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CATARSE Mês de Outubro de 2019

DA “SOCIEDADE DISCIPLINAR” À “SOCIEDADE


DO CANSAÇO”

Benedito José de Carvalho Filho


Sociólogo, mestre e doutor, Professor da

Universidade Federal da UFAM

Neste momento em que estamos vivendo em nosso país (e no


mundo) podemos dizer que nos encontramos diante de um loop,
ou seja, aquelas “sensações mais intensas e perturbadoras que se
pode experimentar”, onde “tudo que é sólido se desmanchar no
ar”, como dizia o grande pensador alemão que viveu no início do
século XX.1
Trata-se de uma espécie de vertigem (para não dizer, delírio)
que, nesse loop em que nos encontramos, reverbera fortemente
nos nossos corpos, afetando a nossa existência, a subjetividade,
mesmo que não tenhamos a consciência das suas origens, seus
efeitos e as consequências, como as doenças, as depressões, as

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Ver SEVCENKO, Nicolau. A Corrida para o século XXI – No loop da Montanha
Russa, editora Cia das Letras. A palavra “loop”, da língua inglesa,
significa “aro”, “laço”, “circuito” ou “sequência” na tradução para a língua portuguesa, dependendo
do contexto, o loop pode significar diferentes ações relacionadas a repetição. Um loop infinito é o
mesmo que uma “repetição infinita”. O looping é como estar numa Montanha Russa ao ato de
fazer loops, como os movimentos que os pilotos de aviões fazem ao traçar rotas circulares num plano
vertical, por exemplo. A partir de um sentido figurado, a palavra loop ainda pode significar a condição
de incompreensão sobre algo, ou seja, quando a pessoa revir todos os passos, dicas e instruções sobre
determinada coisa, mas continua sem entender a sua essência ou natureza.

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ansiedades, as síndromes e outras tantas outras formas de


adoecimento.
Neste artigo, trago subsídios para o debate sobre algumas
questões que considero importantes para compreendermos a
dramática situação em que estamos vivendo, não só em nosso país,
mas em todo o mundo.
Comento rapidamente um texto do segundo capítulo do livro,
publicado no Brasil em 2017 pela Editora Vozes, mas pouco
divulgado por aqui, chamado Sociedade do Cansaço, útil para
compreendermos os problemas que estão diante de nós,
principalmente no país em que vivemos (e, também, no mundo).
Trata-se de um momento dramático nesses tempos acelerado,
onde está em jogo a vida de cada um, o trabalho e a própria
existência, pois essas transformações nos afetam profundamente.
O que acontecendo, afinal? O que vemos diante de nós?
Nesses tempos de neoliberalismo que estamos vivendo, muitas
vezes não percebemos as transformações radicais que estão
ocorrendo em todos os aspectos de nossa vida, que nos faz sentir
como se estivesse levado por um furacão, ou por um loop, como
vimos acima.
O mundo, a sociedade, jamais será como antes, pois estamos
diante de sofrimentos variados, pois vivemos tempos de angústias
e desamparo. O que está em jogo é a sobrevivências de milhões de
pessoas vivendo no limite da existência.
Hoje temos no nosso país mais 15 milhões de pessoas, homens
e mulheres, desempregados, tentando todas as formas de
sobrevivência. Temos, também, uma legião enorme de pessoas
que já desistiram de procurar empregos. Uma parte dessas pessoas
estão no que podemos chamar de “viração”, ou seja, buscando as
formas mais diversificadas de sobreviver.
O que fazer nesta época de desmanches, onde os postos de
trabalhos estão desaparecendo e minguando. Que perspectivas
temos diante dessa violenta situação?

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Para contribuir com o debate indico para reflexão uma pequena


síntese em um capítulo do livro chamado Sociedade do Cansaço,
de Byung-Chul Hang, coreano, editado no Brasil pela Editora
Vozes, 2015 (que recomendo), e que nos mostra como “a
sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos,
presídios e fábricas, há muito tempo, entrou em uma outra
sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios
de escritórios, bancos, aeroportos, shoppings centers e laboratório
de genética.”
As fábricas estão desaparecendo, os empregos estão
minguando e, hoje, quem manda e controla o mundo é o capital
financeiro, que passou a especular livremente, enriquecendo uma
pequena minoria.
O trabalho, tal como conhecemos no passado está
desaparecendo. Hoje temos mais de 20 milhões de
desempregados, ou seja, pessoas vivendo abaixo da linha de
pobreza e 5 milhões vivendo nas ruas.
André Gorz nos dá um quadro dramático e detalhado dessa
situação, quando afirma que “só na Europa existem 20 milhões de
desempregados. 50 milhões de sem-teto, vivendo nas ruas. O que
aconteceu então com aquele excedente de riqueza obtido nesse
período? Comparando com os Estados Unidos, não sabemos que
lá o crescimento econômico enriqueceu apenas os dez por centro
da população que estão no topo da lista da riqueza. Esses dez por
cento se apropriam de 96 por cento de toda a riqueza adicional
gerada no período. As coisas não estão mal assim na Europa, mas
também não estão muito melhores.”
Aqui no Brasil a natureza é a agredida, incendiada, como
estamos vendo na nossa Amazônia. Os empregos somem e a
degradação se acelera numa velocidade tão grande que nos
surpreende e parece nos jogar numa espécie de abismo.
As pessoas das mais diversas camadas sociais estão no mais
violento desamparo, enquanto milhares de pessoas está sendo
literalmente eliminadas, direta e indiretamente do mercado de
trabalho, constituindo o que Giovanni Alves, professor da Unesp

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e autor do livro chamado O Novo (Precariado) do Mundo do


Trabalho denominou como “o subproletariado tardio”. Ou seja,
esse subprecariado tardio que constituí “uma parcela importante
do “proletariado pós-industrial” é um equivalente contemporâneo
do proletariado sem direitos, oprimido e empobrecido. É
constituído não apenas pela subproletarização tardia, mas pelos
desempregados estruturais. Ele é tão importante para nova ordem
do capital quanto o desemprego estrutural. É um aspecto
dissimulado da nova exclusão social, do qual o desemprego
estrutural é sua fratura exposta¨.

Os “matáveis” (ou seja, a milícias) crescem nos morros, nas


favelas e nos bairros pobres das cidades e no campo. O fascismo
e suas milícias estão aí, diante de nossos olhos, tornando-se
visíveis, com seus ódios necrófilos, enquanto a crueldade se
intensifica numa velocidade assustadora.
Nesse número do jornal Catarse convido os leitores e as
leitoras a refletirem sobre uma dimensão de nossa tragédia, que é
o trabalho, tendo como referência uma capítulo do livro chamado
Sociedade do Cansaço.
Em que sociedade estamos vivendo? Por que os trabalhos estão
desaparecendo do chamado “mercado de trabalho”? Como as
pessoas estão vivendo nesses tempos de desemprego e as grandes
transformações no trabalho? Que tipo de sofrimento e desalento é
possível perceber na sociedade? Por que os empregos estão
desaparecendo? Estamos vivendo o fim do trabalho tal como
conhecemos no passado? Como cada um de nós está vivendo
nesse mundo precário? Os velhos empregos vão aparecer?
Leia um dos capítulos do livro chamado A Sociedade do
Cansaço, do coreno Byung-Chul Han.

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AS GRANDE TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO E


SEUS EFEITOS

O autor citado acima afirma que “a sociedade do século XXI


não é mais a sociedade disciplinar, da época do taylorismos
fordismo, mas a sociedade do desempenho. Também seus
habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas
“sujeitos do desempenho”. São os que se autodenominam
“empresários de si mesmos.”
O que significa ser “empresário de si mesmo”
O pensador coreano explica essa mudança da seguinte forma:
“A sociedade disciplinar século XXI é uma sociedade da
negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. O
verbo modal negativo que domina é não-ter-direito. Também ao
dever inere uma negatividade, a negatividade da coerção. A
sociedade do desempenho vai se desvinculando cada vez mais da
negatividade. Justamente a desregulação crescente vai abolindo-a.
O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade do
desempenho. O plural coletivo da afirmação é Yes. We can, que
expressa precisamente o caráter da positividade da sociedade do
desempenho”.
No lugar da proibição, mandamento ou lei, entram projetos,
iniciativas e motivações. A sociedade disciplinar ainda está
dominando pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes.
A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e
fracassados.”
O autor chama atenção que a sociedade do desempenho “já
habita, naturalmente o inconsciente social, o desejo de maximizar
a produção”.
Habita de que forma? São variadas essas formas, mas temos
hoje o que, no passado, se chamava de “viração”, ou seja, os
trabalhadores que não conseguem empregos nas fábricas e no
setor de serviços, criava, das mais diferentes maneiras, as suas
formas de sobrevivência. Na época do chamado Taylorismo-

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Fordista, época das fábricas (a maioria localizadas em centros


urbanos), os trabalhadores constituíam uma força de produção
significativa. Esse momento, que durou muitas décadas está
desaparecendo e quase não existe mais.
Qual está sendo o destino dessa multidão de trabalhadores
nesses tempos de desaparecimento das formas de trabalho que
existiam no passado?
O que vemos hoje são muitas pessoas inventando suas formas
de sobreviver. Muitos desejam ser “empresários de si mesmos”,
imaginando na possibilidade de ter um desempenho maior, ter um
maior sucesso, graças ao seu esforço e desempenho. Como diz o
autor, “a positividade do poder é bem mais eficiente que a
negatividade do dever. Assim “o inconsciente social do dever
troca de registro para o registro do poder. O sujeito do
desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da
obediência. O poder, porém, não cancela o dever. O sujeito do
desempenho continua disciplinado. Ele tem atrás de si o estágio
disciplinar. O poder eleva o nível de produtividade que é
intencionado através da técnica disciplinar, o imperativo do
dever”.
Mas em relação à elevação da produtividade não há qualquer
ruptura; há apenas continuidade.”

Consequência

O autor cita Alain Ehrenberg que nos revela e localiza “a


depressão na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade
do desempenho”. E afirma: “A carreira da depressão começa no
instante em que o modelo disciplinar de controle comportamental,
que, autoritário e proibitivamente, estabeleceu seu papel às classes
sociais e aos dois gêneros, foi abolido em favor de uma norma que
incita cada um à iniciativa pessoal: em que cada um se
comprometa a torna-se ele mesmo (...). O depressivo não está
cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ter de ser ele

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mesmo.” Ou seja, o “empresário de si mesmo”, pelo menos na sua


imaginação.
Daí vem a depressão:
“Alain Ehrenberg aborda a depressão apenas a partir da
perspectiva da economia de si mesmo. O que nos torna
depressivos seria o imperativo de obedecer apenas a nós mesmo.
Para ele, a depressão é a expressão patológica do fracasso do
homem pós-moderno em ser ele mesmo. Mas pertence também à
depressão precisamente, a carência de vínculos, característica para
a crescente fragmentação e atomização do social. Esse aspecto da
depressão não aparece na análise de Ehrenberg. Ele passa por alto
também sobre a violência sistêmica inerente à sociedade do
desempenho que produz infartos psíquicos”.
“O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo
de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de desempenho.
Visto a partir daqui a Sindrome de Burnout não expressa o si
mesmo esgotado, mas antes a alma consumida. Segundo
Ehrenberg, a depressão se expande ali onde os mandatos e as
proibições da sociedade disciplinar dão lugar à responsabilidade
própria e à iniciativa”.
O que o torna doente, na realidade, não é o excesso de
responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho
como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho.”
(p.27). Um mandato cruel e, no final das contas, gerador do
individualismo exacerbado e altamente tóxico em todas suas
dimensões
Ou seja, os sofrimentos adquirem novas formas. Dramática,
certamente, e, muitas vezes cruel. Alguns se acham os vencedores
como “empresário de si mesmos”, adquirindo um alta e mortífera
intolerância contra uma imensa legião de pessoas que eles
consideram derrotadas pelo cansaço, pelo estresse, pela depressão
e até suicídios.
Como mostra o autor:
“Aqueles muros das instituições disciplinares, que delimitam
os espaços entre o normal e o anormal se tornaram arcaicos”. Em
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seguida, afirma: “Foucault não pode descrever as modificações


psíquicas e topológicas que se realizaram com a mudança da
sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. Também
aquele conceito de “sociedade de controle” não dá mais conta de
explicar aquela mudança. Ela contém sempre ainda muita
negatividade.”
Muito interessante a diferença que Byung-Chul Han
estabelece entre a sociedade disciplinar e a sociedade do
desempenho.
“A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É
determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal
negativo da coerção é o não ter direito. Também ao dever inere
uma negatividade, a negatividade da coerção.”
O autor mostra como “a sociedade do desempenho vai se
desvinculando cada vez mais da negatividade, a negatividade da
coerção. Justamente a desregulamentação crescente vai abolindo-
o poder ilimitado e o verbo modal positivo da sociedade de
desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes,we can expressa
o caráter da positividade da sociedade de desempenho. No lugar
de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e
motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não.
Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do
desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.”
(p.25).
Nesse sentido, as pessoas vão “se desvinculando cada vez do
antigo controle rígido existente na fábrica (cada vez mais
reduzidas) ou no seu local de emprego, que controla os seus
momentos e seus tempos de produção. Com o fim do trabalho, tal
como era vivido no interior da fábrica ou escritório, o trabalhador
passa a ser “empresário de si mesmo”, estabelecendo o seu tempo,
com o compromisso de dar conta da produção exigida.
Aparentemente aquele controle que experimentava através da
coerção (estar presente na fábrica e ser controlado pelos chefes e
patrões), passa a não existir para “empresário de si mesmo”, ou
seja, ele passa a ser individualmente o responsável por seu próprio
controle.
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Como afirma o autor, “a positividade do poder é bem mais


eficiente que a negatividade do dever. Assim o inconsciente social
do dever troca de registro para o registro do poder. O sujeito do
desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da
obediência. O poder, porém, não cancela o dever. O sujeito do
desempenho continua disciplinando. Mas, em relação à elevação
da produtividade não há qualquer ruptura; há apenas
continuidade”.
Alain Ehrenberg localiza a depressão na passagem da
sociedade disciplinar, para a sociedade do desempenho: “A
carreira da depressão começa no instante em que o modelo
disciplinar de controle comportamental, que, autoritária e
proibitivamente, estabeleceu seu papel às classes sociais e aos seus
gêneros, foi abolido em favor de uma nova norma que incita cada
um à iniciativa pessoal: em que cada um se comprometa a torna-
se ele mesmo (...) O depressivo não está cheio de limites, mas está
esgotado pelo esforço de ter de ser ele mesmo.”
O que nos torna depressivos seria o imperativo da obediência
apenas a nós mesmos. Para ele, a depressão “é a expressão
patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo.
Mas pertence também à depressão precisamente, a carência de
vínculos, característica para a crescente fragmentação e
atomização do social. Esse aspecto da depressão não aparece na
análise de Ehrenberg. Ele passa por alto também a violência
sistêmica inerente à sociedade de desempenho que produz infartos
psíquicos. O que causa a depressão do esgotamento não é o
imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de
desempenho. Visto a partir daqui a Sindrome de Burnout não
expressa a si mesmo esgotada, mas antes a alma consumida.
Segundo Ehrenberg, ¨a depressão se expande ali onde os mandatos
e as proibições da sociedade disciplinar dão lugar à
responsabilidade própria e à iniciativa. O que torna doente, na
realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o
imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade
pós-moderna do trabalho¨.

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“Alain Ehrenberg equipara equivocadamente o tipo de


humano da atualidade como o homem soberano nietzscheano:
homem soberano, igual a si mesmo, e cuja vinda Nietsche
anunciou, está prestes a tornar realidade em massa. Nada há acima
dele que lhe possa dizer quem ele deve ser, pois ele dá mostras de
obedecer apenas a si mesmo. Precisamente, Nietsche diria que
aquele tipo humano está em vias de tornar-se realidade em massa;
soberano não é o super-homem, mas o último homem, que apenas
ainda trabalha. Essa soberania está precisamente ausente daquele
novo tipo humano, exposto e entregue indefeso ao excesso de
positividade. O homem depressivo é aquele animal laborans que
explora a si mesmo e, quiçá deliberadamente, sem qualquer
coação estranha. É o agressor e vítima ao mesmo tempo. O si
mesmo em sentido enfático é uma categoria imunológica. Mas a
depressão se esquiva de todo e qualquer esquema imunológico.
Ela irrompe no momento em que o sujeito do desempenho não
pode mais poder. Ela é do princípio do cansaço de fazer e poder.”
“A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível que se
torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível. Não
mais-poder-poder leva a uma acusação destrutiva e a uma
autoagressão. O sujeito do desempenho encontra-se em guerra
consigo mesmo. O depressivo é um inválido dessa guerra
internalizada. A depressão é o adoecimento de uma sociedade que
sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade
que está em guerra consigo mesma”.
“O sujeito do desempenho está livre da instância externa de
domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É
senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está mais submisso a
ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se
distingue do sujeito da obediência. A queda da instância
dominadora não leva à liberdade. A contrário, faz com que a
liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito do desempenho se
entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o
desempenho.2 O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se
2
Em seu sentido verdadeiro, a liberdade está ligada com a negatividade. É sempre uma liberdade da
coação que provém de outro imunológico. Onde a negatividade cede lugar ao excesso da positividade,
desaparece também a ênfase da liberdade, que surge dialeticamente à negação da negação.

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numa auto exploração. Essa é mais eficiente que uma exploração


do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de
liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor
e vítima não podem mais ser distinguido. Esse auto-
referencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das
estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em
violência. O adoecimento psíquico da sociedade de desempenho
são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade
paradoxal.”
Hoje, quando vemos e observamos as pessoas que se acham
“empresárias de si mesmas”, ou seja, aparentemente são
empreendedoras, têm “como meta” torna-se independente, mas
dificilmente se percebem o quanto são exploradas, mesmo quando
adquirem o chamado “sucesso”. Mas, certamente, isso tem um
limite, pois, muitas dessas pessoas se sentem fatigadas e acabam
adoecendo. Elas estabelecem métodos, esforçam-se em demasia e
acabam adquirindo doenças físicas e psicológicas. A “sociedade
do cansaço” os leva para outra dimensão e resistem. E, quando
fracassam culpam os outros pelos seus insucessos. Daí advêm
muitas formas de dores e sofrimento.
Penso nas pessoas que estão ao nosso redor o quanto estão
sofrendo. Muitos colegas (homens e mulheres) na UFAM estão se
aposentando, mas pouco sabemos qual será o futuro, a perspectiva
com relação ao trabalho, que pode surgir de uma hora para outro.
Mas, certamente, teremos outros meios de sobrevivência, outra
estratégias, pois, afinal como diz a canção “navegar é possível,
viver é impossível.” Em que “mares” não sabemos. O que nos
resta é acreditar que sobreviveremos diante da tragédia em que
estamos observando diante de nossos olhos e que nos afeta
profundamente. “Sejamos bem vindos ao deserto do real”.

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A DOR E O SOFRIMENTO DE
NÃO SER MAIS O QUE É... OU QUE ERA?

Benedito José de Carvalho Filho

Na segunda metade deste ano descobri que estava


com um problema grave que me fez pedir licença da
Universidade.
Procurei médicos e todos me indicaram remédios
e fisioterapia. Isso me abalou muito, tanto do ponto de vista
físico, como psicológico e pedi licença do trabalho.
Passei fazer fisioterapia numa academia lotada de
adultos, jovens e crianças acometidas de dores das mais
diversas. Foram momentos muito difíceis, sofridos que abalou
minha autoestima e me fragilizou.
Perguntei para as atendentes se era muito grande
a demanda de pessoas que estão adoecendo na Universidade e
percebi que existiam muitos professores, funcionárias de
diversos setores solicitando licença médica, ou seja, o
afastamento do trabalho. Era a primeira vez que frequentava
aquele ambiente, onde encontrei médicos muito atenciosos e
compreensivos e eles me confirmaram o crescendo número de
licenças médicas e pedidos de aposentadoria.
Frequentar a academia fisioterápica me fez ver,
em pequenas dimensões, as dores mais diversas que se
apresentavam.
Fui convidado pela fisioterapeuta a ministrar para
as pessoas, clientes de funcionários, uma palestra sobre a dor.
Isso me fez lembrar as aulas que ministrava
décadas atrás para alunos e alunas numa faculdade particular na
cidade de Fortaleza, cujo o eixo do programa era o corpo nas
mais variadas dimensões. E relembrei daqueles momentos de

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debates com os alunos e alunas e foquei o tema da dor, o seu


significado.
Ofereço a todos os que se interessam sobre esse
assunto as reflexões que apresentei para a acolhedora plateia ali
presente no começo deste ano (2019).

A DOR E O SOFRIMENTO: ALGUMAS


NOTAS PARA REFLEXÃO

Benedito Carvalho Filho

A dor é um fenômeno universal, principalmente


nos seres humanos, que, apesar de reconhecê-los nos seus
corpos, não possuem muitas vezes um conhecimento sobre a
sua origem,
Podemos começar essa palestra dizendo que a dor
é universal e que que a humanidade é uma espécie dolorida. E,
nós, viventes, fazemos parte dela, pois, “habitamos” na dor,
principalmente neste momento em que estamos vivendo no país
e no mundo nesses tempos doloridos.
Como a dor se manifesta em nós, humanos? Será
que podemos nos referir ao ser humano com a aquela dualidade
que normalmente fazemos quando separamos a dor corporal e
a dor do espírito?
Mal compreendemos o corpo que possuímos e
herdamos (apesar de nos afetar profundamente), pois ele não
está desconectado da história de nossas vidas e das gerações
anteriores.
Podemos perceber o significado do corpo nas
mais variadas formas como se apresenta na história.

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Nesta época de grandes transformações em que


estamos vivendo o corpo pode ser visto de diversas formas.
Uma dessas formas é “corpo produtivo”, ou seja, o corpo
integrado ao processo de produção, como nós vimos ao assistir
o filme chamado Tempos Modernos, do inesquecível ator e
diretor de cinema chamado Charles Chaplin, num momento em
que o capitalismo industrial dava os seus primeiros passos na
indústria. Os chamados “corpos produtivos, são corpos
biológico integrado no processo produtivo, como dizia Marx no
seu livro O Capital e, mais recentemente Deleuze e Guery, Le
corp productif”.
Não é por acaso que desde muito tempo se usa as
palavras “mão-obra”, “capital humano” e tantas outras
expressões que nós faz lembrar e pensar o ser humano como
uma máquina, algo instrumental e sujeito, também, a se
desgastar até morrer.
A filósofa brasileira, chamada Marilena Chauí,
num de seus livros perguntava: “O que é nosso corpo? Qual a
sua essência?”
Ela especulava, fazendo as seguintes perguntas:
“A física dirá que é um agregado de átomos, uma
certa massa e energia que funciona de acordo com as leis gerais
da natureza. A química dirá que é feito de moléculas de água,
oxigênio, carbono, de enzimas e proteínas, funcionando como
qualquer outro corpo químico. A biologia dirá que é um
organismo vivo, um indivíduo membro de uma espécie (animal,
mamífero, vertebrado, bípede), capaz de adaptar-se ao meio
ambiente por operações e funções internas, dotadas de um
código genético hereditário, que se reproduz sexualmente. A
psicologia dirá que é um feixe de carne, músculos, ossos, que
formam aparelhos receptores de estímulos externas e tais
estímulos, capaz de ter comportamentos observáveis.”
Continua:
“Todas essas respostas dizem que nosso corpo é
uma coisa entre coisas, uma máquina receptiva e ativa que pode
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ser explicada por relações de causa e efeito, suas operações são


observáveis direta e indiretamente – podendo ser examinado em
seus mínimos detalhes nos laboratórios, classificado e
conhecido. Nosso corpo, como qualquer coisa, é um objeto de
conhecimento.”
Mas, Marilena Chauí se pergunta: “Porém, será
somente isso o nosso corpo?
E concluí:
“Nosso corpo é “visível-vidente, táctil-tocante,
sonoro-ouvinte/falante, meu corpo se vê vendo, se toca
tocando, se escuta escutando e falando. Meu corpo não é uma
coisa, não é máquina, não é um feixe de ossos, músculos e
sangue, não é uma rede de causas e efeitos, não é um
receptáculo para uma alma ou para uma consciência: é meu
modo fundamental de ser e estar no mundo, de me relacionar
com ele e de ele se relacionar comigo. Meu corpo é um ser
sensível que sente e se sente, que sabe sentir e ser sentindo. É
uma interioridade exteriorizada. É esse o ser ou essência do
meu corpo. Meu corpo tem, como todos os entes, uma dimensão
metafísica ou ontológica.”3
“Para a química, o corpo é feito de moléculas,
enquanto para a física é um agregado de átomos, A biologia dirá
que é um organismo vivo, um indivíduo membros de uma
espécie, capaz de se adaptar, a psicologia dirá que é um feixe
de carne e músculos, ossos, que formam aparelhos receptores
de estímulos externos e internos e aparelhos emissores de
respostas internas e externas a tais estímulos capaz de ter
comportamentos observáveis.” (ver Chauí, p.207)
A autora pergunta:
“Será o corpo uma coisa entre outras que pode ser
explicada por causa e efeito, podendo ser observada em seus
mínimos detalhes nos laboratórios?” (p.207)
Ela resume:

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CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática, pg. 207, ano 2004.

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“Meu corpo é um ser visível no meio de outros


seres visíveis”; “meu corpo é um ser táctil, pode ser tocado;
“meu corpo é sonoro”, portanto, pode ser ouvido e pode ouvir-
se quando emite sons. Ouço-me falando e ouço quem me fala,
porque nosso corpo produz palavras, sentidos.” (p.207)
O corpo e seu sofrimento não se restringem ao
homem e a mulher, isolados uns dos outros, como se fossem
ilhas, cuidando de sua própria vida. O ser humano nasce, se
desenvolve e morre num espaço temporal, ou seja, todos nós
nascemos e morremos em tempo histórico determinado, em
uma cultura, num contexto social, político e econômico
determinado.
Não somos uma ilha fechada em si mesmo, onde
o homem só enxerga a si mesmo e o outro se torna um objeto,
algo banal e, muitas vezes, desumanizado. A história do corpo
humano foi experimentada e representada sob diversas
concepções.
O que era o corpo humano nas eras primitivas?
Como era seu corpo na Idade Média e nesses tempos que
vivemos hoje?
Que sofrimentos viviam (e vivem) os homens nas
diversas épocas? Será que todos viviam e experimentavam seus
corpos como um sofrimento? Ou experimentavam da mesma
forma?
Com viviam os homens e mulheres, quando se
tornam banais (objetos) que serviam somente pelos propósitos
de lucro, (ou seja, “para o consumo, ou seja, usar e descartá-
los”). Como se o homem fosse visto como uma “coisa”, um
obstáculo, capaz de ser eliminada, como fizeram os nazistas e
as ditaduras, pois a vida parece ter se tornada banal, mutável,
ou como nos mostra Zygmunt Bauman no seu livro Vida para

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consumo (a transformação das pessoas em mercadoria).4 Viver


se resume a consumir? A ser – como se diz – “mão de obra”?
Eu pergunto: o que pode ocorrer com o corpo de
uma pessoa que não tem uma alternativa, senão sobreviver,
como vemos muitas crianças e adultos que nos dias de hoje
vivem mendigando pelas calçadas das ruas das cidades e nos
semáforos?
Como é possível não se indignar com a “vida
nua”, a que se referia o filósofo Giorgio Agamben,” como um
hipotético âmbito original, possivelmente ainda intocado por
codificações sócio-políticas, mas – muito pelo contrário – ao
espaço altamente artificial que as estruturas de poder geram ao
excluir da proteção jurídica as formas de vida que não se
submetam à sua ordem. Trata-se da vida desamparada, criando
sujeitos “invisíveis” ou elimináveis, como dizia Agambem. 5
O que o corpo representa para quem vive numa
situação extrema de desamparo? Como se sentem as pessoas
dentro de seus veículos ao se depararem, cotidianamente, com
aqueles corpos, exercitando seus malabarismos por uns
trocados, enquanto os que passam por elas tornam-se
indiferentes ao sofrimento que está diante de nossos olhos? 6
Existem muitos estudos sobre a dor, não só do
ponto de vista médico, mas sociológicos, filosóficos,
psicológicos, psicanalíticos e antropológicos, e que, ao lê-los,
nos leva a pensar que negamos a realidade de nossos corpos e
dos corpos abandonados, imaginando que não há uma
4 Ver o livro do jornalista Bernardo Kucinski e Robert L. Ledogar. Publicado na década de 1970-80, chamado Fome
de Lucros, Atuação das Multinacionais de Alimentos e Remédios, Editora Brasiliense, SP. Foi, na época, um livro
impactante. O livro citado por Zygmunt Bauman, foi editado no Brasil, pela Zahar, chamado Vida para consumo –
A transformação das pessoas em mercadoria, publicada pela Editora Zahar em 2007.

5
AGAMBEN, Homo Sacer e o Poder Soberano da Vida. Editora Boitempo.2008
6
Nem todos os corpos dos seres humanos vivem os corpos de uma forma homogênea. O corpo vive (e
sobrevive) em tempos e espaços heterogêneos, históricos determinados. O sofrimento do corpo, por
exemplo, pode ser percebido de muitas formas. Como compreender a sobrevivência das pessoas e seus
sofrimentos na era do nazismo, uma tragédia que afetou milhões de pessoas na Europa no século XX,
como nos revela um sobrevivente dessa era chamado Primo Levi, no seu famoso livro “É isto é um
homem?”, ao narrar a sua experiência nos campos de concentração. (Ver Levi, Primo, É isto um homem?
Editora Rocco, 1988).

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18

interrelação entre corpo e o que chamamos (muitas vezes


erroneamente) de “espírito”. 7
As minhas referências para pensarmos o que é o
corpo e seus sofrimentos do ponto de vista psicanalítico têm,
também, como fonte alguns autores, como do sociólogo e
psicanalista Manoel Tosta Berlink no seu conhecido livro
chamado Dor, assim como nos livros de Juan-David Nasio no
sua obra chamada O Livro da e do dor e do amor, publicado
pela Editora Jorge Zahar em 1997.8
Não podemos deixar de citar, também, o livro da
psicanalista Annie Aubert, chamado A Dor (originalidade de
uma teoria Freudiana), publicado originalmente na França com
o título La douler - Originalité d’une théorie freudiana, na
França em 1997 e publicado no Brasil em 2017 pela Editora
Escuta, São Paulo.
Recomendo, também, o importante livro da
psicanalista, Isabel Fortes, membro do Espaço de Estudos
Psicanalíticos, doutora em Teoria Psicanalítica pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Um de seus livros, que tive a oportunidade de ler,
tem como título A Dor Psíquica, editado pela Cia de Freud,
publicada no Rio de Janeiro em 2012.

7
Recomendo a leitura do livro do filósofo e ensaísta chamado Peter Pál Pelbart, “Vida Capital (ensaios de
Biopolítica”, publicado pela Editora Iluminuras, publicado em 2003 no Brasil, onde ele nos interroga:
“Nunca se falou tanto em vida, nunca interferiu-se tanto na vida, nunca se defendeu tanto a vida. Mas
afinal, o que significa esta palavra tão velha e gasta no contexto do capitalismo contemporâneo? Por que
em torno dela, mas em domínios os mais concretos, travam-se batalhas tão decisivas, onde está em jogo
o corpo de cada um, mas também a forma de vida e dos todos nós? Vida Capital propõe um diálogo com
o pensamento da atualidade que ousaram enfrentar tais questões, para além das categorias políticas
consagradas. Michel Foucault chamava atenção para o seguinte paradoxo: quando o poder investe a vida,
a resistência se apoia nessa mesma vida. Daí a dificuldade de separar o joio do trigo, nas atuais relações
entre poder e subjetividade, criar, amar, sonhar, ou mesmo resistir, apenas alimentando uma máquina
social vampiresca, ou o contrário, forjamos as condições para tomar posse da vitalidade individual e
coletiva. Este ensaio que o autor nos oferece, tratam da filosofia ou de política, de teatro ou de loucura,
de modo (o de suínos), obedecem assim a uma dupla exigência. Ao mesmo tempo em que evocam as
novas modalidades de dominação sobre a vida e a subjetividade (biopolítica maior), pergunta-se sobre as
formas de resistência, de associação e de comunidade que se anunciam (biopolítica menor).
8
NASIO, J. D. O Livro da Dor e do Amor. Editora Jorge Zahar Editora (1997). Tradução de Lucy Magalhaes,
São Paulo

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19

“A DOR HABITA O SER HUMANO”

Vamos iniciar as nossas reflexões com o texto do,


psicanalista Manoel Tosta Berlink, cujo título é A Dor.9
Ele começa afirmando que a dor “habita o ser
humano”, pois, “há uma intimidade do homem com a dor” (..)
que é “atestada pelo amplo e crescente consumo de
analgésicos.”
Sobre consumo de analgésico ele afirma:
“Essa intimidade é atestada, por exemplo, pelo
amplo consumo de analgésicos. Assim, de acordo com o
Laboratório Bayer, só nos Estados Unidos, consome-se 15
bilhões de tabletes de aspirina por dia, ou mais de 15 bilhões de
tabletes por ano, não devendo ser esquecido que este produto é,
hoje, um dos múltiplos analgésicos consumidos pelo mundo
afora”. 10
Ele nos mostra, também, “que a dor é um
fenômeno de tão ampla expressão (...) que nos leva pensar que
“a humanidade é uma espécie dolorida.” Mas, mesmo com a
amplitude desse fenômeno, o autor nos revela como a dor está
cercada de obscuros aspectos que parece resistir inteiramente o
corpo humano.”
A dor, como nos mostra o autor, há um grande
problema, “pois para denominar a dor existe um número muito
grande de denominações, como artrite, artrose enxaqueca,
fibromialgia, gota, dor muscular crônica, reumatismo. Ele
afirma que “cada uma dessas dores continua acompanhada de
enigma e obscuridade.”
Berlink toma como exemplo a Dor Muscular
Crônica. Ela integra um grupo de síndromes com muitas
9
BERLINK, Manoel Tosta (Org.), Regina M. Guisard Cromann, José Henrique Valentim, Rubens Marcelo
Volich, Carlos A.Guzzetti, Ruth Palladino, Daniel Dedouya. Editora Escuta, 1999. São Paulo.
10
Esse dado é de 1975 e foi oublicado pela Associação Internacional para o estudo da dor, com sede em
Seattle (Estados Unidos).

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20

características em comum, que representam um problema


clínico e terapêutico de etiologia desconhecida, englobando
formas severas como a fibromialgia, ou seja, “dores muitas
vezes inexplicáveis, como a dor nos músculos e nos tecidos
fibrosos (ligamentos e tendões) e que é implacável, espalhando-
se por todo o corpo, pois tem relação com a depressão e a
angústia.”
É sabido que o tratamento da depressão e angústia
tem íntima proximidade com a subjetividade, de onde advém a
enxaqueca, que é apenas um dos vinte e um tipo de dor de
cabeça. “Uma acompanha a outra”, afirma o autor.
A enxaqueca é apenas um dos tipos da dor de
cabeça e solicita constantemente a produção de novas drogas
que periodicamente contribuí para a produção de novas drogas
anunciadas nas revistas de divulgação. Mas, mesmo assim,
apesar da difusão dessas novas drogas, a enxaqueca persiste.
Depressão e angústia estão muito próximas e se manifestam
Eis aí a razão da divulgação maciça de
medicamentos para “curar” a enxaqueca que são produzidas
pelas multinacionais dos remédios, que anunciam “drogas
milagrosas”. (ver pg. 8). Portanto, “a depressão e a angústia
parece ser um fenômeno enigmático.” (Ver citação que o autor
faz de Freud nas páginas 8-9, onde ele mostrar o papel da
“imaginação” nas dores).

“O ser humano habita a dor”

Afirma Berlink “o ser humano habita a dor”.


Ainda mais: “não sentir dor coloca o humano num total
desamparo. Sem ela, a existência fica gravemente ameaçada, já
que a dor acusa os estímulos potencialmente lesivos do
presente.
Citando um autor chamado Eugène Minowski, em
seu livro El Tiempo Vivido, afirmava que:

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21

“A dor “deste ponto de vista, se opõe diretamente


ao caráter expansivo do ímpeto pessoal. Na dor não nos
exteriorizamos, não tratamos de deixar marcas no mundo
exterior, pelo contrário, suportamos, deixamos que venha com
toda sua impetuosidade, fazendo sofrer. A dor sensorial é,
assim, uma atitude em relação ao ambiente. Passageira,
instantânea até, por sua própria natureza, se instala e
transforma-se em duradoura ali onde não é contrabalançada
pelo elemento antagônico, o ímpeto pessoal.” 11
“De fato, o ser humano necessita da dor, assim
como não pode dispensar a depressão e a angústia, pois estes
estados são também sinais, anunciam perigos e ameaças que
ocorreram no tempo e no espaço. Chega a dizer que “a dor é um
dos elementos essenciais que determinam os limites de nossas
relações com o ambiente: contém em si, de maneira intrínseca,
a noção de uma força estranha que atua em nós e que o autor
faz sobre uma observação de Freud sobre a dor que não
conseguimos suportar”.
Berlink afirma que “a dor é um dos elementos
essenciais que determinam os limites de nossas relações com o
ambiente: contém em si, de maneira intrínseca, a noção de uma
força estranha que atua em nós e que vemos obrigados a
suportar.”
Mais adiante, nos oferece outros esclarecimentos,
reforçando seu argumento:
“Enquanto a dor responde a ameaças do aqui e
agora, a angústia, na sua manifestação como ansiedade, se
refere a ameaças futuras e a depressão está voltada para o
passado e para um espaço que não é o do aqui e agora. Há, na
depressão, na dor e na angústia sensações que incidem
espetacularmente no corpo, mas que são sempre psíquicas e que
são inscrições do tempo na carne do humano, frágil e
desamparada, que solicita constantes cuidados que atestam a

11
MINKOWSKI, Eugene. El Tiempo Vivido. Trad. De Angel Saiz Sáez. Méico, Fondo de Cultura Econômica,
1973. Citado por Berlink;

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22

insuficiência diante de ameaças que colocam a existência em


permanente perigo”
Outra observação importante de Manoel Berlink:
“A dor e angústia unem-se à depressão que, nas
belas palavras de Pierre Fédida, “é uma figura do corpo. Figura
cuja expressividade é delineada ao vivo na impressão de um
rosto sensível como um espelho, no peso estirado e tenso dos
membros, na visibilidade aguda e dolorosa da pele.”
Vocês, certamente, fariam uma pergunta que é
muito importante: “É possível imaginarmos um corpo sem
dor?”

“A Dor habita o ser humano”

Berlink observa:
“Entre a analgesia – doença rara em que o corpo
não acusa a existência de dor e que solicita do doente um
complexo e delicado aprendizado para viver – e a dor crônica,
a sensação sempre presente no corpo, habita o ser humano.”
A analgesia é a perda, ou ausência de
sensibilidade à dor, que pode ser induzida por substâncias
químicas, devido a lesões neurológicas, vasculares ou, ainda, a
problemas psicológicos ou vasculares ou, ainda, ainda a
problemas psicológicos.
Na sociedade contemporânea, que fenômenos são
possíveis de perceber quando os homens e mulheres querem
livrar da dor?
Afirma o autor:
“Há, no homem, uma intimidade com a dor
fazendo com que ela se torne particularmente difícil de ser
precisamente conceituada e que só a sua completa ausência, na
analgesia, é capaz de revelar. Essa intimidade é atestada, por
exemplo, pelo amplo e crescente consumo de analgésicos.”
,.
23

Berlink adverte:
“Assim, de acordo com Laboratório Bayer, só nos
Estados Unidos, consome-se 50 bilhões de tabletes de aspirina
por dia, ou mais de 15 bilhões de tabletes por ano, não devendo
ser esquecido que este produto é, hoje, um dos múltiplos
analgésicos consumidos pelo mundo afora. A dor é, assim, um
fenômeno de tão ampla extensão que é possível afirmar que a
humanidade é uma espécie dolorida. Entretanto, esta intimidade
ligado com a dor e é acompanhada de um proporcional
desconhecimento a seu respeito.” (pg.7)
Como nominar a dor?
Como nos mostra Berlink, “as pesquisas sobre a
dor enfrenta grandes problemas. Em primeiro lugar, descobre
rapidamente que a dor possuí um número muito grande de
denominações específicas, como artrite, artrose enxaqueca,
fibromialgia, gota, dor muscular crônica, reumatismo.” Ou seja,
“cada uma dessas dores é acompanhada por enigma e
obscuridade, como a Dor Muscular Crônica, que significa, “dor
nos músculos e nos tecidos fibroso (ligamentos, tendões) e que
é implacável, espalhando-se por todo o corpo e possuí uma
grande intimidade com a depressão e a angústia, com as dores
de cabeça e a enxaqueca, “que sempre solicita novas drogas”
Com observa em seguida:
“A dor, depressão e a angústia são fenômenos
próprios do psiquismo pode se manifestar no psiquismo
humano e a psicanálise “pode contribuir para sua compreensão”
(p.8)

A dor é sintoma físico ou psíquico?

Diz o autor que “dada a proximidade da dor com


a depressão e a angústia que se observa na clínica

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24

psicoterapêutica e considerando ela mesma é um fenômeno tão


próximo e, ao mesmo tempo enigmático”.
Na página 9 do livro de Berlink nos mostra como
a dor pode ser desaparecer sob a influência da volição. Ou seja,
desviando a tensão. Cita o caso dos “soldados adultos que na
batalha febril e no ardor desmedido de seu sofrimento pode não
sentir dor, pois o entusiasmo febril não sente dor desvia sua
atenção.”

A dor e o desamparo

Berlink que não tem a pretensão para explicar a


dor, mas nos chama a atenção para uma realidade muito
presente. Ou seja, “a ideia “que o humano habita na dor” e, “não
sentir dor coloca o humano num total desamparo”. Para ele, sem
a dor, “a existência fica gravemente ameaçada, já que a dor
acusa os estímulos potencialmente lesivos do presente, contido
no aqui e agora.” Trata-se, segundo ele, de “uma defesa contra
ameaças lesivas ou lesões vindas da realidade externa ao
organismo. A dor protege o organismo e, muitas vezes, é
dolorida.
Uma pergunta? O ser humano necessita da dor?
Como afirmamos anteriormente o “humano habita
na dor”. Isso significa que “não sentir dor coloca o humano num
radical desamparo. Sem ela, a existência fica gravemente
ameaçada já que a dor acusa estímulos potencialmente lesivos
do presente, contidos no aqui e agora”. Portanto, “a dor é uma
defesa contra ameaças lesivas ou lesões vindas da realidade ao
organismo. A dor protege o organismo provocando uma tensão
e ações que procuram evitar esses perigos, mas é bom não
esquecer que a própria defesa contra a dor é, muitas vezes,
dolorida.”
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25

A fuga da dor numa espécie dolorida

A dor determina limites e não é sem razão que a


humanidade é uma espécie dolorida, mesmo quando ingerimos
remédios para aliviá-la, como os analgésicos, os ansiolíticos e
antidepressivos, hoje de consumo fácil, sem esforço do
pensamento que nos possibilita a compreensão do que se passa
em cada um de nós. Isso porque a sociedade contemporânea se
refugia na dor das experiências dolorosas e angustiantes.
Como afirma Berlink:
“A depressão, a dor e a angústia têm, portanto,
uma ampla dimensão de ineficiência, pois se manifestam
segundo lógicas próprias que se articulam, de forma complexas
e muito indiretas, com ameaças que efetivamente ocorrem.”

Quais os tipos de sofrimentos vivemos hoje?

Diante da realidade contemporâneo, onde – para


usar uma expressão que Sigmund Freud, que faleceu em 1939,
em plena Guerra Mundial que findou em 1945 – que tipo de
mal-estares vivendo hoje?
Quando Berlinck, revela esse consumo extremo
de analgésico (isso em 1999, vinte anos antes, portanto) no
mundo o que dizer no mundo em que hoje vivemos (ou
sobrevivemos?)?
Quem, hoje, lucra com as dores do mundo, para
usarmos uma expressão de um grande filósofo chamado Arthur
Schopenauer, autor de uma obra sobre a dor,
significativamente chamada As Dores do Mundo, nos propondo
uma nova forma de pensar a dor, a felicidade, assim como o

,.
26

amor, a existência, a morte, a religião, a política e o homem na


sociedade?
Se, como nos mostrou, ainda, Manoel Berlink, a
dor “habita o ser humano”, como a sociedade está lidando com
a dor nesses tempos de desregulamentações e desemprego,
como está acontecendo no mundo e no nosso país? Será que
essa epidemiologia atinge ricos e pobres da mesma forma?
Recomendo a vocês o livro da Doutora Edith
Seligmann Silva, editado pela Cortez Editora, que tem um título
significante, chamado Trabalho e Desgaste Mental (O Direito
de Ser Dono de Si), editado em 2011, portanto há 8 anos atrás.
Os dados apresentado por ela no seu livro (que
contém mais de 600 páginas) são, no mínimo assustadores e não
podem ser desconhecidos, enquanto nós estamos preocupados
com a nossa saúde física e mental, principalmente nesses
tempos chamados de “desregulamentação”, que, como
afirmamos, significa alto nível de desemprego e, junto com ele,
o sofrimento físico e psíquico das pessoas não só no Brasil, mas
em todo mundo.
Vejam alguns trechos da autora ao refletir sobre a
saúde física e mental:
Referindo-se a psicobiologia, a toxicologia e a
dinâmica saúde-doença em seus processos individuais e
coletivos ela nos mostra “a diversidade das situações de
trabalho. Nas páginas 133-134, afirma:
“Estudos longitudinais, numa epidemiologia
inserida na perspectiva social, oferecem novas revelações sobre
a Saúde Mental Relacionada do Trabalho (SMRT)”, afirma a
autora. E afirma:
“Estudos longitudinais, numa epidemiologia
inserida na perspectiva social oferecem, de modo particular,
novas revelações sobre a saúde mental no trabalho, conforme
estudos já desenvolvidos por alguns pesquisadores dentro de
um enfoque psicossomático e na abordagem do estresse
relacionada ao trabalho.”
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27

Para Seligmann essas “novas relações” indicam


três fenômenos:
Doenças cardiovasculares que atingem o mundo
do trabalho e as tensões que elas desencadeiam;
Suicídios relacionados ao trabalho e ao
desemprego
A autora, (11 anos atrás) nos informa que são,
ainda poucos os estudos epidemiológicos voltados para
relacionar ocupação e situação no mercado de trabalho à
morbidade psiquiatra.
“Dados qualitativos sobre suicídios relacionados
ao trabalho e às reestruturações organizacionais existem em
alguns sindicatos, porém oferecem dados brutos, não são
estudos epidemiológicos. O mesmo – afirma a autora - acontece
quando à violência no trabalho. Existem, por exemplo, nos
órgãos de segurança pública, registros sobre o número de
assaltos a bancos, mas nem mesmo o sistema de saúde nem a
Previdência ´possuí a correlação desses eventos como
decorrências psicopatológicas, por exemplo, a frequência de
casos de transtornos de estresse pós-traumático em bancários.”
(página 113)
Vou me referir à minha profissão, onde se
observa, também, muitos mal-estares. Aliás, já se escreveu
muito sobre o mal-estar dos professores, em todos os níveis.
Uma pesquisa realizada pelo Sindicato dos
Professores do Ensino Público do Estado Oficial de São Paulo,
nos informou que 40% dos professores são afastados por
problemas de saúde, pois muitos têm problemas de transtornos
psíquicos.
Sinteticamente, podemos citar alguns, muito
conhecidos pelos fisioterapeutas e as fisioterapeutas, como:
ansiedade e depressão. Outros estudos indicam problemas nas
cordas vocais e as dores musculares, deram espaço ao desânimo,
aos pensamentos perturbadores e às mãos trêmulas, como dor no
nervo ciático (uma inflamação ou dano ao nervo ciático que se
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28

localiza desde a coluna lombar até os pés, desconfortos (dores,


formigamento, sensação de queimação, etc.) para a região
posterior da coxa ou da perna. De modo inverso, as dores que
se manifestam na coluna também podem ser consequência de
outras complicações de saúde, não, necessariamente, de origem
nesta região.

Trabalho e sofrimento

Neste momento perguntas não podem deixar de


serem feita sobre o que está acontecendo no mundo em que
estamos vivendo: quais impactos que estamos vivendo que têm
relação com o trabalho, a economia e como isso reverbera nos
nossos corpos e na subjetividade das pessoas pertencentes às
várias classes sociais?
É possível compreender os fenômenos corporais
sem levar em conta problemas objetivos, como o corpo, o
trabalho, a subjetividade e os efeitos do sistema sob eles?
Se concebermos que a sociedade não é homogênea
do ponto de vista social, econômico e político, como os homens e
mulheres, das mais diferentes classes sociais são afetados pelas
grandes transformações que estamos vivendo e como o nosso
corpo está reagindo? Como essas duas dimensões (físicas e
psicológicas) nos afetam nos dias de hoje e como ela contribui
para o adoecimento físico e mental?
Para concluir gostaria de ressaltar algumas
perguntas para debatermos em outro momento?
Sabemos (direta ou indiretamente) que estamos
vivendo um momento difícil, para não dizer, trágico. Não
ocasionado pelo desemprego, pela falta de estabilidade e outros
fatores que certamente vocês conhecem. Por isso ouso fazer
algumas perguntas:
Como vocês analisam esse ódio que está sendo
dissemina não só na sociedade brasileira neste momento?
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Que tipo de subjetividade vocês percebem na


sociedade contemporânea e como isso está afetando os nossos
corpos e mentes nessa etapa tão dramática que nós vivemos?
Como esse ódio que vemos se espalhando na sociedade pode ser
explicado? Como ele foi (e está sendo) cultivado?
Para finalizar, recomendo o livro do historiador
Peter Gay, que nasceu em Berlin em 1923 e hoje conhecido no
mundo inteiro. É significativo o título de seu livro, chamado O
Cultivo do Ódio, publicado no Brasil em 1995, pela Companhia
das Letras.
Espero ter contribuído para compreendermos
melhor esse grande mal-estar que se alastra e nos afeta
profundamente, tanto no corpo, como na nossa subjetividade. Se
não compreendermos um pouco a razão de nosso sofrimento e
buscarmos as razões que nos levam a ele, não compreenderemos
a nossa tragédia, as nossas dores e sofrimentos.
Muito obrigado!
Benedito Carvalho Filho

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