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Marx e Lukács: aportes para uma crítica ao Direito

Wesley Sousa – UFSJ, Filosofia 2018

Qual a crítica que podemos traçar às formas jurídicas contemporâneas? O


Direito, por si, pode ser um elemento “neutro” em sua essência perante a realidade
social no seu ordenamento ou ele figura como um mecanismo acerca dos interesses de
classe? Como aspirante a um novo tipo de humanidade, dentro das situações concretas,
pensar que a arma da crítica é aqui mais que necessária, ainda mais em nossos tempos
conturbados, onde a incerteza e a generalidade humana fragilizada sobre o futuro é cada
vez mais evidente no mundo do Capital.

Um importante teórico marxista do Direito foi o soviético Evgeni Pachukanis.


Este que debruçou com esforço na compreensão do âmbito jurídico como extensão das
dinâmicas capitalistas. Em linhas gerais, expôs que o Direito no mundo burguês é parte
da totalidade capitalista. Em sua obra intitulada Teoria Geral do Direito e marxismo,
primou na análise desses fenômenos da realização no ordenamento jurídico moderno.
Fez a referência central sobre a “naturalidade” do Direito nas relações humanas. Mais
além, demonstrou que “as categorias jurídicas não têm outra significação além da sua
significação ideológica” (PACHUKANIS, 1988, p. 37). Isso porque em suas palavras:
“Do mesmo modo que a riqueza da sociedade reveste a forma de uma enorme
acumulação de mercadorias, também a sociedade, em seu conjunto, apresenta-se como
uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas” (PACHUKANIS, 1988, p. 47).

Aqui a crítica passará ter como centro à filosofia do Direito, sob a visão
marxiana e lukácsiana. Ambas as visões foram partilhadas do pressuposto que não
podemos desconectar, a rigor, as relações jurídicas das relações materiais de produção
(isso não pode ser confundido apenas à economia vulgar). Esse ajuste do grau de
regulação social do sistema judiciário, consonante com o nível de complexidade das
interações humanas, dentro da sociedade capitalista, pois dividida em classes sociais
antagônicas, engendra um mecanismo de “consciência social”. Isso é ponto chave na
percepção que o Direito – ou a chamada “esfera jurídica” – é extensão dessa consciência
social, ou ainda mais: ideológica (no sentido “negativo” que Marx coloca a questão –
mas é assunto para ser abordado especificamente em outro momento oportuno); pela
qual é o nosso objeto de crítica presente.

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Sob os escritos de Marx e Lukács no interior da filosofia do Direito temos o
instrumental analítico sofisticado e radical em sua gênese crítica. Contraposta perante
outras perspectivas, acerca da temática que se passa desde os cânones do liberalismo até
a socialdemocracia. Se no liberalismo clássico o Estado existe a partir um pacto
coletivo, sua função seria, na visão dos contratualistas, o Estado surgir de um acordo
coletivo, isto é, um contrato social. Sua função seria atender as necessidades vitais,
como a liberdade, segurança e à propriedade.

Podemos inferir que o Direito é, aqui, o resultado pelo qual a classe dominante
apresenta como melhor, no seu ordenamento, mais “adequado”. Isso seria porque o
direito é sempre vinculado à ideologia, pois é aparato legal da repressão social e de
“punição” individual. Este arcabouço normativo estatal corresponde a cada época
especifica. Na prática, o ordenamento jurídico está submetido ao ordenamento da
sociedade para garantias legais de privilégios, coerção e violência.

Marx escreveu em seu livro A ideologia alemã, juntamente com Engels que os
interesses das classes dominantes por meio de seus instrumentos de regulação e
dominação social, como “as relações materiais dominantes apreendidas como ideias;
portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são
as ideias de sua dominação” (MARX; ENGELS 2007, p. 47); o sistema jurídico e o
aparado militar e policial. Se de um lado os contratualistas liberais viam a
funcionalidade estatal como defensora da propriedade como garantia das liberdades
civis (ver Hobbes, Locke, Montesquieu e, de certa forma, em Rousseau). Seria o
“contrato social” fundador da soberania. A passagem do assim chamando estado de
natureza à sociedade civil se daria por meio deste contrato firmado pelos sujeitos
integrantes dessa sociedade fundada. Por outro lado, o filósofo alemão confronta essa
tese ao afirmar:

Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe


dominante fazem valer seus interesses comuns e não qual se resume
toda sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições
comuns são mediadas pelo Estado e adquirem através dele uma forma
política. Daí a ilusão que a lei se baseia na vontade e, mais ainda, na
vontade destacada de sua base real – na vontade livre. Da mesma
forma, o direito é reduzido novamente à lei (MARX; ENGELS,1984,
p. 98).

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Adiante Marx e Engels assinalaram que o direito não pode estar num nível
superior tanto econômico tanto politicamente no desenvolvimento da sociedade que é
condicionado por ele. A lei, contudo, é a formalização desse desenvolvimento particular
que engloba estratos sociais distintos (ou seja, antagônicos). Dessa maneira eles
escreveram:

No direito privado, as relações de propriedade existentes são


declaradas como sendo resultado da vontade geral. O próprio direito
de usar e abusar exprime, de um lado, o fato de a propriedade privada
tornou-se completamente independente da comunidade e, de outro
lado, a ilusão que a própria propriedade privada repousa unicamente
na vontade privada, na disposição arbitrária da coisa (MARX;
ENGELS, 1984, p.99-100).

O filósofo brasileiro do Direito, Vitor Sartori (2010), argumenta que na


contramão às defesas das análises jusnaturalistas do Direito, o fenômeno jurídico não
emerge naturalmente na vida cotidiana ou anteriormente à própria sociabilidade. Ao
invés disso, dele é resultante de um longo processo histórico-social marcado pela
complexificação da divisão social do trabalho, sob a base objetiva do desenvolvimento
do mercado mundial. Contudo, importante percebermos que nas concepções citadas “é
necessário que se verifique relação existente, em Marx, entre a questão do fetichismo, a
historicidade das relações sociais, a economia política, e a teoria do direito” (SARTORI,
2017, p. 75).

Dessa forma, chegamos à crítica de Lukács. Por sua vez, constatou o pensador
que partes importantes da superestrutura, bastando pensar no direito ou na política,
estão intimamente ligadas a esse metabolismo da reprodução capitalista, no seu caráter
repressivo, encontrando-se numa inter-relação direta e intrínseca com ele. A
conscientização de relações sociais determinadas e agem no sentido do fornecimento da
inteligibilidade que expressa uma norma coletiva que corresponda às necessidades
sociais imediatas:

(...) só os antagonismos elementares mencionados podem ser


resolvidos, dependendo das circunstâncias, puramente com base no
uso direto da força; todavia, com a crescente socialização do ser social
desfaz-se essa supremacia da mera força, sem que ela, no entanto,
chegue a desaparecer nas sociedades de classes. Pois, no caso das

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formas mais mediadas dos antagonismos sociais, reduzir a regulação
da ação social ao puro uso da força bruta forçosamente levaria a uma
desagregação da sociedade. Nesse nível, deve estar em primeiro plano
aquela unidade complexa de força indisfarçada e latentemente velada,
revestida da forma da lei, que adquire seu feitio na esfera jurídica
(LUKÁCS, 2013, p. 231-2).

O Direito, como apontou o filosofo húngaro, tem sua base alienante, ou seja,
sua base real é manipuladora mesmo que seus agentes por mais bem-intencionados que
fossem a forma em si desta expressão jurídica desempenharia seu metabolismo
repressivo e excludente:

Cabe ao direito manipular um turbilhão de contradições de tal maneira


que disso surja não só um sistema unitário, mas um sistema capaz de
regular na prática o acontecer social contraditório, tendendo para a sua
otimização, capaz de mover‑se elasticamente entre polos antinômicos
– por exemplo, entre a pura força e a persuasão que chega às raias da
moralidade –, visando a implementar, no curso das constantes
variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classe que se
modifica de modo lento ou mais acelerado, as decisões em cada caso
mais favoráveis para essa sociedade, que exerçam as influências mais
favoráveis sobre a práxis social (LUKÁCS, 2013, p. 247).

Sartori categoricamente mencionará que a crítica não pode ser desvinculada de


outros complexos humanos da vida humana dentro do sistema capitalista, pois a esfera
jurídica unilateralmente é o terreno pelo qual podemos observar uma questão relevante
na teoria do Direito comumente posta: “ao passo que tenta dar uma autarquia inexistente
ao Direito e à política, [...] ela conjuga uma análise ‘científica’ com a mais completa
ausência de preocupação genuína com a historicidade” (SARTORI, 2017, p. 80).

O campo jurídico serve para que o “gelo” seja “enxugado”; [...] Neste
sentido, diria que o papel do Direito na luta da supressão do Estado
burguês é, na melhor das hipóteses, circunstancial; o essencial está em
outros campos. Seria “esquerdismo” (Lenin) relegar qualquer luta por
direitos à nulidade; no entanto, o caminho de uma esquerda socialista
passa pela necessária crítica ao Direito.” (SARTORI, 2017 –
entrevista).

Os agentes dentro dessa esfera, conscientes disso ou não, ainda mesmo que “a
argumentação jurídica conseguisse se colocar como uma argumentação moral

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‘humanista’ [...] a situação não mudaria substancialmente” (SARTORI, 2017, p. 225). O
metabolismo do ordenamento jurídico deixa inviável e, até de maneira “obsoleta”, a
supressão das mazelas que intrinsicamente tomaram formas dentro da estratificação
social engendradas. Isso acontece pela necessidade do respaldo jurídico-político no seu
reconhecimento manipulatório que o jurista tem em sua práxis. Como forma de
ideologia, advertida pelo autor húngaro, o sistema jurídico exerce papel preponderante
na manutenção do status quo.

Do ponto de vista histórico, Lukács e Marx fizeram a conexão necessária com


o desenvolvimento das forças produtivas; as Constituições, que outrora foram
revolucionárias, passaram a rebaixar o cidadão à condição de servidor da normatividade
jurídica. Com isso, admitiram a real supremacia do ser social material, econômico,
privado. A liberdade civil se tornou, para Lukács, a liberdade prática do ser que
consome e obedece. A práxis do sujeito estaria vedada a tal realidade social.
Concernente a isso, o filósofo desenvolveu em uma obra póstuma intitulada Socialismo
e democratização:

O Estado de toda sociedade é uma arma ideológica para travar os


conflitos de classe segundo o modo de pensar da classe dominante.
Mas quando, por exemplo, um determinado estrato de cidadãos da
pólis compra a propriedade dos que se empobrecem, isso contribui
para eliminar a igualdade dos lotes e, portanto, promove
objetivamente, quaisquer que sejam suas intenções, a fragmentação da
própria democracia da pólis. [...] promove, no plano econômico, o
desenvolvimento do capitalismo e, ao mesmo tempo, adequa a
superestrutura estatal às necessidades econômicas que assim se vão
expressando (LUKÁCS; 2008 p. 92).

A ilusão que poderia ser eficaz, a “tentativa de ser “mais burguês que a
burguesia”, buscando do aparato burguês [...] traz um grande perigo: o fortalecimento
do próprio aparato burguês que precisa, do ponto de vista de esquerda, ser derrubado”
(SARTORI, 2017, p. 135-136). Na argumentação de Lukács, vale frisar, há a primazia
ontológica da visão que o sistema jurídico é a expressão das relações humanas
concretas, no seu ínterim, de forma ideológica para a repressão e injustiça. Nessa linha
de análise, convém usar das palavras do mesmo. E assim ele escreveu em sua obra
intitulada Para uma ontologia do ser social:

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Porém, no sistema jurídico, esses princípios de regulação constituem
resultados de um pôr consciente, que enquanto pôr deve determinar as
factualidades. Por isso, as reações sociais a ele também acabam sendo
necessariamente de outra qualidade. Por essa razão, é facilmente
compreensível que a crítica popular e também a literária à injustiça no
direito aplicado de modo consequente se concentre nessa discrepância
na subsunção do caso singular (LUKÁCS; 2013, p. 242).

O raciocínio de Lukács é bem claro para nós: o direito nunca poderá ser apenas
técnico ou “neutro” por si; ele pode ter esse verniz embutido no seu tratamento, se a
expressão jurídica tem como pano de fundo essencial à manutenção da ordem
estabelecida. Em outras palavras, Marx concebeu a “consciência social” dos sujeitos
dentro da ordem burguesa de mundo. Nessa dinâmica, a práxis jurídica, “em grande
parte dos casos, o jurista nada mais faria que “dourar a pílula”, deixando intocadas
justamente as raízes daquilo que, por vezes, sinceramente, critica” (SARTORI, 2017, p.
225).

Nessas perspectivas abordadas, portanto, tentamos mostrar as fundamentais


críticas que Marx e Lukács fizeram à filosofia do direito. Nesse sentido, colocaram que
apenas com a superação dos antagonismos sociais inerentes à sociedade civil burguesa
que exprimem o complexo jurídico-político e todo seu aparato repressor – incluso no
Estado – pode-se por fim à dominação de classe, repressão e exploração da vida social
baseada, em muito, por interesses privados. Ainda que o “campo dos Direitos” possa
colocar questões em disputa, como a “luta por direitos”, cientes da confrontação dos
interesses no “interior do Estado” (nas relações jurídicas e também políticas), não se
esgotam nele as contradições objetivas ali manifestadas.

Referências bibliográficas

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. v. II. Tradução Nélio Schneider. São
Paulo: Boitempo, 2013.

___________. Socialismo e democratização: escritos políticos 1956/1971.


Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio
de Janeiro; editora UFRJ, 2008.

6
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Tradução: José Carlos Bruni e Marco
Aurélio Nogueira. Editora Hucitec. 4° ed. São Paulo, 1984.

_____________________. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã


em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus
diferentes profetas (1845-1846). Supervisão editorial, Leandro Konder; tradução,
Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo,
2007.

PACHUKANIS, E. Teoria geral do Direito e marxismo. Tradução Sílvio Donizete


Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.

SARTORI, V. Acervo Crítico Entrevista: com Vitor Sartori. 15 Dez. 2017.


Disponivel em: < https://acervocriticobr.blogspot.com.br/2017/12/acervo-critico-
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____________. Crítica da Economia Política e crítica ao Direito: uma “teoria do


direito” marxiana?. Revista Culturas Jurídicas, Vol. 4, Núm. 9, set./dez., 2017, p 55-86.

___________. Direito e politicismo no Brasil: para uma análise da conjuntura nacional


pré e pós-golpe. Revice - Revista de Ciências do Estado, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.
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____________. Direito, interpretação e marxismo: uma análise a partir de Lukács.


Revista Dialectus, Ano 4, n. 11, ago./dez., 2017, p 205-227.

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