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Joãozinho dos mil dons

Finalista do Prêmio SESC-DF Monteiro Lobato de Literatura Infantil 2013


(Versão revisada)
Ângela Hofmann

Sinopse
Joãozinho era um menino amável que adorava ajudar os outros. Por possuir tantas
qualidades, seus pais e avós projetaram nele sonhos e funções. Buscando agradar a todos,
já nem sabia mais a quem atender primeiro. Passou a ter cada vez menos tempo de brincar
e de ser uma criança como qualquer outra. Foi então que uma grande dor de cabeça se
abateu sobre ele. O encontro com a história de Chenrezig, o Buda da Compaixão, trará
para Joãozinho e sua família a chave da sua cura e a redescoberta da infância.

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Joãozinho dos mil dons

Ângela Hofmann

Joãozinho era o único filho de Lúcia e Benjamim. Mesmo não sendo o único neto, todos os

olhares se esticavam para ele. E cuidados também. Foi aprendendo a amar e cuidar, assim como

era amado e cuidado.

Quando via um ser passando dificuldade, por mais pequenino que fosse, Joãozinho sentia em

si mesmo aquela dor:

Uma aranha caída no chão?

Uma formiguinha perdida?

Uma ninhada de gatinhos sozinhos na rua?

Erguia mamãe aranha ao contínuo esvoaçar de sua teia.

Seguia a trilha das formigas, acompanhando a formiguinha perdida.

Acolhia os gatinhos abandonados, dando-lhes de comer e beber.

Na escola ficava observando tudo. Ainda assim a professora lhe chamava:

– Joãozinho, preste atenção!

Mas era isso mesmo que ele estava fazendo: prestando atenção nos colegas. Talvez por causa

disso é que tinha muitos amigos. Na sala de aula todos se davam bem com ele, porque ele se dava

bem com todos.

A família de Joãozinho foi percebendo sua capacidade de ajudar os outros.

– Compassivo esse menino - dizia Vó Lina.

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Joãozinho ficava intrigado com aquela nova palavra.

– O que é compassivo, vó?

– Compassivo é quem tem “compaixão”. Compaixão é tomar uma atitude para o bem do outro

– respondia a avó.

Vó Lina estava certa. Joãozinho, de pequeno, só tinha o tamanho. Seu coração era enorme, tão

grande que cabiam nele todos os bichinhos e amigos que encontrava. Nele cabia o mundo inteiro.

Mas o pai, a mãe, o avô e a avó esperavam mais daquele pequeno. Queriam que fosse um

menino do jeito que sonhavam. E cada um tinha um sonho diferente.

Mãe Lúcia desejava que ele fosse um atleta.

Pai Benjamin queria que aprendesse a fazer os pequenos consertos da casa.

Vó Lina lhe ensinava todas as receitas de doces que fazia.

Vô Júlio fazia muito gosto que trabalhassem juntos no jardim.

Quando alguém perguntava a ele o que queria ser quando crescer, acontecia a maior confusão

na sua cabeça:

Seria veterinário para cuidar dos animais.

Seria professor para ensinar seus colegas.

Seria cozinheiro para preparar o almoço.

Seria faxineiro para manter a casa em ordem.

E seria sempre o aluno nota dez para que todos ficassem felizes.

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Joãozinho mirava, de vez em quando, na direção dos colegas que brincavam na praça do outro

lado da rua. Perguntava-se:

– Como eles têm tanto tempo para brincar e eu não?

A resposta não sabia. O fato é que as crianças continuavam lá: saltitando, brincando, jogando

bola, correndo livres, ouvindo e criando histórias. Não entendia a liberdade daqueles meninos. E

foi assim que começou sua crise.

Joãozinho ficou muito cansado. Aquele cansaço foi virando uma tristeza. Aquela tristeza

virando uma brabeza. Uma brabeza que foi aumentando, aumentando... Até que se transformou

num ataque de sapateio e choro:

– Chega! Não aguento mais! – esperneava.

Os adultos levaram um bruto susto. Nunca tinha ouvido um 'piu', nenhum 'ai' vindo dele.

Mas isso foi apenas o começo. Depois uma grande dor de cabeça se abateu sobre ele.

Lúcia chamou Benjamim e os dois levaram o filho para tudo que foi médico. Examinaram

daqui, examinaram de lá. Os médicos não entendiam o motivo e nem sabiam a cura para tamanha

dor de menino.

– O que poderia estar acontecendo com ele? – toda a família ficava se perguntando.

Quando a dor diminuía conseguia ir à escola. Mas se a dor estava forte, era uma falta em cima

da outra. Numa dessas aliviadas, Joãozinho foi à aula. Era dia de fazer empréstimo de livro na

biblioteca. Lá foi ele. Já estava segurando uma pilha de livros quando, não suportando o peso,

deixou-os despencar. Um deles caiu aberto, revelando uma estranha figura. A imagem era de um

ser que parecia meio humano e meio fantástico. E com muitos, mas muitos braços. E onze

cabeças.

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– Quem será? – perguntou-se – O nome dele é Tchen... Tchen - re - zig. Tchenrezig! E quer

dizer … “Olhos que veem”!

Começou a ler ali mesmo, sentado no chão da biblioteca. Mas não conseguiu terminar. Levou-

o para casa.

No dia seguinte, pediu a seus pais que lhe contassem a história daquele ser fantástico. Naquele

sábado pela manhã, Lúcia o chamou no sofá da sala e o acomodou em seus braços. Benjamim

pegou o livro.

– Pai, eu parei de ler onde diz que Tchenrezig é chamado de “olhos que veem”. Por que será

que ele tem esse nome?

O pai abriu o livro e começou a leitura.

Tchenrezig é um Buda que consegue ajudar as pessoas exatamente no que elas precisam. Por

isso seu nome quer dizer “olhos que veem”. Um dia Tchenrezig prometeu ao grande Buda

Amitaba que não descansaria enquanto não tivesse ajudado a todos os seres.

Joãozinho começou a imaginar que ele mesmo era Tchenrezig, correndo de um lado para o

outro atendendo a todos os pedidos.

E a história seguia...

Houve um momento que Tchenrezig pensou que tinha completado sua tarefa. Porém, quando

olhou ao redor, viu que ainda havia exatamente o mesmo número de seres necessitando de ajuda –

nem mais e nem menos. Percebendo que o sofrimento não havia diminuído, apesar de todo

esforço que fizera, ele sentiu tristeza e desânimo. Pensou consigo mesmo: “Nunca chegará o

momento em que concluirei a tarefa de levar todos para as terras puras”.

Assim, por ter duvidado, Tchenrezig falhou na sua intenção de ajudar os seres. Por quebrar

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sua promessa, sua cabeça rompeu-se e seu corpo dividiu-se em mil pedaços.

Lúcia e Benjamim notaram que o filho começou a ficar muito agitado.

– O que está acontecendo, querido? Vamos terminar de contar a história. Espere mais um

pouco.

– É que minha dor de cabeça tá voltando mais forte ainda...aaaaiii!

A dor foi aumentando muito e Joãozinho não aguentou mais.

Os pais arregalaram os olhos quando perceberam a pele do menino rachando. Aliás, não só a

pele, mas seu corpo inteiro começando a rachar e... Bum!

Joãozinho explodiu em milhares de pedaços.

E o que aconteceu com Tchenrezig?

Naquele exato momento da explosão, o Buda Amitaba apareceu. Abençoou a cabeça

quebrada e os mil pedaços de seu corpo, juntando-os em um só. Agora onze cabeças e mil braços

com mil olhos para poder beneficiar ainda mais os seres.

Lúcia e Benjamim não sabiam por onde começar, mas recolheram com cuidado aqueles cacos

espalhados. Assim como Tchenrezig, Joãozinho foi sendo reconstruído. Agora com onze cabeças e

com tantos braços e dons quanto ele. O menino sentiu-se mais forte do que nunca. Poderia usar

seus mil dons. Mas agora faria apenas o que estivesse a seu alcance. Porém não conseguia se

levantar. Não conseguia se mexer. Por quê?

– Joãozinho. Filho? Ei! Você está sonhando! Acorda, filho.

– Oh... O quê? Hum... – acordou num pulo e procurou: – Onde estão meus mil braços com mil

olhos? E as onze cabeças?

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Apalpou-se e percebeu a mesma cabeça, tronco, dois braços, duas pernas. Enfim, seu corpo

continuava igual como antes. Não havia explodido. Mas a dor havia sumido.

– Dormiu durante a história, querido. Não ouviu o final.

– Não precisam contar a história de novo, eu escutei tudo. Agora sei que tenho os mil braços

de Tchenrezig.

E o menino contou o sonho a eles.

– Por que você quer mil braços, Joãozinho? – Lúcia e Benjamim olharam o filho bem de

perto. E o abraçaram.

– Sabia que a minha dor de cabeça passou? Não sinto nadinha.

Os pais afrouxaram o abraço. O menino saltou e olhou pela janela. Deixou que a rua lhe

chamasse dessa vez. A praça esperava por ele nos tons de verão e amigos para brincar.

Abriu a porta e saiu. Atravessou a rua. Chegou ao outro lado.

Na praça, bastante espaço para Tchenrezig com seus mil braços. E para Joãozinho dos mil

dons.

***

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