 edições e tem inspirado estudos tanto de
pesquisadores experientes, como Zilá Bernd (2012; 2014), quanto o trabalho
de novos pesquisadores. A boa receptividade da obra, premiada com o prêmio
Casa de las américas, em 2007, colaborou para o surgimento de diversos
estudos, sejam eles monografias, dissertações, teses, ensaios e artigos
científicos, principalmente no âmbito dos estudos literários, conforme síntese
apresentada a seguir.
43
Segundo Bernd (2012, p. 30), Um defeito de cor inaugura, na literatura
negra brasileira ou afro-brasileira, o gênero “romance rio” ou “romance saga”6,
sendo sua autora a pioneira no que diz respeito aos romances que tratam da
história sofrida de africanos que buscaram superar “as iniquidades do sistema
escravista”. E, principalmente, porque foi “a primeira a narrar esses episódios
do ponto de vista de quem mais sofreu nesse cruel processo: as mulheres, por
serem mais fracas e vítimas constantes de violação”.
A temática de gênero e da família tem se destacado entre os estudos
sobre a obra de Ana Maria Gonçalves, destacando-se a tese Maternidade
negra em Um defeito de cor: história, corpo e nacionalismo como questões
literárias, de Fabiana Carneiro da Silva (2017). Já o artigo de Clara Pimentel de
Souza (2013, p. 277) aborda a questão da sexualidade e constituição do
feminino, salientando que a visão positiva que Kehinde tinha de si mesma, a
fez se destacar, pois “aproximou-se ao máximo daquela que desejava ser [...] e
possibilitou que seus descendentes tivessem a liberdade de escreverem suas
próprias histórias”.
As questões da raça e da diáspora africana também ganharam espaço,
como podemos observar na dissertação Kehinde, símbolo da raça negra, de
Anderson Silveira de França, que discute “as formas de resistência do negro
para burlar os esforços do dominador para aniquilar seus valores étnicos”
(FRANÇA, 2012, p. 7). Em Viver na fronteira: a consciência da intelectual
diaspórica em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, Cristiane Côrtes
(2010, p. 9) busca evidenciar a relevância do intelectual diaspórico no que diz
respeito à “relativização de conceitos ditos hegemônicos e de discursos
utilizados para subjugar culturas”. Para França (2012, p. 73), Ana Maria
Gonçalves “toma como representação desta realidade [da escravidão no
Brasil], uma mulher, Kehinde, que encarna a raça negra em busca de liberdade
e melhores condições de vida”.
Relacionando a memória presente no relato de Kehinde com a
temporalidade, a dissertação de Lange (2008) faz uma reflexão sobre a relação
6
Bernd aponta, citando Moisés (1982, p. 461), que o romance rio compreende narrativas
caracterizadas “pelo grande número de personagens e de ações que se sucedem e se
imbricam”, indicando como exemplos as obras de Tolstói, Guerra e Paz, e Érico Veríssimo, O
Tempo e o Vento. Já os romances do tipo saga são narrativas épicas que mesclam “fatos
verídicos, folclóricos e imaginários, relatam a história de reis ou de famílias” (MOISÉS, 1982, p.
469 apud BERND, 2012, p. 30).
44
entre memória e escrita alicerçada por parâmetros da teoria psicanalítica. Já
Marilene Weinhardt, no artigo intitulado “Um defeito de cor e muitas virtudes
narrativas”, aborda a obra de Gonçalves enquanto ficção histórica, destacando as
suas “virtudes narrativas”. De acordo com Weinhardt (2009, p. 111):
45
brasileiros, entre outros –, instigam a repensar/reconfigurar o
imaginário da identidade brasileira. (SANTOS, 2016, p. 167).
7
Considera-se, à propósito, os trabalhos de Figueiredo (2009); Gonçalves e Pimentel (2009); Rossini
(2014); Jackel (2015); Arruda (2010); Lima (2009; 2011b); França (2011); Duarte (2009); Dalcom Júnior
(2013); Neves (2012); Silva (2012); S. Santos (2014); Sales e Ribeiro (2016).
46
pela historiografia, ainda que a representação dos acontecimentos históricos
narrados tenha surgido pela ótica ficcional8.
Esses e outros questionamentos também emergem ao considerarmos
Um defeito de cor enquanto romance histórico que narra acontecimentos
importantes da história brasileira a partir da perspectiva de uma mulher negra
que fora escravizada e buscou sua liberdade ganhando a vida nas ruas de
Salvador. A representação da realidade, dessa forma, é feita a partir da
perspectiva do oprimido, da minoria. Segundo Fernando Aínsa (1994, p. 29), ao
reler criticamente a história, “la literatura es capaz de plantear con franqueza y
sentido crîtico lo que no quiere o no puede hacer la historia que se pretende
cientifica”9. Dessa forma, o romance histórico dá voz “a lo que la historia ha
negado, silenciado o perseguido”10 (AÍNSA, 1994, p. 29).
O romance de Ana Maria Gonçalves traz à tona, então, uma versão
alternativa de acontecimentos narrados pela historiografia. Rodrigo Lopes e
Gilmei Fleck (2017, p. 93), ao discutirem o conceito de romance histórico,
salientam:
o que o define é seu intuito de reconstruir épocas, espaços,
personagens e acontecimentos passados, cuja realidade empírica
possa ser comprovada por meio de documentos oficiais de uma dada
comunidade. Tal narrativa acaba funcionando como uma versão
alternativa do fato ocorrido no passado, construída sob outra
perspectiva.
8
Dentre os principais acontecimentos históricos abordados no romance Um defeito de cor,
destacam-se a revolta dos escravos malês, ocorrida em 1835, em Salvador, bem como a
diáspora de diversas populações africanas, com deslocamentos em direção a América ou
fazendo a viagem de retorno ao continente africano. Destacam-se entre as principais
referências acerca desses acontecimentos os trabalhos clássicos de João José Reis (2003),
“Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835”, e Pierre Verger (2002),
“Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos:
dos séculos XVII a XIX”, incluídas junto a outras obras na bibliografia indicada pela autora após
o fim da narrativa.
9
“[...] a literatura é capaz de projetar com franqueza e sentido crítico o que não quer ou não
pode fazer a história que se pretende científica”. Tradução nossa.
10
“[...] a quem a história tem negado, silenciado ou perseguido”. Tradução nossa.
47
o espaço, o tempo e muitos dos argumentos para que o romance seja
construído”11 (LOPES; FLECK, 2017, p. 93).
O romance histórico:
11
Cabem ressalvas, contudo, às palavras de Lopes e Fleck, principalmente se for considerada
a perspectiva eurocêntrica, masculina e branca que prevaleceu na produção historiográfica. As
questões socioeconômicas, étnicas e de gênero também estão relacionadas aos
distanciamentos entre o “discurso oficial” e as minorias, o que incidiu, por exemplo, no
tratamento desigual dado a acontecimentos importantes da história e cultura afro-brasileira ao
longo dos tempos.
48
Com a independência confirmada, havia medo da reação dos escravos,
motivo pelo qual foi comemorada pela família patriarcal sem alarde na casa-
grande, pois, na senzala, os negros “não entendendo direito o acontecimento e
atendo-se à palavra ‘liberdade’, queriam saber como é que ia ficar a situação
deles” (GONÇALVES, 2017, p. 164). Restava ao senhor escravocrata mandar
o capataz explicar a sua escravaria “que nada tinha mudado para os
escravos, que os pretos não eram um país, que não pertenciam de fato a
nenhum país e, quando muito, alguns poucos poderiam ser considerados
gente, quanto mais falar em liberdade” (GONÇALVES, 2017, p. 164). A
euforia da senzala foi contida.
É com a problematização do passado, como indica a passagem acima,
que acontecem os deslocamentos entre a história e a ficção. A obra de
Gonçalves permite ao leitor o questionamento da história dita oficial, o que
aproxima a narrativa do gênero de romance meta-ficcional. Segundo Jacomel e
Silva (2009, p. 740), “o que diferencia a meta-ficção historiográfica de um
romance histórico é a autorreflexão causada pelo questionamento das
‘verdades históricas’”.
De acordo com Jacomel e Silva (2009, p. 740):
49
linguagem metafórica da literatura que aponta para dizer outras coisas para
além do que é dito”.
Sobre Um defeito de cor, Daiana Santos (2015, p. 172) afirma seu forte
caráter metafórico em relação ao Brasil contemporâneo, pois a obra
50
A interação entre essas e outras personagens reais e as fictícias
contextualiza e ratifica o caráter histórico do romance em questão. Segundo
Cosson e Schwantes (2005, p. 31-32):
51
é aquela que olha a história da perspectiva daqueles que usualmente
não frequentam os manuais de história, ou, se o fazem, servem
apenas para denominar o coletivo. Trata-se de tomar o anônimo ou o
povo personificado como agentes da história, fazendo com que os
episódios sejam relatados a partir desse olhar que não determina o
rumo dos acontecimentos por não ter poder, mas os vivencia e pode
dar a eles um sentido outro, diverso daquele que se encontra escrito
e inscrito no registro oficial.
52
pequena Kehinde e sua irmã gêmea Taiwo. Tudo isso, obrigando a sacerdotisa
a ver tais atos.
Pessoas que passavam por perto viram a triste cena, mas não
interferiram. Essa tragédia motivou a mudança das sobreviventes para a cidade
litorânea de Uidá, Reino do Daomé, atual Benin, o que selaria o destino
daquela família. As irmãs foram capturadas e, assim como sua avó, levadas
como escravas em um navio negreiro. Contudo, apenas Kehinde conseguiu
sobreviver e completar a travessia do Atlântico, pois sua avó e irmã
sucumbiram diante da dura jornada marcada por sede, fome e as precárias
condições de salubridade no navio negreiro.
Entre deslocamentos forçados ou voluntários, primeiro como mulher
livre, depois na condição de escravizada e, posteriormente, como liberta, a
protagonista de Um defeito de cor locomoveu-se por diversos lugares, tanto
africanos quanto brasileiros, como ela mesma rememora ao se aproximar do
final de sua narrativa de vida:
Savalu, Uidá, Ilha dos Frades, São Salvador, Itaparica, São Luís,
Cachoeira, São Sebastião, Santos, São Paulo, Campinas, Uidá, Lagos.
Era lá, em África, que eu deveria morrer, onde tinha nascido. Mas aqui
estou, indo morrer no Brasil [...] (GONÇALVES, 2017, p. 917).
Por outro lado, eu era a mãe dele, não ela. Ela sempre seria a dona,
impondo sua vontade, fazendo dele o que bem quisesse e não o que
ele pudesse vir a querer de fato. Eu não me espantaria se, na corte,
ela o mandasse estudar para ser padre, apoiada pelo padre Notório,
achando que o Banjokô deveria ficar agradecido por seguir tão nobre
carreira. Com a influência do padre Notório, ela logo conseguiria para
53
ele uma dispensa do defeito de cor, que não permitia que os pretos,
pardos e mulatos exercessem qualquer cargo importante na religião,
no governo ou na política. (GONÇALVES, 2017, p. 337).
54
ao seu aprendizado. De igual modo, dirigiu-se novamente para a Ilha de
Itaparica, onde teve contato com cultos Gelédés. Nesses casos, a necessidade
de sair de Salvador, por conta de sua participação em revoltas naquela cidade,
impulsionou seu aprendizado sobre os cultos aos voduns e orixás.
O contexto social conturbado em decorrência das revoltas impunha
enormes dificuldades para a sobrevivência dos negros em Salvador e do
Recôncavo. Um defeito de cor denuncia o clima de insegurança que interferia na
vida de todos os segmentos não brancos da população. Africanos e
afrodescendentes sofriam, como apresentado na narrativa de Gonçalves (2017, p.
266), além das mazelas da escravidão, com o racismo e a repressão policial que
os proibiam de andarem nas ruas da cidade durante a noite, pois “[...] preto na rua
à noite era sempre suspeito de estar fazendo coisa errada ou de ser fujão, e por
isso ninguém se arriscava, a não ser que tivesse uma carta do dono”.
Edmar Ferreira Santos, em O poder dos candomblés: perseguição e
resistência no recôncavo da Bahia (2009), analisa a repressão sofrida pelas
religiões de matriz africana naquela região. O historiador salienta a proibição
dos batuques, após a proclamação da independência, como uma postura que
visava “disciplinar a circulação de negros nos espaços públicos” (SANTOS,
2009, p. 47). A perseguição praticada pelos setores destinados a “manter a
ordem”, como a polícia e imprensa, atravessaram o século XIX. Os batuques,
sambas e demais manifestações relacionadas com a cultura africana,
continuaram resistindo na medida em que:
55
segmentos da sociedade baiana, tendo trabalhado na cidade como escrava
doméstica, de aluguel e de ganho no período que antecede a conquista de sua
alforria. As mulheres que, como Kehinde, trabalhavam na rua:
56
no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo, usando o chão
como caderno. (GONÇALVES, 2017, p. 92).
57
que conseguiam reduzir as amarras sociais ou interagir com os diversos grupos
étnicos que uma cidade diaspórica, como a Salvador oitocentista, podia
oferecer, tinham mais possibilidades de tomar iniciativa e obter sucesso na
realidade multifacetada da escravidão brasileira.
Um exemplo dessa iniciativa pode ser percebido quando Kehinde, com
intenção de expandir seus negócios, oferece os cookies em uma loja de
produtos estrangeiros, “a melhor, a mais cara e famosa” da cidade:
58
O escaler que carregava o padre já estava se aproximando do navio
[...] Antes que algum deles conseguisse me deter, pulei no mar. [...]
me lembrei de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me
levasse até a terra. Um dos guardas deu um tiro, mas logo ouvi
gritarem com ele, provavelmente para não perderem uma peça, já
que eu não tinha como fugir a não ser para a ilha, onde outros já me
esperavam. Ir para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu
queria, desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e
a minha mãe tinham me dado e com o qual me apresentaram aos
orixás e aos voduns. (GONÇALVES, 2017, p. 63).
59
Foi então que tirou o membro ainda duro de dentro de mim, mesmo já
tendo acabado, chegou perto do Lourenço e foi virando o corpo dele
até que ficasse de costas, em uma posição bastante incômoda por
causa do colar de ferro. Passou cuspe no membro e possuiu o
Lourenço também, sem que ele conseguisse esboçar qualquer
reação ou mesmo gritar de dor, pois tinha a garganta apertada pelo
colar. [...] O monstro se acabou novamente dentro do Lourenço,
uivando e dizendo que aquilo era para terminar com a macheza dele,
e que o remédio para a rebeldia ainda seria dado [...] pediu que dois
homens do [capataz] Cipriano o segurassem e cortou fora o membro
dele. (GONÇALVES, 2017, p. 172).
60
A personagem, porém, compreende a situação, pois ela também tinha
percebido que, assim como Alberto em relação a seus amigos, igualmente
adotara “uma atitude parecida, não querendo contar a Claudina que estava
morando de portas adentro com um branco” (GONÇALVES, 2017, p. 356).
Alberto, com o passar do tempo, entretanto, sucumbe às pressões sociais e
políticas, e separa-se de Kehinde para casar com uma brasileira branca,
sacrificando a felicidade de ambos para não ser deportado para Portugal.
Segundo Juliana Serzedello Crespim Lopes (2008, p. 40), nos anos que
se seguiram à Independência do Brasil, cresceu um forte sentimento de
lusofobia na população de Salvador, principalmente “nos setores urbanos
médios e baixos da população”. Daniel Afonso da Silva (2012, p. 278), ao
analisar processos de afirmação da identidade nacional brasileira na Bahia,
apresenta um abaixo-assinado enviado, em 1831, pelos “cidadãos da Bahia ao
presidente da província”, com diversas reivindicações, dentre elas, a
“deportação de todos os portugueses que não tiverem famílias, nem capitais
[...] para a tranquilidade, e segurança da província”.
O personagem Alberto, dessa maneira, torna-se refém dos conflitos e
tensões sociais envolvendo brasileiros e portugueses nas primeiras décadas
após a Independência do Brasil. Essa rivalidade tomou proporções absurdas na
Bahia, província envolvida em diversas lutas e revoltas na primeira metade do
século XIX, como a Revolta dos Malês e a Sabinada.
Entregue ao vício do jogo e da bebida, Alberto vende Omotunde na
condição de escravo para saldar uma dívida. Nascido livre, o jovem é entregue
a esse destino cruel. A turbulência política e social e o envolvimento de
Kehinde nas revoltas acontecidas em Salvador fizeram-na afastar-se da cidade
e, consequentemente, de seu filho, o que, de certa forma, acaba permitindo
essa tragédia familiar. Esses acontecimentos também são demonstrativos das
perversidades, deformações e complexidade da escravidão no Brasil, o que
evidencia a forte relação entre a história e a literatura e permite ao leitor refletir
sobre a história do país.
A partir daí, a busca por Omotunde torna-se o ponto central dos
deslocamentos de Kehinde, já que ela embarca para o Rio de Janeiro seguindo
os rastros deixados quando da venda de seu filho. Dado curioso é que antes de
61
embarcar para a corte, ela precisou ser “reescravizada” para poder viajar, já
que existia uma lei que proibia o tráfico de escravos e o desembarque de
libertos no país. Trata-se da Lei de 7 de novembro de 1831, também conhecida
como “Lei Feijó”.
Segundo o historiador Luís Gustavo Santos Cota (2011, p. 69), “a lei de
1831 foi, assim como outras tantas leis criadas em solo brasileiro, uma
promessa feita sem a intenção de ser cumprida”. Daí a origem da expressão de
cunho popular: foi uma lei “para inglês ver”, pois a importação de escravos para
o Brasil continuou acontecendo.
O doutor José Manoel, marido da sinhazinha Maria Clara, providenciou a
documentação que afirmava ser Kehinde sua escrava e que estava indo para a
corte trabalhar no ganho, servindo a uma irmã sua:
62
atuaram naquela insurreição (REIS, 1986), mas não há nenhuma
documentação primária comprobatória da participação de Luiza Mahin,
tampouco em outros levantes. O exemplo de Belchior é interessante, pois no
romance, ele era cativo no mesmo engenho que Kehinde. Após a venda da
fazenda e a consequente mudança da então viúva sinhá Ana Felipa para
Salvador, levando consigo apenas alguns escravos domésticos, o personagem
desaparecera da narrativa. Kehinde o reencontra muitos anos depois em meio
aos acontecimentos que levariam à Revolta Malês, em 1835:
Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (Nagô
de Nação) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o
batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra,
bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes
alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e
vingativa. Dava-se ao comércio - era quitandeira, muito laboriosa, e
mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se
em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.
(GAMA, apud FERREIRA, 2008, p. 304-305).
63
nenhuma Luiza, aliás, foi incluída em quaisquer das listas de presos
por envolvimento no levante. A única mulher com este nome que
encontrei em 1835 foi uma liberta, presa provavelmente em novembro
para ser deportada por crime não especificado, mas de forma alguma
por insurreição.
64
confrontando e relativizando a historiografia consagrada sobre o tema,
deslocando a referida Mahin para o espaço da história enquanto possibilidade.
No texto ficcional, Kehinde estava dentro do grupo de revoltosos durante
a rebelião dos malês nas ruas de Salvador. Esses, em menor número e com
menos armas, acabam tombando aos poucos, perante a repressão policial,
conforme se segue:
65
escravizados muçulmanos diminuiu em consequência dos desdobramentos das
guerras em território iorubá (REIS, 2003).
Outro evento histórico que teve a participação de Kehinde foi o que ficou
conhecido como a “Cemiterada”, quando a população de Salvador ficara
revoltada com a proibição dos enterros dentro das igrejas. Essa proibição
surgiu com o intuito de:
A participação de Kehinde, nesse caso, não foi efetiva, mas ela estava
pulando o muro do cemitério quando estourou o movimento. A mesma coisa
aconteceu na revolta liderada pelo doutor Sabino: foi presa por ajudar um
“preto velho” que havia sido espancado por três policiais. Os policiais acharam
que ela era uma baderneira e levaram-na para a Cadeia Pública
(GONÇALVES, 2017, p. 566).
Essa atmosfera de tensão, em que o recomendado, principalmente para
a comunidade negra, era permanecer em suas casas ou em reclusão para
evitar a repressão policial, promove o deslocamento de Kehinde de Salvador
para Itaparica. Isso porque Kehinde poderia ser deportada para a África por
66
conta de seu envolvimento com essas revoltas. Fugir sozinha, entretanto, foi
motivo de arrependimento, pois sentiu-se culpada pelos tristes acontecimentos
referentes ao desaparecimento de seu filho. Sem a família ao seu lado,
restava-lhe apegar-se à sua religiosidade.
Itaparica, São Luís e Cachoeira constituem-se em lugares de
aprendizado acerca dos cultos aos voduns e orixás. Ao mesmo tempo em que
Kehinde se dedicava ao seu treinamento como vodunsi, as coisas iam
acontecendo em Salvador, movimentando as vidas de todos que se
relacionavam com ela. Alberto, como já referido, entrega-se aos vícios e
desaparece após a venda de Omotunde. Os negócios de Tico e Hilário, amigos
que tanto a ajudaram, prosperavam, enquanto Esméria, figura materna que
ocupa o espaço deixado pela morte de sua avó, vai envelhecendo, tendo
consciência de que sua morte se aproximava.
No Rio de Janeiro, em meio a sua busca por Omotunde, Kehinde faz
novos amigos, como a dona Balbiana e o Piripiri, além de presenciar situações
que revelam aspectos da sociedade local. Ao discorrer sobre a festa de Kianda,
revela a diferença entre os deuses nagôs e angolas. Kianda para os angolas é
o equivalente a Iemanjá para os nagôs. Kituta era “bem parecida com minha
Oxum” (GONÇALVES, 2017, p. 677).
A realidade dos capoeiristas também se faz presente na narrativa e, por
meio do personagem Piripiri, Kehinde descobre as rixas entre os pretos minas
e os angolas. Ele a recomenda a dizer, quando perguntada, que é crioula
“nascida na Bahia” e não africana do Daomé, para, assim, não sofrer possíveis
retaliações por conta de sua origem étnica. A proibição dos elementos
relacionados ao universo da capoeira, como a luta, o batismo e a música, é
destacada por Gonçalves, bem como sua importância em época de eleição, já
que políticos contratavam as maltas para criarem confusões, ajudando a
mascarar fraudes nas urnas. Os capoeiristas, dessa maneira, embora fossem
vítimas da perseguição policial, possuíam importância dentro do contexto
político e social do Rio de Janeiro no século XIX, além de ser um forte
elemento de resistência da comunidade negra.
No Rio de Janeiro, Kehinde trabalhou como quituteira e no comércio de
tecidos africanos. Quando descobria alguma pista sobre o filho desaparecido,
trabalhava apenas pela tarde. Os negócios estavam prosperando, visto que
67
ninguém nas redondezas vendia “panos-da-costa legítimos e tecidos da África”,
o que atraia clientes de todas as partes da cidade, possibilitando que ficasse
“sabendo notícias das redondezas, aproveitando para falar sobre você
[Omotunde]” (GONÇALVES, 2017, p. 682).
Os contatos com os amigos que havia deixado na Bahia continuavam
por meio de cartas, mas carregavam “mais desabafos do que notícias, e
principalmente as minhas descrições sobre São Sebastião, que a sinhazinha
adorava ler” (GONÇALVES, 2017, p. 703). Entretanto, o surgimento de uma
pista, com a confirmação de que Alberto havia levado “um mulatinho” para um
batizado na Ilha de Itaparica, reacendeu a esperança. Maria Clara e José
Manoel foram responsáveis por esse momento de alegria, pois:
68
[Era] uma derrota muito grande, e não cansei de me amaldiçoar, muitas
vezes e por muitos motivos, mas principalmente por ter permanecido
em São Sebastião quando já tinha a morada do mercador de Santos.
Aqueles dias poderiam ter feito diferença, nunca saberemos. Se tudo
tivesse acontecido mais depressa, se eu não tivesse perdido tempo
quando não era necessário, se eu tivesse perguntado ao mercador de
Santos se haveria alguma possibilidade de você estar em São Paulo,
teríamos nos encontrado, e sabe-se lá o que mais teria acontecido nas
nossas vidas. (GONÇALVES, 2017, p. 721).
69
medo de que eu não concordasse com aquele tipo de comércio.
Comentei que provavelmente eu não teria coragem de comprar
armas e pólvora, mas se ele garantia que era um bom negócio e que
a venda estava garantida, por mim estava tudo bem. (GONÇALVES,
2017, p. 759).
70
brancos, mas que, de volta à terra, negava esses costumes.
(GONÇALVES, 2017, p. 757).
71
personagens e contextos fictícios e reais após seu retorno à África, participando
da vida social dessas novas e antigas comunidades. Após trabalhar como
negociante de armas, investiu no ramo da construção civil, construindo, em Uidá,
casas que lembravam os sobrados típicos de Salvador, assim como muitas festas
de louvor aos santos católicos foram levadas para o Daomé pelos “brasileiros”.
Tal iniciativa demonstrou o estranhamento dos africanos que
atravessaram o Atlântico à cultura dos que permaneceram na África. Os
Daometanos também não consideravam os retornados como seus iguais, o
que causa surpresa em Kehinde quando ela percebe que a quantidade de
brasileiros em Uidá era maior do que imaginava. Muitas festas religiosas foram
levadas para Daomé, o que colaborou para o processo de hibridização que
fundiu aspectos de diversas culturas africanas aos festejos que homenageiam
os santos católicos:
72
Considerando a experiência de Kehinde na diáspora africana, fica nítida a ideia de
seus deslocamentos não pararam, mesmo quando de seu retorno à África. Ela
casou-se, mas não com um daometano. John, seu novo companheiro, era natural
de Freetown, Serra Leoa, e trabalhava para um inglês, praticando comércio nos
dois lados do Atlântico. Com ele, teve dois ibêjis14, Maria Clara e João, filhos que,
quando crescidos, foram estudar na França.
Sujeita, como visto, essencialmente hibridizada, Kehinde não se
adequava ao ambiente social em que estava inserida, mesmo com o sucesso
de seus empreendimentos na África. Seu êxito contrastava com a precariedade
da vida de seus amigos africanos, pois os retornados normalmente conseguiam
mais sucesso devido ao aprendizado adquirido no exílio forçado.
Os deslocamentos em Um defeito de cor também confrontam a
concepção de existência de uma “mãe África”, uma terra que aguardava de
braços abertos o retorno de seus filhos aprisionados e levados como cativos
para o outro lado do oceano. Tanto Kehinde quanto outros libertos, afinal,
decepcionaram-se com o que viram ao voltarem para o continente africano:
14
Filhos gêmeos.
73
pessoas, fundamentada pela experiência e memória de quem sobreviveu e
sentiu na pele a escravidão, bem como questionaram os registros e discursos
ditos oficiais acerca da formação do povo brasileiro.
O trecho a seguir, por exemplo, demonstra o espanto de Kehinde ao
perceber que até na África os negros também teriam que pedir dispensa do
“defeito de cor” para serem aceitos pela Igreja:
74
acerca da história), e uma linguagem que não deprecia, menospreza ou ignora
a população brasileira afrodescendente.
75
CONSIDERAÇÕES FINAIS
76
Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala, por exemplo, indica a forte
marca do negro na sociedade brasileira em praticamente todos os aspectos.
Mas chama a atenção à vinculação exacerbada do negro à sexualidade: “Da
[mulata] que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-
vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi nosso
primeiro companheiro de brinquedo [...]” (FREYRE, 2003, p. 367).
Considerado um dos maiores clássicos da historiografia brasileira, Casa-
grande e senzala não perdeu o seu vigor, ainda que tenha sido publicado nos
anos 1930, já que o debate acerca da obra acabou reverberando fora do ambiente
acadêmico. O denominado mito da “democracia racial”, surgido nos anos que se
seguiram a sua publicação, transmite a ideia de que a escravidão brasileira foi
mais branda que em outros lugares mundo afora, colaborando para a formação do
povo brasileiro pela miscigenação dos elementos indígena, europeu e africano,
construindo, assim, um país “livre” de racismo.
No entanto, mesmo compreendendo a miscigenação de maneira positiva
para a constituição do povo brasileiro, a análise de Freyre parece não
considerar os impactos nefastos da escravidão na formação da família
escrava/negra e na sua descendência. É aí que a literatura cumpre um papel
importante ao demonstrar a escravidão do ponto de vista de quem mais sofreu
com o colonialismo português: a mulher negra.
Na colônia brasileira, elas foram vítimas de todas as formas de violência,
principalmente as de cunho sexual. O romance de Ana Maria Gonçalves
consegue representar esses aspectos sombrios do processo miscigenador, em
uma narrativa que questiona não apenas o passado, mas também o tempo
presente, expondo diversos problemas enfrentados pela população
afrodescendente na história brasileira, como o racismo e a falta de
representatividade dos negros em diversas instâncias políticas e socioculturais.
Observa-se que a característica de testemunho é típica da escrita pós-
colonial, bem como dos escritores de um campo literário bem específico: a
literatura afro-brasileira. O romance de Ana Maria Gonçalves, dessa forma, por
tratar-se de uma obra com características de resistência, que vai de encontro
às instâncias canônicas ao propor uma reflexão crítica acerca da história dita
“oficial”, pode ser incluído nessas categorias.
77
No que diz respeito à literatura afro-brasileira, mote desta dissertação, o
romance de Ana Maria Gonçalves consegue apresentar as cinco
características propostas por Eduardo de Assis Duarte para a composição
desse específico ramo da literatura brasileira: a autoria, a temática, o ponto de
vista, a linguagem e o público. Salienta-se que isso não retira Gonçalves das
outras perspectivas acerca da composição de um campo específico para
escritores negros, mas a abordagem de Duarte (2008) parece ser a mais
completa e abrangente acerca dessa questão, motivo pelo qual se optou por
essa proposta teórico-metodológica.
No que diz respeito à relação entre a história e a ficção, percebe-se
que a abordagem de Gonçalves buscou humanizar a personagem histórico-
mitológica Luiza Mahin ao fazer de Kehinde sua contraparte ficcional, uma
personagem cheia de virtudes e defeitos. Prova disso é que o mito de
heroína libertária, atribuído a Mahin, não condiz com uma pessoa que
investe no comércio de armas, colaborando, ainda que indiretamente, para
escravização de irmãos de cor.
Os deslocamentos de Kehinde ratificam a ideia de que a mobilidade era
essencial para a mulher e o homem negro sobrevivessem no Brasil oitocentista,
constituindo-se como forte elemento de resistência que ajudava na diminuição ou
enfraquecimento do “defeito de cor” que carregavam. Esse “defeito”, contudo, não
poderia ser superado na sociedade racista, pois mesmo adentrando nos espaços
frequentados hegemonicamente pelos brancos, os negros e/ou afrodescendentes
sofriam (e sofrem) com as marcas deixadas pela escravidão.
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, dessa maneira, apresenta
nuances que ainda precisam ser exploradas pelos estudos literários. Ao
contemplar a temática dos deslocamentos, sejam eles físicos ou identitários,
espera-se ter contribuído para o debate acerca da literatura afro-brasileira, bem
como para a fortuna crítica do corpus em análise.
A pertinência da obra de Gonçalves em meio ao atual cenário político-
social brasileiro demonstra que a saga de Kehinde representa,
metaforicamente, a vida de muitas mulheres negras do nosso país. Os
escravizados de antes são os que hoje continuam exaustivamente lutando pelo
pão de cada dia. A segregação racial continua refletindo-se na falta de
representatividade dos negros em lugares e instituições dominados pela
78
presença branca, mais de 130 anos após a abolição da escravidão. O exemplo
de Um defeito de cor é demonstrativo do papel da literatura afro-brasileira:
denunciar as injustiças sociais. A presença das mulheres negras e dos homens
negros não pode ser mais ignorada, seus direitos não lhe podem ser negados,
sua escrita merece ser lida e sua voz deve ecoar cada vez mais.
79
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