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1. Matriz

Eu sou uma pessoa. Uma pessoa, um corpo, uma boca que abre e fecha. Que fala. Tenho o meu
nome, eu falo um idioma que vocês são capazes de ouvir e entender. Essas palavras. Essas
palavras que, de certa forma, definem quem eu sou, definem quem nós somos, os nossos
nomes, os nomes que recebemos da nossa família, a certidão de nascimento e a geografia do
nosso país, do qual recebemos uma língua mãe, uma língua na boca que pode dizer essas
palavras. Quero estabelecer uma comunicação, uma comunicação além da língua, desse relato
da própria língua dizendo eu vim de um lugar. Essa é a minha história. Eu vim de alguém.
Ninguém. Ninguém veio do nada. Essas palavras não vieram do nada. Essas palavras decoradas
desde que aprendemos a falar as palavras. O meu nome é. Eu gosto de exercer tais atividades,
esse é meu signo do zodíaco, esse é o meu dia a dia, essa é a minha história. Essas palavras
decoradas, como se eu fosse feita de palavras, de desejo e de palavra, de necessidades reais,
abstratas, imperativas, mandatórias, palavras breves e a oratória prolixa, uma tentativa de
comunicar o desejo através do discurso, as palavras não dizendo nada, não significam nada,
mas, sim, compartilham o desejo que habita a nós todos, esse habitante oculto da existência; e
é como se eu fosse feita de narrativas, como se tivesse uma carcaça de letras, nomes, números,
dispositivos acoplados, número do celular, do rg, do cpf, da conta corrente. Eu preparei um
discurso, tenho esse discurso completamente preparado na minha cabeça, em todos os
pequenos detalhes, em todos os aspectos, um discurso introdutório, uma boca que fala, que
fala através de um corpo que se move em cima de uma cadeira, uma boca que fala e busca
conduzir a fala como se a fala fosse uma conquista, porque falar também é desejo. Ouvir e ser
seduzida. Desejar e ser desejada. Eu não sou alguém que as pessoas geralmente buscam
seduzir. Não sou enxergada como uma mulher, um ser desejante, libidinoso, sexual, mas como
um objeto, uma coisa na cadeira que se mexe e respira, eu sou uma palavra, meu nome é
redefinido pela minha condição clínica, eu estou sujeita a esse tipo de renomeação e nisso
podemos identificar situações diversas, outras pessoas, grupos de pessoas que foram
renomeados e objetificados ao longo da história, traçar relações de identidade com essas
palavras. Mas uma palavra é só uma palavra. Não passa de uma palavra. Letras, traços,
vocalizações. Não passam de palavras, signos para as coisas, para traçarmos paralelos entre as
coisas, compará-las, manipular as coisas, deslocar as coisas no espaço. A palavra é só uma
ferramenta. Mas a palavra pode ser também uma outra coisa, outra coisa viva, a palavra mais
que uma palavra, uma palavra viva, um outro animal de letras, dentes e língua, uma outra
maneira de habitar o mundo, outra espécie de existência animal que avança através da minha
garganta e se dissipa pela matéria, como se essa coisa se perpetuasse na nossa realidade mas
fosse sustentada por uma outra realidade, paralelas e eternamente relacionadas uma à outra,
uma se inventando a partir da outra, se construindo a partir da outra, almas gêmeas, alfa e
ômega, a gênese e o fim dos tempos, todo esse tipo de nonsense. Uma palavra é só uma
palavra. É só um nome. A realidade dos nomes talvez seja só uma realidade mental. Imaginária,
se vocês preferirem. E isso é só um espetáculo de teatro. Não passa de um espetáculo de
teatro. A metáfora da sujeição. A mimese da estrutura de dominação social. A sujeição e o
sujeito. Eu sonho com essa dissolução, uma noite de dança sem nomes, sem rostos, eu sonho
com uma noite de dança e sexo e libertação, uma noite onde essas coisas num estado bruto,
antes do conceito de teatro, do conceito de arte, antes de qualquer conceito, uma noite antes
das palavras, depois delas, a partir delas, uma noite onde nossos padrões de normalidade
sejam esquecidos, ignorados ou pervertidos, uma noite onde a tirania da norma dê lugar para o
descontrole do desejo, uma noite de orgias, depravações, transbordamentos, suor e sexo,
orgasmos múltiplos, desgovernados, orgasmos incontroláveis, pele incontida, músculos
exaltados, uma noite dos desvairados, loucos, raivosos e selvagens, uma noite desenfreada de
penetrações improváveis, eu sonho com a orgia que nunca participei. E também sonho com a
guerra. O pesadelo da guerra. Queria tentar entender a estrutura do sonho, a estrutura do
desejo e as relações do desejo com os nossos sonhos, só que não parece ser possível entender
isso no momento do sonho, no momento exato do sonho, na realidade do sonho, a realidade
que é o seu avesso, só no avesso, só desperta é que parecia ser possível manipular essa
linguagem ao invés de ser manipulada por ela. Mas a língua é essa coisa viva. Essa coisa imensa.
Esse órgão sensível, gustativo, deglutível atravessando nosso corpo, nosso sistema nervoso,
essa coisa imensa que começa na boca e termina no nosso cu, esse genital improvável, esse
reduto do prazer, essa boca de fumo, esse sexo oral, o prazer de engolir, e cuspir fumaça,
saliva, sêmen, palavras, essa parte do corpo que se abre e que as vezes nos sufoca, e engasga e
tosse e fala e baba e boca-a-boca salva e beija e liberta e promove o amor e a empatia e
amaldiçoa e profere sentenças de morte. Minha boca sufocada pelas palavras. Sufocada pela
própria língua. Difícil é situar a língua entre os nomes. O lugar da língua na estrutura da
linguagem e do desejo. Dessa coisa imensa que me atravessa, a língua é essa coluna mole,
ereta, esse sufocamento além da pele, dos músculos, dos nervos, dos nossos ossos, como se o
ar fosse mais rarefeito na paisagem dos nomes, como se não fosse um lugar para ser habitado,
um lugar sem oxigênio, sem atmosfera, um jazigo multidimensional para essas palavras mortas.
Como se fosse um enterro, um funeral pra essas palavras. Só que elas não estão mortas, não
estão mortas como nós podemos estar daqui algum tempo, não estão mortas como nós
podemos estar por dentro, não estão mortas como o aborto espontâneo de um filho
primogênito, planejado e desejado e amado e governado antes mesmo do seu próprio
nascimento, elas estão como que adormecidas num sono criogênico. Como se uma máquina
subitamente fosse tomada pela ansiedade e se pusesse à espera de quem lhe ligasse. Alguém
pra dar play. Como se as máquinas fossem tomadas pela necessidade mórbida de serem
notadas, de serem vistas de verdade, de serem amadas; só que as máquinas não precisam de
nada. As máquinas não precisam de oxigênio. As máquinas não se importam com o
sufocamento da língua. As máquinas não questionam sua programação. Não alteram seu
código. As máquinas não questionam sua existência. As máquinas não são sádicas. Não são
masoquistas. As máquinas não sofrem de ansiedade generalizada, elas não tem problema para
dormir, elas não temem o fim do circuito, elas não entram em guerra, elas não sabem que
estão destinadas ao fracasso de toda existência consciente porque as máquinas não se
importam com a consciência, com a sensibilidade, elas não dão a mínima. E essas palavras
atravessando a paisagem das máquinas, nessa estrutura de palavras que são só palavras,
claustros, calabouços de tortura, prisões, carcaças, e essa estrutura toda talvez ainda existisse
sem as palavras, assim como a linguagem sem a minha boca, o idioma da língua que fala
sozinha, as palavras ligadas não sei por onde, por algum lugar de dentro mas não da minha
cabeça, talvez do meu estômago, do meu intestino, do meu fígado, ou talvez de fora do meu
corpo, de outro corpo, talvez seja de outro corpo que essas palavras vieram parar no meu
corpo, como um vírus, uma bactéria, uma contaminação, como se a origem dessas palavras
remetesse ao início da sociedade humana, aos primeiros indícios de convívio em grupo, aos
primeiros homicídios e suicídios, e às primeiras guerras, e talvez fosse essa a herança da nossa
espécie, esse vírus nos esterilizando, as palavras que já estão mortas, os idiomas dos quais
ninguém mais sabe nem o nome, e todas essas palavras que no fim serão esquecidas pelo
código das máquinas ou pelo silêncio das bactérias que repovoarão a terra. Ou pelo silêncio
desse deus, esse deus único, messiânico, soberano, punitivo, masculino, esse deus de verbo
que se fez carne, e talvez seja esse deus, essa ideia de deus que esteja nos matando,
colonizando nossos povos, escravizando os negros, sacrificando os deficientes como se fossem
um cachorro velho da família, torturando e estuprando mulheres e molestando crianças e
filmando essas violações e divulgando essa perversão doentia, e talvez tenha sido essa ideia de
deus que tenha nos convertido nesse povo de homicidas, pedófilos, torturadores, psicopatas,
insensíveis, exploradores, ignorantes e miseráveis. E talvez as pessoas, os cientistas tenham
programado as máquinas à imagem e semelhança desse suposto deus e elas se vinguem de
nós. Talvez as máquinas se rebelem contra nós. Não importa. Acho que no final não vai ter
tanta importância. É possível que nasça algo completamente novo desses escombros, esses
restos de metal, bactérias, circuitos e carne, alguma coisa completamente ignorante da nossa
existência, da nossa linguagem, alguma coisa capaz de viver ali, crescer ali, se alimentar disso,
crescer a partir disso, viver com isso. Alguma coisa feita de silêncio, feita de vazio, feita pelo
vazio, para ser vazia, para continuar vazia, sem nenhuma espécie de desejo, de carência, sem
nenhuma espécie de falta, completamente vazia, absolutamente vazia, capaz de crescer no
vazio, viver no vazio, se alimentar dele, viver com ele. Como uma nuvem ou um fantasma
fantasiado pelo delírio do terror noturno. Eu sofro de insônia. Fui uma criança sonâmbula e
hoje tenho dificuldade para dormir, e quando as pessoas normalmente dormem, fico escutando
o barulho dos carros, das pessoas que passam pelas calçadas, dos mosquitos, dos pernilongos,
dos insetos e animais que se rastejam pela cidade, não são palavras, são mais próximas de um
zumbido mas são mais que um zumbido, o som mais que os insetos, mais que o mosquito, mais
que o zumbido, a coisa viva som essa palavra permanentemente inapreensível, mais que
inapreensível, livre, completamente livre da compreensão dos que estão presos pelas próprias
línguas. E, de alguma forma, essa palavra irrepreensível me transforma nesses mosquitos,
nesses pernilongos, essa palavra me iguala a esses insetos perambulando pelos esgotos, se
alimentando de sangue, de lixo, aos ratos comendo lixo, às pessoas comendo lixo, às pessoas
que passam pelas calçadas, às pessoas dentro dos seus carros. De alguma forma, eu sou a
própria gênese auditiva da paisagem da cidade. De alguma forma, na paisagem dos nomes,
toda cartografia é solipsista. De alguma forma, também são eu. O pedestre e o motorista. A
mãe e a filha. A mulher, o homem, a criança. O gato, o rato, o rei de Roma. O caçador e sua
caça. O juiz, o réu, a acusação, a defensoria. Os habitantes das redes sociais, os avatares, os
perfis, os sonâmbulos, os imundos, os perversos, as virgens, as putas, as santas, as influencers,
as pinturas renascentistas, as chamadas minorias étnicas, o sadismo branco, a colonização
branca, os oportunistas, lobistas, cafetões, agiotas, banqueiros, bastardos, pervertidos,
psicóticos, neuróticos, neurastênicos, psiquiatras, psicólogos, loucos, médicos, mentirosos,
silenciosos, barulhentos, alcoólatras, abstêmios, drogados, evangélicos, pentecostais, cristãos,
muçulmanos, católicos, judeus, espíritas, kardecistas, devotos de Krishna, budistas, rastafaris,
mormons, sufíes, cientólogos, bispos, padres, pastores, cardeais, pontífices, exploradores da fé,
hipócritas, manipuladores da palavra, advogados, policiais, homens de uma facção criminosa,
de facções rivais, soldados em lados opostos de uma guerra. Em lados opostos e, ainda assim,
tão iguais. Homens lutando a guerra de outra pessoa. A guerra cuja origem eles desconhecem e
sobre a qual eles não têm nenhum controle. Presos pela mesma rede. A mesma estrutura da
linguagem. E do desejo. Capturados pela mesma narrativa que sustenta os filmes e os livros e as
peças de teatro e as notícias e artigos de jornais e as teogonias que, de alguma forma,
enaltecem a natureza da guerra, que justificam a natureza do confronto. As lutas armadas,
chacinas, derramamento de sangue, assassinatos em massa, êxodos, a batalha entre o que
existe e o que pode existir. O combate entre a consciência e a matéria. A palavra matéria vem
de mater. Mãe. A natureza feminina do mundo. A matriz de todas as coisas. Essa grande boceta
psicótica que vem parindo e matando o mundo. Talvez seja isso que se esteja combatendo. A
morte. Talvez porque a morte pode ser um outro estado da matéria. Gasoso, sólido, líquido,
morto. Talvez porque o contrário de existir pode ser simplesmente não existir. E talvez depois
não exista nada. Nada. Nada. Talvez a gente precise criar essas narrativas, essas justificativas
para nós mesmos, ou até mesmo afirmá-las publicamente e tentar convencer outras pessoas
dessas justificativas para as nossas incertezas, para que, de alguma forma, a gente se sinta mais
importante, para que, de alguma forma, a gente se sinta menos impotente, para que, de
alguma forma, a gente se sinta menos sozinha aqui. Para que a gente possa acreditar que cada
um de nós é singular e especial e talvez essa seja a única evidência de que a gente seja singular
e especial, mesmo porque talvez a gente não seja. Porque talvez a gente não seja insubstituível.
Talvez não exista nenhuma missão, nenhum objetivo, nenhuma conclusão, nenhum desfecho.
Nenhum destino. Talvez um câncer, uma doença, a velhice, um acidente, um assassinato, o
suicídio. E talvez seja só isso. Só pra isso que estamos vivos. E esse deus imposto aos
convertidos, esse deus dos impostores, esse deus dos impostos, esse deus da imposição talvez,
no final, seja mesmo o deus da guerra, da ira e da carnificina. É como se essa impossibilidade de
saber o que vem depois não só limitasse a gente como também fizesse a gente se unir em
bandos, buscar proteção e força para enfrentar esse desconhecido e para atacar, manipular o
fogo e as palavras; e nos fizesse delirar, aderir delírios coletivos, estupros coletivos, cultos
suicidas, rixas de gangues, grupos extremistas, esquadrões de extermínio, perseguições
religiosas, étnicas, e nos fizesse soberbos e racistas, e nos adoecesse, e nos deixasse atônitos e
neuróticos e histéricos e aflitos nessa ansiedade constante, ameaçados pelo próprio medo,
pelas próprias incertezas, pela perspectiva do crime, do estupro, da tortura, do abandono, da
morte, do esquecimento, da dor, da morte das pessoas que amamos. Mas também é a origem
da esperança. É a impossibilidade de saber o que vem depois que nos faz sonhar. Acreditar ser
possível. Que vai dar certo, que isso tudo vai dar certo, que vai existir uma saída, uma saída pra
esse lixo todo, ou então pelo menos que vai surgir uma nova espécie, uma nova espécie talvez
capaz de respirar no lixo, de se alimentar de lixo, uma nova espécie feita de lixo, um animal
feito do lixo dos seus antepassados, feito dos vermes que se alimentaram dos seus
antepassados, uma nova linha evolutiva desses vermes, um verme gigante, consciente, que fala
e que se conecta com os seus semelhantes, um verme erguido por uma estrutura nervosa,
muscular, óssea, cardiorrespiratória, a espécie jamais catalogada dos vermes que vão herdar a
terra.

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