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1 A primeira versão deste texto foi apresentada no seminário Polarizações, promovido pelo Grupo de Pesquisa Mídia e Narrativa,
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em Belo Horizonte, de 3-5 de novembro de 2015. Reflexão ligada
ao projeto Valores em movimento no cenário midiático-social: leitura dos acontecimentos e da intervenção pública dos sujeitos,
financiado pelo CNPq.
2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista
Pq1-B do CNPq. E-mail: veravfranca@yahoo.com.br.
3 Bolsista de iniciação científica e coautora do artigo como parte de sua monografia de conclusão de pesquisa. E-mail:
mayrabernardesc@gmail.com.
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Resumo
Palavras-chave
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Imagens, crenças e verdade nas manifestações de 2013 e 2015
Vera Veiga França e Mayra Bernardes
Abstract
Keywords
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A face
Usamos o conceito de “face” no sentido evocado por Goffman (1996): trata-
se da fachada, daquilo que se realiza na frente do outro, da imagem que se dá
a ver. O conceito aciona e articula dois aspectos: a) a dimensão empírica dos
fatos; b) a evocação de quadros de sentido. O tratamento da face nos remete
inicialmente à dimensão empírica do fenômeno; diz respeito à concretude das
coisas, à sua existência para além das representações que possamos acionar.
Quando pensamos nas manifestações que aconteceram em 2013, evocamos
antes de tudo sua concretude – a maneira como “coisas” aconteceram e afetaram
o ambiente à nossa volta. Nós vimos multidões nas ruas, em grandes e pequenas
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A verdade
Falar na “verdade” das jornadas de junho é uma afirmação provocativa,
que toca num terreno polêmico. Verdade é, hoje, uma ideia desacreditada, e ela
desvaneceu-se com a própria falência das certezas científicas, da precariedade dos
conceitos explicativos totalitários, da compreensão de que nosso mundo, marcado
pela complexidade, atravessado pelas incertezas, assombrado pela entropia e pelo
caos (conforme discutido por autores como Edgar Morin, Ilya Prigonine, Isabelle
Stengers, entre outros).
Por outro lado, também é preciso recusar o relativismo, que não ajuda o
conhecimento, que impede o desenvolvimento de um pensamento crítico e pulveriza
o próprio terreno da convivência (se tudo pode ser verdade, nada é verdade, e
tudo vale. Tal relativismo mina as bases de construção de um mundo comum e
empobrece o conhecimento).
Essa dupla negação (nem verdade absoluta nem relativismo) nos deixa em
um lugar desconfortável, e fomos buscar apoio no pragmatismo de Peirce e James,
mais especificamente na Teoria da Verdade de William James, conforme nos é
apresentada sobretudo por Madelrieux (2008) e Putnam (2010).
Para James (no clássico Pragmatism: a new name for some old ways
of thinking, 1902), a verdade é uma concordância com a realidade; não uma
concordância individual, mas uma concordância coletiva, um consenso social.
Nesse sentido, a verdade não é intrínseca a uma ideia, mas ela “acontece” a uma
ideia. Ela é definida em termos de “consenso último”, e é uma propriedade de
crenças e juízos.
A “concordância com a realidade”, para os autores, não é sinônimo
de correspondência; inexistem parâmetros equivalentes para falar em
correspondência, já que esta ignora contextos em evolução. James fala em
“relações conjuntivas”, relações exteriores que podem ser observadas para
conectar nossas ideias àquilo a que elas se referem. Uma ideia não gruda em uma
coisa por suas qualidades intrínsecas ou por um impulso solitário da subjetividade
de um sujeito, mas sim como resultado de uma conjunção de elementos, de uma
relação que se estabelece fora da consciência individual entre coisas e outras
ideias que circulam (PUTNAM, 2010).
Nessa dinâmica, as coisas ganham significação. Para os pragmatistas, o
significado de um objeto são seus efeitos práticos; a significação é uma operação, e
não um conteúdo. Diferentemente do empirismo clássico, para o qual a significação
está na origem (no objeto) e é resultado de uma percepção sensível, para James ela
está no destino e é resultado de operações desenvolvidas ao longo da experiência.
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A violência simbólica
Cabe, no entanto, perguntar até que ponto essas manifestações foram
realmente pacíficas. Ao lado do cenário aparentemente festivo, uma extensa
produção discursiva se materializou em objetos e ações, traduzindo uma outra
forma de violência.
Não houve, ou não predominou nenhum tipo de violência física nos moldes
de 2013 (uso da força bruta pela política, depredação de edificações pelos
manifestantes)4. A violência, no entanto, pode se apresentar de várias formas
(ZIZEK, 2014); a leitura das imagens dos cidadãos pacíficos sugere a presença
insidiosa da violência simbólica, ou seja, da violência que se dá através de formas
discursivas que promovem a representação negativa e/ou a coação do outro, que
indicam intolerância e ódio.
Vemos, nas fotografias, que ao lado de um discurso que enuncia a natureza
pacífica dos manifestantes (sorrindo e posando de forma descontraída para as
câmeras), ecoam proferimentos nada suaves contra Dilma Rousseff, contra o
Partido dos Trabalhadores e suas figuras mais proeminentes.
4 Alguns episódios de violência física foram registrados e denunciados, como o espancamento de indivíduos que manifestaram
(ou sugeriam) posicionamento contrário ao impeachment ou proximidade com o PT. Isso não será tratado aqui, pois nosso corpus
se refere a imagens veiculadas pelas mídias já mencionadas.
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5 A violência sexual pode ser “consumada”, como na venda/distribuição de adesivos que simulam Dilma sendo penetrada pelo
bico de bombas de gasolina, ou apenas verbal, com xingamentos como “vai tomar no c*”, e outros.
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Crenças e verdade
Distinguindo-se nitidamente de 2013, quando as motivações que
impulsionaram as manifestações foram difusas e embrionárias, em 2015 as ações
empreendidas se mostraram guiadas por propósitos bastante nítidos. Avançando na
luta pela mudança, as crenças que se consolidaram estão no campo do pensamento
conservador, exacerbando a intolerância para com a diferença.
Poder-se-ia dizer que foi uma intolerância dirigida, justificada pelo mal que
se visava extirpar, ou seja foram a ação e os crimes do PT, de Lula e de Dilma que
motivaram e desculparam essa reação tão violenta (“a corja que achaca e destrói
o país”). Os valores que sobressaem, no entanto, indicam que não se trata de
uma reação pontual, mas uma reação e uma intervenção dentro de um projeto de
poder mais extenso, cimentado por um consenso, por uma verdade.
Retomando o que foi dito por James, a verdade é resultado de consensos
últimos, e marcada por uma concordância com a realidade. Uma verdade “acontece”
com uma ideia; está alicerçada em crenças e convicções.
No caso analisado, qual é a ideia que concorda com a realidade, e portanto
se torna verdade? A ideia é de que o Brasil está em crise (e existe de fato uma
crise econômica que nos ronda); de que existe corrupção solapando instituições
públicas e roubando o dinheiro público (as denúncias da Lava Jato não deixam
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Referências
BATESON, G. “Uma teoria sobre brincadeira e fantasia”. In: RIBEIRO, B.; GARCEZ,
P. (org.). Sociolingüística interacional. São Paulo: Loyola, 2002.
JAMES, W. “The sentiment of rationality”. In: JAMES, W. The will to believe and
other essays in popular philosophy. New York: Longmans, Green and Co, 1905.
p. 63-107.
RODRIGUES, E. A. P. 2014 será maior: uma análise dos ecos das manifestações
brasileiras. Monografia (Graduação). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2015.
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