Você está na página 1de 12

31

Saber, afeto e compreensão:


epistemologia da comunicação e dialogia

Dimas A. Künsch
Doutor em Ciências da Comunicação (USP)
Coordenador da Pós-graduação em
Comunicação da Faculdade Cásper Líbero
E-mail: dimas.kunsch@casperlibero.edu.br

Resumo: O autor discute o tema de uma nova “posição inter-


pretativa para o campo da comunicação” (Sodré). A crítica à
“ditadura do conceito” se constrói a partir da defesa do afeto,
na perspectiva de uma epistemologia do diálogo e da compre-
ensão. O tema da compreensão leva a posicionar a discussão
“U ma outra posição interpre-
tativa para o campo da co-
municação.” O agir comunicacional exige
sobre o assunto no GT de “Epistemologia da Comunicação”
ser liberado “das concepções que o limitam
da Compós nos últimos anos. Aposta-se na humanização das ao nível de interação entre forças puramen-
relações entre os interlocutores pela via do afeto e da compre- te mecânicas”, para “abarcar a diversidade da
ensão, como base para uma postura cognitiva e ética apta a
compreender, mais que a excluir e condenar. natureza das trocas, em que se fazem presen-
Palavras-chave: comunicação, epistemologia, compreensão. tes os signos representativos ou intelectuais,
mas principalmente os poderosos dispositi-
Saber, afecto y comprensión: epistemología de la comuni-
cación y dialogía vos do afeto” (Sodré, 2006:12-13).
Resumen: El autor discute el tema de una nueva “posición “Poderosos”, os “dispositivos do afeto”
interpretativa para el campo de la comunicación” (Sodré). La
crítica a la “dictadura del concepto” se construye a partir de
acabam sendo alçados por Sodré a um pa-
la defensa del afecto, en la perspectiva de una epistemología tamar dos mais elevados no universo dos
del diálogo y de la comprensión. El tema de la comprensión estudos e práticas de comunicação ou, mais
nos lleva a posicionar la discusión sobre el asunto en el GT
de “Epistemología de la Comunicación” de la Compós en los especificamente, dessa nova “posição inter-
últimos años. Se apuesta en la humanización de las relaciones pretativa” que, em sua visão, urge ser encon-
entre los interlocutores por la vía del afecto y la comprensión,
como base para una postura cognitiva y ética apta a compren-
trada. Mais relevante, até, que os “signos re-
der, más que a excluir y a condenar. presentativos ou intelectuais”.
Palabras clave: comunicación, epistemología, comprensión. Tamanha nobreza concedida ao afeto
Knowledge, affection and understanding: epistemology of pode fazer, de verdade, sentido, quando se
communication and dialogy leva a sério o contexto intelectual em que o
Abstract: The author discusses the theme of a new “interpreti- argumento pró-afeto se erige. Com efeito, a
ve position for the field of communication” (Sodré). A critique
of the “dictatorship of the concept” is built from the defense of generosa concessão ao capital cognitivo-co-
affection, from the perspective of an epistemology of dialogue municacional do afeto nasce, precisamente,
and understanding. On the theme of understanding the discus-
sion takes place on the subject in the GT of “Epistemologia da
de uma preocupação do autor com o que
Comunicação” in Compós in recent years. It thrives on the hu- “está aquém ou além do conceito”, o que sig-
manization of relations between interlocutors through the affec- nifica dizer, no vasto e, pelo que se depreende
tion and understanding as a basis for a cognitive and ethical pos-
ture able to understand, rather than to exclude and condemn. do argumento, não devidamente ou mesmo
Keywords: communication, epistemology, understanding. inexplorado território em que esses signos

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
32

representativos ou intelectuais não exercem intelectual ou objetiva das coisas anônimas


seu poder de domínio. ou materiais. É insuficiente para a compre-
Está-se distante, como se pode observar, ensão humana”. Esta, com efeito, “compor-
de uma preocupação secundária ou mar- ta um conhecimento de sujeito a sujeito”.
ginal, uma vez que nasce da crítica de que Compreender, ele lembra, “inclui, necessa-
subsiste, na tradição dos estudos científicos riamente, um processo de empatia, de iden-
da comunicação, nada menos que uma “dita- tificação e de projeção. Sempre intersubjeti-
dura lógica da razão enquanto domínio uni- va, a compreensão pede abertura, simpatia
versal”, na contramão do afeto. A essa “dita- e generosidade”.
dura”, Sodré (2006:14) contrapõe a exigência Morin (2009:93) enxerga no ensino da
de “outra atitude epistemológica ou inter- compreensão uma “missão propriamente
pretativa (...)”, “mais compreensiva, menos espiritual” da humanidade. Aplicada à área
intelectual-racionalista, capaz de apreender em movimento da epistemologia, a “visa-
os fenômenos fora da medida universal”. da compreensiva” que Sodré reivindica, em
É aqui que a “outra posição interpretativa confronto nada amigável com o raciona-
para o campo da comunicação”, de que fala o lismo vigente, dialoga, por sua vez, com as
autor, se deixa de fato elucidar, com força ex- preocupações de Maffesoli, lá onde o francês
pressiva: na exigência ou proposição de uma – com semelhante empenho crítico e fervor
atitude epistemológica compreensiva, “capaz militante no combate ao que ele chama de
de apreender os fenômenos fora da medida “terrorismo” do conceito – anuncia-se como
universal”. Fora do conceito, portanto – pelo defensor intransigente de uma atitude cog-
menos do conceito enquanto detentor de nitiva compreensiva, para a sociologia como
um poder discricionário, ditatorial. Fora da para o conjunto do saber científico.
pura explicação. No território cognitivo do Maffesoli (1998:31) vê “o perigo de uma
“aquém e além do conceito”, o poder do afeto atitude de espírito que ‘corta’, separa, funcio-
se deixa aproximar e cria vínculos com a ati- na a esmo, sem referência ao real naquilo que
tude compreensiva, em seu distanciamento este tem de tangível, de palpável, de inteiro”.
em relação ao conceito, de novo, enquanto Para ele, “a ‘esquize’ do racionalismo não
signo absoluto da explicação. fornece senão uma épura do homem e do
A crítica enfática ao racionalismo, o que mundo. Produz um esquema que apresenta
vale dizer, a um modelo de pensamento que características importantes, mas ao qual falta
costuma transitar à vontade no reino aparen- o essencial: a vida”.
temente sólido e seguro dos universais, das Vida que “é breve” (Hipócrates), e “tão
essências, da ontologia, se faz acompanhar difícil de possuir completa e tão triste de
pela insistência, não menos enfática, no “co- possuir parcial” (Fernando Pessoa). É preci-
nhecimento compreensivo”. Sodré relembra so aprender a fazer silêncio para contemplar,
que “na base de uma experiência ontológica por detrás ou na profundidade do que os
da comunicação (...) encontra-se o problema sentidos revelam, “o indizível e o inconcebí-
da compreensão, suscitado pela vinculação vel”. “Sob os conceitos existe o mundo, sob o
inerente ao comum”. A “interpretação que fa- mundo?” (Morin, 1995:222).
zemos do mundo a partir de nossos habituais Afeto, compreensão e conhecimento.
quadros conceituais” é útil ao entendimento Como articulá-los? Como fazê-los conversa-
e à explicação. “A compreensão, porém, fica rem entre si no ambiente em construção de
além desses circuitos autolegimativos, fora dos uma epistemologia da comunicação?
puros atos de linguagem” (Sodré, 2006:67). Delinear teoricamente alguns traços des-
“A compreensão humana vai além da sa vinculação, apontando possibilidades,
explicação”, dirá Morin (2000:94-95). “A reais ou imaginadas, de sua existência e de
explicação é bastante para a compreensão seus possíveis significados para o campo dos

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
33

estudos comunicacionais: é este o propósito Restrepo investe, sem dó, contra “a in-
primordial deste texto. tolerância do discurso total, aniquilador da
O crédito oferecido à imaginação, linhas diferença e inimigo do crescimento e da sin-
antes, combina muito bem com a proposta gularidade”. Lamenta que “há vários séculos
do ensaio. Porque a renúncia, exigida pela a ternura e a afetividade” tenham sido “des-
ciência dita madura, a todo tipo de puro de- terradas do palácio do conhecimento”:
lírio intelectual e a aceitação das exigências
de método e rigor – como se argumentará
adiante –, não se podem fazer às custas da
No território cognitivo
liberdade de se pensar, nem tampouco do vi-
gor que as linguagens do afeto e da compre- do “aquém e além
ensão sugerem. do conceito”, o poder
É preciso “assumir plenamente a qualida- do afeto se deixa
de e a insuficiência que o termo ‘ensaísta’ con- aproximar e cria
tém”, propõe Morin (1998:13-14). O ensaio, vínculos com a atitude
com efeito, “não pode senão tentar atingir um
compreensiva
conhecimento pertinente, e deve tentá-lo cor-
rendo os seus riscos intelectuais”. Inclusive o
risco da autoria, que o exercício responsável
do ensaio estimula e pode tornar visível. Desde as precoces experiências da escola,
Nesse sentido, a crítica à “ditadura do adestra-se a criança num saber de guerra,
que pretende uma neutralidade sem emo-
conceito”, se por um lado direciona o olhar
ções, para que adquira sobre o objeto de
do pesquisador para o que está “aquém e conhecimento um domínio absoluto, igual
além do conceito” e, nele (no conceito), ao que pretendem obter os generais que se
para a possível absolutização de seu poten- apossam das populações inimigas sob a di-
cial explicativo, também, por outro, não está visa de terra arrasada (Restrepo, 1998:14).
autorizada a negar a possibilidade real de
uma “democracia” da razão e do conceito. A não-dialogia que o logos, a razão ou
De uma razão fértil, dialógica. De uma ética o conceito, no contexto desse discurso, em
capaz de pensar a razão, o conceito e o não- maior ou menor dose revelam ou assumem
conceito, o conhecimento e a vida, complexa não lhes pode ser imputada, sem mais, como
(sentidos que se tecem e entretecem) e com- propriedades suas. A não-dialogia, a frieza, o
preensivamente (no sentido de juntar, inte- mecanicismo e o determinismo, que se vêem
grar, pôr em conversação, em diálogo). “Aliar em geral associados à razão e ao conceito, são
razão iluminadora e amor à humanidade, lú- entendidos, antes, como resultantes de mo-
cida compreensão dos fenômenos naturais e dos e modelos de com eles e a partir deles se
procura da felicidade terrena, ciência e ética”, pensar o mundo, o conhecimento, a ciência.
ensinava Epicuro (Pessanha, 1992:59). Questão de uso. Ou de ab-uso. Morin tem
muito clara essa percepção, em sua crítica ao
racionalismo. Para ele (1984:125), “a verda-
Um estatuto epistêmico para a ternura
deira Aufklärung está muito ligada à tolerân-
A crítica à “dureza do logos” – o logos cia”, e “a verdadeira racionalidade é profun-
não dialógico – se expressa, em Restrepo damente tolerante em relação às formas de
(1998:10), na exigência de reconhecimento pensamento que não se lhe assemelham”.
da “dimensão fundante do afetivo”. O autor Isso não o impede de brandir a espada
colombiano acredita que a tradição ociden- contra as “assustadoras doenças do espíri-
tal de pensamento é herdeira de algo a que to”, provocadas, como ele argumenta, exata-
chama de “lógica arrasadora da guerra”. mente pelo desvirtuamento do melhor que

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
34

a razão e a ciência podem oferecer à huma- para ele, “nesta dicotomia, a dimensão sensí-
nidade: “A grande doença é o idealismo, que vel é sistematicamente isolada para dar lugar
esquece que as idéias são mediadores e tra- à pura lógica calculante e à total dependência
dutores; é a reificação das idéias, em que a do conhecimento frente ao capital”.
idéia se toma pelo real. A grande doença da Constitui um imenso desafio, para Res-
razão é a racionalização, que encerra o real trepo, “a integração da ternura às perspecti-
num sistema lógico coerente, ao preço de vas cognitivas e acadêmicas”. O autor enten-
terríveis mutilações” (Morin, 1984:32). de que precisamos nos articular “a formas
expressivas distantes da pretensão universal
do significado e mais próximas à dinâmi-
Não se pode perder de ca do contexto”. A ternura e o afeto podem
igualmente impregnar a linguagem, sem
vista nem a necessidade desprezo pelo rigor. “As palavras podem ser
e utilidade dos ternas”. A verdade tem, sim, como “assumir a
conceitos, nem a forma sugestiva de uma expressão calorosa e
vitalidade e fertili­da- acariciadora”.
de desses no processo Restrepo avalia que a frieza do discurso
de conhecimento científico representa “uma expressão das ló-
gicas de guerra que se inseriram na geração
do conhecimento”. Não se deve, no entanto,
“converter esta deformação histórica num
Voltemos a Restrepo, em sua defesa de único parâmetro de validade”: “É, pois, a
um estatuto epistemológico para a ternura. capacidade de gerar crítica e reflexão, e não
Trata-se, para ele, de um enorme equívoco o empobrecimento discursivo e literário, a
– uma “falácia epistemológica” – a idéia de característica que permite distinguir o pen-
que a expulsão da ternura constitua “uma samento científico da repetição dogmática e
condição sine qua non para a geração do co- da charlatania” (1998:16-17).
nhecimento”: O discurso “pode encher-se de ternura,
sendo possível acariciar com a palavra”. A
Muito mais que o isolamento de uma cer-
solidez argumentativa não está condenada
ta percepção subjetiva e emocional que
turva nosso acesso à verdade, o que fica a a sofrer danos “por fazer-se acompanhar da
descoberto nesse modelo epistemológico é vitalidade emotiva” (Restrepo, 1998:17). Na
a presença da afetividade plana e definida proposta do estudioso colombiano, portanto,
do guerreiro, preparado para submeter a não existe nenhuma relação de necessidade na
um domínio homogeneizador a multipli- ruptura entre razão e afeto, ciência e ternura.
cidade da vida sem se importar com sua
É possível, ao conceito, ser terno. Boaventura
redução a um enunciado abstrato ou a um
esquema (Restrepo, 1998:14). de Sousa Santos (1989:35), nessa mesma linha
de pensamento, sugere a ruptura com um pa-
O torpor afetivo associa-se à exaltação da radigma de ciência “que produz um discurso
explicação causal. A dissociação entre cogni- que se pretende rigoroso, antiliterário, sem
ção e sensibilidade veste-se com o manto de imaginação nem metáforas” – “um paradig-
axioma filosófico central na produção do sa- ma que pressupõe uma única forma de co-
ber (científico). Dominam, enfim, o abstrato nhecimento válida, o conhecimento científi-
e o universal. O conceito. Sodré (2006:12) se co”, como ele deixa explícito, linhas antes. Um
refere, nesse mesmo contexto, a “um velho discurso que corre o risco de se tornar “desen-
contencioso da metafísica, que se irradiou cantado, triste e sem imaginação”.
para o pensamento social: a oposição entre o Sodré, mais uma vez, com o foco in-
logos e o pathos, a razão e a paixão”. Também telectual no “aquém e além do conceito”,

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
35

dirige sua atenção para o vasto campo do


não-racional. Acentua que “são muitas as Aquém, em e além do conceito
formas de compreensão que caminham na
obscuridade” (2006:31), ou fora do espaço Uma “aproximação de tipo compreensivo
em que a luz da razão domina. A “zona obs- ao campo da comunicação, a seu objeto e a
cura e contingente dos afetos” não é maté- suas teorias”. Esse era o objetivo de um texto
ria do cálculo, da razão e do método, e, sim, apresentado ao GT “Epistemologia da Co-
da “estética considerada em sentido amplo, municação” da Compós, em seu XVIII En-
como modo de referir-se a toda a dimensão contro Nacional, na PUC-MG, em junho de
sensível da experiência vivida” (2006:11). 2009. A primeira parte do título “Aquém, em
Tem em vista a “relação entre duas subjeti- e além do conceito: comunicação, epistemo-
vidades, entre os interlocutores”: logia e compreensão” (Künsch, 2009) dialo-
gava com o “aquém ou além do conceito” de
Em termos mais práticos, a questão pode Sodré e com sua defesa do lugar do afeto na
ser resumida assim: quem é, para mim, esfera de uma epistemologia compreensiva
este outro com quem eu falo e vice-versa? da comunicação.
Esta é a situação enunciativa da qual não
A diferença de acento deixa-se revelar, no
dão conta por inteiro a racionalidade lin-
güística, nem as muitas lógicas argumen- entanto, já no “em” que participa da formu-
tativas da comunicação. Aqui têm lugar lação do título. O argumento ali embutido é
o que nos permitimos designar como o de que a renúncia à “ditadura do conceito”,
estratégias sensíveis, para nos referirmos ao racionalismo e à compulsão universal-ex-
aos jogos de vinculação dos atos discur- plicativa, quando inserida num ambiente in-
sivos às relações de localização e afetação
telectual compreensivo, dialógico, se proces-
dos sujeitos no interior da linguagem
(Sodré, 2006:10). sa tanto contra quanto com o conceito. Pois
deve-se admitir que, no calor e na pressa em
Haveria, neste ponto, um amplo espaço que a crítica às vezes se dá, exageros e injus-
para a discussão do princípio dialógico de tiças acontecem. Ora, o discurso da compre-
Martin Buber (1982) e do que esse autor ensão não fornece a ninguém salvo-conduto
chama de palavras-princípio “eu e tu” e “eu contra a arrogância, a incompreensão e o
e isso” (2004). Inspirada em Buber, e res- dogmatismo.
saltando, com Sodré, o lugar do afeto na Voltando ao que se dizia antes, é pois
comunicação – contra aquelas concepções aconselhável não se perder nunca de vista
que limitam o agir comunicacional “ao nem a necessidade e utilidade dos conceitos,
nível de interação entre forças puramente nem a vitalidade e fertilidade de que esses
mecânicas” (Sodré, 2006:13) –, Cremilda mesmos conceitos podem se revestir, no pro-
Medina fala do “signo da relação”, título de cesso nada simples, nem puro, de conheci-
uma de suas obras, que traz por subtítulo mento. Não é demais recordar novamente
Comunicação e pedagogia dos afetos (2006). Restrepo, quando ele afirma que a palavra
A relação sujeito-objeto (“eu-isso”) na pode ser terna. Pode ser fértil. Lúcida. Sábia.
comunicação, pela via do afeto, do diálo- Em outros termos, para prestar um crédito
go e da compreensão, se deixa substituir ao saber comum, dos tempos da bacia de ba-
pela relação sujeito-sujeito (“eu-tu”). Com nho: não se deve jogar fora a criança junto
toda a carga de desafios, exigências e tro- com a água do banho.
peços que essa opção carrega consigo. “A Ainda no bojo dessa mesma inquietação,
inovação nas práticas do signo dialógico no resumo do texto indicado afirma-se pre-
nunca ocorre naturalmente em qualquer liminarmente o óbvio: que a intenção não é,
ambiente de produção simbólica” (Medi- e nem pode ser, a de uma guerra santa con-
na, 2006:97). tra a razão e a ciência. A indisposição, firme,

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
36

é “contra a transformação do conceito em lógica e de imaginação de possibilidades de


camisa-de-força a negar o direito à intuição “uma outra posição interpretativa para o
criadora; o direito à formulação de noções, campo da comunicação”, como quer Sodré
símbolos e imagens com densidade interpre- (2006:13). Ou, em outras palavras, como cri-
tativa; à dialogia entre saberes; às incursões se do conceito e do signo da explicação, com
por territórios trans- e não-disciplinares”. A um movimento em direção a formas menos
indisposição é, no fundo, contra a “ditadura absolutas e mais compreensivas de entendi-
do conceito”. mento e de interpretação do agir comunica-
Essa mesma preocupação, de não se jogar cional, bem como de seus estudos e teorias
fora simplesmente o conceito, é retomada, (Künsch, 2009:67).1 Três dos textos eram
linhas adiante no mesmo texto, quando se tomados como exemplos especialmente elo-
afirma que a crítica ao racionalismo “não qüentes dessa tese:
dura muito tempo para ser desclassificada, a) “Em meio ao desencanto: a comunicação
às vezes com violência, como se fosse uma fundada no pensamento mecânico-fun-
postura retrógrada de descrédito na ciência, cional”, de Malena Contrera, criticava com
quando não de apologia ignorante do obscu- força o cartesianismo, o mecanicismo e o
rantismo”. O autor se defende: funcionalismo que teriam impregnado o
conhecimento científico em geral e co-
Não convém se assustar com certo tipo de municacional, em particular. Convidando
reação, não exatamente racional nem tam- para uma revisita ao campo da vida – dos
pouco científica, de um pensamento aqui e
vínculos e dos afetos, de que fala Sodré na
acolá arredio à crítica, por ter se habituado
a pôr pontos finais lá onde interrogações, obra aqui citada –, a autora desafiava as
vírgulas, ponto-e-vírgulas e reticências ofe- teorias da comunicação a se aproxima-
receriam maior garantia na difícil arte de rem “do terreno incerto e incontrolável da
exorcizar o dogmatismo e abrir o terreno à alma humana” (Contrera, 2007:11).
compreensão (Künsch, 2009:64). b) Em “A linguagem como mediação da in-
tuição”, Regina Rossetti argumentava em
Em “Aquém, em e além do conceito” tra- favor da recuperação, para o discurso,
zia-se, então, para a roda de conversas um da vitalidade da linguagem das imagens
dos trabalhos apresentados ao mesmo GT e das metáforas, transcendendo “concei-
no ano anterior, 2008, assinado por Francis- tos rígidos” e/ou “pré-fabricados”, para,
co José Paoliello Pimenta (2008), “Indeter- com Bergson, se “criar ‘representações
minação; o ‘admirável’; a crescente comuni- flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre
cabilidade”. Nele, o autor retomava nove dos prontas a se moldarem sobre as formas
dez trabalhos selecionados para o mesmo da intuição’”. Pensava, para tanto, com
GT da Compós em 2007, argumentando que, Brincourt, “no sentido de uma linguagem
“embora sustentados em vertentes de análi- capaz de sugerir o ser mais do que dizê-
ses bastante diferentes”, esses trabalhos “têm lo” (Rosseti, 2007:13).
curiosamente em comum suas ênfases rela- c) Em “Comunicação, disciplinaridade e pen-
cionadas a fenômenos caracterizados como samento complexo”, o terceiro exemplo,
‘incertos’, da esfera do ‘sensível’, ‘intuitivos’,
‘subjetivos’, marcados pela ‘diversidade’, ‘des- 1
Numa outra linha analítica segue a proposta de Pimenta em
percebidos’ e ‘instáveis’” (Pimenta, 2008:1). seu trabalho. Para ele, “a categoria semiótica da Primeiridade
A “convergência de posturas epistemoló- e o conceito a ela associado de ‘esteticamente admirável’, de
Charles S. Peirce, podem ser úteis para entendermos esta con-
gicas” identificada por Pimenta era interpre- vergência de posturas epistemológicas”. A hipótese era de que
tada por este autor, em “Aquém, em e além essas ênfases, diversas, mas convergentes, “poderiam estar asso-
ciadas a um mero sentimento de crescente compartilhamento
do conceito”, como reveladora de um grau comunicacional, permitido pela atual rede mundial de compu-
maior ou menor de insatisfação epistemo- tadores e sua tecnologia digital” (Pimenta, 2008:11).

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
37

Immacolata Lopes, no seguimento das mesmo modo visível em outros momentos


idéias de Morin, defendia a transdiciplina- da produção do GT. No Encontro da Com-
ridade – com e contra a disciplina –, lem- pós de 2008, por exemplo.2 A comunicação
brando que o pensamento da complexida- dispõe, hoje, de “sólidas promessas de ou-
de “incita a distinguir e fazer comunicar, tras, e, talvez, novas propostas científicas”.
em vez de isolar e de disjuntar”, e a “dar Uma epistemologia renovada se faz possível
conta dos caracteres multidimensionais
de toda a realidade” (Lopes, 2007:13-14).
A autora alertava para o risco de a discipli- A crítica ao raciona­
na se converter em doutrina e, em rápida lismo não dura
interlocução com a noção de “fim das cer- muito tempo para
tezas” (Prigogine), sustentava que o movi-
mento transdisciplinar “implica uma perda
ser desclassificada,
da certeza, quando uma disciplina começa como se fosse uma
a sentir que não é dona de seu objeto”. postura retrógrada de
A atitude compreensiva (no sentido de descrédito na ciência
juntar, integrar, abraçar significados, que o
termo original latino comprehendere evoca)
se anuncia em toda a sua força na propos-
ta do estabelecimento de “relações cada vez por meio da superação de “parâmetros tra-
mais densas, não somente entre ciências dicionais”. A epistemologia da comunicação
humanas e sociais, mas das ciências com as necessita de “outros desenhos teóricos na re-
artes, com a literatura, com a experiência visão de suas bases tradicionais e outros re-
comum, com a intuição, com a imaginação cursos metodológicos na observação da rea-
social”. A autora precisava: “Não se trata lidade social e cultural”, resultado da crítica
somente de uma interação de discursos em necessária a “certo dogmatismo que impede
termos de lógicas científicas, mas também o exercício vital da ciência” (Ferrara, 2008:1).
da interação de discursos em termos de di- A noção de um “exercício vital da ciência”,
versidade de linguagens e escrituras” (Lopes, associada à exigência de “outros desenhos te-
2008:15-16). óricos” e de “outros recursos metodológicos”,
O diálogo entre saberes plurais (“Onde és importante para Ferrara, dialoga com a vi-
terno dizes plural”, aponta Roland Barthes) são da necessidade de uma “outra lógica” na
e a “diversidade de linguagens e escrituras” expressão da ciência, lógica essa “não afeita
possível não se opõem, por certo, ao méto-
do e à lógica, mas abrem consideravelmente
os horizontes interpretativos. Compreensi- 2
Um rápido olhar sobre o que aconteceu no GT “Epistemo-
logia da Comunicação” em 2010 não demora em identificar
vamente: “A transdisciplinaridade não é o convergências compreensivas, dialógicas, em vários dos textos
oposto das disciplinas, mas complementar a apresentados. Por exemplo, quando Francisco José Paoliello
Pimenta trata da “epistemologia da comunicação e o grupo
elas”, diz Lopes, “pois que este novo rumo do da Unisinos”, propondo explicitamente “três esferas de diálo-
conhecimento só tem sido possível com base go com vistas ao aprofundamento da compreensão do grupo
em toda a riqueza de saberes produzida pe- sobre a atual produção na esfera da Epistemologia da Comu-
nicação”. Quando Kleber Mendonça propõe uma “inversão do
las distintas disciplinas, e é precisamente essa olhar”, quando Roseli Figaro fala da comunicação como “cam-
a base que tem permitido e exigido dar um po de sentidos em disputa”, ou, ainda, quando José Luís Braga,
em “Nem rara, nem ausente – tentativa”, caracteriza os fenô-
salto à frente e passar para um pensamento menos comunicacionais como “tentativos”. Ou, por fim – sem
transdisciplinar” (Lopes, 2007:15). excluir a possibilidade de um mergulho para a identificação
O “salto à frente”, que Lopes entende ser do aporte compreensivo nos demais textos aqui não contem-
plados –, quando Luiz C. Martino adverte para a importância
“permitido e exigido”, na configuração des- de “uma releitura” da idéia da teoria dos “dois estágios versus
se “novo rumo do conhecimento”, se faz do efeitos limitados”. Ver os textos em www.compos.org.br.

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
38

a axiomas e postulados”, como sugere Irene uma tradição de pensamento que assume
Machado, ao apresentar o ensaio como “pos- um viés de tipo divino, onipotente”. Esta é
sibilidade interpretativa” na construção de a tese defendida em trabalho apresentado
conhecimentos, “fora dos limites restritivos ao GT “Epistemologia da Comunicação” da
do rigor da lógica tal como consagrada pela Compós, em seu XIX Encontro Nacional,
retórica clássica” (Machado, 2008:2). na PUC-RJ, em junho de 2010. No apro-
fundamento da trajetória de busca do autor
por tentar compreender a compreensão nas
O mal mais visível antessalas e salas da epistemologia da comu-
nicação, o texto traz como argumento prin-
de todo pensamento
cipal que, “pela via da racionalização, essa
dualista é exatamente tradição acaba por aproximar ciência e teo-
o de dividir logia, verdade e dogma, disciplina e doutri-
rigorosamente as na, remetendo ao limbo do esquecimento a
idéias entre certas própria idéia da possibilidade de formas me-
e erradas nos avassaladoras de produção do conheci-
mento, mais afetas ao diálogo, democráticas,
compreensivas” (Künsch, 2010:1).
Ocupando-se com alguns momentos sa-
A proximidade entre as visões das duas lientes dessa tradição – de Descartes em dire-
pesquisadoras se faz ainda mais estreita ção ao passado, para uma rápida visita a Par-
quando se leva em conta o que afirma Ferra- mênides, a Sócrates, a Platão com sua defesa
ra (2008:1) sobre o objeto da comunicação, de um “saber total”, a Plotino e a Santo Agos-
que é, “sobretudo, ambivalente: imprevisível, tinho, este com a percepção de que “mundus
mas complexo; móvel, mas indetermina- est imundus” –, o artigo tece igualmente a
do; instigante, mas banal”. Está posta, pois, crítica às “pretensões universalistas e absolu-
a tarefa, ainda continuando com Ferrara tas do saber e propõe, para a ciência em geral
(2008:1), de se “pensar uma epistemologia e a comunicação em particular, uma atitude
fluida e em constante revisão do postulado cognitiva aberta à experiência do coletivo, ao
de inteireza e totalidade que tem consagrado diálogo entre teorias e à compreensão”. E o
a ciência ocidental desde o século das Luzes”. faz, compreensivamente, no sentido do “res-
A crítica aberta ao racionalismo e ao pen- gate do que a cultura científica sempre fez
samento dos universais oferece uma base am- questão de preservar: o princípio de que não
pla para o diálogo com a idéia de que é pos- existem pontos finais nem certezas absolutas
sível resgatar a nobreza do ensaio no campo na área do conhecimento” (Künsch, 2010:1):
adubável das múltiplas possibilidades inter-
pretativas, como quer Machado. Sem abdicar A maior ou menor aproximação cogniti-
va entre Verdade e Bem, Alma, Luz, Razão
do “paradigma do rigor”, é possível acreditar
e Deus – qualquer que seja a arquitetura
no “vigor de uma linguagem pouco favorável que o discurso termine de fato por assu-
ao rigor da lógica”, mas “muito aberta, contu- mir [...] – é tão antiga quanto a história
do, ao diálogo interpretativo” dos diferentes das idéias filosóficas do Ocidente. Pene-
pontos de vida, o que o ensaio, enfim, se não trou fortemente o pensamento filosófico
garante, possibilita (Machado, 2008:3-4). e teológico. Serviu como base para a afir-
mação categórica da existência de Deus
– um Deus único, tal como a verdade – e
Um Deus perfeito e único ajudou a moldar a mais nobre herança
científica, essa que Pondé (2007:A3) cha-
“Na base dos conceitos de rigor, certe- ma de “supremo fetiche da modernidade”,
za e verdade científica pode-se identificar “seu senso comum científico, normal-

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
39

mente dotado de grande carga emocional ramente esforçar-se para julgar apenas de
e dogmática” (Künsch, 2010:3). modo justo: portanto, deveria primeiro pen-
sar e depois falar”.
“Talvez o mais odiável, no dogmatismo, A arrogância, como de resto é sabido, não
seja identificar sua presença e ação perver- convém. O mal mais visível de todo pensa-
sas exatamente lá, onde se afirma a preten- mento dualista é exatamente o de dividir ri-
são de negar um estatuto à sua existência.” O gorosamente as idéias entre certas e erradas,
comentário, feito oralmente pelo autor, po- como divide a realidade e as pessoas numa
siciona-se respeitosamente frente à questão, lista enorme de pares antagônicos. Vale, para
levantada por um dos interlocutores do GT, esse modelo de pensamento, a hierarquia
do dogmatismo da crítica ao dogmatismo, dos desiguais, numa atitude diametralmente
assente, segundo essa visão, em “Do con- oposta à do cultivo da idéia de uma sinfo-
ceito de um Deus perfeito e único a teorias nia dos diferentes. “Humanos e não máqui-
que não dialogam”. No mesmo percurso ar- nas” (Charlie Chaplin, no discurso final em
gumentativo, interrogava-se ao autor se não O grande ditador), limitados e não divinos,
haveria brechas, pelo menos, para um habeas revelamos mais facilidade em ceder aos im-
corpus para o conceito. pulsos da “lógica arrasadora da guerra”, que
A compreensão impõe que se prestem as impregna e corrompe o pensamento (Res-
mais elevadas honras à crítica, nunca tentan- trepo), que ao virtuoso conselho de “primei-
do escapar de fininho ao apelo de se compre- ro pensar e depois falar” (Schopenhauer).
ender as razões do outro. Por outro lado, o A aposta na compreensão constitui, de fato,
texto que aqui se propõe parece ter deixado um desafio dos maiores. Quase, talvez, como
suficientemente claro que o pedido de um um salto no escuro. Haverá garantias?
habeas corpus para o conceito é não só per- “Não há valores automáticos na conver-
tinente, como contribui à sua maneira para sação”, expõe José Luiz Braga, em comen-
o entendimento e a experiência da própria tário crítico ao texto de Künsch, ainda que
idéia de uma atitude cognitiva compreensi- defendendo também os encaminhamentos
va. Por outro lado, não é o caso de se pen- dialógicos. “Tudo depende de como os con-
sar, rapidamente, que tenha sido resolvido versadores encaminham sua interação. A
dessa forma o problema, nem tampouco de questão mais geral seria: que exigências fazer,
se assustar com a acusação de dogmatismo. que critérios estabelecer para que se possam
Talvez seja bom escutar, sem pré-juízos e em assegurar produtivas as trocas propostas?”
silêncio, o que pensa Schopenhauer sobre a Mais: “Há sempre o risco, na conversação,
arte da disputa – ou dialética, em sua con- da prevalência do argumento da autoridade
cepção –, quando ele diz que “a verdade ob- – que nos faz regredir, não raramente, para
jetiva de uma proposição e sua validade na circunstâncias pré-cartesianas. Como evitar
aprovação dos litigantes e ouvintes são duas essa prevalência?” (Braga, 2010:3).
coisas distintas”. É impossível não prestar um mérito à in-
Estigmatizado por certa tradição de pen- teligência dessa observação. Como também a
samento com o selo maldito de pessimista essas outras: “Não podemos desconhecer que
incurável, Schopenhauer (2009:3-4), em A há limites nas convergências possíveis; e que
arte de ter razão, merece ser ouvido com re- hipóteses e interpretações concorrentes po-
verência quando ousa propor que se reflita dem não ser igualmente plausíveis.” Há um
sobre a questão da “maldade natural do gê- outro lado do diálogo, “que não é nem pode
nero humano”: “Se ela não existisse, se fôsse- ser apenas agregador e de convergência, mas
mos inteiramente honestos, em todo debate se faz também de embate, de tensionamento,
visaríamos apenas a trazer a verdade à luz de processo agonístico entre as diferenças”
[...]. Se fosse assim, cada um deveria me- (Braga, 2010:3-4).

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
40

Cada uma dessas observações está em para a “intimidade intersubjetiva de natureza


condições de reunir, por certo, uma leva afetiva” (Sodré), pode-se aventurar a aposta –
imensa de bons argumentos em prol da cria- mais uma vez, sem garantias de sucesso – na
ção de condições objetivas para o jogo dialó- humanização das relações entre as pessoas.
gico. Um jogo cujos resultados não estão da- “A ética da compreensão”, afirma Morin
dos, uma luta tantas vezes inglória. As teorias (2000:99-100), “é a arte de viver que nos
da deliberação, hoje em ascensão no campo demanda, em primeiro lugar, compreender
do estudo e das pesquisas, atestam esse fato. de modo desinteressado. Demanda grande
Serve o exemplo, dos mais eloqüentes, da esforço, pois não se pode esperar nenhuma
teoria da ação comunicativa de Jürgen Ha- reciprocidade [...] A ética da compreensão
bermas. Sodré (2006:54-55) lembra que Ha- pede que se compreenda a incompreensão”.
bermas, “mesmo distante dos essencialismos O autor acrescenta: “Se soubermos compre-
mentalistas e naturalistas, [...] ainda se atém ender antes de condenar, estaremos no cami-
a uma essência, a razão iluminista, suposta- nho da humanização das relações humanas”.
mente capaz de sustentar o conhecimento da Porque, reconhecendo-nos “todos seres falí-
sociedade e do homem”: veis, frágeis, insuficientes, carentes [...], po-
deremos descobrir que todos necessitamos
Mais ainda: dela poderia advir a realização,
de mútua compreensão”.
sempre obstaculizada, de ideais constantes
do projeto civilizatório da modernidade, Pode servir como auxílio, nessa tarefa, o
como os de igualdade e liberdade. Para isso, recurso àquilo para o que chama a atenção
Habermas ataca o paradigma cartesiano do o senso comum quando ensina que “con-
sujeito da consciência e vai assentar a racio- versando a gente se entende”. O adágio está
nalidade numa lógica da intersubjetividade, longe de poder ser lido com o olhar argüidor
preconizando uma ética do discurso, que
da razão e do método, uma vez que, tantas
deveria ser capaz de responder à pergunta
sobre as fontes da normatividade e estabele- vezes, nem conversa nem entendimento há.
cer as condições para a compreensão mútua. Mas subsiste aí um apelo ao afeto e à não-
violência, que pode revelar uma reserva de
A compreensão que essa “ética do discur- sanidade útil e interessante, num mundo
so” propõe, fundada numa intersubjetivida- desde sempre acossado pelas violências com
de cuja garantia de autenticidade se enraíza e sem sangue, tanto quanto, por outro lado,
na razão e na lógica, como afirma ainda So- acostumado a sonhar com a impossível.
dré (2006:55), prescinde “de qualquer apelo A área da comunicação, com suas pro-
à dimensão sensível”, não se detendo “sobre messas, sem precisar assumir um caráter
nenhuma intimidade intersubjetiva de natu- soteriológico, salvacionista, bem que pode-
reza afetiva”. Sem pathos, portanto. ria se pensar como espaço da compreensão,
Pensemos, por um instante pelo menos, da cidadania, do entendimento. Na linha
de modo diverso, ou complementar. Recu- compreensiva do menos “portanto” e mais
perando, sem absolutização, os “poderosos “talvez”, pode-se encontrar nesse tipo de in-
dispositivos do afeto”, com cuja discussão se tencionalidade uma chance de aproximação
iniciou este texto, pode ser, de fato, pertinente entre saber e sabedoria. Trata-se (quase) de
não entregar todo o ouro nas mãos dos agen- um ato de fé, esperança e utopia, que, aliás,
tes do debate que se faz sob o signo da busca também movem a vida. Como podem mo-
racional – ainda que lúcida, quando não fa- ver igualmente o esforço interpretativo e as
lha em seus propósitos – de normas e regras linguagens múltiplas em que esse labor cog-
para o diálogo. Com o foco desviado para o nitivo ousa se expressar.
apelo à ternura (Restrepo), que abre espaço (artigo recebido mai.2011/aprovado mai.2011)

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
41

Referências

BRAGA, José Luiz. Relato sobre o artigo “Do conceito de um Deus ao GT “Epistemologia da Comunicação” do XVI Encontro da
perfeito e único a teorias que não dialogam”, de Dimas Künsch. Compós, em Curitiba, PR, em junho de 2007.
Apresentado ao GT “Epistemologia da Comunicação” do XIX MACHADO, Irene. “Controvérsias sobre a cientificidade da
Encontro da Compós, no Rio de Janeiro, RJ, em junho de 2010. linguagem”. Trabalho apresentado ao GT “Epistemologia da
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Pers- Comunicação” do XVII Encontro da Compós, em São Paulo,
pectiva, 1982. SP, em junho de 2008.
BUBER, Martin. Eu e tu. 8ª edição. São Paulo: Centauro, 2004. MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 3ª edição. Pe-
CONTRERA, Malena. “Em meio ao desencanto: a comunica- trópolis: Vozes, 1998.
ção fundada no pensamento mecânico-funcional”. Trabalho MEDINA, Cremilda. O signo da relação: comunicação e pe-
apresentado ao GT “Epistemologia da Comunicação” do XVI dagogia dos afetos. São Paulo: Paulus, 2006.
Encontro da Compós, em Curitiba, PR, em junho de 2007. MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexida-
FERRARA, Lucrécia. “Radical indeterminação: epistemologia de. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1984.
e objeto científico da comunicação”. Trabalho apresentado ao MORIN, Edgar. Os meus demônios. Mem Martins: Publica-
GT “Epistemologia da Comunicação” do XVII Encontro da ções Europa-América, 1995.
Compós, em São Paulo, SP, em junho de 2008. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do fu-
KÜNSCH, Dimas A. “Aquém, em e além do conceito: comuni- turo. 2ª edição. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco, 2000.
cação, epistemologia e compreensão”. Trabalho apresentado ao PESSANHA, José Américo Motta. “As delícias do jardim”. In:
GT “Epistemologia da Comunicação” do XVIII Encontro da NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Le-
Compós, em Belo Horizonte, MG, em junho de 2009. Revista tras, 1992, p. 57-85.
Famecos, n. 39, agosto de 2009, p. 63-69. PIMENTA, Francisco José Paoliello. “Indeterminação; o ‘ad-
KÜNSCH, Dimas A. “Do conceito de um Deus perfeito e úni- mirável’; a crescente comunicabilidade”. Trabalho apresentado
co a teorias que não dialogam: comunicação, epistemologia e ao GT “Epistemologia da Comunicação” do XVII Encontro da
compreensão”. Trabalho apresentado ao GT “Epistemologia da Compós, em São Paulo, SP, em junho de 2008.
Comunicação” do XIX Encontro da Compós, no Rio de Janei- ROSSETI, Regina. “A linguagem como mediação da intuição”.
ro, RJ, em junho de 2010. Trabalho apresentado ao GT “Epistemologia da Comunicação”
KÜNSCH, Dimas A. “Teoria compreensiva da comunicação”. do XVI Encontro da Compós, em Curitiba, PR, em junho de
In: KUNSCH, Dimas A. e BARROS, Laan Mendes de (Orgs.). 2007.
Comunicação: saber, arte ou ciência? Questões de teoria e SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão. São Paulo:
epistemologia. São Paulo: Plêiade, 2008, p.173-199. Martins Fontes, 2009.
LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. “Comunicação, disci- SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e políti-
plinaridade e pensamento complexo”. Trabalho apresentado ca. Petrópolis: Vozes, 2006.

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia
42

Líbero – São Paulo – v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011


Dimas A. Künsch – Saber, afeto e compreensão: epistemologia da comunicação e dialogia

Você também pode gostar