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Curso

"Todas as Cores de Pedro Almodóvar"


de Josmar Reyes

Cineasta reconhecido por suas provocações e por seu estilo inconfundível, Pedro Almodóvar
nos proporciona uma galeria de símbolos e tipos num cinema povoado de seres humanos
marcados por paixões, desejos, desesperos e loucuras em narrativas extraordinárias,
misteriosas, exageradas e deslumbrantes. Herdeiro da Movida, período prolífico em que a
cultura ibérica se livra do fantasma franquista, Almodóvar, oriundo da região da Mancha (a
mesma de Don Quixote - bem retratada em Volver) se instala em Madri nos anos 70, se
alimentando de cinema na Cinemateca madrilenha. Resolve fazer então ele mesmo cinema,
começando a explorar o formato super-8, passando depois para o 16mm em narrativas
curtas já marcadas pelo traço excêntrico do diretor.

Seu cinema, desde o começo, é marcado pela provocação com títulos claramente eróticos,
assinatura já presente em suas fotonovelas. Desde seu primeiro longa, Pepi, Luci, Bom...,
sentimos um perfume de liberdade entre droga, sadomasoquismo e vida sem tabus. O
universo feminino é sua predileção como tema. Sua colaboração com Carmen Maura
(sobretudo nos anos 80) originou um cinema marcado por roteiros “loucos” e personagens
marginais. Com ela, alcança o reconhecimento internacional com a comédia melodramática
Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Sua colaboração com Victoria Abril (no começo
dos anos 90) deu lugar à exploração do erotismo e também das relações familiares. Neste
caso, a presença da atriz Marisa Paredes acentua os problemas familiares que se estendem
até a sua última obra A Pele que Habito (filme no qual a atriz volta a atuar depois de um

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longo hiato desde Tudo Sobre Minha Mãe). Ela será a estrela de dois melodramas do
cineasta (De Salto Alto e A Flor do Meu Segredo).

Sua maturidade artística virá no final dos anos 90 e é inaugurada com o melodrama sob
fundo franquista Carne Trêmula. Mas o filme que conquista público e crítica será Tudo sobre
Minha Mãe. Recebeu seu primeiro Oscar (melhor filme estrangeiro) por este filme. O
segundo viria por aquele que é considerado seu melhor filme Fale com Ela (Oscar de melhor
roteiro original). Com estes dois filmes, Almodóvar explora zonas obscuras, profundas, mas
ao mesmo tempo extremamente humanas e líricas. Seu próximo filme, Má Educação,
aprofundará estes questionamentos sobre a natureza obscura humana, sendo seu filme mais
autobiográfico.

Na sequencia, retomará a colaboração com aquela que até o momento é sua última musa:
Penélope Cruz. A atriz, com quem havia trabalhado em Carne Trêmula e Tudo sobre Minha
Mãe, será a protagonista de duas grandes obras (Volver e Abraços Partidos). No primeiro, a
leveza de um assunto insustentável: a morte e, no segundo, um grande melodrama amoroso
cujo cenário é o próprio cinema. Volver representa também o retorno da musa Carmen
Maura (o filme recebeu a Palma de Ouro pela colaboração coletiva das atrizes do filme).
Com A Pele que Habito, volta a trabalhar com seu ator fetiche do início da carreira, Antonio
Bandeiras. A colaboração entre eles havia sido interrompida com Ata-me no início dos anos
90.

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Pepi, Luci, Bom e outras Garotas de Montão
Por Mariana Lins

A experiência cinematográfica ganha novos nuances nas mãos de Pedro Almodóvar, um


diretor que prima pela ousadia e consegue levar à grande tela os desejos mais reprimidos e,
ao mesmo tempo, corriqueiros do homem moderno. Em seu segundo longa, Pepi, Luci, Bom
e Outras Garotas de Montão (1980) que o Cineclube Dissenso exibe no próximo sábado
(26/11), às 14h, no Cinema da Fundação, o espanhol reúne no roteiro todos os elementos
que o envolviam e influenciavam na época.

Recém-saída da ditadura franquista, a Espanha vivia o ápice da efervescência cultural no que


ficou marcado como a movida madrilenha. Naquele momento, artistas de todas as vertentes
exprimiam, por meio de suas obras, a liberdade surrupiada pelos longos anos de
totalitarismo. Almodóvar estava exatamente no olho do furacão, realizando curtas e um
longa em Super 8 e criando histórias mirabolantes, influenciado pelos quadrinhos e por toda
a cultura pop que, aos poucos, penetrava o mundo underground da capital espanhola.

Encorajado pela atriz Carmen Maura, amiga e principal entusiasta de seu trabalho, que viria
a ser musa de seus próximos filmes, ele abandona o Super 8 e filma Pepi, Luci, Bom… em 16
mm. O orçamento mais do que limitado faz com que a película leve um ano e meio para ficar
pronta, já que as câmeras emprestadas só eram liberadas à noite e nos finais de semana.
Mesmo com os percalços, o longa foi o passaporte que Almodóvar precisava para conquistar
espaço no meio cinematográfico espanhol.

O filme se passa no subúrbio de Madri, mais precisamente em um conjunto residencial


popular onde vivem as jovens Pepi (Carmen Maura), Luci (Eva Silva) e Bom (Alaska). Pepi vive
sozinha, bancada pelos pais, criando artimanhas para descolar uma grana aqui e ali. Certo
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dia, o vizinho policial resolve fazer diligências na casa dela e acaba encontrando uma
plantação de maconha em pequenos vasos. A moça seduz o investigador, para aliviar sua
barra com a polícia, mas avisa que o sexo só poderá ser anal, já que estava negociando sua
virgindade por dinheiro.

Pepi é violentada pelo policial e passa tê-lo como inimigo número um, o que faz com que ela
e a amiga Bom passem a maior parte do tempo planejando como se vingar do homem.
Coincidentemente, elas ficam amigas de Luci, esposa pudica e sadomasoquista do policial,
com quem vivem o período mais maluco de suas vidas. Juntas, elas se drogam, frequentam
festas, inferninhos e experimentam de tudo no submundo madrilenho.

Almodóvar já delineia, a partir deste filme de início de carreira, traços que o acompanharão
pelo resto de sua filmografia, como as cores fortes, as personagens pitorescas e o forte
papel da trilha sonora na película. Três décadas depois, Pepi, Luci, Bom é considerado o item
mais cult (e raro) da filmografia do diretor espanhol.
http://dissenso.wordpress.com/2011/11/23/pepi-luci-bom-e-outras-garotas-de-montao-espanha-1980-de-pedro-almodovar/

Labirinto de Paixões
Paixões obsessivas; transgressão; perda; morte; sobrevivência. É isso, basicamente.
***
Há algo mais, claro. Paixões obsessivas são vistas com uma proximidade rara, um tremendo
grau de carinho e compreensão, sem dúvida até um certo fascínio. Nada mais belo para uma
estória que envolver paixões arrebatadoras, claro. Mas o caso aqui não é de florear as
estórias – é a própria base delas. As estórias de Almodóvar partem de paixões
morbidamente enlouquecidas – sem dúvida as paixões fogosas de Antonio (às vezes
chamado de Ángel) de A Lei do Desejo, do Ricky de Ata-me, do Victor de Carne Tremula e de
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Benigno em Fale com Ela, mas também as paixões magoadas ou perdidas da Pepa
de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, da Leo de A Flor do Meu Segredo, da Manuela
de Tudo Sobre Minha Mãe e de Lydia e Marco em Fale Com Ela.
É bom esclarecer – não há aqui desejo sem paixão. Pode haver tesão, mas não desejo. A
produtora de Almodóvar se chama El Deseo (foi aberta à época de A Lei Do Desejo). Mas o
assunto não é tesão – é desejo desvairado. Sexo deve funcionar para fazer o outro
enlouquecer de paixão (querem ser os melhores fodedores do mundo Antonio, Ricky e
Victor). Não há paixão amena, tampouco.
***
O tema da perda amorosa é assunto de tudo – mais do que de cinema, de vida. Personagens
lidando com perdas são um caminho natural para um cinema que se pretenda ligado a
sentimentos.
A transgressão não acontece por represália ou confronto – cada um é como é, é como
acredita que precisa ser, apenas isso. Policiais cheiram cocaína, homens se tornam gays ou
travestis, pessoas de ambos os sexos transam sem preocupação com fidelidade – e isso não
acontece por uma busca da transgressão, mas apenas de se agir de maneira a ser feliz (ao
cheirar carreiras de cocaína em A Lei Do Desejo, o policial comenta que não lhe seria fácil
viver sem um pouquinho daquilo...). Que não se confunda aqui, então, a postura do cineasta
e de seus personagens – os personagens não transgridem por política, mas porque assim se
sentem felizes e ninguém tem nada com isso. Quanto aos filmes, não é por acaso que
buscam observar transgressões diversas – e, na maior parte dos casos, compreender. O
desejo assassino é observado com fascínio (em Matador ou Kika), assim como a perseguição
por amor, que se revela doentia em A Lei do Desejo e Ata-me, encontra versões mais
carinhosas em Carne Trêmula e até Fale Com Ela.
A morte se liga à perda ou ao desejo, conforme a circunstância. Ou aos dois, por exemplo
em Fale com Ela.
A sobrevivência, aprende-se. Em Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, é bom notar.
Pepa está grávida. E reaprende-se sempre, como notam em filmes recentes Leo, Manuela e
Marco.
***
O circuito de cinema atual, que precisa convencer o espectador a sair de casa para pagar em
média oito reais para ver um filme no cinema, tem hoje no nome de Almodóvar uma grife.
As avaliações da grife dão conta do seguinte: os filmes de Almodóvar se domesticaram, não
têm mais a mesma dose de transgressão a preconceitos sociais. Mas ficaram mais singelos e
comunicativos. Talvez sim, talvez em parte. Essa visão grosso modo aponta a realidade de
uma transformação evidente. Mas talvez se possa olhar com mais atenção para perceber o
movimento que há entre seus filmes. Porque este movimento na carreira de Almodóvar
pode ser visto sob a ótica do contexto a que cada um pertenceu, ainda que isso não deva
funcionar como uma chave explicativa de toda a evolução. A obviedade que precisa ser
lembrada é que os filmes não surgem do nada, se muda o mundo de que fazem parte, se

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muda o público que irá assisti-los, mudam os filmes também – não mudam apenas em
função disto, claro. Mas pode-se, ao notar este movimento, enriquecer um pouco a
compreensão acerca das diferenças entre A Lei do Desejo e Fale Com Ela, para lembrar
exemplos extremos. É fácil agora saber o que esperar dos filmes de Almodóvar? Se fosse
fácil, ainda seriam importantes ou ainda interessantes?
***
Sabe-se que seus primeiros filmes, curtas-metragens feitos em super-8, ficaram célebres no
período em que ocorreu a chamada Movida Madrilenha, a efervescência social que tomou
Madri na época do fim do franquismo. Entre 1974 e 1978, fez onze curtas-metragens – seu
primeiro filme, de quatro minutos, se chamou Filme Político, e alguns dos títulos dos curtas
que vieram a seguir já mostram o ambiente de transgressão em que surgiam: Duas putas ou
história de amor que termina em bodas, A queda de Sodoma, Sexo vai, sexo vem,
Salomé (adaptação de 12 minutos da peça de Wilde), Fode... fode... fode-me Tim. O primeiro
longa-metragem (feito também em super-8!), Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão,
representa decerto a primeira ampliação de público – mas seu tom porra-louca já trouxe
para o mundo um certo estilo transgressor e escrachado. Mais do que isso, trouxe a
disposição para o enfrentamento de preconceitos arcaicos que caracterizaria seus filmes dali
em diante.
***
É preciso que se abra parênteses aqui para lembrar a história espanhola. Francisco Franco
subira ao poder em 1937, após uma guerra civil – e, vitorioso, implantou um regime fascista
profundamente conservador, que sobreviveu por três décadas à queda dos ditadores que o
ajudaram a chegar ao poder, Hitler e Mussolini, tornando a Espanha até certo ponto um país
isolado da Europa que se pretendia mais democrática e do resto do mundo. Foi nesse país e
neste momento histórico que nasceu e foi criado Pedro Almodóvar, na década seguinte à
guerra. Além dos registros do que se fez no período da movida, há nos seus filmes também
algumas referências ao que lhe interessava no cinema espanhol que o período franquista
estrangulou: os filmes de terror (homenageia Jess Franco em Matador) e Luís Buñuel, talvez
sua mais evidente fonte de inspiração (sobretudo o mexicano Ensaio de um crime, que, além
de ter um tema próximo ao de Matador, é mostrado numa televisão em Carne Trêmula).
Não custa notar que Buñuel rodou somente dois filmes na Espanha, um proibido e outro
censurado (no caso, Las Hurdes e Viridiana), além de ter participado da produção do
documentário da frente anti-fascista Madrid 1937. Não custa lembrar também que a
Espanha de Velásquez e Goya ainda tem reis...
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O rompimento da barreira da exibição restrita do curta-metragem em super-8 aconteceu
em Pepi... e se refletiu na proposta do filme seguinte, Labirinto de Paixões – que procura
retratar, numa trama chanchadesca e repleta de personagens, aquele certo período em que
era concebido. Abrindo-se a ser um registro euforicamente sentimental de uma
época, Labirinto de Paixões já nos apresenta Cecilia Roth numa personagem chamada Sexilia
(como Pepi já havia apresentado Carmen Maura) e Almodóvar se registra como participante
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daquele período – como um diretor de fotonovelas e cantor de uma banda de rock
performática. Não poderia ser mais pessoal – estava registrando a banda a que pertencia de
fato, cantando músicas suas, fazendo performances bizarras no seu próprio longa-
metragem. Molecagem bacana, com certeza. Labirinto de Paixões, mesmo tendo evidentes
problemas narrativos (ou, sendo mais claro, tendo uma trama sem importância e sem pé
nem cabeça), tem um charme único, é o tipo de filme que poucos podem fazer, que tem algo
a mais do que simples idéias, consegue sugerir um certo espírito de vida próprio de um
momento. Talvez, sob certo aspecto, seja seu filme mais rico e corajoso. Traz, além disso, um
interesse recorrente nos seus filmes: aqui aparece o fascínio pela paixão obsessiva.
Seguiram-se a agressão cômica Maus Hábitos – em que freiras têm as piores, as menos
católicas e as mais bizarras atitudes – e Que Fiz Eu para Merecer Isso, para já vir à tona uma
maestria narrativa impressionante em Matador, onde se define o círculo narrativo constante
de seus filmes – transgressão, paixão obsessiva, perda/morte. A Lei do Desejo já repete isto,
noutro tom: no que Matador é buñuelesco e hipnótico, A Lei do Desejo é melodramático e
intenso. Daí estava se processando uma nova e decisiva mudança de alcance de platéias. O
cineasta da Movida que se tornara cineasta da Espanha agora era cineasta do mundo – do
mundo dos festivais. Seu filme seguinte, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, ganhou
imensa fama internacional e consolidou a imagem do cineasta que fazia filmes engraçados e
bem coloridos com personagens latinos apaixonados e exagerados. É só isso Mulheres à
Beira de um Ataque de Nervos?
Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos talvez seja seu filme mais leve e palatável – não
tem morte, a perda é amorosa – e, nesse novo movimento de tom narrativo, encontra-se
pela primeira vez a chave final do caminho narrativo: transgressão, paixão obsessiva, perda e
sobrevivência. Pepa está grávida.
***
Abra-se outro parêntese então para lembrar o que poderia significar esta "imensa fama
internacional". Matador já chamara a atenção em festivais, A Lei do Desejo ganhou prêmios
e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos foi um tremendo sucesso. Já existia há pelo
menos duas décadas a estrutura de filmes internacionais, aqueles que, sustentados por
exibições em festivais e pela divulgação dos nomes de seus atores e eventualmente
diretores, conseguem boa distribuição mundo afora, possibilitando ocasionalmente o
surgimento de um ou outro grande sucesso de bilheteria. Mulheres à Beira de um Ataque de
Nervos foi um destes sucessos eventuais, criou uma tremenda expectativa sobre o cineasta
transgressor e debochado. Alguns riscos desse mercado de cult-movies e festivais é rotular
autores (limitar, portanto) e estimular o desenvolvimento de certos cacoetes narrativos –
o estilo autoral que caracteriza a carreira de vários cineastas e alegra os fãs nas mostras de
cinema. Algo como o excesso de tempero que vicia o paladar (embora a comparação entre
cinema e comida não seja das melhores). O risco de defender filmes de autor para se
contrapor ao fast-food cinematográfico é que também este cinema pode acabar se tornando

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um fast-food alternativo, como já se percebeu. Seria bom saber o que esperar dos filmes de
Almodóvar?
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Ata-me é o gesto final deste momento de conciliação com um certo público internacional.
Maestria absoluta na narrativa – a mais simples, até clássica, e a com menos personagens –,
bom-humor, latinidade, amor obsessivo levando à transgressão. Um período se fechava – a
grife Almodóvar já existia e as platéias ansiavam por mais do mesmo. Começa, até certo
ponto, uma crise que aparece nos filmes seguintes, De Salto Alto e Kika. De Salto Alto, ainda
que esteja longe de ser um filme sem qualidades, traz um certo conflito de tom – por um
lado há um interesse pelos problemas de amor que precisam ser vistos em modo menor, por
outro há uma exacerbação do tom transgressor à beira da escatologia. Um tom transgressor
que parecia à época remeter mais aos desejos das platéias de festivais do que ao espírito de
seus filmes anteriores, ainda que parecesse tatear os limites aceitáveis a estas platéias,
mantendo a seu modo o espírito incômodo inicial. Kika leva essa sensação ao extremo –
parece um pouco um recado do gênero "vocês querem transgressão e escatologia? – pois aí
está". O tom é histérico, as obsessões temáticas são levadas a pontos extremos – a mídia
invasiva, constante em diversos filmes, é representada por uma Victoria Abril que carrega
uma câmera em seu capacete, o narrador de histórias sujas é um serial killer que mata para
saciar o desejo, além do filme ter ficado conhecido por ter um estupro interminável...É
quando se desenvolve de forma mais doentia o ciclo paixão mórbida, transgressão, morte e
sobrevivência – mesmo essa última, o gesto de generosidade final nos filmes mais bem-
sucedidos, é aqui uma fuga sem destino nem responsabilidade ou afirmação pessoal. Se
Labirinto de Paixões era um filme problemático amável, Kika é o filme problemático
desagradável, incômodo – de certa maneira, um grande elogio à transgressão.

Leo, a escritora interpretada por Marisa Paredes, protagonista do filme seguinte, A Flor do
Meu Segredo, diz o seguinte: o problema é de cores. "Vocês querem colorido e tudo que eu
escrevo sai negro". Escreve novelas baratas com um pseudônimo, é abandonada pelo
marido, tem um texto negado pelos editores por ser muito agressivo e assina uma crítica
devastando suas próprias novelas. Quem cuida dela, escreve outra crítica as defendendo e
até passa a escrever suas novelas é seu amigo-amor Ángel. Em A Flor do Meu Segredo temos
situações e personagens recorrentes que estavam sendo revistos ali – e outros que seriam
revistos dali à frente. Leo, a narradora, se reencontra e se reconcilia consigo mesma e com
seus propósitos. Daí se seguem Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela, até o
momento. O melodrama se faz sem pudor, com temas recorrentes (paixão obsessiva, etc.) e
transmitindo tremendo interesse por seus personagens. Sem pudor tampouco das ligações
com o cinema de autor ou qualquer viés besta de mercado: há alusões a clássicos do cinema,
há também a incorporação de uma certa arte internacional (de teatro, dança ou música),
assim como também há enredos envolvendo problemas de saúde, cheios de situações
lacrimosas. Escapar desse pudor faz muito bem aos filmes. Podem voltar a se associar a seus
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personagens a ponto de compreender suas transgressões – sendo assim, aprende-se a ter
dignidade vivendo com uma obsessão amorosa ou com uma deficiência física (Carne
Trêmula), com a ambigüidade sexual (Tudo sobre Minha Mãe) ou com novamente a
obsessão levando à agressão por desejo (em Fale com Ela). Estas atitudes trazem
conseqüências dramáticas, principalmente no último caso, mas o interesse destes filmes é
muito mais compreender os sentimentos que levam a isso do que apontar o que é certo ou
errado – este olhar generoso é decisivo para este cinema. Se certamente o interesse que
temos nos filmes citados é provocado por um brilho narrativo único, característico, com
temas, personagens e situações recorrentes, este interesse também se fundamenta nessa
generosidade rara que está na origem dessa narrativa.
É um caso, certamente raro, de realizador que, sendo bem-sucedido num certo viés e
ganhando prestígio e boa distribuição, soube transformar seu cinema mantendo o que lhe
parecia essencial – e tiveram boa receptividade os resultados da evolução que seu trabalho
teve diante das circunstâncias. Pelas notícias recentes (neste estágio, ainda incertas), a
previsão é de que logo venha aí La Mala Educación. Sabemos o que virá a seguir?
Possivelmente paixão, perda, morte, sobrevivência. Mas não, não se sabe o que vem a seguir
– a vida muda tudo, e há sempre a sobrevivência a se reaprender, sabe-se lá como...
Daniel Caetano http://www.contracampo.com.br/50/pedroalmodovar.htm

Maus Hábitos
Religiosidade com bom estilo cinematográfico
Celso Sabadin

Não confunda: apesar de Pedro Almodóvar já ter dirigido em 1983 um filme exatamente
com este nome, este Maus Hábitos é uma produção mexicana de 2007. E seu título original é
de fato “Malos Hábitos”.

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Premiado nos festivais de Montreal, Los Angeles e Bogotá, Maus Hábitos é um estudo sobre
duas obsessões: a religiosa e a estética. Matilde é uma jovem freira enclausurada num
convento onde o jejum é prática corriqueira. Cheia de fé, ela sucumbe porém ao pecado da
gula, comendo escondido de sua superiora e buscando comida até no lixo, se preciso for.
Paralelamente, Elena é uma mulher anoréxica que não consegue resistir à sua obsessão por
magreza, fazendo regime escondida do marido, e colocando assim em risco o seu próprio
casamento. Para piorar sua situação, ela tem uma filha, Linda, que não consegue emagrecer.
Estas duas formas de sofrimento compulsivo, ambas tendo a comida como ponto em
comum, vão se entrelaçar numa história intrigante dirigida com estilo pelo estreante Simon
Bross.

Embora seja um drama, Maus Hábitos tem clima e fotografia de suspense. Trabalha com
pouca luz e cores saturadas que contribuem para dar à história uma certa aura de
misticismo. Sua atmosfera tensa e ritmo contemplativo deixam o espectador numa eterna
expectativa de mau agouro, que algo terrível está para acontecer a qualquer instante.
Conseqüentemente, a trama envolve e abre sub textos para variadas leituras.

Traições, dor, e a tradicional moral católica da culpa e do pecado – tema tão recorrente na
cinematografia latina em geral e na mexicana em particular – ajudam a formar o painel de
sentimentos contraditórios deste interessante Maus Hábitos. Vale experimentar.
http://www.planetatela.com.br/cri.php?cri_id=218

O Que Fiz Eu Para Merecer Isto?

Carlos Saura havia feito Carmen (1983). Com A Colméia (1982), Mario Camus recebera o
Urso de Ouro no Festival de Berlim, que atribuiria mais tarde o prêmio de melhor ator a
Fernando Fernán-Gómez por Stico (1984), de Jaime de Armiñán. José Luis Garci ganhara o
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Oscar de filme em língua não-inglesa por Começar de Novo(1982). Caminhava bem a
produção espanhola de prestígio internacional com a chegada dos socialistas ao poder, em
1982, e a escolha da cineasta Pilar Miró (1940-1997), que havia trabalhado na campanha
eleitoral, para chefiar o órgão estatal de cinema. Os novos ares, acompanhados de verbas
para financiamento, começavam a beneficiar veteranos e jovens.

Era esse o cenário favorável em que Pedro Almodóvar, então com 35 anos, lançava Que Fiz
Eu para Merecer Isto? (1984). Ali, se encerrava o ciclo irregular de experimentação que
inclui Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980), Labirinto de Paixões (1982)
e Maus Hábitos (1983). Matador (1986) e A Lei do Desejo (1987), seus filmes seguintes,
dariam início à bem-sucedida transição do cineasta para um lugar no centro da produção
espanhola.

Até então, Almodóvar ocupava ainda posição periférica. Era visto como um corpo estranho,
difícil de classificar. Embora houvesse o reconhecimento de que em seus filmes iniciais
pulsava um universo peculiar, restrições severas - algumas em caráter condenatório - eram
feitas a sua capacidade de organizar narrativas em torno de personagens e situações
incomuns.

Que Fiz Eu para Merecer Isto? condensa essa tensão no momento em que ela começava a se
resolver. No fundo, é dela que se trata. Por um lado, reaparece o catálogo de
comportamentos bizarros, em ambiente às vezes surrealista, que imprimira feição particular
aos três primeiros longas do cineasta. De outro, o cenário social é quase neo-realista -
apartamentos claustrofóbicos em um bairro-dormitório de Madri.

A vida privada da classe operária, recriada por alguém mais próximo de Freud, Salvador Dalí
e Luis Buñuel (sem falar em Alfred Hitchcock e Douglas Sirk) do que de Marx, Roberto
Rossellini e Vittorio De Sica. Carmen Maura, que já havia feito dois filmes com Almodóvar,
reaparece aqui como a protagonista, revezando as máscaras de mãe, mulher, amante, nora,
faxineira e vizinha. Em torno dela, um punhado de figuras - algumas caricaturais, outras bem
desenhadas - encena um balé de coreografia incomum, em que não se sabe direito quem
dança com quem.

O ponto talvez seja, para usar verbo-chave em sua filmografia, notar quem deseja quem (ou
o quê). A cadeia inclui um manuscrito falso atribuído a Hitler, criança com poderes
sobrenaturais, adolescentes precocemente inseridos no mundo adulto, mulheres
insatisfeitas, homens ausentes ou impotentes. A essa altura Almodóvar ainda dedicava mais
atenção às partes do que ao todo. A partir de seus próximos filmes, as partes geram
organicamente o todo.
http://criticosdecinema.blogspot.com.br/2006/04/o-que-eu-fiz-para-merecer-isto-1984.html

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Matador
O filme da (pré-)maturidade

Há uma cena de Matador que concentra aquilo a que muito cedo se convencionou chamar a
"marca registrada Almodóvar" – supondo a partir disso um repertório recorrente que
emerge da movida (como ficou conhecida a agitada noite madrilenha do início dos anos 80),
envolve não só cenário e figurino como também atitudes e falas e não poupa absolutamente
nada, nem mesmo as freiras (basta ver Maus Hábitos, de 1984). A cena consiste no próprio
diretor interpretando um estilista às voltas com a preparação do desfile intitulado "Espanha
Dividida". Uma repórter lhe importuna com perguntas vazias e redundantes, enquanto
maquiadores recebem puxões de orelha e lindas modelos de visual decadente se drogam e
vomitam na roupa. A explicação dada pelo estilista sobre o porquê do título é uma resposta
de Pedro Almodóvar: acostumado a ver a crítica espanhola desaprovar seus filmes (com o
argumento de que estes faziam um falso retrato da Espanha e o vendiam como fidedigno –
uma boa prova de que o cineasta pisava calos e causava incômodo à mesma proporção que
recebia reconhecimento internacional), ele diz que seu país é dividido em duas partes
principais, a dos invejosos ("a inveja é nosso esporte nacional", ele declarou em entrevista
à Folha de São Paulo publicada no dia 31/7/94) e a dos intolerantes – e em seguida admite
que se inclui nas duas partes. É uma espécie de assinatura destemida da obra, de auto-
inscrição feita cínica e abertamente. Almodóvar assume o universo que lhe interessa,
responde acidamente às críticas, reafirma sua vontade de filmar o que quer e não o que
deve agradar.

No filme Matador Antonio Banderas é Angel, rapaz cujo nome antecipa a função de anjo da
guarda que tentará desempenhar no filme, um paranormal que carrega enorme culpa
devido às visões que têm, nas quais seus medos e pulsões se confundem com tragédias
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alheias. Ele é o ponto de interseção entre os demais personagens. Aluno de Diego – famoso
ex-toureiro que abandonou as arenas após um acidente de trabalho e agora mora numa
mansão onde ensina a arte e a técnica que tanto domina –, Angel se entrega à polícia para
confessar o estupro da jovem Eva, que ele antes observara de luneta pela janela de seu
apartamento (na verdade uma tentativa de estupro, pois, conforme o depoimento de Eva, o
totalmente inexperiente Angel não percebeu que estava longe de penetrá-la e apenas
ejaculava entre suas pernas). O personagem de Banderas assume também a autoria sobre
uma matança em série, dando a justificativa de que as vítimas haviam tentado abusar dele, e
acaba confinado numa instituição psiquiátrica.

As linhas iniciais de Matador falam por si mesmas, mostrando o que o filme tem de
desconcertante e de semelhante com o resto da obra de Almodóvar: Diego começa o filme
se masturbando diante de uma TV que exibe imagens mórbidas de mulheres sendo
violentadas, decapitadas, mortas; Angel é o rapaz puro e ingênuo, que destoa com relação à
hostilidade e à perversão reinantes no universo em que é apresentado, e que mesmo
quando tenta uma atitude – impulsionada por um ímpeto voyeurista – que a princípio
parece diametralmente oposta ao que se poderia presumir como sendo sua boa índole,
reflui de forma inocente (o que o aproxima bastante do enfermeiro de Fale com Ela); a mãe
de Angel, freqüentadora assídua da igreja, está submersa num maniqueísmo que tudo
silencia – incluindo aí o bom senso – em nome de uma meia-dúzia de idéias fixas; o
voyeurismo e a solidão surgem como traços característicos da grande cidade, corroborados
pela televisão – do que uma idéia mais direcionada estará em Kika, de 1994. Em suma, a tal
"marca registrada" não tarda nem falha.

Dá-se no cinema – onde passa Duelo ao Sol, de King Vidor, tão toscamente dublado quanto
qualquer novela mexicana – o primeiro encontro (no filme) entre Diego e a advogada que
defenderá Angel, a qual logo no início aparece matando com um prendedor de cabelo
pontiagudo o parceiro sexual que atingia o orgasmo (impossível não pensar em Instinto
Selvagem). Os aspectos meta (a já citada transferência de questões pessoais do diretor para
a tela) e intertextuais (as menções ao suspense na linha Hitchcock, o filme de Vidor, a
violência gráfica à la Mario Bava durante a seqüência dos créditos iniciais) enriquecem o
filme de maneira substancial e sutil, nunca utilizando as referências estéticas como escudos,
mas sim como fruto do prazer envolvido numa composição que bebe em boas fontes. Ainda
que buscando inspiração no suspense, gênero consagrado (e muito em alta nos anos 80,
independentemente da qualidade ou do refinamento estético, como a profusão de body
count movies comprova), o melhor de Matador é mesmo o fator almodovariano, com
destaque para a seqüência final, na qual a intervenção surrealista de um eclipse solar
impede que Angel chegue a tempo de salvar Diego. Interessou a Almodóvar menos
estruturar um thriller do que se aproximar das pessoas que estão entre paixão e morte para

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se inteirar dos seus sentimentos, privações, motivações – sem apelar para o psicologismo
barato ou se prolongar em teorias que expliquem os assassinatos.

Fala-se muito da maturidade de Almodóvar em sua fase mais recente, a partir de A Flor do
Meu Segredo (1995), contrabalançando o exagero kitsch e conquistando uma raríssima (e
inusitada) singeleza de olhar. Entre Labirinto de Paixões e Carne Trêmula, de fato, há uma
grande variação no espectro – o que abrange personagens, emoções, cores, diálogos. Mas é
preciso também reconhecer que Matador, de 1986, já traz vários elementos que são
comumente apresentados como frutos dessa maturidade, a exemplo da profunda
compreensão de personagens ambíguos, culpados dentro de sua inocência, órfãos literais ou
figuradamente (como Angel), muito solitários, por um lado, mas muito cheios de
possibilidades, por outro, a ponto de poderem emprestar a alguém essa energia vital em
estado latente, silenciosamente intensa (vide Fale com Ela).
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Apresentação de Eduardo Valente e Ruy Gardnier.

Depoimentos de Pedro Almodóvar:


"No dia de estreia de Kika em Madri, tive medo de que o público não pudesse entrar no filme
porque ele é muito pessoal e cheio de conceitos puramente cinematográficos. Adoro falar,
discutir com um interlocutor interessante sobre os detalhes de um filme, mas um filme deve
poder viver independentemente desse tipo de reflexão, ele deve poder ser visto sem
nenhuma explicação."

"Meu grande segredo, se eu tenho um, a chave de meu trabalho é que, qualquer que seja a
situação, maluca ou incomum, ou o tipo de história, o cinema é sempre objetivo, a imagem é
constituída de elementos concretos, reais, e assim deve ser sempre sustentado por uma
interpretação naturalista. É o que dá a toda cena seu poder de credibilidade e de convicção.
É por essa razão que eu rodeio sistematicamente meus personagens de objetos que têm
ressonâncias múltiplas e não somente servem à estética que eu escolhi para o filme, mas dão
ao espectador informações sobre os personagens."

"Gosto muito do cinema de sentimentos, mas em geral, os filmes sentimentais não me


agradam muito, especialmente os americanos. Mas gosto muito de Ondas do Destino, que é
um filme puramente sentimental, verdadeiro, austero e contemporâneo."
http://www.contracampo.com.br/48/matador.htm

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A Lei do Desejo
Violência e paixão em Almodóvar

A Lei do Desejo pertence à primeira fase de Pedro Almodóvar. Há quem a prefira à atual,
uma opção argumentável. Quem a escolhe opta por uma visão de mundo talvez mais
anárquica e disposta a chocar. Quem fica com o Almodóvar mais maduro, entende que a sua
relativa serenidade só fez contribuir para que os filmes ficassem melhores e mais profundos,
sem tanta necessidade de ‘épater’, como os primeiros – Entre Tinieblas; Pepi, Luci, Bom;
Matador, e seu grande sucesso Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Além de A Lei do
Desejo, é claro.

Hoje Almodóvar nos é familiar, mas todos os que acompanham cinema há mais tempo
sabem do impacto causado por esses primeiros filmes. Era como se víssemos surgir, sob as
cinzas do franquismo, a Espanha vital. Debochada, sensual, inteligente, com vontade de
mostrar ao mundo que toda aquela carolice de décadas de ditadura não havia matado a
alma da nação espanhola. Era isso o que víamos nos filmes de Pedro Almodóvar.

Quando A Lei do Desejo chegou, ele já não era uma novidade e sim um talento consolidado.
Já se esperava seu último filme como se espera com ansiedade pela obra de um artista já
reconhecido e, no caso, muito amado pelo público. Ou, pelo menos, por uma certa parcela
do público, que não costumava se decepcionar com suas obras.

E A Lei do Desejo não era mesmo para decepcionar ninguém. Muito pelo contrário. Não
apenas porque apresentava o seu vasto elenco de escândalos, mas porque era
extraordinariamente bem construído como filme. O que temos de início? Um casal de
irmãos, Pablo (Eusébio Poncela) e Tina (Carmem Maura). Pablo é cineasta. Homossexual,
está terminando com dificuldade o caso com um namorado, Juan (Miguel Molina) e, no meio
do caminho da sua vida, conhece outro homem, o encantador Antonio (Antonio Banderas).

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Ao contrário do que indica o título, A Lei do Desejo não aponta para a sistematização das
relações entre um ser humano e outro. Desejo não é matemática e as ‘leis’ da atração e
repulsão não podem ser descritas senão, talvez, por uma lógica do paradoxo. E é aqui, no
terreno perigoso das complexidades, das ambiguidades, dos aparentes contrários e nas
combinações impossíveis que Almodóvar melhor se mexe, inclusive trabalhando com formas
mistas.

Por exemplo, utilizando ora o melodrama ora o suspense policial para dar corpo a uma
dramaturgia da sexualidade contemporânea. Nesta, como no cinema noir, ninguém é o que
de fato aparenta ser. E isso é levado ao extremo da distribuição de papéis. Por exemplo, uma
mulher de alta sensualidade pode fazer o papel de um travesti. E um travesti de verdade
pode interpretar uma rigorosa mãe de família. Os papéis são intercambiáveis e podem se
inverter à vontade. É nesse mundo às avessas, um tanto carnavalizado, que Almodóvar
constrói o melhor dessa obra libertária.

O universo, visual e sonoro, de A Lei do Desejo é aquele que já se conhece. As cores são
fortes, contrastadas, com predominância do vermelho. Cor da paixão, segundo o lugar-
comum? Sim, e também da violência, do fogo e do sangue. Outro dado: Almodóvar não se
paralisa jamais diante dos clichês. Sabe e tem consciência de que todos nós, em uma medida
ou outra, somos feitos de lugares-comuns. Negá-lo é coisa de quem ainda espera reinventar
a roda. E assim Almodóvar cava seu espaço de originalidade abrindo espaço entre clichês
ancestrais. E quais são eles? O ciúme, o contraste entre a vontade de estabilidade e o desejo
de aventura, e por aí vai. Outro deles: A curiosidade pelo conhecimento do gozo alheio – que
na antiguidade produz o mito de Tirésias e, na sociedade moderna, aterrissa numa mesa de
cirurgia para mudança de sexo.

Os diálogos são rápidos, cortantes, desbocados. O pansexualismo almodovariano é feminino


e, nele, esse lado fêmea assume o comando como numa utopia do matriarcado. Na qual
cabem os boleros, os tangos, tudo o que canta a esperança, a desilusão e os males de amor.
Tudo o que evoca, melodicamente, essa mágica do encontro entre os sexos. Seja entre que
sexo for e da maneira que puder ser. Qualquer tipo de amor vale a pena, parece dizer.
Mesmo que termine mal, muito mal, é sempre preferível à segurança assexuada. Não à toa,
finaliza com a voz magnífica de Bola de Nieve, o grande cantor cubano. Para quem sabe das
coisas, isso diz tudo.
(Caderno 2, 5/1/08)
http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/violencia-e-paixao-em-almodovar/

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Almodóvar: mundo falocêntrico, utopia feminina

Pedro Almodóvar é, num primeiro momento, o cineasta do pós-franquismo, da Espanha


moderna, que se desrecalca depois de uma longa e moralista ditadura. É, como já se disse, o
cineasta da “movida”, da farra da Madri liberada, mas, de maneira mais profunda, da
abertura do país a toda a sorte de influências, antes filtradas pela alfândega censória do
generalíssimo.

Anárquico e libertário, Almodóvar pôde ser moderno sem jamais deixar de ser
profundamente espanhol. Divulgou uma Espanha colorida, fortemente melodramática e
picaresca em filmes como Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980), Labirinto de
Paixões (1982) e Maus Hábitos (1983), para citar alguns dos títulos mais conhecidos dessa
primeira fase. Nela, o anticlericalismo radical (só acessível a quem foi criado em ambiente
puritano) une-se à questão urgente do sexo. E, posteriormente, do desejo, tratado de
maneira mais ampla em Matador (1986), A Lei do Desejo (1987) e Ata-me (1990). Interessa a
Almodóvar esse impulso paradoxal do desejo humano, que força os limites do socialmente
conveniente e é própria afirmação de vida, mas também do seu contrário, a morte, a
extinção do ser. Eros e Tânatos, segundo o jargão da psicanálise.

Nesse universo ambivalente, não faltam personagens homossexuais, bissexuais, travestis,


transexuais e mesmo heteros. A pulsão humana não se resume aos interesses da reprodução
e da continuação darwinista da espécie, e Almodóvar coloca no centro da sua
cinematografia esse caótico Eros humano que explode em todas as direções e em todas as
formas, até mesmo na sua inversão mais radical, a morte. Seus filmes se desenrolam nesse
universo multissexual, colorido, vibrante, nas cores da paixão e das variações possíveis em
torno da ciranda amorosa.

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Mas, fora isso, como numa espécie de círculo concêntrico, Almodóvar revela-se
extraordinário conhecedor da alma feminina, e apologista de um tipo particular, a mulher
latina. Suas atrizes favoritas logo passaram a usar o adjetivo de “almodovarianas”, tamanha
a identificação com o projeto artístico e existencial do cineasta – Carmen Maura, Victoria
Abril, Rossy de Palma, Marisa Paredes, e, agora, Penélope Cruz que, com ele em Volver
(2006), desabrochou, perdeu aquele ar de chatinha e assumiu-se exuberante.

O interessante é que o Almodóvar anárquico dos primeiros filmes e, em especial, do grande


sucesso Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), sofre mutação sutil em sua fase
mais madura. Sem nunca perder o gume crítico e a alma libertária, passa a imprimir tom
mais terno a seus filmes. Como esquecer, por exemplo, o final de A Flor do Meu Segredo,
com a música de Tonada de Luna Llena (cantada por Caetano Veloso), que acompanha o
espectador como se o embalasse em doce conforto depois de tudo que lhe fora servido ao
longo da trama? Ou o tom caloroso de Fale com Ela, um dos seus mais belos títulos
recentes?

Neste, em meio a uma história como de hábito conturbada, o personagem Benigno (Javier
Câmara) insiste que se deve conversar com as pessoas, mesmo com pacientes em coma
profundo. É um patético apelo à comunicação neste mundo de balbúrdia em que as pessoas,
por paradoxo, tendem a se isolar umas das outras. O cinema de Almodóvar, terno, caloroso,
vibrante, ensaia um movimento em sentido contrário. Sem nunca ser diretamente político,
ainda assim ele o é, ao se abrigar no vital universo feminino, refúgio para um mundo
masculino e árido – mesmo que nesse mundo real as mulheres tenham participação cada
vez maior, desempenhando seus novos papéis de maneira máscula.

É desse mundo ainda falocêntrico que Almodóvar faz a crítica mais consistente do cinema
atual. A cumplicidade entre as suas mulheres, a maneira prática e ao mesmo tempo suave
como enfrentam as contingências da vida, da doença e da morte, apontam, no pós-
socialismo real, para um outro tipo de utopia contemporânea.
(Cultura, 22/3/09)
http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/almodovar-mundo-falocentrico-utopia-femi/

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De Salto Alto
De Salto Alto é o nono longa-metragem de Pedro Almodóvar. Naquele momento, a
reputação de Almodóvar era a de um comediógrafo de mão cheia, trabalhando a
extravagância das cores, a excentricidade dos objetos de cena, misturando gêneros e
criando um bordado pós-moderno. Pois bem, se algumas dessas características ainda valem
para hoje, elas parecem não dar mais conta da complexidade crescente que sua filmografia
adquire na década de 90. Embora o grande momento de virada se dê com A Flor do Meu
Segredo, De Salto Alto já se deixa levar para territórios até então pouco explorados em seu
cinema: a narrativa eletrizada se atenua um pouco, os momentos melodramáticos superam
os cômicos, os personagens parecem ganhar mais relevo, desenhados em seus mínimos
detalhes. Naturalmente, assistir a De Salto Alto hoje é muito diferente de assistir ao filme à
época em que foi feito: agora, já tendo visto Fale com Ela, Tudo Sobre Minha Mãe, Carne
Trêmula, temos a tendência de notar as recorrências da difícil convivência pai/filho, o poder
do destino na vida dos personagens, e às vezes até estranhar um pouco as irrupções cômicas
(como no momento em que Victoria Abril ri enquanto narra uma notícia de desastre). De
qualquer forma, vendo o filme com os olhos de hoje ou fazendo o esforço de recolocar o
filme e a imagem de Almodóvar ali onde ela estava em 1991, De Salto Alto dá provas mais
que suficientes da astúcia, da inteligência e da criatividade visual e narrativa do seu cinema.

Num aeroporto, uma jovem mulher, Rebeca, está sentada esperando e uma fusão faz surgir
um flashback, depois outro. Ambos são momentos fundadores da relação de Rebeca com
sua mãe, Becky del Páramo, cantora pop e estrela de cinema. É ela, aliás, que Rebeca espera,
depois de quinze anos sem vê-la. O encontro das duas arremata o que os flashbacks já
supunham: enquanto a filha venera a mãe, a mãe no fundo pouco se importa com ela,
preferindo a companhia dos fotógrafos e jornalistas matar as saudades de sua filha. A
primeira meia hora do filme se desenrola como um melodrama, ou como um drama
psicológico na linhagem de Mankiewicz (a presença de uma “fiel escudeira” de Becky e a
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personalidade bigger than life da estrela nos remetem a A Malvada). Aos poucos, sobretudo
a partir da aparição do Juiz Domingues e de sua mãe, o filme ganha ares de comédia e, em
seguida, de intriga policial. À história da relação da mãe com a filha se adiciona outra, a do
assassinato de Manuel, e posteriormente a do amor que o juiz nutre por Rebeca. A
sobreposição de histórias, ao contrário dos filmes mais recentes, não serve para dimensionar
a história principal (utilização clássica de trama e subtrama), mas justamente como efeito de
ligeira irreverência pós-moderna, criando um sentimento de imperfeição lúdica muito
freqüente até A Flor do Meu Segredo.

Assim, o filme vai de um lado para outro, muitas vezes criando cenas que funcionam bem
melhor sozinhas do que como progressão narrativa. Uma delas certamente está no panteão
almodovariano: em sua primeira noite na Espanha, Becky vai com a filha e seu marido ao
show de um transformista que faz um espetáculo interpretando a própria Becky del Páramo
nos anos 60. Enquanto toca a dramaticíssima “Un año de amor”, Becky olha para o artista e
observa o que ela já foi (jovem, sexy) no corpo de alguém que jamais vai conseguir tomar
seu lugar inteiramente (afinal, é um homem). A troca de imagens que se dá de Becky para
Femme Letal e vice-versa se completa com os olhares de Rebeca e de Manuel, que não estão
desconfortáveis só com essa situação, mas também com o fato de que Manuel fora um dos
grandes amores de Becky, e o casamento com Rebeca havia sido mantido em segredo até a
chegada da mãe. Sem uma palavra, conseguimos flagrar toda uma série de relações entre os
personagens e muito do caráter deles simplesmente pelos gestos que fazem.

Em De Salto Alto, como na maior parte de seus filmes, Almodóvar cria um universo de drama
queens, paixões fulminantes, personagens que precisam desesperadamente de atenção,
egoísmos, traições e lutas pelo poder. A novidade é que essa disputa vai ser travada ao
mesmo tempo em que o senso de maternidade precisa ser reencontrado: Becky precisa se
reconciliar com seu país, com sua filha e até com a casa em que nasceu. Ou seja, quer voltar
à barriga da mãe. Rebeca, por sua vez, em breve vai dar à luz, possivelmente prolongando o
circuito de neuroses criado pela relação com sua mãe. Mas, entre as duas, um segredo é
selado, um segredo que redime a mãe e dá nova chance à filha. Um segredo que, para
funcionar, precisa da imperícia do olhar do juiz, daquele que só vê o que quer, porque ele
também está fulminado pela paixão. Almodóvar partilha conosco essa sua fascinação por
personagens confusos, imperfeitos, cheios de reações improváveis, e, curiosamente, cujas
inconstâncias e incoerências são muito parecidas com a experiência que temos em nossas
vivências cotidianas. Uma atenção profunda ao detalhe, aos pequenos pecados que
cometemos sem nem perceber, e às marcas deixadas pelas grandes paixões. De Salto Alto
não é o melhor filme de Pedro Almodóvar. Mas certamente é um dos mais gostosos de
assistir.
Ruy Gardnier http://www.contracampo.com.br/78/desaltoalto.htm

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A Flor do Meu Segredo
Não há um preconceito contra o romance água-com-açúcar, mas, através da evocação desse romance, há uma crítica
velada à recusa de ver a realidade, válida sobretudo para o cinema norte-americano de estúdios, que se torna infantil e
aceita cada vez menos verdades completamente simples, como o fato de que os seres humanos transam. O público
americano ainda pode suportar isso, mas a Motion Pictures Association of America, não.
Pedro Almodóvar

Dor e Vida

Mais evidente que a maturidade inevitável de Pedro Almodóvar, que lamenta essa evolução
humana afirmando que somente os gênios não amadurecem, é a serenidade sobre a qual
sua mestria estabelece-se. Mais clarividente que o de costume, o diretor consegue observar,
apreender e manifestar as densas emanações de um espírito aflito ― a dor do abandono,
colossal, surge na tela. A Flor do Meu Segredo (1995) é isso mesmo, um filme que sobrepuja
barreiras físicas. Criatura agnóstica, que refuga decididamente os preceitos do cristianismo
que o perseguiram, Almodóvar é como um fiel diante da dor, indubitavelmente ecumênica,
pois todos, ligados pelo seu fio invisível, a conhecem; espécie de religião que age sem
interferir. O cineasta tão obcecado pelas mulheres acompanha de perto a desgraça e o
tardio reerguer de uma abandonada. O modo reverencial de filmar as copiosas lágrimas de
Marisa Paredes, intimamente concatenada ao tormento de sua personagem, parece ter o
poder inacreditável de sacralizá-las. A emoção que perpassa pela película, muito distinta, por
exemplo, do conteúdo de um melodrama anódino, atinge a sensibilidade do espectador,
tornando legítimo o êxito tão esperado.

Leo (Marisa Paredes) é uma escritora de romances ilusórios, daqueles que optam pela
felicidade mesmo inconveniente. Como mulher infeliz, que sempre fracassa ao tentar
ressuscitar seu casamento morto, Leo se vê impossibilitada de dar continuidade aos escritos
de Amanda Gris, seu pseudônimo. O início do filme mostra ficção dentro de ficção ― a
doação de órgãos está no centro da encenação, uma forma de treinamento para
profissionais da medicina. Betty (Carmen Elías), a orientadora da aula, psicóloga especialista

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em dar más notícias, é amiga da protagonista, e como ela, guarda um importante segredo. A
personagem de Marisa Paredes contém características comuns ao seu criador ― ao
conversar com Ángel (Juan Echanove), editor da seção cultural do jornal El País, Leo expõe
seu vínculo com as palavras, formado na infância quando lia e redigia cartas para os iletrados
de sua aldeia, tal qual Almodóvar em La Mancha; a personalidade da personagem indica que
ela é uma fugitiva da estagnação e da limitação entranhadas em sua origem, bem como o
diretor que não nega as suas raízes, mesmo cônscio de que o ato de admiti-las irá ferir o seu
pudor. Fala-se de solidão, e nesse ponto ocorre uma dissensão ― a protagonista precisa
escapar do abandono e tenta o suicídio, enquanto que Almodóvar, um cultivador da solidão
que lhe é comum desde a infância, viveu harmoniosamente consigo mesmo até sentir a
necessidade de abrir-se para as novidades exteriores. O filme mais aclamado do diretor,
Tudo Sobre Minha Mãe (1999) iniciou o ciclo da solidão, que posteriormente foi encerrado
com o lançamento de Volver (2006). A fecundidade da sua convivência com o próprio ser é
inequívoca. Marisa Paredes compreendia as urgências de Almodóvar, e ninguém seria tão
eficiente para interpretar uma personagem que tanto significa.

O limiar do filme, que fomenta a aceitação de uma nova existência, está diretamente
relacionado à salvação que parece muito distante de Leo. O desinteresse irreversível de Paco
(Imanol Arias), seu marido, um oficial das Forças Internacionais da Otan, fustiga
impiedosamente. O casamento de ambos é como um corpo pútrido descartado na superfície
que precisa ser imediatamente sepultado. Leo recusa o óbvio e quando é dominada pelo
desespero, vai buscar alívio na morte. O fracasso do ato surpreendeu, e a vida que segue
parece insustentável aos seus olhos lacrimosos. Caminhando errante, Leo acaba no meio de
uma manifestação de estudantes de medicina. Os jovens de branco, que seguem enérgicos
na direção contrária, estonteiam a desamparada mulher, visualmente destacada. É o cúmulo
do sofrimento perdido na energia inesgotável da reivindicação juvenil. A evocação de uma
revoluta fase política é mera consequência. A aparição de Ángel no agito é como um milagre;
ele a encontra “como uma vaca sem badalo” ― expressão que a mãe de Leo na ficção
interpretada por Chus Lampreave emprega para referir-se aos desnorteados, emprestada do
repertório da querida mãe de Almodóvar ―, de traje azul como a Ilsa Lund de Rick Blaine na
Paris cuidadosamente memorizada em Casablanca (1942). Uma dança soturna e sensual
executada por mãe e filho, outros personagens da narrativa, é uma ótima suscitadora de
sensações, que as tornariam tangíveis como a matéria se fosse possível. A Flor do Meu
Segredo jamais deverá ser qualificado como um filme que peca no uso abundante da
lamúria. As lágrimas rolam sem recorrências ao sentimentalismo, tão absurdamente naturais
como as que impressionaram Almodóvar em Madri, despejadas por um rapaz que fumava ao
mesmo tempo, de certa forma confortável com o seu sentimento.

“A Flor do Meu Segredo é um filme sobre a dor, uma dor de proporções quase épicas. Mas não é um filme épico
sobre a dor.” ― Pedro Almodóvar
http://cinemapelaarte.blogspot.com.br/2012/03/flor-do-meu-segredo-1995.html

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Carne Trêmula
O cineasta espanhol Pedro Almodóvar lança em 1997 uma de suas obras mais maduras e envolventes que
constam em sua filmografia. Sabendo sempre dosar os diversos temas que trabalha, constrói uma narrativa
cuja complexidade está nas sinceridades ditas e mostradas entre os relacionamentos afetuosos dos seres
humanos, sem poupar os personagens de destinos que não se restringem ao heroísmo. (Diego Benevides).

A trama de Carne Trêmula interliga a vida de cinco personagens em épocas diferentes.


Começando em 1970, uma prostituta (Penélope Cruz) dá à luz, em um ônibus, Victor (Liberto
Rabal), que mais tarde vê-se homem na Madri contemporânea. É através de Victor que a
história se desenrola a partir do momento que se envolve em uma confusão na casa de
Elena (Francesca Néri), atraindo a atenção dos policiais David (Javier Bardem) e Sancho (José
Sancho). O que eles não esperavam era que um simples tiro mudaria suas vidas para sempre
e seus destinos se cruzariam de novo após sete anos, com as alterações que o fato causou na
vida de cada um dos envolvidos. Agora vivendo da dependência de alguém, eles tentarão
resolver alguns problemas mal resolvidos, porém se encontrarão na mais profunda
dificuldade de resistir aos seus sentimentos mais profundos, sempre alterados por alguma
sensação íntima.

A maturidade de Almodóvar constrói um filme simples e marcante, cujos personagens são


tão reais que em um momento ou outro há uma relação de identificação pessoal com quem
esteja assistindo. O cineasta faz de sua narrativa uma arma que não se apieda em falar a
verdade e a proporcionar acontecimentos inesperados que não causam apenas reviravoltas
programadas, mas deixam o espectador ansioso para o que vai acontecer. Por mais que os
acontecimentos não sejam tão alarmantes, as estratégias do espanhol em justificar as
paranóias de seus personagens e o porquê de seus desfechos são bem utilizadas e dão ritmo

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ao filme. É interessante observar que Almodóvar usa em sua história elementos típicos entre
relacionamentos humanos, como amor, paixão, obsessão, medo, ciúmes, etc., e todos são
bem trabalhados em suas vertentes, sem causar danos à qualidade da película. Pelo
contrário, a facilidade com que o realizador trabalha cada aspecto na narrativa vai fluindo
aos poucos e um realismo pessoal vai se desenvolvendo e cativando o público. Os diálogos
fortes e marcantes rasgam a hipocrisia social onde os sentimentos estão instaurados e
rendem cenas belíssimas que não vale a pena citar para que nenhum detalhe mais peculiar
seja revelado e perca a graça.

Ao assumir a câmera, Almodóvar continua mostrando sua fotografia avassaladora de encher


os olhos. Seu vermelho constante e o figurino exemplar causam um forte impacto que se
harmoniza com as situações que se desenrolam no decorrer da trama. Nenhum movimento
de câmera foi aleatoriamente pensado e todos surtem os efeitos corretos. A cena inicial com
o parto de Penélope Cruz dentro de um ônibus é um dos recursos estéticos mais marcantes
da película. Enquanto o parto acontece, Almodóvar roda um plano aberto, utilizando
somente o áudio para causar impacto, enquanto a câmera vai se aproximando aos poucos
dos personagens. Ao finalizar a ação, o toque de originalidade é confirmado e logo nos
minutos iniciais já movimenta a atenção do espectador. Após isso, a evolução da
personalidade de cada ator vai dando espaço a um enredo que sabe muito bem como
trabalhar as relações dos cinco protagonistas, sem medo de julgá-los e mostrar o quanto as
nossas vidas estão expostas a conseqüências irremediáveis. O cineasta insiste em mostrar a
dor, a confusão e a diferença dos seus personagens. Esta última comprovada com os planos
alternados de Victor e David; um jovem cheio de vitalidade, e outro entregue a sua vida
esportista em um time de basquete para deficientes físicos.

Sempre impondo sua visão feminista, o cineasta também faz das mulheres referências não
só das mães de família perfeitas para qualquer homem, usando-as como porta-vozes de
insatisfação sentimental e até sexual. Parece que, a cada segundo de ousadia que elas
vivem, elas sugam algo que faltava em suas vidas cotidianas. Não que justifique o adultério
ou a violência, mas mostra a superficialidade de alguns relacionamentos e a relação de
dependência que nem sempre é tão dependente quanto aparenta ser. Como se não
bastasse, incentiva a demonstrar insatisfação e prova que qualquer um é capaz de qualquer
ato para buscar a felicidade. Tudo isso misturado a uma trilha sonora que conduz e se
mistura com os momentos e as atuações de grande porte. O destaque vai para Javier
Bardem, que não só mostra sua versatilidade ao encarar um personagem difícil, como
convence com seu jeito de ser, demonstrando a culpa que sente por ser deficiente e não
satisfazer inteiramente sua mulher. Bardem faz de David um grito que prova não só a
vitalidade de alguém em tais condições, mas também o peso que é lidar com isso. Francesca
Néri mostra suas diversas facetas ao dar vida a Elena. Sua sinceridade "ofensiva" é um ponto
chave para o desenvolvimento do personagem. Liberto Rabal, Ângela Molina e José Sancho
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também contribuem para fechar a trama com eficácia, mostrando que os seres humanos são
tão frágeis, mas tão fortes ao mesmo tempo.

Consolidando sua competência como cineasta, Almodóvar traz em Carne Trêmula um ensaio
sobre o relacionamento humano e as conseqüências de simples fatos para a vida de várias
pessoas. Se me permitem o paralelo, a teoria do caos é a mais apropriada para a trama,
principalmente para os fatos que surpreendem e dão fim à película. Enquanto os créditos
sobem, é impossível não refletir sobre quais as nossas mais profundas intenções e sobre
tudo que modela nossa identidade. Almodóvar mostra que muitas vezes somos hipócritas
com nós mesmos e as ambições que isso gera podem causar dano não só para o próximo,
como para nós mesmos. Um filme profundamente poético e belo de se assistir que foge dos
clichês e mostra um Almodóvar determinado em contar histórias do seu jeito mais
particular.
http://cinemacomrapadura.com.br/criticas/83763/carne-tremula-1997-83763/

Tudo Sobre Minha Mãe

Existe um prólogo estranho em Tudo Sobre Minha Mãe: nele, sabemos tudo o que
acontecerá no filme, temos do filme todas as primeiras pistas para construí-lo na nossa
cabeça antes que realmente vejamos a confirmação na tela. Temos de primeira uma dica: A
Malvada, o filme de Joseph L. Mankiewicz, que passa na televisão; depois, a silhueta de
Manuela (magnificamente interpretada por Cecilia Roth) em frente ao enorme rosto da atriz
Huma (Marisa Paredes), que nos indica que Huma exercerá um papel enorme na vida de
Manuela; Huma interpreta Um Bonde Chamado Desejo, peça de Tennessee Williams, que
Manuela vai ver com seu filho Estéban: saberemos que o filme irá emular a peça; vemos, por
um descuido, Estéban atravessar na rua e esbarrar num carro que freia rapidamente:
saberemos que, por uma grande paixão, ele morrerá atropelado; no começo do filme,

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Manuela representa uma encenação em que ela faz uma mãe que tem que doar os órgãos
de seu filho morto: não há dúvidas de que isso ocorrerá durante o filme. Todo o poder de
narrativa de Pedro Almodóvar pode ser encontrado nesse começo de filme, nessa pequena
tragédia de amor materno que acaba com a morte do jovem Estéban. Almodóvar cria uma
rede de referências impressionante, juntando A Malvada, Um Bonde Chamado
Desejo e Noite de Estreia, de John Cassavetes. Mas quem imagina que toda essa mestria
narrativa servirá para fazer um filma asseptizado, como nos filmes recentes de um Peter
Greenaway, em que a função referencial é o propulsor do filme, está redondamente
enganado. Se Almodóvar tem compulsão a citar, é mais por amor de suas vivências de
cinema do que por virtuosismo.

Todo o alardeado "pós-modernismo" de Pedro Almodóvar não diz respeito a outra coisa: sua
agilidade em citar, em criar metanarrativas para comentar seu próprio filme. Mas se formos
retomar a divisão de Jakobson das funções da linguagem, a função metalingüística, função
privilegiada por todos os teóricos formalistas do século XX e por escritores que vão de Joyce
e Faulkner a Burroughs e Pynchon, não desempenha em Almodóvar um papel
preponderante. Ao contrário, ela está em seus filmes explicitamente para se submeter à
grande função almodovariana, a função emotiva. O estudante aprende na escola o que é a
função emotiva: é aquela que apresenta a maior ênfase no emissor, nos sentimentos que o
emissor tem quando transmite a sua mensagem. E o filme de Almodóvar, se perfaz o
percurso estético moderno (função poética) e pós-moderno (metalinguagem), é justamente
para mostrar que a função emotiva é muito mais transbordante e rica de sentidos que as
outras. Daí a submissão da primeira parte de Tudo Sobre Minha Mãe sobre a segunda: a
primeira metade do filme é inteligente, mescla e desmescla de discursos, de jogos de
linguagem (quando vemos o menino ser atropelado num dia de chuva ao tentar receber um
autógrafo de sua atriz preferida, lembramos imediatamente de Noite de Estréia, mas a graça
da cena reside principalmente na convergência de emoção que as duas cenas
desencadeiam); a segunda é pura entrega à narrativa, completa agregação da mensagem à
tela. Talvez seja esse o desejo profundo de Almodóvar: citar num primeiro momento para
que não estejamos mais, num segundo momento, no cinema de Almodóvar, e sim no
próprio mecanismo do cinema, num mecanismo puro de emoções onde pouco importa o
autor, mas onde toda a atenção deve ser dada ao desenrolar dos acontecimentos e da vida
dos personagens.

O desejo de cinema de Almodóvar, principalmente de A Flor do Meu Segredo em diante,


chegando a Má Educação, indica uma crescente profissão de fé na lógica materna do autor
de A Lei do Desejo: nunca a culpabilização, nunca a pena (seja de morte ou em vida, tanto
faz). A lógica dos personagens é a lógica da mãe, a lógica que permite tudo de seus filhos: daí
não acharmos nenhum absurdo quando Lola, a travesti que é responsável por grande parte
das desgraças de Tudo Sobre Minha Mãe, é permitida colocar no colo um bebê (ou, mais
26
tarde, em Fale com Ela, um aborto ser praticado como ressurreição por uma pessoa de
nome Benigno). Se num filme tão adorado por Almodóvar como A Noite do Caçador (de
Charles Laughton) o horror está em ver o monstro (Robert Mitchum) tentando chegar perto
das crianças indefesas, em Tudo Sobre Minha Mãe o monstro é outro: é o preconceito e o
orgulho da mãe de Rosa, que atormenta a filha por ter decidido ser freira, depois por ir viajar
para El Salvador, depois por trazer uma prostituta para a casa. Almodóvar opõe tolerância a
naturalidade ao falar sobre seu filme: a tolerância envolve um elemento moral de aceitação,
mas com um fundo de preconceito embutido; a naturalidade, ao contrário, implica toda a
positividade do ato humano, todo o aspecto feminino da lógica de Almodóvar. A lógica
assume o papel do preconceito. A lógica, como ato social da recognição dos valores
estabelecidos, assume como seu o que se lhe parece e como outro aquilo que não se
assemelha. O feminino da lógica seria justamente aquela esfera onde entra tudo, a esfera da
naturalidade. Tudo Sobre Minha Mãe é esse universo mítico onde o feminino vence, onde
não se trata mais de tolerância burguesa, e sim de total aceitação materna. A verdadeira
liberdade seria a instância onde o elemento da tolerância não mais entrasse; onde se
pudesse dizer sim a tudo, a todos os atos concretos da vida.

Daí poder finalmente florescer um universo próprio do amor em Almodóvar. O amor é


aquilo que pode ser partilhado numa comunidade, num ambiente ideal de convivência. Esse
ambiente pode ser um quarto — lembre-se da bela cena em que Cecilia Roth, Penelope
Cruz, Marisa Paredes e Antonia San Juan se encontram na casa de Manuela para discutir
assuntos sérios e tudo que vemos depois são as moças conversando sobre as designações de
chupetas, boquetes e pirus —, mas pode também ser um país: a linda fábula que é Carne
Trêmula ou a alfinetada à prisão de um figurão espanhol em Todo Sobre Mi Madre. O desejo
de uma agremiação que acolha o desejo é o reflexo da mais pura beleza moral — e mais
uma vez aqui eis o esforço para incorporar a estética apenas como um ramo da ética — do
cinema de Pedro Almodóvar. Quanto a isso, basta ver o itinerário de Manuela, inicialmente
emulado da peça de Tennessee Williams: ela foge de casa, grávida tal qual a Estela do
Bonde..., para criar o filho longe do marido dominador. Ela dá ao menino o nome do pai,
Estéban (o pai, antes da saída de Manuela, já chama-se Lola, a travesti). Manuela cria o filho,
e consegue uma estável posição de enfermeira. Depois da morte do filho, ela vai à procura
de Lola, mas o que ela encontra é uma outra mulher que está grávida de Lola. A mãe está
doente com o vírus do HIV e não se sabe se sobreviverá ao parto. Resta viva apenas Manuela
com a nova criança, que mais uma vez se chamará Estéban. A maternidade por via
transversa, eis um tema intimamente almodovariano, como também a noção de
autenticidade dada pela travesti Agrado: "Uma pessoa é tanto mais autêntica quanto mais
se parece com aquilo que ela sempre sonhou para si mesma".
Ruy Gardnier http://www.contracampo.com.br/66/tudosobreminhamae.htm

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Fale com Ela
O amor, ou seja, a psicose

Gradualmente Pedro Almodóvar vai mudando seu cinema. Aos pouquinhos, tudo que deriva
da perturbação material – as cores aberrantes, o riso histérico – dá lugar a uma preocupação
de outra ordem, a um outro cinema em que a perturbação ainda existe, mas ela deixou a
matéria e foi fincar-se no mental. Assim como em Carne Trêmula ou Tudo Sobre a Minha
Mãe, os protagonistas precisam salvar-se de um passado traumático. Só que, ao contrário
dos filmes anteriores, os heróis não devem recuperar-se de uma relação pai/filho perdida.
Em Fale Com Ela, há muitos tipos de amor em jogo, mas eles não passam mais pelo registro
do parentesco. É antes um amor entre amigos e um aprendizado do amor: como é possível
amar uma mulher fora unicamente do registro sexual.

A primeira seqüência mostra, sentados lado a lado sem se conhecer num espetáculo de
dança, Benigno e Marco. Benigno percebe que seu vizinho de fila chora de emoção, e
gostaria de estar no lugar dele. Mas Marco não chora tanto pela beleza do espetáculo, mas
porque a dança o faz evocar um passado que ele precisa esquecer. Benigno, por sua vez,
parece ter encontrado o que tanto desejava: depois da morte de sua mãe, de quem cuidava
de forma doentia (o que nos faz lembrar de Psicose de Hitchcock), ele encontrou uma outra
pessoa para substituir seu desejo: uma linda jovem chamada Alicia, que entrou em coma
depois de um acidente de carros.

Marco, por sua vez, tenta esquecer seu antigo amor apelando para uma outra mulher
desesperada de amor, a toureira Lydia (com seu cabelo de leoa e o nariz incisivo, a atriz
Rosario Flores é o que mais evoca o "antigo" Almodóvar em Fale Com Ela). Ela acaba de
romper de forma brusca com outro toureiro a quem ama loucamente, "El Niño de Valencia".

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Se o filme parece antes desenvolver os personagens de Benigno e Lydia, é porque são
aqueles que amam de forma desesperada e incompreensível. Benigno tem uma fixação
louca por Alicia, que ele só descobre ser de ordem sexual quando vai assistir a um hilário e
pretenso filme mudo, O Amante Minguante. Já Lydia, toureando de maneira cada vez mais
perigosa e suicida, será abatida por um touro e, como Alicia, entrará em coma.

Se Lydia é suicida e Benigno é psicótico – ou seja, desenvolve processos amorosos em que a


norma social, o certo e errado são simplesmente apagados de sua cabeça, ou foracluídos –, e
se são eles os portadores do amor, isso só conduz a uma lógica muito própria da escola de
melodrama ao qual Almodóvar é filiado (os filmes de Douglas Sirk): o amor é a mais bela das
patologias, uma "magnífica obsessão". Se o personagem de Marco, que é o verdadeiro
protagonista do filme, só tem seu desenvolvimento aos poucos, é justamente porque Fale
Com Ela é a história de como um homem pode aprender a deixar-se desprender dos valores
do senso comum (ser razoável, ajuizado) para aprender a amar desesperadamente.

Assim, depois de Lygia, Marco passa a desenvolver uma relação de forte amizade com
Benigno. Ele é para Marco aquele que realiza algo impossível: ele ama um vegetal, Alicia,
presa a uma cama apesar de ainda maravilhosa, jovem, e com um corpo espetacular. Marco
olha para os seios da moça, mas Benigno ensina que deve-se ao contrário "falar com ela". O
amigo retruca que ela não ouve, que seus sentidos não recebem qualquer estímulo. Aí se dá
a fissura: Marco, para aprender a amar verdadeiramente, deve aprender a "falar com ela",
construir para si um mundo de desejo em que o amor seja mais forte que a realidade.

Autodestrutivo, psicótico, o amor segundo Almodóvar é também muito pouco sexual.


Tomando de emprestado seu uso novamente de Douglas Sirk, o amor aqui é antes uma
experiência de auto-transformação, onde todo o bom senso social é rompido (como Jane
Wyman amando um jardineiro pobre e mais jovem em Tudo Que o Céu Permite) em prol de
um encontro fundamental. Assim, Marco deverá aprender com Benigno a olhar Alicia de
forma diferente, a fundir-se no corpo de Benigno (o que se dá por meio de um jogo de
reflexos tão simples quanto genial na cena da penitenciária) para assim finalmente poder ter
acesso a um novo amor. Se esse amor é ensinado a Marco por um psicótico, não é
coincidência: o amor que chega arranca o personagem de seu mundo, de seu trabalho, de
sua vida antiga, mas em compensação lhe dá uma nova, muito mais popular, muito
mais vida. Se Marco só consegue "falar com ela" quando é tarde demais, pouco importa. Ele
já conseguiu realizar sua proeza, e em breve uma paixão poderá bater a sua porta. Se toda a
bizarrice plástica de um De Salto Alto ou de um Kika parece aqui dar lugar a uma calmaria, é
antes para querer dizer: a mente humana é capaz de muito mais coisa do que o físico. E
em Fale Com Ela Almodóvar parece fazer disso sua aplicação prática. Uma magnífica
aplicação.
Ruy Gardnier http://www.contracampo.com.br/43/falecomela.htm

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Má Educação

Construtor de um cinema sempre calcado na elaboração de cenas e diálogos, modelado ao


máximo pelo roteiro e na montagem, com uma herança do teatro na disposição dos atores
no espaço e na exposição da cenografia, e com um senso de cortes responsável pela
musicalidade das conversas, Almodóvar tem dado sinais de disposição em expressar-se mais
com a câmera, em dar à mise-en-scène um valor maior, sem com isso diminuir a importância
do esqueleto verbal-cênico dos filmes. Esse desejo maior pela imagem é em Má
Educação somado à obsessão pela representação. Nos filmes de Almodóvar, sempre há
figuras narradoras-encenadoras (escritores, atores, cantores, performers). Sempre se mostra
como a aparência esconde algo nela mesmo (não por trás dela). Má Educação, tomando
como ponto de partida A Lei do Desejo, eleva a aparência a tema. E tanto a encenação como
o roteiro propõe o jogo da representação dentro da representação.

Isso explica a insistência em filmar formas-enquadramentos, como as imagens de portas,


grades, beliches, arcos de uma ponte e toda sorte de moldura para se explicitar a lógica das
janelas dentro das janelas (da narrativa dentro de narrativa). O cineasta permanece, porém,
um autor da palavra. É por meio das narrações escritas ou faladas que se desenvolve o jogo
de simulações-revelações. A primeira se dá com a leitura do roteiro de Inácio-Angel pelo
diretor Enrique. A segunda pela leitura de um romance de Inácio por parte de Padre Manolo,
trecho este contido no roteiro escrito por Angel e lido por Enrique. A terceira pela narração
falada do padre Manolo a Enrique. Além desses três personagens, há a narração ocasional
de Enrique, que entra duas vezes como uma voz narradora, e há a narração sem voz de
Almodóvar, olhar objetivo da narrativa, que organiza os desejos e atitudes desgovernados.
Esse acúmulo de vozes e olhares inibe qualquer cobrança de rigor e coerência em relação
aos narradores. Eles se sobrepõem, se sobrepujam.

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Há um corte do letreiro inicial para um cartaz com o nome de Enrique Godet. Este corte
aumenta ironicamente a proximidade entre diretor e personagem: Godet torna-se
Almodóvar. Mas, na tela, o tom confessional-autobiográfico é exorcizado. Poucas vezes o
cineasta manteve uma relação tão distante e racional, tão pouco emocional no tratamento
estético de um roteiro. Conta-se uma história “qualquer”, não a história pessoal de
Almodóvar, como tanto se escreveu, apesar das esquinas de percurso biográfico entre ele e
os personagens (alunos de colégio de padre). Todas as paixões são racionalizadas no
esquematismo dramático e narrativo com o qual Almodóvar vê de fora seu ponto de partida
autobiográfico, É um filme da razão sobre a paixão, sem paixão pelo seu tema, mas pelo
tratamento do tema. Almodóvar está apaixonado pela própria narrativa em Má Educação,
pela capacidade de criar um jogo fabular com uma lógica matemática de roteiro, pela
disposição de criar efeitos artísticos na construção dos planos e fusões. Resultaria disso um
projeto afetado e inócuo se não houvesse paixão nessa experiência. Há. A beleza dessa
paixão apenas desloca-se dos personagens para a forma. “Pasión” é, afinal, a palavra
estampada na tela ao fim do filme, antes de ser seqüenciada por “Una Película de Pedro
Almodóvar”.

Em geral despido de julgamentos sobre as atitudes dos personagens, mesmo as condenadas


pelo senso comum, Almodóvar revela aqui menos afeto por suas criações humanas,
mostrando-as agora com maior posicionamento dele como autor. Seu universo dramático
valoriza o lado torto de cada um, ora por causa da paixão (o padre Manolo), ora por conta de
uma funcionalidade (Juan-Angel), misturada à uma paixão por representar. O mundo não é
de confiança em Má Educação. Mas a dignidade do cineasta está em julgar menos o padre
bissexual, afinal movido por uma grande pulsão (chora ao ouvir o menino de seus sonhos
cantando), e ser mais duro com o inventor de identidades de ocasião (Juan-Angel), que
mantém-se cerebral mesmo em sua paixão pela simulação. Um está fora de controle; o
outro tem controle sobre tudo. E o controlador Almodóvar, que tem amor sim por seus
personagens, mas sempre os trata como marionetes humanizadas, certamente se vê em
Angel-Juan (um manipulador de imagens e versões) mais até que em Enrique Godet, o
manipulador que se faz de manipulado, mas no fundo realmente o é. E voltamos a essa
questão da manipulação, quando, diante de máscaras gigantes e sorridentes, Juan pergunta
a Manolo: “do que eles riem?” Resposta: “de nós”. Na resposta, fala a marionete, impotente
diante de Deus (Almodóvar, em última instância).

Pelos cenários multicoloridos, os personagens, com seus figurinos de cores fortes, desfilam
suas aparências-despistes, uns manipulando os outros, outros manipulando por se fingirem
manipulados, todos sabendo mais que demonstram saber. No lugar da femme-fatale, aquela
figura sedutora e indigna da confiança do herói, temos um gay-fatale (Gael Garcia Bernal),
cuja arma(dilha) está em, conforme a necessidade e por paixão pela simulação, mudar de
identidade. Não é a primeira vez que o noir encontra o melodrama em Almodóvar: são dois
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gêneros dos quais o cineasta se serve bem, em sua abolição de qualquer fronteira entre alta
e baixa cultura – seu universo, afinal e sobretudo, é o do imaginário B. Mas não se trata de
emular convenções do noir, e, sim, limitar-se à utilização de sua dramaturgia, adaptando as
sombras a um espaço solar não despido de sombras outras.

Cada novo filme de Pedro Almodóvar, desde a segunda metade dos anos 80, não é só um
“novo filme de Almodóvar”, mas a confirmação ou a ameaça de um projeto artístico, um
sintoma de seu progresso ou de seu declínio, a manutenção renovada da grife ou o indício
de seu desgaste – e o fim de Almodóvar, ao menos como vitalidade artística, foi decretado
ocasionalmente. Nos últimos anos, desde pelo menos A Flor do Meu Segredo, Almodóvar
ganhou status de mestre (outra espécie de morte artística), graças sobretudo a Tudo sobre
Minha Mãe e Fale com Ela, seus chamados filmes de maturidade, nos quais coloca todas as
tensões internas em equilíbrio. Houve quem dissesse ou tenha escrito que ele não tinha
mais como errar: era só ligar o piloto automático.

No entanto, em vez de optar pelo vôo fácil, sem turbulências no percurso, Almodóvar optou
pela manobra arrojada, que, embora se sustente por um esquema rígido de organização
criativa (mais ainda), não se poupa dos riscos da empreitada. Má Educação é um retorno do
cineasta ao período de La Movida, nos anos 80, quando a cultura do travestimento tinha
status libertário – uma reação ao represamento comportamental após quatro décadas de
franquismo. Almodóvar, como artista, foi formado nesse momento histórico e nessa cena
cultural de criações e atitudes sem limites delineados, e traz como herança até hoje, mesmo
nos momentos mais sofisticados, algo da vulgaridade do baixo pop madrilenho – o qual
transformou em arte, não sem perda de uma rebeldia sem muito freio, mas com a conquista
de uma maturidade de estilo. A arte de confecção racionalista pode, como vemos em Má
Educação, também ser uma aventura artística: talvez seja obra de teste, com seu risco
procurado no esquematismo (com ameaça de esterilidade, de racionalismo excessivo).
Talvez seja ainda o exercício de uma habilidade querendo provar algo a si mesma, querendo
mostrar como pode se ter paixão no distanciamento, por mais paradoxal que isso possa
parecer.
(Cléber Eduardo) http://www.contracampo.com.br/66/maeducacao2.htm

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Volver às mulheres de Almodóvar

Volver é o nome da canção que Penelope Cruz canta a certa altura do filme. Na verdade,
quando ela o faz, com muita graça, a história já anda pelo fim. E fala disso, entre outras
coisas, da experiência da volta. Só que o que acontece nessa mais uma vez inspirada história
passional almodovariana não deixa de ser surpreendente. Ou seja, volta quem se supunha
que não pudesse voltar.

Não existe nenhum enigma nisso, a não ser que se pense que pessoas que já morreram se
tornam ausentes também no imaginário dos que vivem. Quer dizer, que não vivam como
lembranças, ou como, por assim dizer, acidentes de percurso simbólico. Um pai muito
importante, uma mãe marcante não desaparecem simplesmente porque deixaram de ter
existência física. Estão presentes e determinam até certo ponto a vida das pessoas. É como
se costuma dizer: muitas vezes os mortos governam os vivos.
Por isso, a primeira cena de Volver será num cemitério, onde mulheres limpam os túmulos
dos seus mortos. Entre essas mulheres, as protagonistas, Raimunda (Penelope Cruz), sua
filha adolescente Paula (Yohana Cobo) e sua irmã, Soledad (Lola Dueñas). Outras mulheres
se agregarão, inclusive a musa do diretor, Carmem Maura, a estas neste filme ainda mais
feminino e feminista do que os anteriores de Almodóvar, como se isso fosse possível. No
universo de Almodóvar, os homens não têm vez, a não ser como figuras fracas, às vezes
calhordas e opressoras.

Pode até ser um clichê, mas nem por isso parece menos verdadeiro – poucos cineastas,
nenhum talvez, compreende a tal da alma feminina como Almodóvar. E, se poderia dizer,
ninguém compreende com tanta profundidade seu papel social. Se entre elas existe
rivalidade (e onde não existe, quando está em ação o ser humano), existe também
solidariedade. Ou talvez a palavra mais exata seja outra: cumplicidade. É nesse mundo que
Pedro Almodóvar se mexe melhor. No mundo das pequenas ações cotidianas, da cozinha, do
salão de beleza, das roupas e dos enfeites, da televisão no centro da sala de visitas. Não são
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frivolidades – das ações e preocupações do dia-a-dia nasce a vida. A vida com sua
intensidade.

E essa intensidade se expressa na linguagem cinematográfica adotada por Pedro Almodóvar


há muito tempo. É o diretor das cores fortes, das músicas vívidas, das atrizes intensas, como
Carmem Maura, Victoria Abril, Veronica Forché e, agora, Penelope Cruz. Penelope
desabrochou sob a direção de Almodóvar. Deixou de ser aquela presença em cena
enjoadinha e tornou-se uma mulher intensa, despachada, metida, enfim, uma mulher
almodovariana. Ganhou com isso. E nós também.

Penelope ocupa o centro de uma história dominada pelo gênero feminino. Se você procurar
com lupa poderá chegar à conclusão de que falta verossimilhança à essa história. Em
Almodóvar sempre falta. Mas quem se importa com isso? O que interessa de fato é a
tonalidade afetiva do que se põe em cena, do grande coração que tudo inventa e que a tudo
preside. Essa a “verdade” de uma história inventada e estapafúrdia – a verdade dos
sentimentos, que afinal é o que conta e não apenas para as mulheres.
http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/volver-as-mulheres-de-almodovar/

Abraços Partidos
A alma masculina segundo Almodóvar

Em Abraços Partidos, o criador de mulheres complexas e inesquecíveis disseca,


pela primeira vez, o universo do homem
por Paulo Nogueira

Pedro Almodóvar, o mais aclamado cineasta espanhol da sua geração, moldou uma
linguagem que é um dialeto único (mas universal e inconfundível): narrativas prismáticas,
repuxos de melodrama, iconografia pop, canções bregas num contexto intelectual, humor
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debochado, cores berrantes e cenários espalhafatosos. Todos esses recursos e maneirismos -
esgrimidos para dissecar temas como o desejo, a paixão, a família - variaram de acordo com
as fases que o diretor percorreu. No seu filme mais recente, Abraços Partidos, ele fixa o
caleidoscópio, estabiliza o seu vórtice, não com a indolência formal dos acadêmicos, mas
com a plenitude complexa dos mestres. Um vanguardista classicista? Quase, pois há um
fator que assegura o moto-perpétuo inovador do cineasta: a redenção do macho.

Para compreendê-la, um pente-fino nas etapas desse sessentão novinho em folha.


Almodóvar nasceu na região da Mancha, a mesma de Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste
Figura. O pai dele era semianalfabeto e transportava barris de vinho numa mula. Já a mãe
encorajou o filho a estudar - adolescente, Pedro lia e transcrevia cartas para os vizinhos. O
modelo para o complexo de Édipo é demasiado estereotipado (mesmo que não existissem
um filme intitulado Tudo sobre Minha Mãe, de 1999, e uma filmografia que cultua uma
idealizada figura feminina) - portanto, convém evitá-lo cuidadosamente.

O primeiro filme foi uma dinamite estética que abriu uma cratera na cultura espanhola e
criou o nicho para a cena artística conhecida como "La Movida": Pepi, Luci, Bom e Outras
Garotas de Montão (1980). Estabeleceu o Almodóvar como um agente provocador, que
celebrava o kitsch transfigurando-o em brega, enquanto jorrava um humor ultrajante e uma
sexualidade escabrosa. Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), o primeiro grande
sucesso internacional do diretor, representa uma dúbia regeneração daquela passionalidade
quase gongórica. Fingindo não passar de uma leve comédia feminista, cimentou a reputação
de Almodóvar como "diretor de atrizes", na linha do americano George Cukor e do alemão
Rainer Werner Fassbinder. Volver (2006) é a ode máxima ao estoicismo feminino e roça o
ditirambo: três gerações de mulheres sobrevivem a vendavais, incêndios e à própria morte.
Enquanto isso, os homens são descartáveis (mas não recicláveis).

A breve "retrospectiva Almodóvar" exibida acima tem uma razão de ser. Ela é essencial para
entender como Abraços Partidos representa uma nova fase em sua carreira, com a
reabilitação da figura do macho. Vamos ao enredo. O protagonista, Mateo Blanco, cineasta e
roteirista, sofre um acidente de automóvel que lhe rouba a visão e o amor da sua vida.
Decide, então, que Mateo deveria morrer junto com sua amada Lena, interpretada por
Penélope Cruz. O protagonista, assim, oblitera uma parte de si mesmo, passando a encarnar
a persona que tinha escolhido no reino literário, o pseudônimo com o qual assinava seus
livros: Harry Caine. Decidido a eliminar todos os vestígios do seu eu anterior, Harry usa a
cegueira para apurar os outros sentidos, o que o torna mais fascinante e poliédrico. Catorze
anos mais tarde - o momento em que o filme começa -, Mateo/Harry reconta sua história a
Diego (seu filho, o que ele ignora). Trata-se de uma saga dilacerante de amor louco,
fatalidade, ciúme e traição, na qual o escritor cego exuma e ressuscita a sua identidade
"póstuma".
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A revolução do filme consiste no fato de que, em Abraços Partidos, Almodóvar, um diretor
fascinado por mulheres, cria o mais nobre personagem masculino de sua longa filmografia.
Mateo/Harry conjuga a sabedoria trágica de um Lear com a ciência benevolente de um
Próspero. E sepulta - com a sua dimensão dramática e humana - a lacuna de bons tipos
masculinos na obra do diretor. Almodóvar nunca se aprofundou tanto na psicologia do
homem quanto neste filme. Mostra isso não com falas, mas com imagens, como é de seu
feitio. Exemplo? Em uma cama, um casal está completamente enrolado em um lençol -
incluindo as cabeças. Sabemos que a mulher é Lena. Mas quem será o homem? O marido
que ela despreza e trai? Ou o amante que ela admira? O cineasta insinua que, embora os
homens - como as mulheres - sejam diferentes entre si, na paixão eles são indistinguíveis.

Por causa da narrativa de tom quase clássico, Abraços Partidos não foi uma unanimidade
entre os analistas. Teria o incendiário degenerado em parnasiano, como resmungaram
alguns críticos ávidos da provocação fácil? Pelo contrário: o mestre nunca foi tão
cinematograficamente magistral. Não perdeu a eloquência no trato com as imagens, como
na cena em que Mateo abraça o vídeo com a cena congelada do acidente, no momento em
que beijava a amada. Como a colossal a escultura/móbile que orna a encruzilhada onde
ocorre o desastre que mudou a vida de seu protagonista, assim é Almodóvar: camaleônico,
metamórfico, proteico. Como o outro homem da Mancha, ele continua a sonhar acordado -
pesadelos incluídos.
http://bravonline.abril.com.br/materia/abracos-partidos-alma-masculina-almodovar

A Pele que Habito

Há uma estranha subversão em A Pele que Habito. Primeiro, de Almodóvar em relação a si


mesmo. Onde aquelas cores, a exuberância, a alegria que se mescla com tanta graça à
tristeza de viver? Aqui, pelo contrário, temos um discurso frio, de cores atenuadas, mais
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propícias ao suspense terrível construído a partir de Mygale, um romance de Thierry Jonquet
publicado em 1984, e a referência bastante explícita a Olhos Sem Rosto, de Georges Franju
(1959).

Segundo, subversão da própria maneira de apreciação deste filme que, ao contrário de


outros como Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela ou Volver, que se dão de imediato e nos
conquistam cara, não causa tanta impressão à primeira vista, mas permanece com o
espectador, como que trabalhando às escuras, em seu inconsciente. É um Almodóvar frio, e
sabiamente terrível, como talvez nunca tenhamos visto.

Também à primeira vista, estão aí os temas caros ao diretor, como a mudança de sexo, as
relações de poder, etc. Mas esses elementos se dispõem de outra forma, numa espécie de
melodrama gelado, cruel e inquietante.

Claro que tudo vem do personagem de Antonio Banderas, o cirurgião plástico em busca de
uma terrível vingança, mas também de uma mulher idealizada. Vera (Elena Anaya)
construída a partir de Vicente, é retrabalhada, à exaustão e de maneira cirúrgica, para
corresponder a uma imagem perdida. Impossível também não se lembrar de Hitchcock e sua
obra-prima, Um Corpo que Cai, com o personagem Scottie, de James Stewart, buscando na
outra a imagem perdida de Madeleine (Kim Novak). Há isso em A Pele que Habito, mas como
que potencializado por um toque perverso a mais. Uma outra volta do parafuso.

Claro que existem toda a sorte de leituras psicanalíticas possíveis para essa história. A mais
plausível, talvez, diga respeito ao mistério sobre o corpo próprio, o corpo sexuado, a
diferença entre os sexos. O transexual seria o que tem a melhor ideia do funcionamento
desse corpo, pois, por assim dizer, já esteve nas duas margens do rio. Pode-se pensar, por
ignorância, que esta seja uma questão contemporânea, privativa de uma época em que a
cirurgia para troca de sexo já virou quase rotineira. Mas basta pensar na mitologia e em
Aristófanes, citado no Banquete, de Platão, sobre o ser andrógino que estaria na origem dos
sexos; separado, esse ser uno teria dado origem ao macho e à fêmea, ao homem e à mulher.
A androginia, vista assim, seria expressão da nostalgia de um estado original, inscrito no
inconsciente coletivo, que ganha sua forma poética na mitologia.

Almodóvar trata, de maneira ficcional, todas essas questões difíceis de serem colocadas em
palavras. A Eva futura se constrói por subtração e vive na nostalgia da forma original mítica,
que é a união dos sexos. Por trabalhar, ainda que de maneira parcial, essas questões
atemporais, A Pele que Habito fica remoendo no inconsciente do espectador. Uma lição de
abismo.
(Caderno 2) http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/a-pele-que-habito/

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La piel que habito
Em busca da loucura
por Pedro Butcher

No cinema altamente referencial de Pedro Almodóvar, o mais legítimo e longevo dos filhos
dos anos 80, incorporar gêneros é algo absolutamente natural, que está no sangue de seus
projetos e roteiros. Mas é inegável sua afinidade toda especial com o melodrama, que
atingiu momentos particularmente inspirados em A Flor do Meu Segredo e Tudo Sobre
Minha Mãe (para citar apenas meus preferidos). A última vez que Almodóvar filmou uma
história mais próxima do policial foi em 1997, ao adaptar um romance de Ruth
Rendell em Carne Trêmula – mas, aqui também, o melodrama acabou tomando conta.

A Pele que Habito é uma tentativa de busca de novos caminhos, ainda que suficientemente
lógicos para que se reconheça sua assinatura. Como em Carne Trêmula, Almodóvar tomou
como fonte de inspiração um romance policial (Mygale, de Thierry Jonquet), desta vez
procurando manter-se mais fiel às regras do thriller e do filme de horror (e logo vamos
entender a razão: o horror é uma espécie de irmão gêmeo do melodrama; basta lembrar de
Frankenstein ou O Homem Invisível, as duas referências mais evidentes de La Piel que
Habito, para constatar tal fato). Almodóvar encontra duas ou três soluções geniais para
modernizar o filme de horror – e a principal delas está na figura do tradicional cientista
louco, que aqui ganha a forma de um cirurgião plástico. Robert Ledgard (Antonio Banderas) -
um personagem de origem brasileira, por sinal -, é obcecado pela ideia de criar uma pele
artificial desde que sua mulher sofreu um acidente de carro.

A trama dará muitas e boas reviravoltas capazes de manter o interesse no filme – mas a
impressão final é que A Pele que Habito necessitava de um desapego maior de Almodóvar à
precisão dos planos e à composição das imagens que marcam seu cinema desde sua
transformação em um “grande autor”, a partir dos anos 90. Almodóvar vem tentando, ainda
sem sucesso, reencontrar uma liberdade mais próxima daquela que marcou suas origens, lá
no começo dos anos 80, e que foi capaz de gerar pérolas como Matador ou A Lei do Desejo.
A cada reviravolta de A Pele que Habito, vemos um enlouquecimento da história que não
encontra um equivalente na forma com que Almodóvar filma. O filme urge por um
desprendimento que não chega nunca – e o resultado é uma eterna frustração.

Os temas pincelados por A Pele que Habito vão nutrir os críticos com farto material para
discussões em torno da “questão da identidade na sociedade contemporânea”; o senso
estético de Almodóvar vai garantir algum prazer para os olhos cinéfilos. Mas A Pele que
Habito é está demasiado preso a certo bom gosto do “cinema de autor”. Uma camisa de
força da qual é difícil se desvincular.
http://www.revistacinetica.com.br/cannes11almodovar.htm

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Julieta

Baseado em três contos do livro Fugitiva, da vencedora do Prêmio Nobel Alice Munro, Pedro
Almodóvar escreveu o roteiro de Julieta (2016), seu vigésimo filme. Aqui, o diretor retorna ao
drama, depois do fraco Os Amantes Passageiros (2013) e também ao melodrama feminino,
notadamente materno, cujo último exemplar em sua filmografia foi em 2006, com Volver.

Julieta é centrado em complexas relações familiares e destaca a personagem-título como


uma Cassandra desavisada, uma professora de filologia clássica que ocupa todo o centro do
filme como parte de um flashback de sua versão mais velha, uma lembrança de um
momento onde o calor e o contato humanos estavam sempre presentes, um tempo onde
talvez não fossem, como quase nunca são a seu tempo, valorizados.

Ao longo de três décadas, vemos o amadurecimento e sofrimento de Julieta que, assim como
o espectador, tenta descobrir por que Antía, sua filha, se afastou dela. O texto é inteligente
e encadeia com elegância essas fases de maneira alinear, em parte, guiando a vida de
Julieta por uma trilha sombria de acontecimentos, adicionando aqui e ali pequenas doses de
culpa, mistério ou “premonições”, mesmo antes de termos contato com a maioria das coisas
que transformará a protagonista de uma jovem aventureira em uma mulher feliz. Ou assim
ela pensava. Reparem que momentos como a sequência do trem e a conseguinte tragédia
(são dois estágios emocionais em um só lugar, pois ela conhece Xoan e tem fincada em seu
peito a culpa pelo suicídio do desconhecido que queria conversar) ou a sequência onde a
vemos dar uma aula sobre os três significados da palavra “mar” em grego e, como
complemento, aliar uma delas à saga de Ulisses, serão posteriormente utilizados pelo diretor
como marcos da vida madura de Julieta.

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Ao contrário do que se convencionou dizer sobre o filme, não há contenção do diretor, só se
estreitarmos a visão e avaliarmos a obra sob comparação, espelhando o que temos
em Julieta a filmes como Maus Hábitos, Mulheres à Beira de um Ataque de
Nervos, Kika ou Tudo Sobre Minha Mãe, mas este não é o caminho, não é mesmo? Para uma
história sobre luto, “perda” de uma filha e desalento completo de uma mulher que
imaginava ter tudo o que precisava — faltava-lhe o trabalho, mas ela já havia providenciado
isso –, as coisas estão exatamente no patamar onde deveriam estar. A atmosfera criada pelo
roteiro, o ritmo da montagem de José Salcedo, a fórmula simples, porém dramaticamente
intensa da direção de Almodóvar e a trilha sonora um pouco herrmanniana composta
por Alberto Iglesias, todos esses elementos dão conta de um relato introspectivo, analítico,
bastante pessoal, diferente de cenários mais abertos e de caminhos compartilhados
por heroínas anteriores do cineasta. Julieta é um filme íntimo. Sua forma interna externa são
a identidade daquilo que vemos na tela. Não podia ser de outra maneira.

Como sempre, o texto não perde a oportunidade de mostrar a vida como uma múltipla
sequência de experiências onde até mesmo o lado negativo pode trazer coisas novas e, por
que não?, boas. Não há princípios de autoajuda em Almodóvar, mas ele não é dado à
desesperança por si só. Há algo além da dor, do abandono e do sofrimento. A vida no
presente de Julieta é uma prova disso. Não se trata de um estágio perfeito, completamente
colorido ou livre de recaídas, mas não é uma vida desamparada, mesmo que a personagem
tenha feito tudo para que fosse. Isso é interessante, porque existe uma pergunta muda nas
entrelinhas: “é possível, de fato, estar sozinho?“.

Em alguns momentos, o roteiro pega atalhos não muito confortáveis, como a relação final de
Julieta com Marian, que tem um quê de bruxa no começo e no final da história, deixando-
nos ainda o enigma sobre o que ela disse para Antía que talvez tenha feito a jovem seguir em
seu propósito de isolamento e apego à religião (para ela, o último refúgio ao fugir da culpa e
do rancor). A reticência final também parece vir em hora errada, não porque deixa para nós
uma ação em andamento (o diretor já havia feito algo parecido em A Pele que Habito e
funcionou igualmente bem), mas por ser exatamente aquela cena, o caminho para o
encontro. É como se ele estivesse compensando o “final aberto” e respondesse ou desse o
maior número de indicações sobre a maioria das perguntas ou linhas narrativas para o
público. Outro ponto falho é a colocação da mãe de Julieta na história, que especialmente na
segunda visita parece vaga demais, com um “encerramento” demasiado ágil para ter algum
peso ou servir para impulsionar alguma outra coisa no todo.

Contando com interpretações afiadíssimas — a passagem da Julieta jovem de Adriana Ugarte


para a Julieta madura de Emma Suárez, tendo ambas as atrizes entregue performances
excelentes, é um momento belo, revelador e representativo de uma maturidade que chega a
fórceps para algumas pessoas. A forma como a câmera vai fechando o cerco até a separação
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e a descida de Julieta ao inferno do abandono também merece destaque, não havendo
dúvidas de que tudo o que está relacionado à personagem traz o melhor de Almodóvar, do
texto e direção até as coisas que tornam o seu cinema visualmente reconhecível, como os
figurinos de cores (destaque para o vermelho) ou estampas que se realçam no ambiente e
uma direção de arte vivaz, mista de estilos, além de uma fotografia que visita com sucesso
diferentes tonalidades de cor, porém, nesse caso, procurando mais as sombras ou a
neutralidade.

Almodóvar realiza uma jornada bastante dolorosa de luto e desprezo. Há uma forte dose de
depressão no estado da protagonista e isso move o espectador para um maior engajamento
com sua busca, jornada que não deixa de ter pinceladas de thriller e humor. Mesmo não
sendo o melhor do cineasta, Julieta é um ótimo filme, um doído grito de socorro que vale a
pena ver e ouvir, talvez buscando um pouco desse clamor em si mesmo.

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Filmografia de Pedro Almodóvar

PRIMEIROS ANOS
o Curtas-metragens (1974-1978)
o Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980)
o Labirinto de Paixões (1982)
o Maus Hábitos (1983)
o O Que Fiz Eu para Merecer Isto? (1984)
o Trailer para Amantes de lo Prohibido (1985)
o Matador (1986)
o A Lei do Desejo (1987)

CONSAGRAÇÃO INTERNACIONAL
o Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988)
o Átame (1990)
o De Salto Alto (1991)
o Kika (1993)
o A Flor do Meu Segredo (1995)

MATURIDADE ARTÍSTICA
o Carne Trêmula (1997)
o Tudo Sobre Minha Mãe (1999)
o Fale com Ela (2002)
o Má Educação (2004)
o Volver (2006)
o A Vereadora Antropófaga (2009)
o Abraços Partidos (2009)
o A Pele que Habito (2011)
o Os Amantes Passageiros (2013)
o Julieta (2016)

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