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MIGRAÇÕES VENEZUELANAS

O FLUXO MIGRATÓRIO VENEZUELANO PARA O


BRASIL COMO UMA QUESTÃO AMAZÔNICA

Isabel Pérez Alves105

Ao nomear “A Amazônia” como


uma unidade, isto é, região em que confluem o bioma da floresta e a
enorme bacia do Rio Amazonas, que comporta também uma realidade
social e um modo de vida particular vinculados ao rio e à floresta se
busca poder falar de toda a região e suas questões em conjunto, porém
acaba por homogeneizar uma enorme quantidade de faces da Amazônia
como território e as diferentes realidades que a conformam. Nesse
sentido, consideramos a Amazônia como um poliedro, onde cada face se
apresenta de forma diferenciada, e onde cada ponto de observação leva a
vê-la com ênfase em alguma questão, que termina por tangenciar as
demais apenas pela aresta, a modo de exemplo: a Amazônia da
biodiversidade, a Amazônia da questão indígena, a Amazônia urbana, etc.
No caso brasileiro, a Amazônia Legal e o conjunto dos municípios
pertencentes a nove estados da federação, o que corresponde a 49,29% do
território brasileiro. Dentro das faces da realidade amazônica se encontra
sua face de fronteira: a Amazônia Legal compreende quase dois terços
dos 17 mil quilômetros de fronteiras terrestres do Brasil. Particularmente,
o estado de Roraima tem aproximadamente 12% das fronteiras
internacionais do país, com a Venezuela e a Guiana e a grande maioria
está dentro de terras indígenas demarcadas.
Então, retomando esse poliedro de temáticas que é a Amazônia,
onde a questão fronteiriça parecia estar em segundo plano, ou pelo menos
alvo de abordagens mais tímidas e mais localizadas, acontecem situações
como a migração permite visibilizar a questão fronteiriça. Esta segunda
década do século XXI tem mostrado ser a década da mobilidade humana
sem precedentes em todos os continentes, e as fronteiras presentes neste
território que analisamos aqui não fogem à regra. O Brasil tem
presenciado nesta década uma realidade migratória da qual havia estado
afastado por quase meio século, e se depara com o ingresso nas rotas das
diásporas atuais. As razões para tal afirmação são variadas, mas podem
ser aglutinadas no fato em que o Brasil se torna um país com elementos
de atração aos migrantes, e por isso passa a ser um pais receptor dos
fluxos migratórios. Especificamente o Brasil passa a fazer parte da

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Geógrafa
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dinâmica migratória chamada sul-sul, onde tanto país receptor como país
expulsor pertencem ao sul global ou países periféricos do sistema-mundo.
O Brasil se insere dentro da dinâmica crescente de mobilidade
humana mundial e das migrações sul-sul notavelmente a partir de 2010
com o começo da chegada dos haitianos e senegaleses pela fronteira do
Peru com o Brasil especificamente por Assis Brasil e Brasileia no estado
do Acre, ou seja, já era um fluxo que implicava a região Amazônica. Mas
é entre o fim de 2016 e durante 2017 que se apresenta na fronteira mais
ao norte do país, no estado de Roraima com a Venezuela o início da
contingência mais delicada e sem precedentes (FROTA, 2017), devido a
permanência da crise política com repercussões econômicas e sociais da
Venezuela, o número de venezuelanos vindo para o Brasil se mantém em
aumento.
As migrações são uma realidade que tem repercussão no Brasil
como um todo, mas que nestes casos ocorre localmente na Amazônia e
seus estados, periféricos ao próprio país, e com dificuldade de conexão. A
migração venezuelana, da qual nos ocupamos aqui é, portanto, um tema
amazônico. Uma das faces do poliedro que faz aresta com a questão
indígena, e com a questão urbana, além de claro, com a questão da
pobreza nas cidades da Amazônia.
A Amazônia é relatada historicamente a partir de dinâmicas
migratórias (OLIVEIRA, 2016) o desafio agora é entender a Amazônia
também como região fronteiriça e alvo de migrações contemporâneas
transacionais presentes no mundo neste século, e de dinâmica sul-sul, que
leva a desafios logísticos e de infraestrutura, e mesmo de preparo
legislativo para afrontar essa situação. Porém é importante ter em mente
que mesmo que 87% das migrações mundiais aconteçam na chamada
dinâmica sul-sul (PEREZ, 2016). Isso pode passar uma falsa ideia de
reciprocidade enquanto as relações assimétricas continuam a ser
reproduzidas.
E isso vai ser especialmente visível na situação dos venezuelanos
ao encontrar que a fronteira amazônica não estava preparada nem
logística nem socialmente para o êxodo que foi se configurando ao longo
dos meses, o migrante tem o anseio de estar chegando ao Brasil, mas a
vivência é que ele chega à Amazônia brasileira, afastada real e
simbolicamente do país. Porém, é importante salientar também que a
migração ocorre na Amazônia porque é o caminho obrigado, o
venezuelano não tem muitas alternativas para sair do seu país de forma
terrestre (a economicamente viável): ou vão para a Colômbia, que de fato
recebe o maior fluxo, ou para a Guiana que parece não representar uma
atração tão grande, ou viajar até o Estado Bolívar, cidade de Santa Elena
do Uairén e ingressar ao Brasil por Pacaraima, em Roraima, município
entre terras indígenas demarcadas e a 240 km de Boa Vista, a capital
estadual.
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É preciso reconhecer que obter dados confiáveis sobre migração


enquanto ela está acontecendo e se mantém no seu pico é bastante difícil,
principalmente se se trata de uma migração por fronteira terrestre, como é
o caso. Primeiro porque nem todos os migrantes passam pelo controle
migratório, segundo porque o controle migratório de fronteira não tem
muito como separar a migração pendular da migração permanente, o que
acaba por produzir duplos registros.
Apesar disso, podemos apontar que de 2015 a 2017 a migração
de venezuelanos para o Brasil sofreu um aumento de 922% na entrada de
venezuelanos enquanto a média de aumento mundial de chegada de
venezuelanos foi de 132,5% no mesmo período, sendo o 4º país na razão
de aumento depois da Colômbia, o Peru e o Chile. Apesar disso, o Brasil
é o nono país em recepção de venezuelanos, com ao redor de 35 mil
venezuelanos, o que indica que para sofrer tal aumento, antes de 2015 a
fronteira era pouco ou nada cruzada por venezuelanos (OIM via El Pais).
Este aumento, mesmo não significando um grande número
absoluto se comparado a outros países, e isto, valha a pena ser priorizado
neste texto, tenha a ver também com que a fronteira entre Brasil e
Venezuela é uma fronteira totalmente amazônica, supôs e supõe uma
grande dificuldade na organização de uma acolhida e atenção para essa
população, esforço que recai em grande maioria no estado de Roraima e
na cidade de Boa Vista, visto que estes migrantes não têm condições
financeiras de enfrentar os custos para sair desse estado, que seriam
unicamente via Manaus, por rotas terrestres. Também porque muitos
almejam em um primeiro momento ficar perto da fronteira para manter
contato, e sair de Roraima já implica aumentar enormemente as distâncias
a ponto de não poder manter o contato imediato, necessário para o envio
de medicamentos e mercadorias (ao que às vezes é dada a preferência
mesmo por cima do envio de remessas).
Durante 2018 a média de entrada na fronteira de Pacaraima, o
único posto fronteiriço entre o Brasil e a Venezuela, na BR 174, foi de
416 pessoas por dia. Para fazer frente à esta chegada de venezuelanos, e
vendo que a tendência era manter o fluxo e mesmo a aumentar, Boa Vista
e Roraima se tornaram um novo ponto focal de atuação de instituições e
organizações voltadas para a questão migratória que podemos organizar
em três grandes grupos: poder público, agências internacionais e
sociedade civil.
Dentro do atendimento da sociedade civil, que se organiza de
forma mais sistemática a partir de 2018 se encontra o serviço prestado por
instituições da Igreja Católica, entre eles o Serviço Jesuíta a Migrantes e
Refugiados – SJMR. O seguinte gráfico mostra em proporção de que
estados da Venezuela provêm os venezuelanos que chegam ao Brasil, na
mostra de 4088 pessoas atendidas pelo SJMR entre março e junho.
Consideramos que para melhor proveito deste gráfico também pode ser
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acompanhado da imagem a seguir, que nos mostra que em efeito, a


migração para o Brasil se dá a partir dos estados mais próximos do Brasil
e de certa forma, os mais amazónicos também, nos termos deste texto.

Gráfico 1. Proporção de proveniência dos atendidos pelo SJMR por


estado.

Na imagem 1, a grossura da flecha indica a porcentagem vinda de


cada estado, é importante notar que em termos de população, Monagas é
o 13° estado da Venezuela, com uma população de 998.000 em 2018,
Anzoategui o 8° e Bolívar o 7°com cerca de 1.800.000 cada um, e entre
esses três estados conformam 70% da população migrante atendida pelo
SJMR em Boa Vista. O Distrito Capital é o 4°em população, mas só
representa 7% da migração para o Brasil, e finalmente Sucre e Carabobo
ocupam o 10° e 3° lugar respectivamente quanto à população, cada um
com 5% da migração em Boa Vista no período de março a junho.
Destaque para o estado Delta Amacuro, cidade de Tucupita, que aparece
como 8° em porcentagem de chegada ao Brasil, dali provém os indígenas
warao, que migram na sua condição de povo indígena, e tem significado
um desafio para as ações de acolhida em Roraima, paradoxalmente, um
dos estados com mais população indígena do Brasil.
Para finalizar, me aproveito da questão deixada pelo haitiano
Wooldy E. Louidor no livro “Articulações do desarraigo na América
Latina” (2016, pg 235) “¿Cómo construir una América Latina propicia
para o rearraigo?”. E adapto a pergunta especificamente para a região
amazônica, foco deste trabalho.
Para a Amazônia pensada como bacia ou como bioma, parece
haver um grande consenso que é um território para além das fronteiras e
de cooperação entre seus países membros para a sua conservação, porém
a migração desafia este consenso, uma vez em que torna a mostrar que as
fronteiras continuam existindo e impedindo-nos de construir essa
territorialidade hospitaleira.
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A migração venezuelana, não representa somente um desafio


institucional humanitário, mas no caso da fronteira em Roraima é um
vetor de visibilização de um limite pouco lembrado, permeado pela
questão dos povos indígenas, sejam eles brasileiros, venezuelanos ou
guianenses, pouco importa. Os venezuelanos que têm escolhido vir ao
Brasil, também representam uma população de novos habitantes da
Amazônia, mesmo que temporalmente. Põe-nos o foco numa região que
não é, nem está estática.
Trata-se, como dizíamos no início, de que a Amazônia se
mantenha como uma categoria de unificação das lutas que atravessam
esse território, e que os migrantes sejam partícipes dessas lutas, pelo seu
bem e o de todos, e assim, que a Amazônia seja onde possa florescer essa
nova territorialidade hospitaleira na América Latina.

Imagem 1. Mapa e proporção de proveniência por estado

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REFERÊNCIAS

DORFMAN, Adriana. Investigaciones académicas sobre contrabando. Porto


Alegre, 2018
FROTA SIMÕES, Gustavo da. Perfil Sociodemográfico e Laboral da
imigração venezuelana no Brasil. CRV. Curitiba 2017
GALARRAGA GORTAZAR, Naiara. Radiografia del Gran Êxodo
Venezolano. La Patilla, https://www.lapatilla.com/2018/03/28/radiografia-
del-gran-exodo-venezolano-infografia/ (online 08/09/2018)
LOUIDOR, Wooldy Edson. Articulaciones del Desarraigo em América
Latina: El drama de los sin hogar y sin mundo. Editorial Pontificia
Universidad Javeriana, Bogotá 2016
OLIVEIRA, Marcia Maria de. Dinamicas Migratórias na Amazônia
Contemporânea. Ed Sienzia São Carlos, SP 2016
PEREZ ALVES, Isabel. Os Haitianos na Ocupação Progresso: O Direito à
Cidade, a Imigração e a Luta pela Moradia em Porto Alegre, RS – Brasil
Ufrgs, Porto Alegre 2016
PREFEITURA de Boa Vista. O Impacto dos Venezuelanos em Boa Vista,
apresentação de PPT, 2018
SJMR Boa Vista. Relatório Primeiro Semestre Proteção, Boa Vista, 2018

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