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74 C.B.

SOUZA

COMUNICAÇÃO

ASPECTOS DA HISTERIA DURANTE O PROCESSO DE ADMISSÃO DA


IDENTIDADE HOMOSSEXUAL

Carla Beatriz de SOUZA, D.Sc.

RESUMO

Este trabalho procurou, a partir da articulação entre a psicanálise e um


texto literário interrogar a respeito de alguns sinais característicos da histeria
que parecem manifestar-see pessoas em conflito por sentirem-se
pressionadas a assumir publicamente uma identidade homossexual.
Palavras chave: Homossexualidade, homossexualidade masculina, iden-
tidade homossexual, histeria

ABSTRACT

This paper, through the intercession between psychoalysis and literature,


asked about the conection of some hytericalsignals that can be present in
people that are facing any strain in order to take over a homosexual identity.
Key words: homosexuality, male homosexuality, homosexual identity,
hysteria.

A homossexualidade sempre esteve pre- "O teatro sai de humanidades confirma-


sente em escritos literários. Apesar, contudo, das", disse Garcia Lorca (1993) na peça "O
da aura de sucesso que circunda esta literatura, público", mostrando que o indivíduo está cerca-
não é preciso ir muito além de vidas como as de do por uma obstinada solidão num universo
Proust, Gide, Wilde ou Lorca, entre muitos hostil e indiferente, onde a possibilidade de
outros, para percebermos o equívoco desta redenção através do amor tem que lutar eterna-
idéia. mente contra o fracasso e forças desumanas.

(1)
Este trabalho foi apresentado no 4th. Delphi Intemational Psychoanalytic Symposium. Delfos, Grécia, 1996.
(2)
Pesquisadora junto ao CNPq no Departamento de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Campinas.
Endereço para Correspondência: Rua São Pedro, 54/71 Cambuí - Campinas - SP - CEP 13025-350 - Tel:
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É, pois, assim, parafraseando um editor de isto pode ser inventado mas isto também pode
Lorca, Harris (1993), que introduzimos este ser um modo estruturado de enfrentar
tema. situações difíceis.
Procurar estabelecer um certo equilíbrio Atualmente, devido à criação de políticas
entre vida pública e vida privada tem sido maté- de proteção aos direitos das minorias, tor-
ria de interesse para estudiosos das mais nou-se necessário explicitar questões priva-
variadas áreas. A prerrogativa fundamental da das, ainda que, por outro lado, isto pareça estar
psicanálise - conhecer-se a si mesmo - tem, conduzindo a todos para um individualismo
hoje, acrescentado às relações um tipo especial mais intenso. Podemos interpretar esta contradi-
de ansiedade. Lidar com assuntos íntimos em toriedade como uma manifestação pós-moder-
público e vive-versa tem sido, também, marca
na e inevitável? Esta nova era, a que já nos
característica desta sociedade, que tem procu-
acostumamos chamar de "pós-moderna",é vaga
rado por relações autênticas com mais desejo
terminologicamente e nos confunde ainda se
não seja menos importante que a outra. O que
prestarmos atenção aos avanços e fracassos
ocorreu é que as exigências públicas tornaram-
se mais urgentes. históricos que convivem lado a lado.

É predominante entre países democráti- Neste ponto de vista, é perigoso confundir


cos do mundo ocidental a transformação de expressão pública, por um lado, e indiscrição,
percepções públicas, além da criação delas por outro. Freqüentemente, políticos, estrelas
próprias. Para eles, por exemplo, o conceito de de cinema etc, desnudam suas adições, abu-
"politicamente correto" tem se espalhado com sos infantis, problemas matrimoniais, além do
mais intensidade que qualquer outra, no passa- que, fazem isto muitas vezes tentando sorrir,
do. O "quem sou eu?" -um imperativo motivado mesmo de corações partidos. Novamente, te-
por sentimentos narcísicos, está ocupando um mos outro sintoma perigoso: compulsão a con-
lugar outrora da histeria. Além disso, para mui- fissões públicas. Parece não haver limites ou
tos autores, a histeria é coisa do passado, censuras para o que pode surgir em público,
desde que é somente de forma retrospectiva uma vez que, tornou-se mais urgente compre-
que podemos identificar casos autênticos e ender os assuntos como públicos e comunitári-
clássicos. Trillat (1991) por exemplo, acredita os. O que ainda permanece obscuro é se estes
que a noção de histeria está morta. processos de auto exposições excessivas sig-
nificam pedidos de ajuda pessoais ou são dese-
Atualmente, têm sido mais discutidos as- jos manifestos de mudanças na sociedade.
pectos narcisistas que outros, quando trata-se Percebemos com freqüência as pessoas con-
de fenômenos mentais. No caso específico da fusas quanto a isso, tentando viver no que
homossexualidade, isto se faz presente especi- Lasch (1987),chama de "a era da sobrevivên-
ficamente devido ao significado e condições da cia", e que também pode ser chamada era de
escolha de objeto. trivialização das crises".

Expressar-nos publicamente, de acordo Nossa proposta de examinar a relação


com Sennett (1988), requer também que per- existente entre homossexualidade e histeria é
guntemos: "Que tipos de expressão os seres uma conseqüência de observações clínicas.
humanos são capazes, em seus relacionamen- Mesmo considerando que vivemos a "era do
tos?" Certamente que o comportamento neuró- desnudamento", da experiência clínica temos
tico oferece-nos algumas respostas. Mas, observado que pessoas com inclinações ho-
além disso, como podem ser expressas as mossexuais, muitas vezes são, emocionalmen-
idéias de dúvida, incertezas, indefinições, de te e socialmente, coagidos a admitir isto publi-
ser e não ser, simultaneamente? Em público camente. Na maior parte das vezes isto não é

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fácil para elas. Esta razão, mais que outras, tamente visto como muito semelhante a alguns
conduz pacientes à psicanálise. Mais até que o processos da histeria.
desejo de conhecer sobre suas identidades
sexuais, propriamente. Isto não significa, contu- A palavra homossexualidade é um neolo-
gismo criado em 1869 por Kardy Benkert, um
do, que isso seja como um antídoto efetivo
médico húngaro. Interessante observar que
contra intolerância entre sociedades e grupos
este foi também o ano de nascimento de Gide,
sociais minoritários. "Aceitar" o outro além das
cujos escritos sobre homossexualidade são de
diferenças individuais pela via do princípio do
seminal importância. No livro de Yourcenar o
"politicamente correto", entretanto, autoriza dis-
título e o subtítulo são alusões a Gide. "Alexis"
criminações, uma vez que é organizada e está foi um nome emprestado de Virgílio por
sob controle legal. O que muda é o preço. Yourcenar, assim como também dele Gide ha-
Pagamos quando discriminamos. Mas desde via emprestado o seu "Corydon". "Tratado do
que observemos as regras deste novo jogo, vão combate", é uma derivação de "Tratado do
tudo estará bem em nossas consciências e em vão desejo", de Gide. Entretanto, Yourcenar
nossos bolsos. De fato, continuamos fazendo atribui antes a Rilke que a Gide o tema que
diferenças entre homossexualidade e enfoca em seu livro, ainda que seja a Gide que
heterossexualidade baseados em nossos valo- ela atribui sua inspiração pelos temas sexuais.
res, às vezes éticos. Além disso, avaliamos,
julgamos e, principalmente, queremos enten- Embora tenha escrito que "a existência
der, já que acreditamos na existência de expli- feminina é secreta", Yourcenar escolheu um
cações biológicas, psicológicas ou sociológi- personagem masculino para representar o con-
cas para a homossexualidade. flito sexual que ele enfrenta. Isto sugere uma
interpretação que vai além dos sexos. A inter-
seção da auto-percepção como homossexual é
"ALEXIS, OU O TRATADO DO VÃO uma característica da histeria - o sofrimento
COMBATE" causado pelo confronto com a indeterminação
da própria identidade sexual - neste caso apa-
Em 1963, Yourcenar (1971) escreveu que rece quando isto torna-se objeto de domínio
as reações provocadas por "Alexis" (1929) ti- público. No livro de Yourcenar, Alexis escreve
nham, até aquela data, mostrado a "contem- uma carta à sua esposa, deixando-a. E toda a
poraneidade" e a "necessidade" do seu traba- carta de Alexis pode ser vista como um pedido
lho literário. A "angústia" e o "segredo", presen- de perdão.
tes no conflito entre Alexis e sua esposa, é
Muitas vezes, desejamos ser claros e
sentido hoje. O mundo, no que diz respeito às concisos e somos completamente obscuros.
atitudes em relação à sexualidade, tem muda- Este é o caso de "Alexis" que, promete ser
do, mas não de modo genuíno. sincero e verdadeiro, mas ao mesmo tempo
admite que isto não lhe é fácil. Ele antecipa
A decisão de Alexis de deixar sua esposa, erros ao formular seu pensamento e constante-
Monica, porque ele precisa aceitar sua homos- mente tem dúvidas quanto ao seu significado.
sexualidade é o tema do livro de Yourcenar. Sente dificuldade em explicar sua vida e justifi-
car seus comportamentos. Arrepende-se por
"Alexis" é usado aqui como uma ilustração não haver lhe confessado antes, mas ao mes-
do conflito homossexual, que muitas vezes ex- mo tempo é grato por não tê-Io feito. Escapa,
pressa-se no adulto. O material que Yourcenar constantemente, do seu tema principal, expres-
usa é um excelente modo de explorar este sando sua falta de respostas a si próprio. Sem-
tema, pois trata-se de uma carta-confissão, na pre procurando a verdade, ele está convencido
qual o sofrimento pela identidade sexual é dire- de que tem vivido na falsidade.

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Apesar de sentir-se desconectado de sua simultaneamente, expor e confinar verdades. A


infância, ele quer descobrir os efeitos do seu confissão pode perdoar a dúvida, que toca um
passado' em sua vida atual. Mesmo acreditando aspecto da histeria e impede a passagem desta
que em sua existência atual não é mais do que condição.
uma sombra, ele também acredita que seu
passado pode representar a sua existência pre- A associação da homossexualidade com
sente, do mesmo modo que aqueles que estão outras neuroses, por exemplo, com a neurose
mortos possam estar mais presentes que aque- obsessiva, é mais usual do que com a neurose
les que estão vivos. Para Alexis, não há felicida- histérica,a não ser que se trate de uma associa-
de ou infelicidade. Seus fantasmas são parte ção pejorativa, seja em relação a uma ou a
dele e tristeza é a marca do seu ser. Alexis outra. Entretanto, podemos identificar esta pre-
discute, longamente sobre a solidão de sua sença. Quando alguém está em processo de
infância, quando muito pouco era falado e a aceitação de sua homossexualidade, é muito
música pode, muitas vezes, sobrepor-se aos difícil ser assertivo e direto assim como ocorre
silêncios. Alexis também alude ao prazer, à dor, no processo da histeria.
ao sofrimento e à ,descoberta de sua Freud disse em 1922 que as tendências
inadequação biológica.Mas desde que as pala-
homossexuais eram intrinsecamente relacio-
vras suplanta":, as ações, é possível viver sem
nadas com o complexo de Édipo e com as
admitir-se a verdade. Ao final,.Alexis pede per-
idéias de castração. A observação freudiana é
dão a sua esposa, não por estar deixando-a,
de que, entre outros fatores, a ausência do
mas por não tê-Ia deixado antes. Estas são
pênis, na mulher, poderia ser um importante
algumas idéias que desejamos tocar: indeci-
aspecto quando se considerava a questão da
são, vacilação e ambigüidade são marcas ca-
homossexualidade. Isto é significativo por cau-
racterísticas de alguns componentes da perso-
sa do lugar ocupado pelo órgão masculino, na
nalidade histérica. Na homossexualidade, isto
teoria freudiana. Esta observação significa que
parece ser expresso pela infinita preocupação
qualquer tipo de neurose pode desenvolver-se
com estas indecisões.
após a fase de castração. Assim, é impossível
Um outro aspecto da homossexualidade Ignorar os aspectos neuróticos que estão liga-
que foi descrito por Dellamora (1992) é a dos à homossexualidade.
homofobia, presente às vezes, na personalida-
Em um estudo de 1990, Nasio (1991)
de homossexual. Isto pode muito bem estar
demonstrou alguma relação entre homosse-
presente em "Alexis". Seu casamento tentou
xualidade e histeria. Para ele, a histeria leva a
ser a negação de sua homossexualidade.
uma dificuldade em assumir uma indefinição
Alexis é uma voz confessando suas incli- sexual, mais precisamente, uma incerteza se-
nações homossexuais. E quando faz isto, é xual.
como se falasse e visse tais inclinações como
As dificuldades ilustradas pela carta de
se fosse um outro. Isto faz lembrar padre e
Alexis podem associar-se a aspectos da
pecador,idéias e vozes que se atravessam,
histeria. Mesmo hoje, quando a sociedade pa-
desconectadas dos corpos, como se fosse pos-
rece acreditar na existência natural de um
sível separar espírito e corpo, amor ideal e amor
terceiro gênero, homossexuais encaminham-
carnal, amor sexualizado ou não. Todos estes
se ainda aos consultórios clínicos, solicitando
conceitos estão expressos no discurso de Alexis.
ajuda.
Ele é uma voz que confunde, escapa, enfrenta,
expõe e esconde seu conflito através de cada Da perspectiva psicanalítica, um tipo de
trecho de sua narrativa. Isto é o que permite a ajuda poderia ser focalizar não a homossexua-
confissão: ela tem o poder de abrir e fechar, lidade em si, mas os componentes histéricos

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as neuroses, ajudando assim pacientes a atra- 2. FREUD, S. (1922/1976). Alguns mecanis-


vessarem esta fase de suas vidas com menos mos neuróticos no ciúme, paranóia e
homossexualidade. ESB, VoI.XVIII, Rio
ansiedade sofrimento, resultando numa re-ela-
de Janeiro, Imago.
boração da ansiedade de castração.
3. HARRIS, D. 1993. “Introduccion”, in Garcia
A confissão de Alexis à sua esposa evi- Lorca, F. EI publico. Madrid: Taurus.
dencia sua incerteza e indecisão a respeito de 4. LASCH, C. 1987. O mínimo eu. São Paulo,
sua identidade sexual. Seria o caso de pergun- Brasiliense.
tarmos se poderíamos todos afirmar nossa iden- 5. LORCA, F.G. 1993. El publico. Madrid: Taurus.
tidade sexual sem algumas dessas mesmas 6. NASIO, J.-D. 1991. A histeria: teoria e clínica
indecisões e incertezas. psicanalítica. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar.
7. SENNET, R. 1988. O declínio do homem pú-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS blico. São Paulo, Companhia das
Letras.
1. DELLAMORA, R. 1992. “Representation and
8. TRILLAT,E. 1991. História da histeria.
homophobia in: The picture of Dorian São Paulo, Escuta.
Grey”, in: Homosexual themes in literary
9. YOURCENAR, M. 1971. Alexis ou o tratado
studies, vol. VIII. New York and London: do vão combate. Rio de Janeiro, Nova
Garland. Frontreira.

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