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Salvador Massano Cardoso

T
Sons e odores
do passado

Santa Comba Dão


2012
Queria escrever um pequeno prefácio
explicativo das razões desta pequena obra;
depressa cheguei à conclusão que era
perfeitamente dispensável.

Pensei, que cada um faça o seu, eu agradeço,


mesmo que nunca os leia...
a
À sombra do “Templo de Dionísio”

Por vezes, ao ler certas passagens de um livro, vêm-nos à memória


imagens e vivências há muito adormecidas. Foi o que me aconteceu
quando li a belíssima e singular prosa de Teixeira de Pascoaes, “A Bei-
ra (num relâmpago)”. Nesta obra, publicada nos princípios do século
passado, o autor relata uma experiência notável para a época: uma
viagem de automóvel entre Amarante e Arganil. “Cinquenta léguas
percorridas em vinte horas”.

No dia 15 de Agosto de 1915, pelas duas horas da madrugada, o autor


e os seus amigos iniciaram a viagem - alvo de atenção literária. Até
aqui nada de novo, a não ser as vivências e as análises profundas de
quem é portador de uma alma poética.

Eis que, de repente, já depois de terem saído de Viseu, o amarantino


tece curtas considerações sobre Tondela, abrindo-me a esperança de
que falasse, também, de Santa Comba Dão, porque teria, forçosamen-
te, de passar na minha terra. Sobressaltei-me quando o autor começa
o seguinte parágrafo:

“Súbito, abre-se um vale encantador: escaleiras de vinhedos descendo


para o cristal extático do rio. Além, a arte humana quebra-lhe o sonho
verde que se revolta, branqueja, pára, num sono escuro e profundo. É
um pego torvo, contradizendo o alegre humor esmeraldino daquelas
águas. Não há céu sem nuvens...”.
Esta frase ilustra o que o autor deverá ter sentido ao aproximar-se da
ponte sobre o Dão.

Quando havia rio, agora afogado na albufeira, causava-me impressão


como é que o Dão tinha personalidades tão distintas. Ao atravessar

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a ponte, saltava, invariavelmente, de um lado para o outro tentando
compreender o mistério. A montante da ponte, e um pouco afastado
desta, o rio era ternurento, social, amoroso e convidativo a mergu-
lharmos no seu seio. Inspirava confiança, destilava alegria, prometia
traquinices, oferecia prazer e sorria através da superfície azulada. Ao
afunilar, já perto dos arcos da ponte, começava a dar sinais de mau
humor, revelando um temperamento agressivo e preocupante. Nesta
travessia, quando passava para o outro lado, as águas acalmavam-
se e mudavam de cor, ficando verdes escuras como quem denuncia
um abismo que deveria esconder terríveis segredos. Ficava assustado,
não obstante reconhecer uma certa beleza lúgubre. Presumo que esta
parte do rio deveria ser o tal “pego torvo” descrito por Pascoaes, a dita
faceta de um Dão muito misterioso. Em oposição às águas verdes es-
curas do “pego torvo”, as águas de tonalidade verde-esmeralda, e por
vezes azulada, quase que diziam: aqui podes vir, aqui podes desfrutar
o prazer de te banhares e deliciares com as minhas belas ninfas. Do
outro lado, a mensagem era oposta. Imaginava uma prisão de ve-
lhos espíritos celtas agrilhoados às longas escarpas que penetravam
na profundidade do rio para que não invadissem o pequeno paraíso
situado a montante.

“Não há céu sem nuvens...”, dizia o poeta saudosista. Pois não! As nu-
vens ficavam a jusante da ponte e o céu a montante.

Curioso! Ao fim de muitos anos, alguém nascido antes de mim, aca-


bou por me ajudar a interpretar o que sentia e o que via em pequeno.

No entanto, o autor da “Arte de ser português” não fica por aqui. Logo
a seguir podemos ler:

“Santa Comba, apinhada num outeiro marginal, é como um templo


de Dionísio no meio dum arraial de vides: romeiras vestidas de folhas
e cachos de uvas, negras e doiradas. E o delicioso vinho, que o rio
baptiza em nome de espírito, claro, faz-me sede de o conhecer. Mas,
ai, só a nossa imaginação mergulha os lábios quiméricos nesse rubi
translúcido”.

Pois bem Pascoaes: nem sabes o que perdeste! Tiveste que utilizar
a imaginação para mergulhares os “lábios quiméricos” na maciez da

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bebida que seduziu os sentidos de Dionísio. Eu não! Neste momento,
em que acabo de escrever esta despretensiosa crónica, mergulho os
meus lábios num suave rubi translúcido em tua honra, pelo bem que
me fizeste sentir. Que outros possam sentir o mesmo prazer.

À tua memória!

7
b
Afonso “Caporro”

Fui convidado, há algum tempo, para escrever e coordenar um rela-


tório sobre alcoolismo juvenil, um fenómeno complexo e atual com
graves consequências pessoais e sociais. Não obstante o muito que se
diz e o que se faz, e o que já se disse e o que se fez sobre este flagelo,
o que é certo é que continua a atormentar os responsáveis incapazes
de encontrarem soluções eficazes a uma efetiva redução e prevenção.
A adoção de comportamentos tipo "binge drink", por exemplo, com o
objetivo de sentir os efeitos imediatos de uma súbita hiperalcoolemia,
vem reforçar as nossas preocupações.

O fenómeno do alcoolismo é muito antigo e a sua faceta juvenil tam-


bém. Em miúdo comecei a verificar que os bêbados abundavam em
qualquer lugar. Ao fim da manhã e princípio da tarde já eram visíveis
alguns ébrios, antevendo o festival dos fins de tarde e noites.

Quando andava na minha escola primária, numa manhã de inverno


particularmente fria, assisti a uma cena que me marcou muito. Devia
andar na segunda classe. O professor chamou o Afonso, "Caporro" de
apodo, para ir ao quadro. De calções e alpergatas, a tiritar de frio, o
"Caporro" lá se arrastou. O professor ordenou-lhe que montasse uma
conta simples, ainda pegou no giz para tentar escrever algo, mas não
conseguiu. Apoiou-se com o ombro esquerdo no quadro desviando
a face em sentido contrário à secretária. O mestre-escola, baixo, ca-
reca, e meio obeso, saltou com uma agilidade felina, colocando a sua
maldita arma, a tenebrosa régua junto à cara do rapaz insultando-o.
Até aqui nada de novo, o pior foi quando lhe disse: – Mas tu estás bê-
bado! Cheiras a aguardente! E vai daí dá-lhe um valente pontapé no
traseiro. O Afonso nem um “ai” disse. Dobrou-se em dois e acabou por
se estatelar no chão sem conseguir soerguer-se. O professor olhou

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para a turma encolerizado e gritou: – Todos lá para fora! Vão fazer um
intervalo! E fomos mais cedo que o habitual.

Fiquei a saber que o pequeno-almoço do Afonso tinha sido aguar-


dente. Sabia que os mais velhos bebiam copos logo de madrugada
antes de arreigarem ao trabalho, mas crianças não sabia. Era comum,
sempre que íamos a casa de algumas pessoas, beber um "refresco" fei-
to de água, vinho e açúcar. Confesso que não desgostava! Mas aguar-
dente não nos davam.

Muitos anos mais tarde tive de apanhar o comboio, o “rápido” das sete,
para Coimbra. A estação estava apinhada de pessoas, entre os quais
soldados que iam para os quartéis. Era domingo. O comboio chegou
e corri para uma carruagem para ver se conseguia um lugar sentado.
Qual quê! Tive que ir em pé como era habitual. Ainda fui às carrua-
gens da frente, mas nada. Olho pela janela da porta e vejo um soldado
deitado no chão. Agitado, vomitado, totalmente descomposto, con-
vulsivo, como se de um epilético se tratasse, sem ninguém em redor.
Como o comboio tardava em começar a marcha, tive tempo mais
do que suficiente para analisar tão desconfortável situação. Quem se-
ria aquele jovem? Depressa vi que era o Afonso. O Afonso! Bêbado
que nem um cacho, deitado na gare de uma estação. Aquela imagem
colou-se de tal forma na retina que nem reparei que o comboio já ia a
caminho. Durante toda a viagem não pensei noutra coisa. O que é lhe
iria acontecer? Provavelmente não iria durar muitos anos e sabe-se lá
com que sofrimento para si e familiares.

Decénios depois, durante a campanha eleitoral para as autárquicas,


calcorreei várias aldeias e lugarejos do meu concelho. Numa tarde
chamou-me a atenção um senhor aparentando meia-idade, com
pouco cabelo, vestido com um fato escuro, aspeto limpo, mas com
um semblante grave, digno, a fazer lembrar uma personagem tipo
pastor de uma qualquer igreja protestante. Cruzámo-nos. Cumpri-
mentou-me com uma delicada saudação de “boas-tardes”, à qual res-
pondi. Um pouco mais à frente perguntei ao meu amigo de infância
que me acompanhava na campanha: – Olha lá, o que foi feito do
Afonso "Caporro"? Ele vivia por estas bandas. E recordei-me de muitos
episódios do passado. Foi então que ouvi uma gargalhada. – O Afon-
so?! Então ainda agora acabaste de cruzar com ele. – Quem? Aquele

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senhor era o Caporro? Mas ele bebia que nem um desalmado, desde
os bancos da escola! – Pois foi, mas desistiu. Tornou-se, há alguns
anos, numa pessoa respeitável, faz a sua vidinha, tem uma família
composta e nunca mais tocou numa gota de álcool.

Quando acabou de me dizer isto senti uma sensação de felicidade e,


sobretudo, um grande alívio...

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c
Chocalhar o “velho”!

Aproxima-se o fim de ano e, como é habitual, começam a chover


mensagens de desejos de Bom Ano nos telemóveis com os seus ir-
ritantes toques a anunciá-las em catadupa. Fim de ano sem barulho
não é fim de ano. Gritos, música em altos berros, assobios, foguetes,
tiros de garrafas de espumante, cornetas, enfim, ruído e sempre ruído
como que a exorcizar a morte do ano e o nascimento de um novo.

Não sei quantos anos tinha quando me apercebi deste tipo de festi-
vidade, mas recordo-me ter estado de cama, devido a uma daquelas
doenças que atingia a miudagem. Estava em casa da minha avó e
havia alguma azáfama. À noite, deitado na cama, ouvia a ribeira a con-
torcer-se de dores porque, quando chegava aos Aldrogãos, tinha que
contornar algumas pedras e furar debaixo de uma velha passagem de
pedra. Pelo tipo de barulho conseguia calcular o caudal que, consoan-
te aumentava ou diminuía, se transformava em múltiplos cantos. Os
daquela noite eram sugestivos de um caudal já apreciável, dado que
chovera nos dias anteriores. Sabia, também, que o frio ondulava lá fora
entre a ribeira e o céu estrelado. Enquanto as ramagens do arvoredo
se esfregavam umas nas outras, na esperança de se aquecerem, eu
pensava que coisa era essa de acabar um ano e começar outro. A mi-
nha mãe, sentada na beira da cama, dava os últimos retoques numa
camisola que deveria vestir no dia seguinte. Perguntei-lhe se a mu-
dança de ano era feita sempre de noite e com tempo frio. Respondeu-
me que sim, o fim de ano ocorre no inverno, por isso é frio, e de noite,
porque o começo de um novo dia inicia-se sempre à meia-noite. – E
há sempre festa? – Há! Com mais ou menos arraial e com mais ou
menos comezaina. Pensei durante um bocado. Depois, com a maior
naturalidade, perguntei-lhe se não poderiam alterar a mudança do
ano para o verão, para o meio-dia, assim as crianças podiam participar

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nos festejos. Olhou-me com ar meio surpreendida, abanando a cabe-
ça ao jeito típico dos adultos quando ouvem disparates infantis.

Há decénios que eu não sei onde para o chocalho. Se o tivesse à mão


aproveitaria para chocalhar o “velho”. Não o tendo vou fechar os olhos
e regressar à primeira noite em que me disseram que os anos também
morrem e nascem, ouvindo o meu chocalho.

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d
“Criacionismo”…

“Tenho quase um dia de idade. Cheguei ontem. Pelo menos,


é isso que penso. E com certeza que deve ser assim, porque
se antes de ontem tivesse havido dia eu recordar-me-ia, ou
então é porque não estive presente.”
(O Diário de Adão e Eva – Mark Twain)

Não deixa de ser preocupante o movimento que se está a criar em


redor da proibição do ensino da teoria da evolução, caso esta não seja
ensinada em concordância com o criacionismo bíblico. Nos Estados
Unidos, alguns estados já conseguiram este desiderato e, no estado
do Kansas, foram mesmo eliminadas todas as menções às teorias de
Darwin e do Big Bang. Bom, podíamos afirmar, são coisas do outro
lado do Atlântico. Na Europa, há tempos, a ministra da Educação da
Sérvia ordenou que o ensino da teoria da evolução só poderia ser
abordado se, entretanto, também fosse descrita a história da vida se-
gundo a Bíblia. Eu pensava que os europeus estavam imunes a vírus
dogmáticos. Não querendo analisar aspetos de pormenor da teoria
elaborada por tão eminente cientista, não há muitas dúvidas acerca
da sua importância e valor. As teorias são elaboradas para explicar os
fenómenos, aguardando serenamente a sua substituição por outras,
sempre que se justifique. É assim que a ciência evolui e ainda bem.
Dogmas?! Nem pensar!

Esta notícia fez-me recordar a minha primeira classe. No ano de 1957,


alguns dias após o 7 de outubro (na altura as aulas começavam sem-
pre no mesmo dia), iniciei as minhas lições de catecismo. Lembro-me
perfeitamente daquela manhã soalheira, sentado com os restantes
alunos no chão do gabinete do professor. O padre Sobral, mais co-
nhecido por padre Rodelas – devido à tonsura perfeita do tamanho

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generoso de uma moeda de prata de dez escudos, a qual sobressaía
numa frondosa cabeleira – pachorrentamente, e com uma simpatia
que nunca mais se esquece, começou a descrever a criação do Mun-
do. Aceitei todas as explicações dadas, mas quando chegou ao dia da
criação do Homem fiquei incomodado. Primeiro, segundo o padre,
Deus criou o Adão, depois tirou-lhe uma costela e fez a Eva. Aqui,
lembro-me de o ter questionado por que é que Deus fez sofrer o ho-
mem arrancando-lhe a costela! Disse-me que estava a dormir e não
tinha sentido nada. Fiquei desconfiado. Depois ensinou-nos que Adão
e Eva tiveram filhos e que, por isso, éramos todos irmãos. Lembro-me,
mais uma vez, de lhe perguntar como era possível uma coisa dessas.
Então os irmãos casavam-se uns com os outros? Irmãos com irmãs?
Pai com filhas e mãe com filhos? Fiquei triste e muito preocupado.
Não podia aceitar uma coisa dessas. Então – na altura não conhecia a
palavra promiscuidade, mas agora interpreto como tal – sendo Deus
tão poderoso não podia ter criado mais pessoas, diferentes, homens
e mulheres de forma a evitar uma situação daquelas? Não consigo
lembrar-me das explicações que deu, mas nenhuma me convenceu.
Tinha apenas seis anos e foi a primeira vez que tive consciência de
não aceitar uma explicação de um adulto. Contestei-a e fui para casa
muito perturbado. Agora, meio século depois, com tanto saber acu-
mulado pelos homens, ter de ler estas coisas é de bradar aos céus.
Penso que nem Deus aceitaria uma proposta destas…

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e
Cristo

Ainda hoje recordo com nostalgia os momentos das férias, que aspi-
rava ansiosamente, não para descansar, porque energia era coisa que
não faltava na altura, mas para desfrutar mais à vontade as brincadei-
ras e as festividades que os embrulhavam. Quantas recordações des-
ses tempos me acariciam o pensamento. Mas não se pense que não
tinha de dar, também, o meu contributo para as festividades. Dava, e
com muito gosto. Nessas alturas, a turbulência infantil desligava-se,
momentaneamente, quando era encarregado de limpar com cuidado
um Cristo de marfim, que vinha do antigamente. Limpar o Cristo não
era a mesma coisa que limpar as pratas com o “coração limpa metais”.
Tinha que ser feito com o coração e o máximo de respeito. A minha
avó, na altura da Páscoa, encarregava-me dessa tarefa. Em primei-
ro lugar retirava o pó, e, depois, com um pano embebido em água
dava-lhe o tradicional banho, olhando sempre para a face, tentando
observar se não estaria a incomodá-lo, porque quando me esfrega-
vam a fuça, faltava-me sempre o ar, e eu não queria problemas. O
olhar do Cristo era forte, não revelava propriamente sofrimento, mas
intimidava, impunha respeito, era como se fosse um rei e era bonito.
Ao longo dos braços compridos viam-se as veias, coisa que eu nunca
tinha visto em mais nenhum, e imaginava o sangue a correr. Também
não tinha as chagas, o marfim é duro. Por mais voltas que lhe desse
não conseguia retirar aquele amarelo, nalguns pontos a descair para
o torrado, mas, apesar de tudo, ficava com outro aspeto, sobretudo
quando o expunha ao sol a” secar”. O amarelo, que parecia ser sujida-
de, passava a brilhar de forma dourada a responder ao sol na mesma
moeda. No domingo de Páscoa ficava na mesa, no meio da sala, ro-
deado de tudo quanto era bom, à espera do compasso. Aos pés, numa
salva de prata, um envelope com dinheiro. Quando ouvíamos a sineta
a avisar a chegada, corríamos para a sala. Entrava o puto a ribombar

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o sino, e a repetir a ladainha da ocasião, acompanhado pelos demais.
Será que este ano alguém irá reparar no Cristo e dizer ao menos que é
bonito? Era a pergunta que colocava sempre, porque o Cristo que nos
davam a beijar era frio, de metal, uma imitação que não chegava aos
calcanhares do “meu”. Mas não, nunca disseram nada. O homem da
pasta de cabedal só se preocupava com duas coisas, recolher o enve-
lope e enfiar mais um copo a tantos outros, a ponto de não dizer coisa
com coisa, nem olhava para o Cristo, e mesmo se olhasse devia vê-lo
a duplicar ou a triplicar e muito embaciado; os outros despachavam-
se fazendo deslocar o metal debaixo dos nossos olhos e bocas, mas
mesmo assim ainda tinha tempo para ver que não tinha a categoria
do rei da mesa. Esse sim é que merecia ser beijado. O padre, blá, blá,
blá, corado, testa cheia de suor, espalhava a água benta por cima dos
bolos e guloseimas sem se aperceber do Cristo de marfim, com enfa-
do e desejoso de se ir embora. O pessoal acompanhante aproveitava
o momento para enfardar novamente as suas panças de gula pascal, e
eu ficava, mais uma vez, aborrecido por ninguém ter dito nada sobre
o Cristo. No final do dia, colocava-o no seu poiso, a aguardar a Pás-
coa seguinte. A vida roda e nunca mais soube dele. Acontece que há
algumas semanas vi-o em casa de um familiar. Foi o suficiente para
recordar numa fração de segundos tantos episódios. Não o cobicei,
mas uma sensação de vazio foi-se construindo dentro de mim, sem
me aperceber, até que, por uma mera casualidade, acabou por cair
em minhas mãos, preenchendo esse espaço repleto de lembranças
prontas a serem vividas. Está mais escuro, sujo, até mais magro e um
pouco triste, embora não tenha perdido aquele ar de rei, de senhor, e
continua detentor de uma beleza que as imitações não conseguem
atingir, as próprias veias dos seus longos braços deixam transparecer o
sangue a circular; é quente, não é frio, mas está a precisar de um bom
banho, tomara, há decénios que ninguém o limpa como eu fazia. Sei
que não é Páscoa, estamos no Natal, mas é um bom momento para
o fazer. Daqui a uns dias já deverá estar mais composto, com outro
aspeto, mais alegre e, decerto, mortinho para reviver alguns episódios,
meus, porque com a idade que tem quantas e quantas histórias não
ficaram por contar...

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f
Do “De Profundis” ao Pinóquio....

Fim de uma tarde de verão. A luminosidade atenua-se no encanto da


penumbra anunciada. O azul do céu despede-se ligeiramente cora-
do de vergonha, transpondo-me através de uma atmosfera límpida
acossada por uma brisa fresca. A lua, repleta de satisfação, anuncia a
chegada da plenitude, desferindo brilhos arrogantes, ao mesmo tem-
po que desliza com graciosidade ascendente. As flores dos canteiros
suspensos absorvem as gotas da água da ribeira, enfeitando o espaço
envolvente onde se respira liberdade. Entretenho-me a escrever estas
linhas, enquanto o “De Profundis”, de Óscar Wilde, poisa, aberto, no
meu regaço, oferecendo belos e profundos pensamentos eivados de
dor, de sofrimento, de alegria, de múltiplos sentimentos e de espe-
rança, em suma, pura poesia. Leio nessas páginas uma pequena pas-
sagem que só um génio sensível é capaz de oferecer ao seu irmão:
“Posso ser perfeitamente feliz sozinho. Com liberdade, flores, livros
e a lua quem não poderia ser perfeitamente feliz?”. Wilde escreveu
esta obra quando esteve preso. Não vislumbro que pudesse acariciar
quaisquer flores e, às tantas, poucos seriam os livros que teria à sua
disposição. Quanto à lua, decerto que lha entaiparam.

Se não tivesse sido preso nunca poderia apreciar esta preciosidade,


pode mesmo dizer-se que a infelicidade do autor passou a ser fonte
de felicidade de muitos. Livro, o guardião da alma humana.

Adoro livros, desde sempre, mesmo antes de saber o significado das


palavras. O meu primeiro livro surgiu num momento bem definido.
Um dia levaram-me ao enfermeiro “Pedrinho”, de voz tonitruante, ve-
lho, o “faz-tudo” que aplacava, tratava e ajudava os sofredores do local.
As anginas atacavam-me e, na altura, o medo do garrotilho era uma
constante. Assustei-me com o espaço por cima da padaria, tudo bran-

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co, até o cabelo do “Pedrinho”. A noite já tinha caído naquele inverno.
Olhou para mim e viu que devia estar assustado como um coelho à
vista de um furão. Apertava as mãos protetoras nas minhas. – Olha lá
meu rapaz, eu vou pintar a tua garganta com esta tinta. E mostrou-
me uma zaragatoa com algodão na ponta que era branco mas que de
repente ficou escuro com o líquido com que o embebeu. Empunhou
o instrumento de tortura com uma das mãos e com a outra mostrou-
me um livro com figuras. – Conheces a história do Pinóquio? – Pinó-
quio?! Quem é? Respondi cheio de medo. – Ah! Não sabes! É a histó-
ria de um boneco de madeira que... E à medida que me ia contando a
história, pediu-me para abrir a boca na qual começou a escarafunchar
à vontade e repetidamente. Causou-me vómitos e uma sensação de
sabor terrível que demorou muito tempo a passar. Mas aguentei tudo,
porque estava anestesiado pela história, a primeira vez que a ouvi. No
fim do tormento, já conhecia a história que me encantou sobrema-
neira, ao mesmo tempo que ia sendo atacado por um desejo louco
de querer ficar com o livro com as belas imagens do Pinóquio, do seu
pai e do grilo. Mas o livro era do senhor! Mesmo assim, passou-me
pela ideia que o livro deveria ser uma coisa cheia de magia, capaz de
contar histórias. Na altura, não tinha a ideia do que era um livro e que
pudesse ter sido feito por alguém. Não! Julgava que o livro é que tinha
criado as palavras, as figuras coloridas e a história! Foi esta a primeira
impressão consciente da existência de um livro. Ao sair ouvi o “Pedri-
nho”: – Se disseres a verdade e o teu nariz não crescer eu dou-te o
livro! Doeu-te alguma coisa quando te pincelei a garganta? Foi então
que, preventivamente, coloquei a mão no nariz e pressionei-o com
força e disse: – Não senhor! – Hum! Então toma lá! Fiquei radiante
de felicidade e quis sair imediatamente do consultório, sempre com
a mão a tapar o nariz, até chegar a casa que ficava a escassos cem
metros. Assim que chegámos, perguntei: – O meu nariz está muito
comprido? Olharam, olharam e disseram: – Um pouco, mas não se
nota muito. Amanhã já deverá estar normal! Um alívio.

Senti pela primeira vez a sensação de ser a pessoa mais feliz do mun-
do, tinha um livro, mesmo sem conhecer as letras. Nem o amargo da
mistela, que ainda pairava nas minhas goelas, foi suficiente para des-
truir aquele momento que se tem repetido incessantemente desde
aquele dia até hoje.

E nunca mais precisei de pôr a mão no nariz...

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g
"E o sol ficou feliz"!

Hoje tenho de dar por terminada uma história que comecei a escre-
ver há três anos a propósito de uma "fotografia". Na altura pensei que
ela iria ser entregue ao José Luís, que sofre de grave perturbação visu-
al, está quase cego, e nunca viu a mãe, nem em fotografia, mas não,
por um conjunto de vicissitudes, não foi possível. Por causalidade, a
prima, que tinha conseguido uma ampliação da única fotografia que
havia em casa, foi apresentada a uma senhora acompanhada de uma
menina de sete anos. – Sabes quem são, perguntou-lhe a madrinha, –
não, não sei, – são tuas primas, – primas, sim - a filha e a neta do José
Luís. Ficou de boca aberta, perguntando, onde é que ele está, onde é
que ele está, quero vê-lo e entregar-lhe uma coisa. Disseram-lhe onde
estava e, passado pouco tempo, o primo viu pela primeira vez a ima-
gem da mãe, sessenta e sete anos depois de ter entrado neste mundo.
Testemunharam o facto a neta e a bisneta que também passaram a
conhecê-la.

Antes de dizer o que aconteceu neste encontro, o melhor é transcre-


ver o que então escrevi...

A fotografia...

Não sendo determinista, nem fatalista, reconheço que muitas pes-


soas nascem e vivem sem sorte. Há dias, a minha mulher mostrou-
me uma fotografia de uma senhora empunhando orgulhosamente
um bebé. Via-se que era uma reprodução de uma foto com mais de
meio século. Senhora trigueira, mas bonita, com cabelos ondulados à
época, segurando uma criança de poucos meses, ricamente vestida,

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provavelmente tirada no dia do batizado. A foto conseguiu captar um
momento mágico em que o olhar da mãe, cheio de amor, de cari-
nho e de alegria captava a atenção de um petiz com um olhar meio-
esbugalhado. Perguntou-me: – Sabes quem é? – Não. Respondi. É
a minha tia Ilda. – E a pequena? Não é uma rapariga! É um rapaz, o
meu primo José Luís. Subitamente fiz uma revisão sobre o assunto.
A senhora tinha falecido muito nova, há uns sessenta anos, durante a
segunda gravidez. A história familiar revela que não foi bafejada pela
sorte e muito menos pela felicidade, a que não foram alheios os maus
tratos. O pai refez a vida, mas, incompatibilizado com os familiares,
impediu qualquer relacionamento do miúdo com os seus parentes
mais chegados. Quer o pai, quer a madrasta, nunca revelaram afetos
por uma criança com grave problema de visão, traduzido no uso de
óculos com as lentes mais grossas que já vi em toda a vida. Quando
era miúdo cheguei a conviver com ele, apesar de ser “muito” mais
velho do que eu. A memória que guardo dele é de um jovem muito
triste, que falava baixinho e que andava sempre cabisbaixo, isolando-
se de tudo e de todos. Não conhecia o seu passado, nem nada da
sua família. Gostava muito de jogar dominó e ping-pong com ele, à
noite, na Casa do Povo, porque era um dos poucos a quem conseguia
ganhar, facto a que não devia ser estranho a sua péssima visão, já que
não era uma grande espingarda no uso das raquetes. Ao fim de alguns
anos deixei de o ver. Saiu da vila na companhia do pai, da madrasta e
do meio-irmão. Sei que se casou e que vive para as bandas de Tábua
numa pequena aldeola. Nunca houve qualquer aproximação com os
familiares da mãe, apesar de alguns esforços nesse sentido. Mágoas
antigas aliadas à privação já denunciada deverão explicar a situação.
Enquanto congeminava nestes factos, a minha mulher explicava-me
que a madrinha lhe tinha perguntado se não teria uma foto da tia Ilda.
É que um grande amigo, o Só, pediu-lhe se não arranjaria uma foto,
porque o Zé Luís tem uma grande mágoa em não ter conhecido a
mãe, nem através de uma fotografia! Este lamento levou-a à procura
de uma foto. A única que encontrou em casa foi tirada há mais de 60
anos em Nova Lisboa, na altura do batizado. Fotografia pequena, mas
que, graças às técnicas de computorização, aumentou substancial-
mente de tamanho, sem perder qualidade, facto que irá permitir ser
melhor observada por quem está praticamente quase cego. Ao fim
de mais de sessenta anos o filho vai ver pela primeira vez a mãe, num
momento íntimo, em que os dois olhavam um para o outro. Estou

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convicto que deverá ser a maior alegria da sua vida, porque poderá ver
a mãe a acarinhá-lo e a dar-lhe amor. Amor que nunca sentiu, mas
que agora vai ver pela primeira vez, antes que a escuridão chegue...

(4 de Julho de 2009)

Numa tarde de inverno, transparente e iluminada pelo sol radioso, algo


difícil de escrever e de transmitir ocorreu debaixo de uma oliveira cen-
tenária. Um choro convulsivo, acompanhado de um doce afagar de
uma cópia ampliada, libertou ondas de ternura até às profundidades
do universo. Um momento singular; um desejo realizado; um sinal de
nobreza obriga-nos a pensar que ainda vale a pena acreditar na hu-
manidade. Entretanto, nas terras quentes do planalto angolano, numa
campa desconhecida e abandonada, flores de uma beleza impossíveis
de visualizar cobriram os restos mortais de uma alma angustiada e
sofredora. Agora já pode voar alegre e livremente. O seu receio de
que cegasse sem a conhecer atormentava-a. Agora não, está em paz.

– Ainda me viu.

– Consegui ver a minha mãe pela primeira vez!

E o sol ficou feliz.

23
h
“É proibido entrar bêbado.
Sair pode”

Hoje, o dia de campanha foi muito complicado devido à chuva, ao


vento e a um cansaço de morte. Feitas as contas, para mal dos meus
pecados, já devo ter palmilhado tantos quilómetros como os peregri-
nos que vão a pé a Fátima. Mas há sempre algumas compensações.
De manhã, pelas nove horas, fomos à feira semanal. Como chovia que
Deus a dava, tive que me abrigar debaixo de uma tenda de comes e
bebes. Fiquei ao lado de um assador. O técnico que estava a operar,
velho conhecido, olhou para mim enquanto eu olhava para pequenas
e amareladas sardinhas. O safado sorriu e disse: – Vai uma sardinha?
Provavelmente disse isso na expectativa de que eu recusasse partici-
par neste tradicional mata-bicho. Respondi-lhe: – Só uma? – Mas quer
mesmo? – Quero pois! Peguei nos saborosos bichos e para escândalo
dos restantes membros da comitiva deliciei-me como há muito não
fazia, comer sardinhas assadas, mas das pequeninas, saborosas, logo
pela manhã. Só não bebi um copito, embora estivesse tentado a fazer,
por medo de algum efeito menos positivo. É que o dia tinha acabado
de começar e não sabia o que poderia encontrar ao longo da jornada.

A meio da tarde, num pequeno povoado, entramos numa tasca. Re-


cuei cinquenta anos. Alguns beberam água e outros tentaram-se por
um copo de tinto, embora já tivessem apreciado a gentileza de alguns
eleitores que, assim que eram abordados nas suas habitações, os en-
fiavam de imediato nas suas adegas, colocando de lado a propaganda.
Voltando à tasca – cheia de matéria para escrever coisas interessantes
–, não resisti a tirar uma fotografia a uma placa onde se podia ler: “É
proibido entrar bêbado. Sair pode”.

25
Perguntei ao taberneiro, que fazia jus à sua profissão, se era verdade
que saíam mesmo bêbados. Respondeu-me que sim e muitas vezes
até já entravam nesse estado.

Passado algum tempo, vi ao fundo de uma estreita vereda uma se-


nhora de meia-idade avançada, com traços de ter sido muito loura
e portadora de belos olhos azuis – naquelas bandas é comum este
fenótipo a lembrar, muito provavelmente, a passagem dos soldados
de Massena há duzentos anos. Éramos um grupo jeitoso. Como eu
ia à frente, um pouco destacado, acabei por ser o primeiro a cruzar
com a senhora. Para e, ao olhar para mim com aqueles desafiantes
olhos, dispara: – Vocês não fazem barulho nenhum! Caramba! Não
fazem barulho! Parecem mesmo uns castrados! Os outros chegam
aqui e fazem um barulho dos diabos. Eu fiquei de boca aberta perante
a forma maliciosa com que disse aquilo e interpretei como um voto
mais do que garantido. Ainda lhe respondi que era do cansaço, e até
estive tentado a dizer que podia ser mais qualquer coisita... Não disse,
porque ainda tínhamos que ir confraternizar a seguir com uma dúzia
e meia de eleitores do povoado, num pequeno largo, saboreando uns
nacos de boroa e carne de porco, sempre acompanhados pela músi-
ca de Quim Barreiros e do Rouxinol Faduncho cujas letras já comecei
a decorar. E que letras...

26
i
Falta de homem!

A ingenuidade é uma constante que afeta muitas pessoas. Por vezes


fico surpreendido com as interpretações a propósito de algumas do-
enças ou sintomas.

Há tempos, uma senhora que sofre de disfunção comportamental,


nada de grave, acabou por me sugerir que as suas queixas poderiam
ser devidas a falta de relações sexuais! Não estava à espera, nem me
deu tempo para comentar, adiantando que a atividade sexual, estando
“associada” a certas hormonas, acabaria por estimular estas últimas; já
tinha lido sobre o assunto! Os seus sintomas poderiam ser explicados
desta forma, rematando que, mesmo que fosse o seu caso, não iria
procurá-las, uma opção que iria manter. Mais tarde verifiquei que não
era bem assim, mas essa é outra história. Pessoa com nível cultural
superior, e com filhos já crescidos, saiu da consulta convicta do que
acabava de dizer.

Este episódio fez-me recuar muitos anos, quando uma senhora negra,
na casa dos trinta e poucos anos, me consultou por causa de dores
na coluna. As queixas eram sérias e levou-me a questioná-la sobre a
atividade profissional. Confessou que andava a colher ramagens de
eucaliptos para serem usadas numa destiladora para obter óleo. Claro
que não foi difícil estabelecer um nexo de causalidade entre a ativida-
de profissional, longas horas dobrada, e as queixas. Mas antes que eu
lhe explicasse as razões das dores, adiantou a seguinte pergunta: – O
senhor doutor acha que é falta de homem? – O quê?! Falta de ho-
mem?! Fiquei de boca aberta, porque a forma humilde e sincera com
que a senhora fez a pergunta tocou-me sobremaneira. Respondi-lhe
que não, mas ao mesmo tempo, curioso, perguntei-lhe a razão de
ser de tamanha preocupação. Disse que foram as colegas que lhe

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explicaram que as dores nas costas eram devidas a falta de homem.
A senhora, de tão simples que era, deverá ter sido alvo de chacota
por parte das colegas. Mas a forma como me interpelou e aceitou as
minhas explicações tiveram o seu quê de emocionante. Mediquei-a
de acordo com a situação e temi que, se não melhorasse, as soluções
das colegas poderiam levar a melhor.

Passado uns dias cruzei-me com um trator que rebocava um atrelado


cheio de ramagens de eucalipto com várias mulheres em cima, todas
na galhofa. A minha doente acenou-me toda satisfeita e pela expres-
são era visível que estava bastante melhor…

28
j
"Labor Omnia Vincit"

– Então, não vens? A voz inconfundível do meu amigo provocou-me


um baque. Olho para o relógio e vejo que ainda faltavam quarenta e
cinco minutos para o evento. Recordei-lhe o facto, mas justificou-se
com a missa, tinha acabado mais cedo! Atrapalhado, larguei pratica-
mente o que estava a fazer e corri o mais depressa possível para o
local. Senti um forte embaraço, porque estavam todos à minha espe-
ra para a cerimónia. Tentei desculpar-me, não em demasia, para não
desrespeitar as pessoas presentes, interrogando-me, como foi possível
acontecer uma coisa destas, a mim, um obsessivo no cumprimento
dos horários? Aconteceu. Pedi desculpa aos presentes, família Moura
e autoridades. De seguida, após uma pequena celebração religiosa, foi
descerrada uma lápide comemorativa dos cinquenta anos da empre-
sa FAVIR. Recordo muito bem a sua fundação. Atualmente constitui
uma força e exemplo de atividade empresarial que muito honra os
seus administradores e o concelho. No contexto de depressão econó-
mica em que vivemos, ver uma empresa a crescer, segura e a exportar
constitui um sinal de esperança que merece destaque.

Voltando atrás, recordo a sua criação. Passava diariamente junto da


Fornecedora dos Sr. Moura e do Sr. Costa quando ia para a escola.
Com o tempo, e não foi preciso muito, os miúdos da época acabaram
por aprender a respeitar as individualidades que marcavam o quoti-
diano de então, numa altura em que o "respeitinho era muito bonito".

O apelido Moura, para a geração menos nova, de que já faço parte, é


símbolo de prestígio, sinónimo de trabalho e marca de sucesso que,
felizmente, ainda paira entre nós, graças aos continuadores, filhos e
netos.

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Hoje, no decurso das festividades, fui obrigado a conversar comigo
próprio. Lembrei-me do senhor Moura, não é que tenha privado inti-
mamente com o senhor, na altura era um mero catraio, mas conheci-
o e retenho alguns episódios. Vou relatar apenas três. O primeiro tem
que ver com o atrevimento da canalhada de então que, quando ia para
a escola, entrava na Fornecedora para pedir amendoins. Eu também
ia. Uma das vezes foi o próprio que me questionou o que eu queria,
não estava à espera. Comecei a tremer e, de cabeça baixa, disse que
era por causa dos amendoins. Hum! – E onde é que os levas? Meti as
mãos nos bolsos dos calções, como quem diz, aqui. Aí não levas gran-
de coisa. Dá cá o boné. Atrapalhado, sem saber para que é quereria o
boné, entreguei-lho. Passado pouco tempo apareceu com ele cheio
de amendoins, cujo fabuloso odor precedeu a entrega. Fiquei com os
olhos arregalados e agradeci como pude e sabia tão generoso gesto.

Num segundo episódio testemunhei a sua vertente dura. Ao descer


a ladeira, num carro de rodados, eu e um outro colega, aproveitando
a excelente inclinação, passámos à velocidade da luz em frente da
porta. Provavelmente, o barulho dos rodados deverá tê-lo chamado a
atenção e, quando viu que íamos entrar na estrada nacional, ralhou-
nos com tal determinação que nunca mais repetimos tamanha fa-
çanha. Fiquei muito envergonhado e, também, com medo de nunca
mais ter acesso a amendoins tão saborosos.

No terceiro episódio foi eu que me zanguei com o Sr. Moura, mas


nunca soube. Na altura, depois das aulas queríamos jogar à bola, mas
o professor não permitia que continuássemos a utilizar o recreio da
escola. Mas não havia problema, porque precisamente ao lado, do ou-
tro lado da estrada, havia um espaço ótimo para esse efeito. Um dia
a Fornecedora expandiu a sua superfície acabando por ocupá-lo. Um
aborrecimento! E agora? Onde encontrar um espaço semelhante que
permitisse aos miúdos continuar a jogar como se fosse na escola?
Não havia. Fiquei zangado. Passado algum tempo, quando a constru-
ção estava concluída, colocaram um painel de azulejos no topo. Olhei
e vi que as palavras estavam “erradas”. Onde é que já se viu uma pa-
lavra com um "m" seguido de um "n" e uma outra com um "t" no fim?
Estão erradas. Copiei-as para a lousa e quis provar, em casa, os erros.
Foi então que me disseram que não era erro nenhum, eram palavras
em latim. – Latim? Como da missa que ninguém entende? – Sim. É

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uma frase em latim. – E o que é significa? – Significa, "O trabalho ven-
ce tudo". No dia seguinte voltei a olhar para a minha primeira locução
latina, "Labor Omnia Vincit". Achei-a tão bela, tão simples e tão rica
que me apaixonei por ela, adotei-a, instintivamente, como o lema da
minha vida e, até hoje, não me arrependo. Afinal, a minha zanga, por
ter tirado o segundo recreio, foi compensada como uma das mais
elegantes expressões que está na base do sucesso das pessoas e das
sociedades. Passo amiúde por aquelas bandas, muitas vezes só para
voltar a ler "Labor Omnia Vincit"...

Três lições de um homem, generosidade, autoridade e sapiência. Eu


agradeço as três, passados cinquenta anos.

31
jk
Lembranças...

Uma parábola hassídica diz-nos que Deus criou o homem para que
contasse histórias. “Esta narração de histórias é a própria condição do
nosso ser. A alternativa seria a inércia total ou o eclipse do nosso ser”.
Por este motivo, passo a contar uma história.

Recordo que era muito miúdo e fazia um calor diabólico. Em casa dos
meus avós procurava a escadaria em madeira da entrada por ser a
zona mais fresca, contribuindo para o efeito uma brisa produzida por
uma pequena janela situada no topo que, assim, protestava contra o
calor que entrava pela porta. Fosse verão ou inverno a porta estava
sempre entreaberta de manhã à noite, porque dava, também, serven-
tia a um escritório. Naquela tarde, estava, mais uma vez, proibido de
sair à rua por causa do calor que se fazia sentir. O medo da exposição
ao sol era uma constante, talvez porque lhe atribuíssem muitas doen-
ças que afetavam as meninges dos miúdos. Mas não estive sozinho:
uma jovem familiar, mais uma amiga, sentadas num degrau a meio
das escadas, conversavam e riam-se alegremente a lerem cartas. As
gargalhadas eram diferentes das habituais, brilhavam, faiscavam e
fascinavam, porque nunca tinha ouvido nada semelhante, até então.
Com o meu carrinho de linhas, movido pela força de um elástico que
prendia de um lado num bocado de sabão e no outro a um fósforo já
usado, e que colocava no vale do longo corrimão de madeira, como
se fosse uma pista, descia a correr os degraus para depois esperar
pela chegada do meu veículo. Sempre que passava pelas duas, a toda
a velocidade, perturbava-as, interrompia a conversa e era repreendi-
do devido ao perigo de queda iminente. Numa das vertiginosas des-
cidas, parei e, atrevidamente, perguntei porque estavam tão felizes.
Responderam-me que eu era pequeno demais e não compreendia.
Era pequeno, de facto, mas apercebi-me que se tratava de namoros.

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Curioso, fingindo que não dava qualquer atenção ao alegre colóquio,
confirmei que afinal se tratava daquilo a que mais tarde vim a conhe-
cer como “anda moiro na costa”. E andava mesmo!

Aquela tarde produziu algumas lembranças; caso da coloração ama-


relada esbranquiçada, mas muito brilhante, que entrava pela porta, em
perfeito contraste com a penumbra da escadaria, e as pedras da cal-
çada que tremiam incessantemente, denunciando uma temperatura
capaz de fazer saltar as solas naturais dos “pés descalços”, que na altura
abundavam. Este quadro estival, excecional, ficou para sempre ligado
à frescura, à alegria de duas moças, aos seus risos comprometedores
e a uma perspetiva de felicidade futura.

Muitos anos mais tarde, a minha familiar, a tal que usava naquela tar-
de de verão uma saia branca e salpicada de pequenas pintas verme-
lhas, tão ao costume dos anos cinquenta, foi confrontada com um
tumor da mama. Como jovem médico vivi aquele dramático período.
O sorriso mantinha-se, mas era triste, revelando ansiedade quanto ao
futuro. Foi operada e pediu-me para assistir. Assim o fiz, talvez porque
lhe propiciasse algum conforto, mais do que isso seria impossível. Na
altura, em pleno bloco operatório, o meu velho professor de cirur-
gia, homem de poucas falas e de trato difícil, depois de ter o campo
preparado, empunhou o bisturi, olhou para mim e questionou-me: –
Dá-me licença que comece? Surpreso, perante este ritual a que não
estava habituado, senti como que estivesse irmanado aos tecidos que
iriam ser alvo daquele instrumento. Acenei com a cabeça, ao mesmo
tempo que balbuciava qualquer coisa como: – Com certeza, Senhor
professor! No final embrulhou a peça em gaze e pediu-me: – Não se
importa de a levar ao Instituto de Anatomia Patológica? Ao mesmo
tempo que fez o pedido, colocou-me a mama nas mãos, sentindo
um estranho calor. Um calor violentamente extirpado da sua fonte
original. Vesti-me, acondicionei a peça num saco de plástico e dirigi-
me ao instituto, onde, um outro professor a recebeu e começou a
analisar. – Já não é pequeno, mas está bem encapsulado. Amanhã,
já sabemos como estão os gânglios. No dia seguinte, lá estava para
receber a notícia, afinal, estavam todos íntegros. Foi um alívio que
rapidamente lhe transmiti. O seu sorriso ansioso transformou-se, su-
bitamente, num novo sorriso. Um sorriso de esperança!

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Ao fim de muitos anos a “boa morte” apanhou-a, subitamente, numa
linda manhã primaveril. Deitada à minha frente, com a cara tapada por
um singelo lenço de seda, observava as pessoas que o retiravam para
dar uma última olhadela. Não o fiz. Nunca faço a ninguém. Recuso.
Não porque tenha qualquer dificuldade em lidar com a morte, mas
porque prefiro saborear momentos da vida. A visão da máscara da
morte não me serve para nada e não quero que ofusque as minhas
lembranças, porque a vida resume-se a um sucedâneo de pequenas
lembranças, lembranças que se alimentam da vida, à espera de nós
próprios nos transformarmos em meras e transitórias lembranças...

Consigo lembrar-me de uma tarde estival, há muitas décadas atrás,


em que ouvi pela primeira vez gargalhadas de felicidade a desafiar o
futuro e, mais tarde, sorrisos de esperança num futuro incerto.

Parafraseando um velho amigo: “É realmente a memória, que torna


aqueles que nela ficaram gravados, imortais”...

35
l
"Oásis"

A rotina dos sábados sofre, de tempos a tempos, alguns estremeções,


por vezes violentos e que me levam a ruminar velhos acontecimentos
ou a despertar para novos achados.

O sol estava muito bem-disposto e convidou-me a sentar na espla-


nada, oferecendo os seus deliciosos raios que bem se esforçaram por
me aquecer. Peguei no jornal e comecei a navegar pelas páginas, mais
à procura de algo que me interessasse do que preocupado com as
habituais e esperadas notícias. Quando cheguei vi apenas um velho
amigo sentado. – Bom dia, Manel. – Bom dia. Sentei-me virado para a
ribeira. Passado algum tempo ouvi, nas minhas costas, uma pequena
conversa. Alguém falava com o Manel. – Morreu o Arlindo. – O Arlin-
do? Qual Arlindo? – O que tinha o café. Sobressaltei-me, fechei o jor-
nal e pus-me a pensar nos "Arlindos" da terra. Será que é o Arlindo do
Oásis? Virei-me e disparei, qual Arlindo? – O Arlindo que tinha o café
junto do rio, o do Oásis. – Não me diga. – Trabalhava em Aveiro. – Eu
sei, há muitos anos que não o vejo, muitos mesmo. – O funeral foi
ontem. – Que idade é que ele tinha? – Setenta e quatro. – Pois deve
ser isso deve. Continuámos a esticar a conversa, como é típico destes
casos, enquanto refazia mentalmente todo um percurso da adoles-
cência durante o qual o meu amigo me marcou de forma particular.
Tinha um café na estação, onde ia ver a televisão em miúdo. Foi nesse
café que aprendi a jogar bilhar, era um exímio jogador e ninguém
conseguia derrotá-lo, a ponto de ele jogar sempre às três tabelas e
os adversários bilhar simples. Ensinou-me muitos truques e técnicas.
Adorava jogar com ele. Dava-me muitas vezes vinte tacadas de avan-
ço em vinte e cinco e eu acabava por perder. Fazia palavras cruzadas
e obrigava-me também a fazê-las, uma espécie de concurso, para ver
quem acabava primeiro. Ele era sempre o primeiro. Tinha um grava-

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dor, o único da terra, com o qual abrilhantava pequenas festas e baila-
ricos. Sabia dançar muito bem. Tinha uma moto potente que andava
sempre a montar e a desmontar. Quando me dava boleia para ir à vila
ficava sem ar. Andava muito depressa, com segurança, mas eu não
sentia grande prazer. Talvez fosse por isso que nunca gostei de motos.
Agarra-te bem, ouviste? Nas curvas deixa-te ir, não faças nada que eu
controlo tudo. Pois, pois, o pior é quando fazia um ângulo inferior a 45
graus e via os paralelos a aproximarem-se. Mais tarde, mudou-se para
junto da ponte onde havia um jardim mal cuidado. Pediu autoriza-
ção e remodelou aquele espaço de árvores frondosas. Transformou-o
num verdadeiro oásis onde construiu um pequeno e discreto estabe-
lecimento. O Oásis foi o melhor e mais importante espaço de convívio
da terra, permitindo, durante muitos anos, debater ideias, desfrutar fes-
tas, numa socialização única, fazendo crescer os novos e deliciando
os mais velhos. Discutia-se tudo em tertúlias mais ou menos espon-
tâneas. Os grupos ansiavam pela chegada dos diferentes elementos.
Os mais novos, apesar de serem, por vezes, objeto de escárnio, eram
estimulados a associar-se às velhas e experimentadas raposas. Não
havia assunto que não fosse passível de debate, havia apenas muito
cuidado quando se tocava na política. O espaço era aberto, olhava-se
para o lado, via-se que não havia desconhecidos, baixava-se mesmo
assim a voz e falava-se por enigmas, com segundas e terceiras inten-
ções, até porque nunca se sabia se algum dos presentes não poderia
ser informador ou bufo. Todo o cuidado era pouco. Só havia desaca-
tos quando era abordado o desporto, sobretudo o futebol. Perdiam
as estribeiras. Cada um fechava-se no seu clube e era o momento de
discussão a ponto de alguns desaparecerem durante dias e ficarem
mesmo zangados. Com o Arlindo não se podia falar mal do Sporting.
Ficava possesso. De elétrico passava quase para um estado convulsivo
capaz de destruir o Oásis. Chiça! Até o Pinóquio, o cão malhado, de-
saparecia durante dias, não sei se era por causa do Sporting ou se era
por medo do dono. – Então, o Pinóquio desapareceu outra vez? – Foi
às cadelas. Hum! É certo que o cãozito deveria sofrer de satiríase cani-
na, mas daí a desaparecer durante tantos dias. Depois voltava fazendo
jus ao termo escanzelado.

As lembranças não ficam por aqui, ensinou-me a jogar xadrez, que


ganhava a toda a gente e a quem, um dia, comecei a impor empates
- o que era para mim o equivalente a uma vitória. Meu Deus, passei o

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resto da manhã a recordar tantas coisas que aprendi naquele espaço,
onde também me diverti em comunhão com muitas pessoas e com
o rio Dão, o rio da minha infância e adolescência, enterrado pela albu-
feira que acabou por afogar o Oásis. Resta-me um pequenino oásis na
minha memória onde me refugiei ao escrever este texto.

Morreu o Arlindo!

39
m
O boi da câmara

Um dia, muito tempo antes de ter deixado de usar calções, brincava


em frente da casa do meu avô, junto ao sapateiro e ao talho, quando,
de repente, ouvi uma agitação dos diabos na rua que se finda na ponte
da praça. – Fujam! Fujam! É o boi! É o boi! Mas eu não via nada. Ouvia
apenas os avisos e gritos muito agudos das mulheres, até que, ines-
peradamente, um barulho diferente do habitual começou a impor-se
por si. Na curva logo a seguir à barbearia do Zé do Rego, apareceu o
boi da câmara numa correria louca a bufar que nem um desalmado.
Fiquei aterrorizado. O pão com manteiga caiu no chão. – Tenho que
fugir. Podia ter-me enfiado na loja do sapateiro, cuja porta estava a uns
escassos três metros mas, para isso, tinha que correr em direção à fera.
Como não tinha idade, nem vocação para forcado, optei por correr
por uma rua íngreme que vai dar ao Rossio, isto na esperança de que a
besta continuasse na sua marcha desenfreada em direção ao Balcão.
Mas o bicho, ao ver-me, deverá ter pensado que seria um bom alvo
para descarregar a sua agressividade. E não é que muda de direção!
Faz uma perpendicular sem derrapar e persegue-me furiosamente.
Valeu-me a casa da Senhora Aurora que tinha a porta aberta e pela
qual entrei esbaforido, parando no andar superior, onde costumava ir
comprar as boroas para a minha avó a vinte e cinco tostões a unidade.
O coração batia tanto que até parecia saltar pela boca. Não conse-
gui dizer nada à Senhora Aurora que, muito surpreendida, olhava para
mim, pensando na falta de maneiras de um menino bem comportado
que habitualmente a chamava à entrada. Sem dizer nada, e tendo
dado conta de que algo de anormal se estava a passar, saiu, voltan-
do algum tempo depois. Eu ainda estava meio aterrorizado quando
a ouvi dizer: – O menino já pode ir para casa, o boi anda no Rossio.
E assim foi, sem dizer uma única palavra, desci as escadas, saí para
a rua, olhei para o lado esquerdo, ao mesmo tempo que formulava

41
um pensamento: – Se o boi anda no Rossio, então, pode muito bem
voltar para trás e apanhar-me. Enchi-me de coragem e corri que nem
um doido até entrar no portão da casa do meu avô. Fechei-o bem e,
nesse dia, não mais voltei a sair!

O boi era mesmo agressivo. Era o boi da câmara. Resta saber se a sua
agressividade era inata ou se era adquirida, às tantas era responsabili-
dade de ambas. O desgraçado do animal tinha que puxar a carroça da
carne do matadouro até ao talho. Acredito que não devia ser fácil ver
e ouvir o massacre exercido sobre os seus irmãos e, depois, transpor-
tar os seus restos para alimentar a cáfila dos humanos. Passou-se. E
eu, sem ter qualquer culpa no cartório, ia pagando as favas.

Sabe-se que a agressividade animal é devida a fatores genéticos que


começam a ser desvendados. É possível separar e desenvolver espé-
cies em função da sua agressividade inata. Daí que, os estudos que
começaram há mais de cinquenta anos com raposas prateadas e,
mais recentemente, com ratos, permitiram aos cientistas criar animais
ultra domesticados. Há, inclusive, ratos ferocíssimos que atacam, sem
qualquer receio, um ser humano. Outros, mais dóceis, deixam fazer
tudo e até procuram a companhia dos seres humanos. E estamos a
falar de ratos!

Tudo indica que os genes responsáveis pela agressividade serão seme-


lhantes nas diversas espécies. O controlo dos mesmos, ou a seleção
de animais sem os ditos (genes), poderia ser uma forma de domesti-
car muitos animais selvagens, contribuindo para evitar a sua extinção.
Assim, um dia, teríamos manadas de búfalos selvagens a seguir-nos
docilmente e até poderíamos correr o risco de nos lamberem com as
suas línguas rugosas ou fazerem-nos festas com as suas caudas ou,
então, passarmos a ter tigres ou leões como animais domésticos a
enrolarem-se ao redor das nossas pernas ou a quererem sentar-se ao
colo - o que não seria muito aconselhável.

Procurar conhecer a genética da agressividade, na expectativa de po-


dermos vir a domesticar muitos animais selvagens, constitui um sinal
de má consciência face ao contributo que temos dado para o seu
desaparecimento. Mas talvez possam ser úteis as descobertas que co-
meçam a ser produzidas. No caso dos humanos, e face à “selvajaria”

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que muitos expressam nos seus comportamentos, uma inativação de
alguns genes poderia ser muito interessante. E, em vez de andarmos
a querer domesticar os animais selvagens, o melhor seria centrar a
atenção na “domesticação” de alguns seres humanos que, afinal, aca-
bam por ser muito mais agressivos e perigosos do que o boi da câ-
mara.

43
n
“Ó Chiquinho, o lugar?”

Na minha adolescência, as férias do Verão eram passadas, invariavel-


mente, na terra, em amenos e divertidos convívios com os colegas e
outros jovens que nessa época vinham das cidades. O local de en-
contro, “Oásis”, era uma esplanada isolada junto à ponte do rio Dão,
aproveitando um velho parque, com belas e frondosas árvores, entre
as quais sobressaíam gigantescos cedros impedindo o sol de penetrar
no espaço, a meio caminho entre a estação e a vila. Tardes e noites
com jogos, música, conversas e alguns mosquitos. Durante a tarde,
depois da digestão feita, dávamos uma saltada ao rio, tomávamos
umas boas banhocas, acabando por repousar mais uns momentos
até fazer horas para o jantar, rápido, findo o qual voltávamos ao “Oásis”
para a noite, que tinha que acabar antes das doze badaladas, exceto
em alguns dias de festa. Mesmo assim, a hora limite era, no meu caso,
até à uma, sendo um problema se chegasse meia hora depois. Feitas
as contas ainda eram uns razoáveis quilómetros a pé que tinha que
fazer diariamente.

No Verão dos meus quinze anos, juntaram-se ao nosso grupo duas


jovens que não conhecíamos de lado nenhum. Sabíamos que esta-
vam a habitar a casa da curva do bairro. O pai, um senhor bem-pa-
recido, com aspeto de ter idade na casa do meu, passou a ser objeto
de curiosidade. Quem seria? Donde vinha? Por que razão passou a
ocupar uma casa que ninguém se lembrava de ter sido habitada? Uns
diziam que era engenheiro, que vinha para as obras, outros descon-
fiavam e diziam que não tinha cara disso. Ao fim de algum tempo a
curiosidade foi satisfeita, tratava-se de um escritor. Mas o que é que
fazia um escritor na vila? Devia escrever, claro. Mas por que razão es-
colheu o nosso espaço? Se o escolheu devia ter os seus motivos. Vi-o,
várias vezes, a conversar junto do café da vila e fiquei a saber o seu

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nome: Mário Braga. Presumo que passou mais do que um Verão.

Uma das filhas, no nosso “Oásis”, desafiou-nos para um jogo de cartas.


– Vamos jogar à canasta? – Canasta?! Que jogo é esse?! Ficou com
ar meio surpreendida com a nossa resposta e disse que era um jogo
em que se utilizavam as 52 cartas. Aí respondemos que não sabíamos
jogar com tantas cartas, só com 40 e tinha que ser à bisca ou à sueca,
porque ao burro era para os mais miúdos. Bem tentou explicar as re-
gras, mas nós não achámos muita piada. Acabou por ter que jogar à
sueca e à bisca. Que remédio!

Perguntámos se o pai era escritor e ela disse que sim. Gostava da


nossa vila, queria conversar com as pessoas, estudá-las, ouvir as suas
histórias, tudo para se inspirar e produzir a sua obra.

Anos mais tarde, já era médico há algum tempo, em casa de um com-


padre, esbarrei numa obra intitulada “Histórias da Vila”. Perguntei-lhe:
– Olha lá. Este autor não era aquele senhor que chegou a habitar,
durante o Verão, a casa da curva do bairro? Respondeu que sim e
disse que o livro contava histórias da vila. Pedi-lhe emprestado e li-o,
freneticamente, de uma penada. Recordo de algumas passagens e,
sobretudo, de uma personagem, facilmente identificável, que conheci
muito bem. O livro tinha um encanto especial. Adorei a narrativa e a
análise das suas personagens.

Há dias, num intervalo de provas académicas que decorreram em Lis-


boa, aproveitei a tarde do primeiro dia para não fazer nada, ou melhor,
acabei por fazer o habitual, ir para a zona do Chiado, que eu adoro,
percorrer os alfarrabistas. Entrei num e deparei-me com quatro obras
que recolhi de imediato, a primeira das quais foi “Antes do Dilúvio” de
Mário Braga. O livro editado há quase 40 anos tinha as marcas naturais
da passagem do tempo. Comecei a folheá-lo e a leitura do mesmo
fez-me recordar o outro que tinha lido há muitos anos. Na última
página, a fechar a obra, podia-se ler: “Santa Comba Dão. Agosto de
1966”. Ah! Então este era o livro que o senhor andava a escrever na-
quele belo e saudoso Verão! Em duas noites devorei-o com a mesma
satisfação da leitura de “Histórias da Vila”.

A história do “Antes do Dilúvio” descreve a vida e a problemática po-

46
lítica e social de uma vila tipicamente beirã. A personagem principal
era o Chiquinho Boavida, barbeiro, cronista do semanário da região,
presidente da junta de freguesia, dotado para as artes de fígaro e ex-
celente orador, desejoso de voos mais altos, que lhe possibilitassem
ir para Lisboa, a fim de fugir à tirania da mãe e poder casar com a sua
eterna amada, além de tirar rendimentos dos seus talentos.

Numa das passagens, o escritor relata a entrada em cena do Recor.


O Recor é o tolo do sítio, defeituoso de mão e pé direitos que nunca
conseguiu sair da primeira classe. O mestre-escola chegou a dizer-
lhe que batia o “record da estupidez”. De record a Recor foi um passo
para passar a ser conhecido apenas pelo apodo. Era defeituoso, tinha
as suas limitações mentais, mas sabia que tinha que ganhar a vida,
porque a mãe era pobre. Tinha pedido mais do que uma vez um lugar
na junta ou no cemitério, a fim de providenciar o seu sustento. Volta
e não volta atacava o presidente da junta da freguesia. A sua entrada
em cena, na obra de Mário Braga, é notável. Chiquinho Boavida, numa
caminhada, matutava sobre como dar volta à vida, quando sentiu al-
guém, por detrás, a puxar a manga do seu casaco dizendo: – “Ó Chi-
quinho, o lugar?”. Surpreendido, disse-lhe que estava a ser difícil por-
que não tinha o diploma e sem o comprovativo da quarta classe não
sabia como arranjar-lhe um. Lá se descartou do pobre rapaz como
pode.

No dia em que comprei esta obra, os jornais anunciavam as preocu-


pações do senhor Presidente da República com o desemprego dos
nossos jovens, cada vez mais qualificados, mas cada vez mais lon-
ge de arranjarem um lugar que lhes possa propiciar independência e
subsistência. É triste o ambiente depressivo que nos rodeia. Desem-
pregados, incapazes de conseguirem um lugar minimamente estável,
objetos de exploração indigna, o quadro não abona nada de bom e
desmistifica a promessa de alguém que há pouco mais de dois anos
prenunciou uma centena e meia de milhares de novos empregos!
Não foi nenhum presidente de junta, foi o próprio Primeiro-Ministro.

Os jovens que andam por aí não são defeituosos, o que é, também, de


somenos importância, como é óbvio, não são tolos e têm, a grande
maioria, diplomas de ensino superior, um verdadeiro record.

47
Estou a vê-los – se pudessem lá chegar, claro – a puxarem a manga
do senhor Primeiro-Ministro dizendo-lhe: – “Ó Chiquinho, o lugar?”.

Qual seria a sua resposta?

A do Boavida já eu sei...

48
o
O corvo que tem raiva a gatos
pretos

Não é fácil ser-se surpreendido ao fim de muitos anos de atividade


profissional, mas ainda vai acontecendo e quando menos se espera.
Vejo doentes em fases ditas terminais com todo o cortejo de sinais
e sintomas de degeneração, os quais me incomodam sobremanei-
ra, levando-me a equacionar muitas interrogações para as quais não
consigo encontrar respostas e, as que ouço, sinceramente, mais-valia
que os seus autores estivessem calados, porque a par da ignorân-
cia adicionam arrogância. Recebi um telefonema a perguntar se não
me importava de ir ver um velho doente, no duplo sentido do termo.
– Claro que vou. Uma resposta acompanhada de alguma angústia
despertada pela sucessão de recordações, entre as quais as últimas,
quando o seu estado, bastante deteriorado, física e mentalmente, não
prenunciava nada de bom. Tinha feito várias tentativas no sentido de
corrigir algumas perturbações, há já algum tempo, mas não vislum-
brava os resultados esperados ou, melhor, desejados. Não questionei
sobre o seu estado atual ou as razões para o pedido de visita, tinha
tempo mais do que suficiente para ver in loco ao final da tarde. E foi o
que aconteceu. Ao aproximar-me da residência comecei a exercitar a
memória e a estratégia a seguir, mesmo sem o ter examinado. Velho,
doente e incapacitado, uma tríade diabólica em que tropeço amiúde
e que me deprime. O que é que poderei fazer? O sol, que hoje estava
bastante simpático, fazia esforços para me alegrar, mas não conseguia,
apenas me acalmou o suficiente para que esquecesse a minha angús-
tia. Subo as escadas e estranhei que o corvo não começasse a crocitar.
Vive há muitos anos debaixo das escadas, transformada em gaiola,
e é um excelente animal de guarda. Não o ouvi e nem o vi. Subi as
escadas a pensar que o animal deveria ter morrido. Que pena, morre

49
tudo. Ao chegar ao cimo fui saudado pela filha e, por detrás, sentado
num mocho à entrada para a cozinha, estava o senhor. Não esperava
que estivesse ali, com um ar bonacheirão, sorriso malandro e cheio
de carnes. A imagem que estava à espera era deitado no sofá, boca
aberta, olhar no vazio, corpo rígido, sem dizer coisa com coisa e com
a saliva a escorrer pelo canto da boca. Qual quê! Estava ali, sentado,
na posse de todas as suas faculdades mentais, prolixo, satisfeito por
se mostrar que estava em forma, embora estivesse preocupado com
a sua saúde. A filha disse-me que andava com medo de morrer. – Ai
anda? Bom sinal! – Viva senhor X., o senhor está com um aspeto for-
midável! Nem quero acreditar. – Foram aqueles dois medicamentos
que o senhor doutor lhe deu. Interveio a filha. – Ele anda, anda sozi-
nho e muitas vezes sem a bengala. Vai até ao quintal e tudo. Enquanto
a filha ia debitando o sucesso da sua recuperação, o senhor X, inchado
de satisfação, fixava-me com um sorriso irónico, um sorriso destilado
ao longo de décadas e décadas de vida bem recheada de experiências
e de histórias que mereciam ser contadas. Dotado de uma capaci-
dade argumentativa muito difícil de rebater, apesar de não ter for-
mação escolar, obrigou-me, desde sempre, a um cuidado redobrado
na forma como lidar com ele. Ai de mim se lhe desse pretexto para
contra-argumentar, desfazia-me com uma lógica terrível, embora não
lhe assistisse a razão. Depressa aprendi esta sua qualidade para me
impor e fazer com que aceitasse os meus conselhos e determinações.
– Enquanto se ia desenrolando estas cenas, o corvo lembrou-se de
começar a crocitar. – Afinal está vivo. Ainda bem. Mas por que razão
estará a crocitar? Olhei para baixo e vi um gato preto. Ah! Está expli-
cado. O corvo tem raiva a gatos pretos e se pudesse decerto que lhe
arrancaria os olhos. – Bom, este final de tarde está a correr melhor do
que esperava, o sol está simpático, o corvo está vivo e o senhor X está
em forma. Levantou-se com uma agilidade surpreendente e fomos
para o sofá. Direito, sem ajuda, sentou-se e disse-me que andava pre-
ocupado com aqueles "ais" que lhe vem lá do fundo, suspiros que não
consegue controlar. – Preciso de arrotar, para ver se isto sai. Arranje-
me qualquer coisa para deixar de suspirar. Expliquei-lhe que não era
sinal de perigo, às tantas eram saudades de outros tempos, das rapa-
rigas... – Olhou-me com um sorriso muito malicioso, dizendo: – Acha
que sim? Era bom, era! Fui obrigado a admitir que as suas capacidades
estavam a funcionar bem. Um pequeno teste, fácil de aplicar. – Mas
esta coisa da barriga - parece que estou empanturrado, chateia-me. É

50
nas voltas de lua que isto me dá. – Ai sim? Então, eu vou-lhe dar um
medicamento para tomar quando se sentir empanturrado nas mu-
danças de lua.. – Está bem! A conversa continuou ao redor de outros
assuntos e pude ver que o senhor estava muito melhor. Até quando
não sei. O senhor X. estava feliz e ficou melhor depois da visita. Eu
também fiquei feliz.

Quando saí o velho corvo de guarda não grasnou.

51
p
“O galo da torre”...

Diz uma lenda que a única vez que um galo cantou à meia-noite
foi quando nasceu Jesus. É capaz de não ter sido, se dermos fé a
Henrique Lopes de Mendonça, o pai da letra do nosso Hino, na sua
obra “Santos de Casa”. Inicia-a com um conto sobre o “galo branco de
Azoia”; um galo intrépido que fazia frente a qualquer alimária bravia
com as “modulações do seu canto, heroico e soberbo como um peão
da Hélade”. A sua audácia devia provir “mais da fortaleza do coração
do que pedra na figadeira”.

O barulho e a claridade de uma noite atrapalhou-o, porque pensou


que se tinha esquecido de anunciar o novo dia. Curioso, foi até uma
clareira onde estava Frei Gil de Santarém a perorar para uma multi-
dão de fiéis. O galo sentiu uma enorme responsabilidade a subir até à
crista, a qual se empertigou de imediato. Bateu as asas como se fosse
o pigarrear de um cantor de ópera, começando a cantar uma estri-
dente e bela melodia que apanhou de surpresa todos os circunstantes
que pensaram estar perante mais uma manifestação do maligno. Frei
Gil não gostou da intromissão e arremessou o seu bastão com uma
pontaria de tal modo certeira que o animal nem um pio deu, nem um
simples esbracejar de asas. O galo morreu. Ermesinda, a dona, sur-
preendida com a presença do galo, ficou triste e abespinhada com o
sucedido. Apanhou-o e, gentilmente, acolheu-o debaixo da sua capa.

Frei Gil de Santarém retomou a sua prática, afirmando que “cada be-
nefício feito na Terra às criaturas mais humildes era um passo dado no
caminho do paraíso, e como cada iniquidade praticada era um peso a
mais que nos puxava para os abismos”. A partir deste momento, a voz
começou a claudicar e os dizeres passaram a ser titubeantes e muito
confusos. Todos se entreolhavam estupefactos perante tão inusitada

53
situação. Foi então que o frade começou a confessar que tinha co-
metido um pecado infando, porque lhe faltou “o ânimo da paciência”.
Dirigiu-se a Ermesinda e perguntou-lhe o que escondia debaixo da
capa. Com lágrimas nos olhos entregou-lhe o belo corpo branco do
galo. Frei Gil, invocando Deus, conseguiu que o galo voltasse a viver,
ofertando-lhe os anos que ainda lhe restavam de vida terrena. Foi o
momento do galo se erguer de pronto, para espanto de todos, pror-
rompendo um cântico que mais parecia um hino de glória.

Recordei-me desta história ao repousar, propositadamente, os meus


olhos na paisagem que ladeia a linha do Norte. Cansado e, por que
não dizer, incomodado com a forma e os conteúdos dos discursos e
comentários de algumas alimárias políticas. Querem ser galos, mas
muitos não têm classe para isso. Falam alto, insultam, humilham, des-
prezam, mas não conseguem anunciar um novo dia. Decerto que
nunca terão o privilégio de se alcandorarem às torres dos campaná-
rios. Torres que se vão sucedendo umas atrás de outras na paisagem.
Muitas. Cada terra, cada lugar, cada aldeia com a sua igrejinha. Cam-
panários diferentes, alguns são mesmo belos. Chamam-me a atenção
e procuro descortinar no alto se têm ou não um galo.

Sempre me seduziu o galo da torre da igreja da localidade que me


viu nascer. Achava piada haver um galo lá em cima, na torre muito
alta, muito alta mesmo, porque naquelas idades “o corpo é a medi-
da de todas as coisas” e, como somos pequeninos, tudo parece ser
gigantesco. Perguntava por que razão havia um galo no alto da torre
de uma igreja. Diziam-me que era para saber donde soprava o ven-
to. Realmente, nunca estava na mesma posição mas, mesmo sendo
criança, sentia que não deveria ser essa a razão. Digo “sentia”, porque
não sabia explicar, nem traduzir, o que pensava. Sempre que ia à vila,
olhava fascinado para o galo.

Houve um dia, ou melhor, uma noite de tempestade em que um raio


se lembrou de matar o galo da torre. Disseram-me que o sino tinha
sido partido e o galo fulminado. Nessa manhã acerquei-me da igreja e
vi, no jardim fronteiro, o galo de ferro, chamuscado, lindo e sem vida.
Fiquei triste durante muito tempo até que o recolocaram aquando
da aquisição de um sino novo que, infelizmente, não tinha o som
do antigo. Fiquei todo o dia embasbacado a ver as manobras para os

54
colocarem na torre.

O galo representa muita coisa, o nascimento do dia e de uma vida


nova, o chamamento diário e o renascer anual do sol, a luz verdadeira
para a humanidade, o canto de uma nova esperança, o espantador de
demónios, o símbolo da vigilância, fidelidade e testemunho de valores
cristãos, razão que o levou, há mais de mil anos, ao lugar mais cimeiro
das igrejas. Mas o galos que andam por aí, ao contrário do “galo de
Azoia” ou do “meu” galo vítima de um raio, não merecem ser “ressus-
citados” nem têm categoria para subir à torre de um campanário, por
mais humilde que seja, como são todos aqueles com os quais come-
ço a ter alguma intimidade nas muitas viagens à capital dos provin-
cianos. Entretanto, sempre que posso, como hoje, não deixo de olhar
o belo galo da torre da igreja que um dia um raio quis roubar a beleza
e a dignidade.

Aos muitos “galos políticos” que andam por aí, quase que me apetecia
dizer: “Vão para o raio que vos partam”, porque não conseguem anun-
ciar um novo dia, nem uma nova esperança, nem transportar a luz da
verdade..

55
q
O homem que matou o diabo!

Um pai matou o filho numa rixa depois de ter sido esfaqueado. Ao


ler o relato ficamos a saber que não era a primeira vez que tinha sido
agredido e que o filho deveria sofrer de grave doença psiquiátrica a
testemunhar quer pelas hospitalizações, quer pelos comentários de
familiares e conhecidos.

Mais um drama. Na localidade onde ocorreu a desgraça muitos “apon-


tam o dedo às autoridades pela falta de acompanhamento”. A irmã
relata que a família há muito suplicava o internamento do irmão, mas
ninguém apareceu para os ajudar. Tragédia anunciada.

A saúde mental é um dos principais problemas do nosso país a ponto


de ser alvo de um plano nacional que visa, entre muitos outros aspe-
tos, a diminuição da institucionalização, permitindo a aproximação
do doente mental junto da família e da comunidade. Estas opiniões
são, teoricamente, muito positivas ao contribuir para a integração do
doente respeitando a sua dignidade.

As atuais terapêuticas farmacológicas aliadas a um acompanhamen-


to social de proximidade por parte de técnicos responsáveis poderão
ajudar alcançar aqueles objetivos. Em consequência alguns hospitais
psiquiátricos terão de encerrar, como aliás foi, recentemente, anun-
ciado. Não por motivos económicos, claro está! Apenas um efeito
secundário da nova política de saúde mental que tem sido contestada
por reputados especialistas alertando para o que já ocorreu noutros
países em que foi feita "desinstitucionalização" não devidamente pro-
gramada. “Na Itália ou na Dinamarca, provocou aumento substancial
dos sem-abrigo, aumento enorme de afluxo de doentes às urgências
psiquiátricas dos hospitais gerais e originou mortes súbitas por inca-

57
pacidade de sobrevivência".

A falta de apoios é uma constante que se arrasta há muitas déca-


das em Portugal contribuindo para certos desfechos que fazem notí-
cia pela negativa. Também na minha terra, como em qualquer outra,
houve e há sempre tragédias e desgraças motivadas pelas doenças
mentais. Tinha seis anos (foi no ano em que entrei para a escola, há
meio século) quando uma noite ouvi gritos de uma multidão ecoan-
do na pacata rua onde morava a escassos metros do posto da GNR.
O tumulto acordou toda a gente das vizinhanças que, numa ânsia
natural, queriam saber o que se estava a passar. As janelas abriram-se
e os gritos aumentaram de intensidade. Recordo a imagem: muitos
homens cercavam o "Ferrão" manietado empurrando-o em direção
ao posto mas que gritava mais alto do que todos os outros juntos: –
Matei o diabo! Matei o diabo! Olhei para os meus pais tentando per-
ceber por que cargas d'água levavam o homem para o posto por ter
morto o diabo. Se o matou fez bem! Até que enfim, pensei eu, porque
tinha mesmo medo do diabo. Ao mesmo tempo que me mandaram
calar enfiaram-me na cama sem dizerem mais nada.

Nos dias seguintes fiquei a saber que o “Ferrão”, o que tinha dito que
matou o diabo, afinal tinha morto o “pai-avô” (uma designação que
demorei anos a perceber o seu significado) à machadada no pinhal
da bica. Só anos mais tarde fiquei a saberes certos pormenores da
tragédia, nomeadamente o internamento no Sobral Cid, por ter sido
considerado inimputável pelo tribunal, devido a uma grave doença
psiquiátrica. Ainda hoje lhe é atribuída a seguinte afirmação proferida,
num momento de aparente lucidez, ao entrar na instituição: – Eu vou
mas ficam cá fora muitos!

Um dia, já era aluno de medicina, visitei o hospital. A minha curiosi-


dade em vê-lo foi satisfeita. Calmo, aparentemente normal, conviven-
do com os colegas, sorria docilmente fazendo-me recordar velhos
momentos em que ia com o meu pai nas excursões futebolísticas do
clube da terra, por si organizadas, antes de ter “morto o diabo”.

O mesmo sorriso...

58
r
“O Lima”...

Certas pessoas têm o condão de nos marcar e fazer reviver certos


episódios.

O Lima, pessoa de origem muito humilde, começou a trabalhar desde


novo, quase que de criança, no universo da justiça, conseguindo fazer
uma carreira elogiada e admirada por todos. Desde cedo, aprendeu
a ser muito respeitador e a ser respeitado. O ambiente dos tribunais
incutiu-lhe uma linguagem própria, bem como a necessidade de me-
lhorar e enriquecer a sua cultura. O "Excelência" estava invariavelmen-
te presente, sempre que se dirigia a certas pessoas. Até eu acabei por
fazer parte do rol de “Vossa Excelência”, não obstante a pouca diferen-
ça de idades, facto motivado pela minha ascensão académica. Nunca
o impedi que me tratasse desse modo, pela simples razão de que se o
fizesse sabia que estaria a violar os seus princípios. E o Lima prezava,
e preza, os seus valores. Acabei até por ser seu médico, de modo que,
sempre que me via, perguntava: – Então, como vai Vossa Excelência?
E a senhora sua mãe está melhor? E a senhora sua esposa e filhos?
Trocávamos, invariavelmente, as palavras usuais dos encontros.

Baixo, gordo, bonacheirão, com um bigode castiço e olho vivo, o Lima,


também conhecido pelo apodo “Repolho”, arrematava sempre a con-
versa da mesma maneira: – Vossa Excelência já deverá ter reparado
que estou mais magro, não acha? Eu dizia-lhe: – Parece que sim, Oh
Lima! Mas, na verdade, continuava na mesma ou ainda pior.

Mais tarde reformou-se e abriu um escritório, transportando toda a


sua experiência acumulada nos tribunais. Passou a aconselhar e a re-
solver muitos dos pequenos e grandes problemas que atormentam
o cidadão comum. Eficiente, simpático e sempre disponível, lá vai fa-

59
zendo pela vida, vida essa que foi mesmo dura, conseguindo dar uma
formação superior à sua Rosinha, com muito sacrifício.

A reforma fez-lhe bem. Pelo menos já não abusa do tratamento "Vos-


sa Excelência".

Há dias, no átrio do município, cruzei-me com o Lima. – O senhor


professor por estas bandas! – É verdade, tenho Assembleia Municipal
logo à tarde. A partir daqui a conversa passou para o estado de saúde
dos familiares. Às tantas afirmou: – O senhor professor já reparou que
estou mais magro? Já perdi 3 a 4 quilos! Já nem consigo segurar as
calças. Olhei para baixo e de facto concordei que não devia conseguir
segurar as calças, porque as mesmas não chegavam à barriga. Claro
que não verbalizei o meu pensamento, disse-lhe que fazia muito bem
em tratar da saúde. Estava a despedir-me, o que era sempre mui-
to complicado, quando me disse que o seu escritório ia bem e que
se eu quisesse podia contar com ele para ajudar a perfilhar os filhos
que tivesse por aí! Disse isso com um olhar meio maroto, reforçando,
propositadamente, a sua ligeira tartamudez. – O quê Lima!? Perfilhar
quem?! – Os filhos que possa ter por aí! Repetiu, alargando o sorriso.
– Então, o senhor professor não é Teófilo?! Com um brilho no olhar,
cada vez mais malicioso, o Lima recordou alguns familiares, nome-
adamente um tio-avô que foi uma notável peça procriadora, contri-
buindo para a “fama” dos Teófilos.

As pessoas que estavam no átrio sintonizaram os seus sorrisos pelo


músico que, por acaso, até é – toca clarinete na Filarmónica –, mas
que agora fazia o papel de maestro de uma sadia malandrice.

Quando subia a escadaria, deliciando-me com as tiradas do raio do


homem que, de facto, está mais gordo, mais solto e, também, mais
maroto, recordei-me do meu tio Manel e das suas proezas...

60
s
“O melro do senhor Lopes”...

Tenho um amigo que vive com a mulher num local isolado na mar-
gem esquerda do rio Dão. Em boa verdade, é uma de três famílias
que lá habitam, sendo uma delas o filho e uma nora. Zona paradisí-
aca, onde guardo a minha gaivota com a qual pretendo fazer algum
exercício durante as férias, vasculhando recantos maravilhosos do rio
e desfrutando momentos únicos, num pretenso silêncio natural, em
comunhão com as mais diversas aves e animais cujos hábitos acabei
por conhecer ao longo do tempo.

Na quinta do Sr. Lopes há de tudo. Mimoseia-me à sua maneira com a


simplicidade de um “homem do campo”. Tem várias aves, entretendo-
se a capturá-las com as suas criativas armadilhas. Construiu inclusive,
ao redor de uma árvore, uma gaiola avantajada e tosca onde vive um
melro.

– Oh Sr. Lopes: tem aqui um melro muito interessante! Dá-se bem


aqui? – Oh se dá! Sabe há quanto tempo tenho este melro? Há 12
anos. – Coitado do pássaro estar preso há tanto tempo! Não é justo.
Nem sabia que duravam tanto tempo. Riu-se, e vendo que tinha fi-
cado preocupado com tamanha clausura apressou-se a dizer: – Mas
este melro é especial. – Especial?! – Sim. Quer ver aqui em baixo jun-
to da terra? E mostrou-me uma pequena escavação. – Foi o “gajo”
que fez isto. – O melro? – Sim! Fugiu por aqui. Mas depois voltou,
coloquei-o na gaiola e tapei o buraco. – Oh senhor Lopes o melro
deve ser parvo! – Mas passado algum tempo fez o mesmo e depois
voltou. – O quê? Não acredito! – É verdade! Deixei de tapar o buraco.
Volta e não volta vai dar uma curva e depois regressa. – Vai às “melras”,
não? – Hum, não me parece, porque já lhe arranjei uma, está a ver ali?
E mostrou-me uma ave mais pequena, cinzenta e nada bonita, mas

61
mesmo assim continua a dar as suas escapadelas. – Oh senhor doutor
essas coisas também atingem os animais? Disse-lhe que sim, mas nas
aves não sabia. – Cá me parecia. O que o gajo quer é dar uns passeios
e depois casa. – Mas, Oh senhor Lopes, o animal tem por aí tanta
comida, árvores de fruto, insetos e vermes, logo não tinha razão para
regressar. – Aí é que o senhor doutor se engana. Procurar comida dá
trabalho, muito trabalho, ao passo que aqui a comidinha está sempre
à mão. Julga que os melros são parvos? – Oh senhor Lopes, então tal-
vez venha daí aquela frase: “Fulano é um grande melro. Sabe-a toda”!
Usar o bico para depenicar a papinha feita é obra de passarão. – Quem
sabe, quem sabe? Sempre acompanhado de um encantador sorriso
que volta e não volta entremeava com uma gargalhada sonora, rivali-
zando com o cantar das aves da quinta que tanto adora.

Escrevi esta pequena crónica há algum tempo. Já não vai lê-la, porque
o seu sorriso desapareceu e, com ele, um dos homens mais afáveis
que conheci até hoje. Um dia destes tenho que ir à Quinta do Rio ver
o melro. O melro do Sr. Lopes...

62
t
O outro “Menino”!

A imagem televisiva de Piergiorgio Welby numa total imobilidade, e


com um ar de tristeza profunda em que apenas sobressaía um ligeiro
acenar das pálpebras, única ligação ao mundo, deverá ter chocado
muitas pessoas. Sofrendo de grave distrofia muscular, acabou por ficar
paralisado, tendo o seu estado de saúde piorado substancialmente
nas últimas semanas. O italiano mantinha-se vivo à custa de respi-
ração artificial, sendo alimentado através de um tubo. Condenado a
morrer, as medidas tomadas estavam a prolongar-lhe a vida em con-
dições bastante deploráveis e pouco dignas da condição humana.

Nos últimos anos, as técnicas destinadas a prolongar a vida têm tido


um notável desenvolvimento e progresso. Nada a opor se as mesmas
respeitarem a dignidade, mas quando se tornam excessivas e despro-
porcionadas poderão constituir uma violação dos direitos humanos.
No caso vertente, o doente solicitou permissão para morrer. Não pe-
diu que o matassem, apenas que não continuassem com certas me-
didas. A justiça italiana reconheceu que “tinha o direito constitucional
de ser desligada a máquina que o mantinha vivo”. Mas, ao mesmo
tempo, invocou que os médicos têm a obrigação legal de utilizar prá-
ticas de ressuscitação!

Houve um médico que desligou a máquina, respeitando a vontade do


doente. Agora corre riscos de vir a ser julgado e preso por eutanásia.
Neste caso, ninguém matou deliberadamente o doente, apenas foi
suspensa a terapêutica por recusa do mesmo. Os doentes devem ter
esse direito. Aliás, a problemática do testamento vital vai estar, breve-
mente, na ordem do dia.

Atualmente, as inúmeras e sofisticadas técnicas permitem manter

63
as pessoas “vivas” em condições impensáveis há alguns anos atrás.
Recordo-me dos meus tempos de estudante, em que não haviam
ainda medidas deste cariz, de ter lido uma frase do prémio Nobel da
Medicina de 1960, Sir Macfarlane Burnet que, a propósito das medidas
já existentes, embora muito aquém das atuais, dizia que andava com
um cartão na sua carteira onde pedia para que não fosse sujeito a téc-
nicas de “ressuscitação”, se as mesmas pudessem por em causa a sua
condição de ser humano, “exigindo” morrer com dignidade. Nunca
mais esqueci aquela frase.

Recordo-me do “Menino”, era assim que o chamávamos. Na sua ca-


deira de rodas, com dificuldades tremendas em mexer os braços, ven-
dia lotaria. Sempre alegre e bem-disposto apesar de sofrer de distrofia
muscular, a qual já tinha vitimado outros irmãos. Toda a vida pós es-
colar da altura fazia-se no jardim, quando os dias estavam bons, ou
debaixo da arcada do café, nos chuvosos. Mas fazia-se à volta do “Me-
nino”. Era o ponto de referência. Quando me perguntavam para onde
ia, dizia: – Vou brincar para ao pé do “Menino”! Ninguém se opunha.
Já tinha alguma idade, mas não deixava de ser o “Menino”.

Houve uma altura em que o “Menino” não aparecia com muita fre-
quência, ia rareando a sua presença. Começámos a andar tristes e, um
dia, ficámos a saber que o “Menino” nunca mais iria aparecer - fomos
com ele ao cemitério atrás do padre.

Teve uma morte natural e um funeral cristão.

Piergiorgio Welby não teve funeral cristão, mas teve uma morte adia-
da!

No dia do Menino, uma recordação de um outro “Menino”…

64
u
O senhor doutor juiz

O meu avô ensinou-me coisas muito importantes. Uma delas diz res-
peito à justiça. Quando era pequeno passávamos muitas vezes em
frente do Tribunal Velho. Afirmava que aquela casa era o local onde
um homem honrado sentia o verdadeiro significado do respeito, ex-
plicando-me que, quando alguém sentisse que tinha sido injustiçado,
era ali que encontrava a reparação, vendo os maus a serem punidos.
Para mim, o juiz passou a ser a pessoa mais importante, nem o mé-
dico, nem o padre, nem o professor, nem o chefe da estação, nem os
guardas chegavam ao calcanhar daquele homem! Não tinha medo e
gostava de o ver. Parecia-me diferente de todos os outros. Afinal, havia
alguém que nos protegia e eu conhecia-o. De igual modo, se houves-
se algum problema, o juiz resolvia-o. Até cheguei a pensar dizer-lhe
que andava aborrecido, porque já me tinham roubado, mais do que
uma vez, os meus queridos piões. No entanto, havia sempre um fami-
liar que me comprava um novo, mas não era a mesma coisa, porque
não tinha ainda uso e sem uso é diferente.

Estas memórias emergiram quando li a notícia do inválido Joaquim


Seco, condenado a uma pena de prisão de 30 dias por não ter pago
uma multa de uma centena de euros. Chocou-me. Mas o choque ain-
da foi maior quando a juíza, julgo que era uma senhora, não permitiu
o pagamento em mais do que duas prestações, porque isso “descarac-
terizava a pena”. Será que a juíza não conhecia a situação do doente?
Será que a justiça tem de ser mesmo “cega”? O melhor seria abrir os
olhos.

Alguns dias depois é noticiado o arquivamento, por prescrição, do


caso das mulheres intoxicadas com "hormonas de emagrecimento".
Algumas delas não só estiveram em coma como ficaram com lesões

65
irreversíveis. Neste caso, as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos
atuaram e aplicaram penas disciplinares, ao passo que a justiça deixou
impunes os responsáveis.

Quando penso nestas situações, e em muitas outras, sinto uma sau-


dade do Senhor Doutor Juiz dos meus tempos de criança. Com ele
nunca aconteceriam atitudes destas: o senhor Joaquim Seco não se-
ria condenado e os médicos e farmacêuticos que prescreveram e pre-
pararam os medicamentos teriam sido punidos….

66
v
Pintarroxos!

os pássaros

os pássaros
não os vemos
só as crianças são pássaros
só elas os veem

nós crentes no olhar


choramos cristais
mas não vemos os pássaros

(Francisco d'Eulália)

Quando andava na escola primária, divertia-me, conjuntamente com


os meus colegas, andar a espiolhar os ninhos. Na altura, quem des-
cobrisse mais ninhos era mais respeitado. O risco que corríamos era
mais do que suficiente para sermos repreendidos e, até, castigados
pelo professor, na medida em que uma das lições que aprendíamos
era, justamente, não mexer nos ninhos dos pássaros. O próprio padre
também considerava como “pecado” a nossa conduta, ouvíamos, mas
esquecíamos logo de seguida; sempre à descoberta de novos ninhos,
dos ovos, dos filhotes e da espécie em questão.

Todavia, não deixávamos de apanhar pássaros com as nossas arma-


dilhas e de construir gaiolas toscas e remediadas para os albergar; por
norma, os mais pequenos e indefesos. O que é certo é que ao fim de
algum tempo acabavam por morrer, facto que interpretávamos com
sendo resultante da ação deliberada dos pais que, ao ouvirem os "gri-
tos" dos filhotes, preferiam a sua morte.

67
Alguns pássaros eram intocáveis, falo das andorinhas ou dos pintarro-
xos, por exemplo. Ao invés, os pardais e os melros levavam na perna,
à pedrada, à fisga ou com os costilos. Recordo-me de um “puto” mais
novo querer fisgar um pintarroxo, levando, automaticamente, no ca-
chaço! – Então não sabes que não se pode fazer mal a este pássaro? E
lá lhe explicámos que a mancha vermelha no peito era devido a uma
gota de sangue de Cristo quando quis tirar um espinho da coroa que
se tinha enterrado na cabeça do Senhor durante a Via Sacra. O “puto”,
com cara de parvo, ficou de boca aberta, e só deverá ter aprendido
que não ia meter-se mais com pintarroxos, porque senão levava no
focinho.

Nessas alturas os pintarroxos tinham uma vida flauteada, cantavam


ao amanhecer, embora não fosse nada de especial, atraíam parceiros,
marcavam o território e espantavam os inimigos. Enfim, um ritual típi-
co de tantas e tantas espécies de aves.

Acontece que estas aves começaram a ter comportamentos diferen-


tes, passando a cantar de noite, devido ao facto de os níveis de ruí-
do diurno serem elevados. Dizem os entendidos que “nos pássaros,
a cantoria noturna por espécies normalmente diurnas pode ser uma
forma de minimizar a interferência de barulho ambiente urbano”. Aqui
está mais um dado a juntar a tantos outros, apontando para o papel
negativo dos efeitos ambientais nos comportamentos das diferentes
espécies. Coitados dos pintarroxos, cantam de noite, não dormem e
não cumprem os seus rituais.

Outros estudos sugerem que algumas espécies, a residirem nas gran-


des cidades, adaptam-se à poluição sonora através do aumento do
volume dos seus sons, ou então chegam mesmo a modificar o estilo,
versus os seus primos rurais, optando por um estilo “rap”!

As modificações operadas no canto poderão provocar novas situa-


ções, dificuldades em marcar o território e no acasalamento, além de
permitir ataques dos inimigos. Pode mesmo dizer-se que as mudan-
ças do comportamento das aves poderão constituir um sinal eviden-
te dos efeitos negativos da poluição, neste caso concreto, sonora. A
origem humana do ruído é mais do que conhecida, e como estão a
provocar os pintarroxos, que tal um valente cachaço nos poluidores?

68
x
“Pois, pois”!

Numa consulta de rotina tive a oportunidade de observar um tra-


balhador, obeso, 45 anos de idade, que referenciou um historial de
quatro enfartes. – Quatro enfartes? É obra! Exclamei. A sua resposta,
acompanhada de um sorriso do estilo “pois, pois”, foi a seguinte: – Os
médicos dizem que eu tenho um coração muito forte para aguen-
tar quatro enfartes! O exame continuou e perguntei-lhe se tinha sido
fumador. Olhou-me, relançando novamente o sorriso “pois, pois” e,
abanando a cabeça, disse que continuava a fumar. Fiquei perplexo
e sem palavras. – Mas assim corre riscos muito graves! – Oh senhor
doutor já tentei tudo, fui a consultas de desabituação mas não con-
sigo. Da última vez que tive enfarte foi a própria médica a dizer que
não valia a pena deixar de fumar, porque senão entrava em stress e
podia ser pior. Calei-me. No entanto, a reação do trabalhador à minha
conduta foi interessante. – O senhor doutor parece que ficou preocu-
pado! – Oh homem estou mesmo perturbado se quer que lhe diga.
E, ao dizer isto, perpassou-me a visão de uma velha de baixa estatura,
cabelo descuidado, talvez meio “demenciada” e viciada no jogo, que
encontrei um dia no casino da Madeira. No decorrer de uma reunião
científica, alguns colegas desafiaram-me para ir com eles. Não sou jo-
gador e fujo do jogo como o diabo da cruz, porque o meu avô assim
me ensinou. Não quer dizer que não possa trocar, de vez em quando,
uma nota de dez euros em fichas, mas apenas para não ficar pendu-
rado no meio de amigos.

Gosto de ver o comportamento de muitos jogadores. Alguns estão


perfeitamente alucinados, quando puxam as alavancas ou carregam
no botão eletrónico. Como seria de esperar, sorte ao jogo não é co-
migo, porque nem uma ficha caiu a fazer “tlim”. A velhota ao lado
chamou-me a atenção pela forma frenética com que jogava. Utilizava

69
um recipiente gigante para pipocas onde tinha ainda algumas fichas
De repente, comecei a ouvir “tlim, tlim, tlim”, que nunca mais para-
va. Encheu o pacote com as fichas, mas como continuavam a cair,
colocou-me nas mãos, pedindo para o guardar enquanto ia buscar
outro. Fiquei especado à sua espera. Quando voltou, encheu o novo
pacote e eu dei-lhe o primeiro. Foi então que lhe disse: – A senhora
já ganhou bastante, por que é que não vai para casa? Já é tão tar-
de! Respondeu-me, ao mesmo tempo que segurava os dois pacotes
cheios de fichas colados ao peito, com um enigmático sorriso: – Pois,
pois! Fiquei convencido de que ia mesmo, mas, mais tarde, encontrei-
a agarrada a outras máquinas. Afinal ainda lá andava. Devia ser a últi-
ma a sair.

A outra recordação tem a ver com o Bertinho, cauteleiro da minha


terra, que já morreu. Recordo-me dele desde pequeno. Baixo, ema-
nando um sorriso suave que nunca largou, adejando as cautelas com
a mão esquerda, boné de pala ligeiramente inclinado e um cigarro
“permanentemente” colocado entre o indicador e o médio da mão
direita. “Deu” por várias vezes a taluda e muitos outros prémios choru-
dos. Quando me via, tentava impingir-me uma cautela. Dizia-lhe que
não tinha sorte ao jogo, que não valia a pena mas, com aquele sorriso,
acabava por me convencer. Após o pagamento, os dois dedos, que
estrangulavam o cigarro, alçavam a pala do boné, tombando-a num
sinal de agradecimento.

A primeira vez que o vi sem um cigarro foi quando me consultou.


Queixava-se de um quadro de grave défice de circulação arterial dos
membros inferiores devido a décadas de consumo de tabaco. Expli-
quei-lhe a gravidade da situação e o que iria acontecer se não dei-
xasse de fumar. O risco de amputação era uma realidade dramática.
Contei-lhe, também, certos casos em que a dependência do tabaco
era de tal ordem que, inexplicavelmente, muitos doentes preferiam
ficar sem as pernas do que abdicar do hábito! E era verdade, porque já
os tinha observado no hospital. – Sabe Bertinho, o senhor nunca me
deu a sorte grande, mas eu podia dar-lhe a taluda. Gostava que um
dia, quando fosse enterrado, levasse consigo as suas pernas. Passadas
umas semanas, apareceu-me a dizer que se sentia muito melhor, não
tinha dores e conseguia caminhar normalmente. – Isso quer dizer que
já não fuma. – É verdade senhor doutor, o último cigarro fumei-o à

70
porta do seu consultório da última vez.

De tempos a tempos via-o com as cautelas na mão esquerda, ema-


nando um sorriso suave e com os dedos indicador e médio da mão
direita a estrangularem um cigarro imaginário, ao mesmo tempo que
empurravam a pala do boné que, logo de imediato, descaía, o seu
típico sinal de saudação. Viveu muitos anos e foi enterrado com as
pernas.

O sorriso suave do Bertinho contrasta com o sorriso “pois, pois”, quer


da velha do casino, quer do “tetraenfartado” a quem não consegui dar
a taluda. Bem teria gostado...

71
y
Pulseira do equilíbrio

Uma jovem de 26 anos, obrigada pela legislação a fazer exame mé-


dico, chamou-me a atenção pela jovialidade, simpatia e por usar no
pulso esquerdo dois relógios. – Este pessoal passa-se da cabeça. Dois
relógios! Após este breve pensamento passei ao interrogatório e exa-
me físico. Ao proceder à medição da pressão arterial aproveitei o ato
para analisar os dois relógios. Não eram dois relógios, mas sim um e
uma pulseira cor-de-rosa com dois hologramas. – Que raio de pulsei-
ra! No final, perguntei-lhe se me podia dizer o que era aquilo, porque
nunca tinha visto nada de semelhante. Olhou-me com uma expres-
siva exclamação facial e, ao mesmo tempo que me dava a oportuni-
dade de a ver mais de perto, disse: – Não sabe o que é? – Não! – É a
pulseira do equilíbrio! – Como? – Pulseira do equilíbrio. – E serve para
quê? – Para mantermos o equilíbrio, o bem-estar, para termos mais
energia; não vê estes hologramas? Um é o polo positivo e o outro é o
negativo. Olhei para a pulseira, reles, de plástico, com dois hologramas
a dizer qualquer coisa em inglês, apalpei-a e não achei nada de espe-
cial, a não ser o seu uso por uma jovem que tinha um nível cultural
aparentemente elevado, e uma experiência de vida rica para a idade.
– E funciona? Perguntei-lhe. Riu-se, embaraçada, e rematou: – Não
tem evitado alguns tropeções!

– Sabe? A sua pulseira fez-me recordar uma velha tia e uma história
que lhe vou contar quando era pequeno. Aconteceu há meio século.
A minha tia Custódia, solteira, que conheci sempre velha, de voz toni-
truante e com duas manápulas capazes de dobrar o cachaço a um boi,
tinha o hábito de contar histórias, inicialmente agradáveis, acabando
sempre por as terminar de forma a chatear-me, - um estupor. Um dia
comprou uma pulseira magnética na feira que não lhe ficou barata
(pelo que a ouvi dizer à minha avó). Mas como lhe disseram que era

73
o melhor que havia para o reumático não hesitou. A pulseira compor-
tava vários elos, quadrados, feitos de latão, e dentro de cada um de-
via haver qualquer coisa, porque se ouvia quando a chocalhava. Feia,
mas fascinou-me de imediato devido à atração entre os elos. Abria a
pulseira e depois, lentamente, aproximava-os até sentir uma força de
atração e zás! Colapsava-se. – Mas como é possível uma coisa destas?
Parecia um milagre. Intrigado com o interior dos elos, aproveitei uma
distração da minha tia. A pulseira estava sobre a cómoda do quarto.
Entrei, peguei no “antirreumático” magnético e, com a ajuda de uma
chave de fendas, consegui retirar do interior pequenos cubos negros
com os quais comecei a fazer comboios e vê-los a chocar sozinhos
entre eles. Uma delícia. O pior foi a seguir. Ao ver o estado em que
se encontrava o remédio para as suas dores, não lhe foi difícil saber
quem teria sido o autor. Sem dizer uma palavra, e com o resto da
pulseira na mão esquerda, pregou-me um estalo de tal ordem que caí
desequilibrado no chão. Vi estrelas, como se tivesse sido atropelado
pelas enormes máquinas a vapor que puxavam o comboio-correio.
Umas bestas, mas a minha tia também não lhes ficava atrás.

A jovem sorriu. Antes de se levantar informou-me do preço, como


adquiri-la e as cores disponíveis. Ao sair, disse-lhe em jeito de desaba-
fo: – Se a minha tia Custódia na altura usasse uma coisa destas, não
teria levado na cara e nem perdido o equilíbrio...

Cinquenta anos depois, tudo na mesma, ou pior! Bom, pior não digo.
Pelo menos desta vez não estraguei a frágil pulseira...

74
z
Purgatório

Quando era miúdo massacravam-me o juízo com a ameaça do Infer-


no sempre que fazia asneiras e, na melhor das hipóteses, iria, quando
morresse, para o purgatório, já que não tinha perfil ou capacidades de
ir para o céu. Claro que não era um santinho, nem para lá caminhava.
Mas já começava a ter algumas dúvidas sobre alguns santos, isto é, se
teriam direito a tamanho estatuto. As minhas dúvidas sobre quanto
tempo teria de permanecer no purgatório nunca foram devidamente
esclarecidas. Diziam-me que podia lá estar por pouco tempo, séculos
ou muitos milhares de anos. – Séculos?! Mas não há possibilidade
de encurtar o tempo? Perguntei, com a maior naturalidade. – Sim, se
alguém rezar por nós e se dermos esmolas para as alminhas do pur-
gatório. O que me foram dizer. Corri logo para a caixa das alminhas do
purgatório despejando as poucas moedas que levava para comprar os
cromos do futebol e uma caixita de chicletes. Foi um grande sacrifício,
confesso, mas ao mesmo tempo um alívio, ao pensar que poderia ter
encurtado a estadia de algumas almas, empurrando-as para o céu.
Desde então e durante algum tempo, investi o que podia ser, na altura,
considerado um verdadeiro PPRA (Plano de Poupança para a Rea-
bilitação da minha Alma). Sempre que via uma caixinha de esmolas
para as alminhas lá ia uma moedita. A outra situação em que dava
uma esmola era para o Senhor da Ponte, mas por outros motivos. O
Senhor, apesar de estar na cruz, numa capela octogonal, que só con-
seguíamos ver através de um minúsculo janelo gradeado, parecia que
piscava o olho ao pessoal, com um sorriso meio cúmplice, e ajudava-
nos nas nossas malandrices. Sucesso garantido, merecedor dos cinco
tostões, um escudo ou vinte cinco mil réis, consoante a gravidade do
disparate. Ah grande Senhor da Ponte!

O dia do juízo final constituía um grave problema caso me apanhas-

75
se ainda no purgatório. Corria o risco de não subir ou então ter que
descer.

O anúncio do fim do mundo é uma constante assustadora. Guerras,


ameaças climáticas, doenças infeciosas graves, bioterrorismo, bom-
bas nucleares, colisão com meteoros, tudo serve e está ao nosso
alcance. Mas, mesmo assim, é muito pouco provável que todos os
seres humanos sejam exterminados. Haverá sempre algumas bolsas
de resistentes, dotados de capacidades regeneradoras suscetíveis de
ultrapassarem os problemas. Não é a primeira vez que ocorrem gran-
des tragédias, o que poderá acontecer, caso aconteça uma grande
catástrofe, é o fim da civilização, o que não é sinónimo de fim da
humanidade. Mas os resistentes, apesar da regressão aos níveis mais
primários, acabarão por descobrir novamente as flechas, a roda, a má-
quina a vapor, o automóvel, a bomba atómica, os chips, os computa-
dores, os blogs e tudo o mais, e acabarão por arrebentar mais uma vez
este planeta. É uma questão de tempo. Sendo assim, vamos adiando o
dia do juízo final, o que é muito bom, porque espero poder ter algum
rendimento do meu investimento infantil, isto é, se entretanto não
liquidarem com o purgatório! Nunca se sabe...

76
w
Queda

Antes de saber o que era o efeito Doppler já o entendia perfeitamente,


bastava ouvir o roncar de um carro de desporto, único na região, a
galgar as curvas atapetadas pelos velhos paralelos. O som do motor
agudizava-se, ferindo pela enésima vez os tímpanos quando passava
em frente. A seguir, esperava, ou melhor, esperávamos, em silêncio
religioso, que tinha chegado a ocasião do Senhor da Ponte ser de-
fenestrado. A saída da ponte fazia-se num perfeito ângulo reto e o
condutor, louco, não curvava, utilizava o travão de mão para fazer
um "meio peão", continuando a galgar a subida numa velocidade fre-
nética. Não sei o que é que o Senhor da Ponte, que devia prezar o
silêncio da sua bela capela, pensaria a seu propósito, às tantas deve-
ria pensar o mesmo que nós, mas na sua qualidade de guardião da
ponte, e senhor do universo, dava-lhe algum desconto e endireitava
a viatura à saída, deixando-o ir em paz, mas sempre convicto de que
mais tarde ou mais cedo algo lhe aconteceria, porque não pode ir a
todas. Ao fim de quase dois milénios o tempo também faz os seus
estragos e a paciência já não é a mesma. As coisas mudaram muito,
no seu tempo não havia máquinas daquelas, apenas burros, cavalos,
camelos e carroças, que também causavam alguns problemas mas,
dadas as circunstâncias, até achava alguma piada àquele radicalismo
prenunciador de uma nova época, em que a velocidade seria rainha
da sociedade. Tudo isto se passou em meados dos anos sessenta.

O seu gosto por máquinas novas, e cada vez mais potentes, ofuscava-
lhe o discernimento quanto ao futuro, como se toda aquela imensa
fortuna o vacinasse eternamente ante qualquer infortúnio ou “malha-
dice” do destino. O fosso entre ele e os outros era tão evidente que
nós, os que vivíamos neste planeta, e também num mais do que pre-
visível e estranho país, não conseguíamos entender o que era ter tan-

77
to dinheiro e tantas mordomias. Foi através dele que soubemos que
existia tabaco Marlboro. Ficávamos fascinados quando rapava de um
maço, abria a caixa, retirava a cinta interna de prata e após acender o
cigarro ficávamos inebriados com aquele cheiro suave e perfumado
que contrastava com os nossos cigarros sem filtro, de sabor e cheiro
grosseiros, cheios de arestas que o fumo, entretanto, limava ao passar
através das nossas pobres gargantas.

Não sei se chegou a tirar o quinto ano, mas acho que não. Não tinha
tempo, nem paciência para essas miudezas, e nem precisava.

O tempo não para, exceto para os que morrem, por isso mesmo é que
são os únicos que sabem como ninguém o que é a eternidade. Mui-
tos anos depois, o Senhor da Ponte, também um pouco mais velho,
esqueceu-se de o proteger. Teve um acidente, não muito longe da
ponte, mas pelos vistos longe do Senhor. Uns tempos antes começou
a sinalizar algumas dificuldades, ele, que nunca trabalhou, resolveu
trabalhar, mas, afinal, mais valia não o ter feito, dado que o negócio
não lhe terá corrido bem.

O afastamento foi-se construindo, exceto nalgumas circunstâncias em


que a minha mais ou menos novel qualidade profissional assim o exi-
gia. Não era o mesmo, as capacidades mentais tinham sofrido muitas
alterações depois do acidente esperado há mais de vinte anos, quan-
do me inteirei do efeito que mais tarde viria a conhecer por Doppler.
Acabou por acontecer o desastre de viação, agora faltava o desastre
económico. Lenta, mas com firmeza, a decadência foi-se instalando,
e a enorme fortuna dissipou-se. Cheguei a vê-lo algumas vezes, en-
velhecido, apagado, revelando uma promissora e mais do que certa
tragédia. Saiu da localidade. Aparecia de vez em quando, como que às
escondidas, fugindo aos olhares dos que o viram naquela época áurea
de máquinas poderosas e dos maços de Marlboro.

Soube que tinha falecido por mera casualidade. Tudo por causa de
um outro falecimento que ocorreu na semana anterior e que, tam-
bém, tive conhecimento por acaso. Não era muito mais velho do que
eu, teria mais três ou quatro anos. Pedi alguns pormenores. Fiquei
estarrecido. Numa miséria total. Vivia do rendimento de inserção mí-
nimo e estava num lar. Um desastre!

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A ponte há muito que está submersa. A capela foi retirada do seu sítio.
Colocaram-na num local onde o Senhor da Ponte pode ver ou ouvir
os carros a passarem, mas não é o mesmo. Não sei se ainda se lembra
daquele "meio peão", louco, muito louco, que ele fazia mesmo à sua
frente e que deveria diverti-lo. Evitou tantas vezes o acidente, exceto
daquela vez em que não se apercebeu. Em memória dos velhos tem-
pos, apetece-me dizer-lhe o seguinte: – Já que evitaste tantas vezes o
desastre, também poderias ter evitado este, o desastre da decadência
humana...

79
A
Raminho de alecrim…

Uma doente minha, de idade, verdadeiro símbolo da simplicidade hu-


mana, entrou no consultório empunhando o lenço com o qual limpa
a saliva que, permanentemente, escorre de uma boca desdentada, e a
chorar. É comum entrar assim, habitualmente, vem sempre acompa-
nhada do filho, também ele um simplório a raiar a idiotia, que a mãe
carinhosamente reconhece: "Nasceu assim"! (Diz, volta e não volta).

As queixas e a profunda tristeza são, invariavelmente, devidas ao ma-


rido que, desde que a catrapiscou, foi sempre um torturador. Levou-a
para Angola, fez-lhe os filhos, chegando a dizer que não eram dele,
mas sim, dos pretos – “como se isso fosse possível, porque eram bran-
cos”, justificava. A violência com que foi presenteada ao longo da sua
existência é indescritível. Mesmo agora, o marido dividiu a casa, proi-
bindo-a de entrar na sua parte, cortando sempre que lhe apetece a
água e a luz, além de ameaças de morte a ambos, mãe e filho. Pensei
que desta vez tivesse ocorrido mais uma do estilo, mas não, agora foi
pior. Reparei que vinha de preto e que não trazia na outra mão, com a
qual empunhava a bengala, o tradicional raminho de alecrim.

Há muitos anos fiz-lhe uma pequena observação sobre o ramito e


explicou-me que era para dar cheiro. – Quer ver Sr. Doutor? É assim:
esfregou o ramo entre as mãos, passando-as depois pelo pescoço e
cara. Ao dar esta explicação, com uma voz muito fina e difícil de en-
tender, agravada pela falta de dentes, riu-se muito envergonhada. Uma
das raras vezes que a vi sorrir. A partir de então, quando abandonava a
consulta, deixava em cima da secretária um raminho de alecrim!

De preto, a chorar, sem o alecrim e sem o filho, perguntei o que se ti-


nha passado. Demorei um pouco a perceber que o filho tinha falecido

81
há três semanas. – Morreu?! Mas como? Explicou-me que o filho tinha
entrado na cozinha e que caiu. Foi ver o que se passava e ao tentar
levantá-lo viu que não bulia: estava morto.

– Foi do coração não foi Sr. Doutor? – Deve ter sido, claro. Mas ele
andava doente? – Não! Andava bem!

Quando vinha com a mãe à consulta, sentava-se, permanecendo ca-


lado durante todo o tempo. Muitas vezes tive que o interpelar, por-
que o seu silêncio era confrangedor. Consegui retirar meia dúzia de
frases! No entanto, ajudava a mãe mesmo com as suas limitações. O
pai maltratava-o constantemente, ameaçando de múltiplas maneiras.
A mãe dizia que o seu filhinho sofria muito com o comportamento
do pai, desde que nasceu há 53 anos. Ainda antes de morrer, o pai,
ameaçou-o de morte, porque lhe atribuía o desvio da água do depó-
sito durante a noite.

Sempre num tom desolador ouvi atentamente o seu relato e queixas.


É o segundo filho que deixa no cemitério. O primeiro morreu de can-
cro do estômago aos 26 anos e drogava-se. “Nessa altura quis que eu
fugisse para a África do Sul por causa do pai. Mas viemos na onda dos
retornados”. Perguntei-lhe se o pai foi ao funeral. Disse que sim, mas
não devia ter ido. – Sabe o que ele me disse ontem? Que afinal não é
o filho que desvia a água do depósito, porque estava morto! – Sabe,
ele esquece-se de ligar o botão do motor do poço!

A conversa foi-se desenrolando, sempre ao redor de muitas cenas e


acontecimentos desagradáveis, até que se foi embora. Ajudei-a a des-
cer as escadas, convicto de que muito provavelmente não terei mais
acesso ao raminho de alecrim que, discretamente, “esquecia” em cima
da minha secretária.

Diz o povo que cada um sabe de si e que Deus sabe de todos. Pode
ser que seja, o que é certo é que eu também sei de alguns...

82
B
Roteiro de cheiros

Sábado de manhã. Os sinos tocam a finados, perturbando a beleza


de um sol arredio e a tranquilidade de um curto repouso. – Quem
terá morrido? Olho, instintivamente, para o outro lado da praça na
esperança de ver os anúncios da morte. Dois! Aproximo-me e fico
surpreendido. Sempre que conheço alguém, seja qual for a sua idade,
a morte, mesmo que anunciada, causa-me uma certa surpresa e um
profundo mal-estar, porque não consigo imaginar que venha a acon-
tecer. Mas tem que acontecer...

Conhecia perfeitamente um dos dois. Quanto à outra, o nome dizia-


me qualquer coisa, mas não consegui identificar quem era, até que,
durante a tarde, disseram-me que era a petroleira. Foi então que uma
sucessão de pensamentos começou a percorrer o meu córtex frontal.
De súbito, senti o cheiro do petróleo misturado com o ar adocicado
do armazém, ambos dominados pelo forte aroma libertado pelos ba-
calhaus salgados pendurados nas traves do armazém, a lembrar as
flores de papel dos arraiais populares. Gostava de cheirar aquela es-
tranha mistura, inconfundível, de uma forma de comércio que em
tempos caracterizava as pequenas comunidades. Ao odor típico do
espaço comercial associei o sabor das pequenas lascas de bacalhau
que, amavelmente, a dona concedia a pedido, ou que surripiava sem
que visse. Chupava aqueles pedaços com um prazer difícil de explicar.
Estas lembranças originaram, ato contínuo, a criação de um roteiro de
cheiros e aromas que poderia identificar com os olhos fechados! Ao
sair de casa, o cheiro característico da serradura da fábrica dava-me
os bons dias. Ao passar pelo Costa levava nas ventas com a erupção
típica de uma taverna, que quase dispensava o loureiro. Mais abaixo,
a padaria anunciava a sua presença inundando-me do sabor a pão
fresco para, logo a seguir, levar com uma corrente de ar a cheirar a

83
álcool proveniente da barbearia de portas abertas. Bastava dar meia
dúzia de passos e o cheiro a colas marcava o território do sapateiro
que, rapidamente, dava lugar aos odores nauseabundos e agressivos
do talho. Passava à velocidade da luz na ânsia de me acalmar, aspi-
rando os aromas adocicados da farmácia vizinha em que os perfumes
imperavam. Mais à frente, salivava com as invisíveis nuvens de prazer
provenientes da torrefação do café ou dos amendoins, a ponto de a
roupa ficar impregnada para todo o dia. Aqui, invariavelmente, parava
durante algum tempo. Ao passar pela Fornecedora não ligava aos aro-
mas que as farinhas se entretinham a libertar dos sacos acumulados,
a não ser nos dias em que a torrefação não funcionava. Do outro lado
da rua, além do cheiro típico da petroleira, o suor das mulas e dos
cavalos, e os excrementos dos animais, que iam ao ferrador, não cau-
savam grande asco. Às tantas deveria ser um mero efeito da queima
do carvão e do calor provenientes das forjas do meu primo Porrudo,
situado praticamente em frente. Ao passar pela Estação, o cheiro a
creosote usado nas travessas estimulava os sentidos. De todos, o que
mais me seduzia era o sensual cheiro a café de saco que inundava o
pequeno jardim proveniente do “Zé do Café”. Um cheiro inconfundível
que se perpetuava noite e dia. Na própria gare, o cheiro à cola de tri-
go entremeava-se com o aroma de laranjas do vendedor Humberto.
Ao lado, antes de chegar aos sanitários, lançavam, frequentemente,
num pequeno tanque, restos do carbureto que, em contacto com a
água, libertava o gás que tinha o condão de penetrar profundamente
no nariz a ponto de me provocar dores, conseguindo, deste modo,
reduzir a desagradável sensação olfativa do “mijo” em decomposição.
Acelerava o passo, ou melhor, corria para chegar ao jardim florido que,
discretamente, perfumava os sentidos. Quando ia à vila, passava por
uma tasca onde os aromas acumulados de vinho impregnavam tanto
as madeiras das habitações como os paralelepípedos da rua. Se fosse
pela calçada, o armazém de sal, fonte de uma secura fria e sepulcral,
incomodava-me sobremaneira. Logo a seguir, passava pela fábrica de
sabão que lançava as escorrências a céu aberto, obrigando-me a sal-
tar os carreiros azulados e apontar o nariz para a resineira na espe-
rança de aspirar os vapores inebriantes do pez. Ao descer a calçada
romana retardava o passo para desfrutar a tranquilidade dos aromas
das mimosas que desapareciam a meio da ponte. Neste local, aspirava
longa e profundamente a frescura e o cheiro único da água doce do
rio, capaz de limpar todos os cheiros e até os fedores emanantes de

84
muitas almas. Na subida, regressavam os aromas das mimosas, subs-
tituídos pelas fragrâncias das flores dos campos e dos jardins anun-
ciadores da chegada à vila. Nesta, tinha que passar pela praça onde o
cheiro a peixe conseguia reinar sobre quaisquer outros. Até as pedras
não conseguiam libertar-se de tão desagradável “fedor”.

Cheiros? Muitos! Mesmo muitos, a ponto de conseguir desenhar ma-


pas com base nos mesmos. Mapas geográficos, mapas de sentimen-
tos, mapas de angústias, mapas de desejos, mapas de tristeza e de ale-
gria. Mapas de vida. O que seria da vida e da memória se não fossem
os cheiros e aromas? Uma sensaboria!

Se a leitura de uma morte foi suficiente para estimular um roteiro de


diferentes odores é pena que a escrita não consiga libertá-los. Talvez
a leitura consiga...

85
C
Rua de almas

Viseu. Meio-dia com um sol radioso e vento fresco. Ruas semidesérti-


cas. Procuro um restaurante para almoçar. Esbarro com o “Hilário” na
rua com o mesmo nome, onde nasceu um dos mais famosos boé-
mios de Coimbra.

Ouvi pela primeira vez o seu nome quando o Arvelos cantava ao fim
da tarde, bêbado que nem um cacho, o fado Hilário, junto ao pontão
do caminho-de-ferro, com uma voz triste, mas bem timbrada, que o
álcool não conseguia roubar. Tinha dias. Quando dava para a tristeza,
em oposição a momentos mais alegres, em que entoava músicas e
versos muito “marotos”, era certo e sabido que tinha de ser aquele
fado.

A minha capa velhinha


É da cor da noite escura
Ela quer acompanhar-me
Quando for p’rá sepultura

Conheço aquela rua há muito tempo, mas só hoje é que parei e esco-
lhi uma casa de pasto, embora se autointitulasse restaurante. Simples,
desde o espaço às pessoas, comida incluída, mas saborosa. Nas pare-
des, quadros, relíquias e um resto de capa de estudante rasgada presa
à parede com uma fita de grelo amarela, a homenagear o boémio que
morreu precocemente.

Ela há-de ir contar aos vermes


Ai, já que eu não posso falar
Segredos luarizados
Ai, da minh’ alma a soluçar

87
Uma certa nostalgia emergia naquele espaço a que não era estranho a
violenta luz do sol arrefecida por um vento caprichoso e pelas poucas
almas que passeavam nas redondezas. Uma estranha sensação que já
vivi em alguns funerais.

Eu quero que o meu caixão


Tenha uma forma bizarra
A forma de um coração
Ai, a forma de uma guitarra.

Rua de almas. Antes de almoçar cruzei com uma. Conheço-a desde


os meus tempos de criança. Nasceu e criou-se na minha terra. Olhou-
me e não me reconheceu, nem desta vez, nem nas anteriores. Ocupa
invariavelmente um pequeno espaço num cruzamento de velhas ar-
térias. Desta feita parecia uma sentinela, rígido, sob a ombreira de uma
porta, recatado, com barba por fazer mas cuidada. Olhos tristes à pro-
cura de alguém ou à espera de qualquer coisa. Imóvel, sem expressão
facial, sem a alegria e a vivacidade de outrora em que, na sua terra na-
tal, vendia felicidade e exuberância, cativando os amigos e os mais pu-
tos. Um dia foi trabalhar para Viseu e deixou de ir à terra natal que dista
apenas umas seis léguas. Nunca soube porquê! Impressionou-me a
sua atitude. Nunca me lembro de que posso encontrá-lo, mas, quase
sempre que vou à minha cidade preferida, esbarro na sua figura. Pare-
ce uma flor solitária a murchar lentamente com a passagem dos anos,
à espera de algo naquele belo cruzamento. À espera de quê? Não sei,
sinto que aguarda alguém que nunca voltou a aparecer, acabando,
um dia, por ele próprio desaparecer. Talvez seja isso. Está à espera de
desaparecer, como outros que vi ao longo do tempo deambular na-
quelas vias ansiosos por encontrarem uma saída. Eram sofredores da
minha terra e só a morte foi capaz de os acalmar. Se houvesse purga-
tório, aquele espaço poderia reivindicar aquele estatuto.

Quando dou por mim verifico que já tinha calcorreado mais do que
uma vez as estreitas ruas. Um ritual que se repete sempre que passo
por aquelas bandas. Ao olhar para a casa onde nasceu o Hilário, re-
cordo que o cantador da minha terra, a quem ouvi pela primeira vez o
seu fado, também andou por ali ondulando ao sabor do acaso e à in-
diferença dos homens como uma velha e rasgada capa de estudante...

88
A minha capa ondulante
Foi feita de negro tecido
Não é capa de estudante
Mas é capa de vencido

89
D
Santas Combas

Portugal não é um país muito rico em santos embora, de vez em


quando, um ou outro acabe por subir aos altares. Dos poucos existen-
tes, uma parte muito significativa de santos lusitanos foram “produzi-
dos” antes de nos transformarmos em reino independente, acabando
por serem nacionalizados.

Numa das minhas incursões a alfarrabistas, que são cada vez mais
raras devido aos múltiplos afazeres, encontrei alguns volumes da Co-
leção Educativa que fazia parte do plano de educação popular do Es-
tado Novo. Pequenas obras didáticas. Uma delas intitulava-se “Santos
de Portugal” da autoria de Américo Cortez Pinto.

Ao folhear o pequeno volume, deparei-me com um curto capítulo


sobre Santa Comba acompanhado de uma pequena gravura a repre-
sentar cinco santas. Afinal, de acordo com o autor, houve cinco Santas
Combas. Atendendo ao facto do capítulo não ser muito extenso, o
melhor é transcrevê-lo:

“Santa Comba! Santa Pomba! Quantas pombinhas do Céu poisa-


das na nossa terra!
Desde o norte até ao sul, poisam as Santas Combas em Capeli-
nhos e em ermidas, e abrigam-se nos nomes das povoações por
toda a parte, como se a revoada dum pombal se espalhasse pela
nossa terra inteira!

Santa Comba do Lima, Santa Comba Dão, Santa Comba de Sines,


e quantas, quantas mais!...

Que eu saiba são dezanove povoações espalhadas pelas nossas

91
províncias, e mais uma em Trás-os-Montes com seu diminutivo
carinhoso: - Santa Combinha!

Isto nos diz, mais do que tudo, do amor e devoção que desde
tempos muito antigos tiveram sempre por Santa Comba as gen-
tes de Portugal.

Por Santa Coma, não: - pelas Santas Combas, que elas foram cin-
co! Santa Comba de Entre Douro e Minho, Santa Comba de Trás-
os-Montes, Santa Comba de Lamego, Santa Comba de Coimbra,
Santa Comba do Alentejo, cinco pombas, cinco Santas que foram
Mártires, todas cinco formosas e castas, com suas verdes palmas
abraçadas ao peito, por preservarem a sua Fé e virgindade.

Santa Comba de Entre Douro e Minho, foi uma das nove irmãs,
todas santas, filhas de Lúcio Caio Atílio, Cônsul Romano, que fo-
ram todas martirizadas por ordem do Imperador numa das per-
seguições aos Cristãos da Península.

O mesmo aconteceu a Santa Comba do Alentejo que por não


renegar a sua fé foi degolada numa das outras perseguições que
trouxeram a morte aos cristãos da Lusitânia.

Santa Comba de Coimbra, por não abandonar a Fé de Cristo e


para resistir às perseguições dum Príncipe pagão que a reques-
tava, refugiou-se num bosque dos arredores, que o tirano, de-
sesperado, mandou incendiar para lhe dar batida. E como o fogo
respeitasse o bento corpinho da Santa, amarraram-na a uma
frondosa árvore e ali a cravejaram de setas até que a sua alminha
voou para o Céu como se fora uma pomba que do peito lhe fu-
gisse para o seio do Senhor!

A outra Santa Comba, que deu o nome a Santa Comba Dão, era
Abadessa do Mosteiro da Tourega, perto de Lamego, e ali foi
morta pelos moiros, com todas as suas religiosas, numa investida
que os Infiéis fizeram às terras dessa província.

E vem por último a Santa Comba de Trás-os-Montes que deu


o nome à Serra de Santa Comba, a Santa Combinha, e a outras

92
povoações da mesma província. Foi também perseguida por um
rei moiro que tudo fez para atentar contra a sua pureza. E tendo
esgotado todas as forças contra a violência do renegado, Deus a
tornou invisível, e desta maneira se lhe escapou dentre os braços
sem que o perseguidor pudesse entender como ela levara sumi-
ço do cerco das suas mãos. Tão irado porém se pôs o malvado
moiro que mais tarde para satisfazer a sua vingança a degolou a
ela e a um irmão. E foi mais uma alminha doutra Santa Comba
que voou da terra direitinha aos Céus.

Cinco Santas Combas, cinco alminhas voando no firmamento


sob a bênção de Deus e a cobrirem com o voo das suas asas
tantos montes e vales e tantos ermos e povoados da terra por-
tuguesa!

Que elas acompanhem as nossas almas ao Céu, como um ban-


do de aves, puríssimas, na hora da nossa morte, Ámen.”

Este pequeno texto é delicioso, permitindo-nos ficar com uma visão


mais ampla das Santas Combas do nosso país, porque também exis-
tem noutros, Espanha, França, Itália, Inglaterra. No tocante à Santa
Comba que está na base do epónimo de Santa Comba Dão, a lenda
da cidade diz que foram as monjas e a abadessa que se libertaram da
vida e que viviam num mosteiro à beira do Dão. Seja como for, uma
lenda é sempre filha da verdade e da fantasia e o mundo precisa cada
vez mais de fantasias...

93
E
Santo Onofre nos valha!

Época de festividades é sinónimo de confraternização, de bons almo-


ços e jantares e uma ótima oportunidade para rever amigos e falar de
múltiplos temas. Atendendo à situação de momento, crise económi-
ca e financeira, é percetível um certo desconforto e apreensão quanto
ao futuro, apenas mitigado, embora temporariamente, pelo bacalhau
cozido e o imprescindível acessório, o tinto.

Num destes convívios, o parceiro do lado, entre duas garfadas, atira


para o grupo: – Vejam lá que estamos a endividar-nos ao ritmo de
dois milhões de euros por hora. Olhámos uns para os outros, e eu
comecei a calcular que no final de jantar seriam mais seis milhões
de euros. Não me tirou o apetite, mas despertou-me a atenção para
um pequeno artigo que tinha lido naquela manhã e, quando alguém
começa a falar de tragédias, aparece sempre mais um a lançar gaso-
lina no fogo. É típico dos portugueses. E foi o que eu fiz. – Então os
senhores já sabem que “entre o aumento de receitas e diminuição
de despesas, o Estado Português para reduzir o seu défice anual para
os 3% precisa de 10 mil milhões de euros”? Ah! Não sabiam. O pior é
que para alcançar esse objetivo teria de subir a taxa máxima de IVA
para 35%, ou subir a taxa máxima do IRS para 87% (e as outras em pro-
porção); ou reduzir em 47% os salários da função pública e, esperem
aí, eu tenho aqui o recorte da nota do Daniel Bessa. E passei a lê-la.
Durante aquele período de tempo, corri o risco de dar cabo do jan-
tar, esfriando o bacalhau. Estava a ver que o jantar ia para o “galheiro”
quando uma das colaboradoras, que andava a servir-nos, uma mulher
do povo, de língua solta, analfabeta, mas não parva, useira e vezeira
da mais pura linguagem vicentina, salvou a situação. – Então senhor
Doutor, está tudo bem? O bacalhau está bom? – Está sim senhora.
Respondi. – E o senhor anda bem? – Ando, felizmente. E a Maria? – Eu

95
também ando, nem dinheiro me falta desde que arranjei um Santo
Onofre. – !!! Arranjou o quê? – Um Santo Onofre! – Sim. Arranjei um
Santo Onofre, tirei a parte de baixo, que era de madeira, enfiei-o numa
taça com aguardente até os joelhos do santo e coloco todos os dias
um euro. – Explique-me bem, que eu não estou a perceber. – O Santo
Onofre é o santo da prosperidade. Coloca-se um euro, diariamente, e
reza-se uma oração durante 21 dias. Ao lado direito do santo põe-se
um copinho de água com um raminho de salsa. Foi então que lhe dis-
se: – Já que está enfiado em aguardente até aos joelhos, a água deve
ser para a ressaca! – Mas olhe que a aguardente desaparece todos os
dias. Veja lá que no primeiro dia, o gajo, que é “bêbado que nem um
caraças (esta do caraças é a versão soft)”, bebeu toda a aguardente.
Todos os dias tenho que botar mais.

A conversa continuou e fiquei a saber que teve de o esconder, porque


o homem, que anda sempre “teso”, foi-lhe um dia ao santo. Desco-
berto pela mulher, desabafou, dizendo que, afinal, o santo tem mais
sorte do que ele, não anda “teso”, dão-lhe dinheiro e ainda por cima
“bebe” aguardente. A partir daqui a conversa tornou-se mais vicentina,
ficando a conhecer o percurso da imagem, que até foi enviada para a
capital para ser benzida. Nesta altura, alguém lhe perguntou: – Com-
praste o santo e mandaste-o para Lisboa para ser benzido?! E foi sozi-
nho? – E não teve medo! Ripostou de imediato em tom de escárnio.

Independentemente dos aspetos mais caricatos da conversa, a se-


nhora é mesmo devota, acredita piamente naquilo que faz, a ponto
de me prometer que, no dia seguinte, iria lá a casa mostrar o santo.
Foi então que eu comecei a engendrar uma solução para a crise do
país. O governo da República deveria arranjar muitos Santos Onofres,
mergulhados em taças cheias de aguardente até aos joelhos, onde os
diferentes ministros lançariam diariamente não um euro, claro está,
mas uns bons milhões. E a mesma medida também podia ser ado-
tada à porta da maioria das câmaras municipais do país. Aguardente
é coisa que não falta por aí e enquanto for o santo a “beber” não virá
mal aos fígados nacionais. Onofre, como é santo, deve ter maneira de
proteger o seu! No final, o país até poderia ficar mais próspero.

No domingo de manhã, tal como me tinha sido prometido na vés-


pera, o Santo Onofre da vizinha entrou-me em casa numa taça com

96
aguardente e cheia de moedas de um euro. Peguei numa moeda e
fiquei com a mão impregnada do seu cheiro. Pus-me a pensar: – No
dia em que tirar notas de euro da minha carteira a cheirar a aguarden-
te, então, o país estará salvo! A não ser que, entretanto, a bebam toda...

97
F
Seios

Uma das mais antigas recordações prende-se com um volumoso par


de mamas de uma mulher recém-parida, minha vizinha. Na altura,
medicamentos para tratar doenças tão simples como era o caso das
otites não existiam. As dores eram insuportáveis e gritava que nem um
desalmado. A meio da noite, levaram-me à casa do outro lado da rua.
De repente, vejo a despontar perante os meus olhos uma volumo-
sa e quente mama com um mamilo grosso e muito escuro a tentar
enfiar-se no meu "minúsculo" meato auditivo. Impossível, atendendo
às dimensões de ambos. O que é certo é que ato contínuo senti um
jato de líquido morno no ouvido, que acabou por escorrer, também,
pela face. A lembrança do alívio das dores foi tal que, a partir daquele
momento, quando olhava para as mamas das mulheres, sentia que as
mesmas tiravam as dores.

Muitos anos mais tarde, uma familiar de idade muito avançada, com
queixas muito dolorosas numa anca, que não aliviavam com nada,
levou a um diagnóstico de metástase óssea. A procura do tumor pri-
mitivo foi um tormento, até que um dia, depois de muitos exames,
perguntei-lhe se não tinha nada no peito. Respondeu-me que tinha
uma "coisita", mas não devia ter importância. Já a tinha há muitos
anos! Sem pedir licença - mandei às malvas qualquer pudor - desnu-
dei-lhe a mama direita. Fiquei aterrorizado com o que apalpei. Não lhe
perguntei qual a razão de não ter dito nada. Já sabia. Pudor por um
lado, e recusa em aceitar o que quer que fosse, por outro. O que se
seguiu não tem descrição.

Recordei-me deste último episódio, quando, há duas semanas, estava


a ver uma velhinha simpática, prestes a fazer 88 anos e cuja lucidez
faz inveja a muita gente. Repentinamente, a filha, com quase 70 anos,

99
disse-me que a mãe tinha qualquer coisita na mama. Perguntei-lhe
se tinha há muito tempo. Respondeu-me a simpática senhora, an-
tecipando-se-lhe, que não, apenas há cerca de um mês. Senti um
estremeção e com muito cuidado tirei-lhe a blusa. Olhei, e bastou
tocar com as pontas dos dedos para ver o que se tratava. Um mês?
Qual quê?! Quantos e quantos! Não fiz quaisquer comentários e co-
mecei a providenciar a resolução do problema o mais rapidamente
possível. Mais uma vez estava perante a mama da dor, do sofrimento
e da morte.

Claro que nem sempre a mama é encarada das formas já descritas.


Cantadas pelos poetas, desenhadas pelos pintores, e fabricadas pelos
escultores, adquire sentidos e tonalidades, que vão desde o erotismo
à expressão mais sublime de carinho e ternura que é a maternidade.
Que o digam os "recentes", mas polémicos, poemas eróticos do espa-
nhol Juan Ramón Jiménez a propósito da sua estadia, e experiência
sexual com três freiras, num sanatório nos princípios do século XX. "E
teus peitos...como estão os teus peitos?". Mesmo assim nada que se
compare ao Cântico dos Cânticos, onde se podem ler os mais doces
e apaixonados arrebatamentos sobre os seios.

Muitas representações são tão belas a ponto de despertar desejo e


atração como se tratassem de Galateias animadas de vida, enlouque-
cendo Pigmaleões. A mama do desejo, do prazer, do amor. Mas a
mama pode ter outras utilizações, como sinal de protesto, por exem-
plo, contra os utilizadores de peles, ou para chamar a atenção para a
necessidade de promover a amamentação natural, contrariando os
interesses da indústria alimentar ou quaisquer outras formas menos
corretas, como aconteceu, recentemente, em Manila. Mama de pro-
testo.

Há, também, situações bizarras, como a utilização de modelos "to-


pless", em vídeos, empunhando placas com limite de velocidade para
alertar os automobilistas nas estradas dinamarquesas. Incitativa pro-
movida pelo governo e que originou contestação. A "mama da pre-
venção rodoviária"!

Com o objetivo de angariar fundos para a pesquisa contra o cancro,


milhares de mulheres londrinas, vestindo soutiens decorados, percor-

100
reram as ruas londrinas. Neste caso, a mama reveste-se de angaria-
dora de fundos.

A "mama publicitária", utilizada até à exaustão, começa a suscitar re-


paros de monta, porque constitui um atentado à imagem da mulher.
Enfim, muitos significados e muitas utilizações!

Até a própria humanidade, com todas as suas particularidades, pode


ser vista através dos seios, que diga a obra com o mesmo nome,
“Seios”, do genial Ramón Gómez de la Serna. No capítulo, "O Xilofo-
nista dos Seios", Ramón escreve: "Cada seio tem um matiz musical. A
única coisa a fazer é encontrá-lo".

E encontramos! Desde belíssimos cambiantes a outros muito tristes...

101
G
Sons

Noite de verão, agradável, não muito quente, porque a meio de Agos-


to começa a sentir-se, ao princípio da noite, uma brisa que arrefece e
que a ribeira sabe aproveitar para, de forma silenciosa, se manifestar
em contraste com o cantar e, às vezes, com a gritaria nervosa do in-
verno. As doze há muito que foram tocadas na torre, e os cantares da
festa, que inundaram o espaço e as almas dos foliões, silenciaram-se,
dando lugar aos assobios, ao queimar da pólvora e ao crepitar das
explosões dos efeitos do fogo-de-artifício. Calou-se o fogo, mas ainda
faltava um derradeiro som, o do morteiro. Um assobio mais longo e
agudo fez-se ouvir, seguido do característico pequeno trovão. Aca-
bou-se a festa, e eu entrei no silêncio.

O som do morteiro fez estragos, comecei a recordar outros sons, os


dos comboios a entrarem na estação, obrigando os carris a ranger de
dor e de raiva, as locomotivas a vapor, as grandes e poderosas, es-
pumando como se fossem touros desejosos de largarem à desfilada,
fazendo inveja às mais pequenas, as da via estreita, cujos apitos agu-
dos faziam lembrar vozes de pré adolescentes. Os toques da sirene
da fábrica de serração, a indicar as horas da entrada, do almoço e do
despegar, acompanhados dos barulhos das conversas dos operários,
do pigarrear matinal, das buzinas e campainhas das bicicletas, subi-
tamente substituídos pelo matraquear das máquinas, das cintas, do
cortar prolongado e irritante dos troncos de árvores, ou do seu apa-
gar para a hora de almoço, ou fim do dia, obrigavam-me a levantar,
a ir almoçar e que eram mais do que horas para fazer os deveres de
casa. Um relógio laboral que marcava a vida com o relógio da torre, o
ritual dos comboios, a azáfama dos passageiros, o lançar ritmado das
travessas transportadas às costas pelos carregadores, fazendo lembrar
Cristos transformados em Sísifos, que mais pareciam condenados às

103
galés do que seres livres, não emitiam sons, nem de dor nem de má-
goa, mas na hora certa, o acumular de muitos meios quartilhos liber-
tavam as línguas e, então, sabia que eram humanos.

O som matinal da campainha da bicicleta do padeiro despertava-me


o desejo de comer o pão fresco e ainda quente; o pregoar e as buzi-
nadelas do peixeiro obrigavam-me a correr na expectativa de poder
ver, debaixo do oleado, eventuais polvos no meio daquela salganhada
toda; a corneta do petroleiro associava-a ao cheiro do café de cevada
e aos brindes, cavalinhos de baquelite, de várias cores, cujas patas e
cabeça balanceavam ao toque; o linguajar, ameaçador para mim, dos
ciganos a tentarem vender os seus produtos, dizia-me para não me
aproximar muito, tinha medo de ser levado com eles por não comer a
sopa. Outros sons, alguns arrepiantes, oriundos da vizinhança, e inten-
sificados pela noite, verdadeiros gritos de dor, filhos de agressões de
homens brutos e bêbados, perturbavam-me o sono. O que eu gosta-
va mais era das salvas matinais de vinte e um morteiros a anunciar os
dias festivos, mesmo sendo cedo não ficava minimamente perturba-
do, porque assim que terminasse o bombardeamento, voltava a ador-
mecer. Porém, o toque longínquo da sineta da quadrilha do compasso,
sinal de que o dia seria dedicado a amêndoas, muitas e boas, ou não
fosse a Páscoa sinónimo de fartura e de doçarias, despertava-me uma
estranha gula. Já verão ouvia-se ao longe sons musicais, frequente-
mente aos soluços, de acordo com a vontade do vento, denunciando
agradáveis arraiais pelas aldeias vizinhas. Por vezes, os sinos entriste-
ciam e faziam entristecer com os seus toques de dor, associando-se
ao som da matraca que abria o cortejo da morte, outras vezes era o
contrário, até parecia que se tinham embriagado, tão alegres e repe-
nicados eram os seus toques, já o mesmo não posso dizer da sirene
dos bombeiros ao confirmar tragédias mais ou menos graves que, de
acordo com os diferentes toques, mobilizava as pessoas num sufoco,
fosse qual fosse a hora, de dia, de noite, com as pedras das calçadas e
das ruas a ribombarem angústia e, por vezes, algum alívio.

Quantas vezes, à distância, conseguia ouvir o barulho da canalhada


a ecoar pelo vale, fazendo-me inveja por não poder mergulhar, tam-
bém, nas águas tépidas e límpidas do rio, ou os estranhos e sonoros
ruídos que ouvia no final do ano, associando-os a coisas novas e boas,
que nem sempre ocorriam. Tantos sons! Até parece uma sinfonia, a

104
sinfonia da nostalgia, dando origem a novos sons que emergem da
combinação de sons do passado, sons que não se esquecem e que a
noite nunca conseguirá silenciar...

105
H
“Tocam os sinos na torre
da Igreja…”

Recordo-me dos primeiros tempos da televisão. À noite, as pessoas,


assim que acabavam de jantar, peregrinavam ao café transformado
em verdadeiro santuário com a única televisão do sítio no novo al-
tar. Eu também ia na companhia dos meus pais, mas como tinha de
levantar cedo, por causa da escola, não via praticamente nada, a não
ser certos programas, caso do teatro semanal, o programa do João
Villaret ou as Charlas Linguísticas, por exemplo, de que gostava imen-
so. Nestes casos, permanecia quase até ao fecho da emissão. No dia
seguinte é que era o pior, é o acordavas!

Num dos programas do Villaret ouvi-o declamar o poema “A Procis-


são” no qual falava “Tocam os sinos na torre da Igreja…”. Fiquei de boca
aberta pela beleza e entoação com que declamava, ainda por cima de
sinos que eu adorava.

Desde muito novo aprendi com a minha avó a contar ao som das
badaladas, a aprender as horas no relógio da torre, a conhecer os to-
ques dos finados, dos casamentos e batizados, das “Ave Marias”, das
“Almas” ou das “Trindades”. Estas últimas obrigavam-me a correr para
casa a tempo de fazer os deveres da escola. Sabia distinguir os sons de
outros sinos, o da Misericórdia, o de Óvoa e até o do Coito que se ou-
viam muito bem em certos dias, prenunciando mudança de tempo.
Até comecei a fazer meteorologia, porque a minha avó dizia, ao ouvir
o sino de Óvoa, “amanhã vai chover”. E chovia! Mais tarde encontrei a
explicação nas aulas, segundo o professor, quando a humidade no ar
aumenta, os sons propagam-se mais facilmente.

107
Toda a vida se fazia ao redor do sino. A camioneta partia ao som da
última badalada das seis (no toque de repetição), os homens come-
çavam, interrompiam ou largavam o trabalho às suas ordens. Quan-
do tocava a finados era um corrupio até se saber quem é que tinha
morrido. Em pouco tempo todos ficavam a saber a desdita. Também
se sabia se o padrinho tinha dado ou não uma valente gorjeta ao sa-
cristão. Havia alturas em que o toque nunca mais parava, chegando
mesmo a irritar, denunciando a festividade e, sobretudo, o tamanho
da generosidade. Se as solenidades se desenrolassem da parte da tar-
de já não haveria problemas! Como é que o sacristão subiria à torre?
Só se fosse de gatas!

O sino e o relógio também serviam de teste audiométrico e de tabe-


la optométrica. Muitos comentavam que, quando eram mais novos,
conseguiam ouvir o sino ou ver as horas a certa distância, a qual se ia
encurtando à medida que envelheciam.

O toque a rebate era o que me incomodava mais. Poucas vezes o


ouvi, porque os bombeiros utilizavam a sirene. No entanto, recordo
de dois momentos em que, devido à falta de energia elétrica, tiveram
de socorrer do sino.

Alternava a estadia entre a casa dos meus avós na vila e em casa dos
meus pais, na estação, a 2,5 km de distância. Uma noite de fevereiro,
gélida, ouvi o toque de aflição da igreja. Levantei-me e vi pela primei-
ra vez um nevão, raro naquelas bandas. A lua cheia fez a sua entrada
iluminando os vagões, as linhas e todo o casario da vila, que se desta-
cava ao longe, no monte, coberto de neve, onde se poderia identificar
uma mancha rubra. A brancura da neve, a mancha vermelha das ha-
bitações a arder, a falta de energia elétrica e o som do sino produziam
uma combinação arrepiante. De manhã, a tragédia não deixou gozar
a beleza do nevão. Da segunda vez estava em casa dos avós e, mais
uma vez, faltou a eletricidade. O sino toca a rebate, a curta distância, a
meio da madrugada. As pessoas correm aflitas, até que ouvi alguém a
dizer, no meio dos Aldrogãos, que era a fábrica de serração na estação
que estava a arder. A casa dos meus pais estava praticamente pegada
à fábrica. Arrepiei-me e encolhi-me aterrorizado por saber que a casa
devia também estar a arder. O meu avô meteu pés a caminho e, pas-
sado algumas horas, já a manhã tinha despontado, regressou, dizendo

108
que a casa tinha sido poupada. A fábrica desapareceu para sempre,
acompanhada de muita miséria para os que lá trabalhavam.

Aprendi com os anos a viver ao som do sino. Mesmo hoje, gosto


de ser guiado por ele. O pior é que as novas manias tecnológicas, e
o apertar dos botões de comando na sacristia, não têm tido grande
sucesso. O sino deixa muitas vezes de tocar, ou quando toca fica de-
sorientado, marcando as horas com “meias horas”, os mostradores do
relógio apontam cada um para o seu tempo, e às vezes um está para-
do, enquanto o outro funciona! Já aconteceu, inclusive, que o toque
de casamento se pareceu mais a um toque envergonhado de finados!
Quando tocava a finados o som era forte, triste, mas, curiosamente,
transmitia uma estranha tranquilidade. A este propósito recordo-me
de um doente a quem diagnostiquei um cancro do cólon, para quem
as coisas, infelizmente, não correram muito bem. Algumas semanas
após a operação chamou-me a sua casa. Era sábado, fim de tarde
com um sol ainda radioso mas frio. Entrei na modesta habitação, di-
rigindo-me ao quarto e, enquanto o sino tocava – estava a sair um
funeral –, perguntei-lhe como estava. Respondeu: – Oh senhor dou-
tor, não tarda muito para o sino tocar, também, por mim. Fiz e disse o
que considerei mais apropriado à situação. Passados uns dias, o sino
estava a dobrar por ele...

É curioso conhecer tão bem o toque de um sino que um dia irá tocar
sem que o possa ouvir. Preferia que o tocassem à maneira, porque,
pelos vistos, o tal sistema eletrónico não é de confiança, mas também
não é de excluir que o padre, amante de choques tecnológicos, possa
vir a adquirir um CD com toques meio foleiros e um altifalante qual-
quer! Deus queira que não...

109
I
Um golo de aguardente!

Morava na estação. Era um catraio. Nos tempos livres corria pelas re-
dondezas, mas não para muito longe, dado que a povoação era peque-
na, rica de atividades e atraía tudo o que havia em muitos quilómetros
em redor. Os comboios assim o determinavam como, igualmente,
as fábricas de serração, de sabão, do pez e os grandes armazéns de
distribuição. Dir-se-ia: um verdadeiro polo industrial e comercial que
tinha vida e dava vida aos que necessitavam de viver.

Uma bela época, apesar da pobreza típica de Portugal dos finais dos
anos cinquenta e da década de sessenta. Munido de um papo-seco,
recheado de uma mistura de manteiga e de açúcar amarelo, corria
pela ladeira passando pelo taberneiro, cumprimentando efusivamente
os que saíam trôpegos e os que entravam sequiosos em matar a sede
com meios quartilhos até sentirem a felicidade a invadi-los de forma
grotesca, dando expressão às suas formas naturais de ver o mundo.
Passava em seguida, a toda à bolina, em frente da padaria, do barbei-
ro, do sapateiro, do talho, da farmácia, para atravessar com cuidado a
estrada. Antes de continuar pelo velho caminho de macadame, que
desaguava naquele ponto, via do lado direito mais uma tasca, algo
que não faltava naquelas aldeias, enquanto do lado esquerdo podia
imaginar os tiquetaques do relojoeiro e a mistura dos cheiros da loja
de mercadorias. Continuava sempre apressado, só parava momen-
taneamente em frente do petroleiro, pelo simples facto de ficar ine-
briado com mistura de cheiro entre o petróleo e o bacalhau, um odor
que nunca mais esqueci. Do lado direito, um pouco mais à frente, o
marceneiro fazia-se ouvir através dos sons despertados na madeira,
enquanto do lado esquerdo já se sentia a mistura entre os berros do
ferrador e o cheiro dos animais; só parava mais à frente na oficina do
Porrudo: primo do meu pai. Trabalhava em ferro e fazia carroças viço-

111
sas, deixando-me deslumbrado com a maneira de fazer as rodas. No
final colocava uma cinta de aço a toda à volta. Tinha forjas e muitos
foles, uns mais pequenos e um que era monstruoso. Aquele que gos-
tava mais era da forja pequena onde colocava um tipo de carvão mui-
to redondo e duro. Tinha acoplado um pequeno dispositivo ao qual se
tinha de dar à manivela. Ao princípio custava, mas depois ganhava-se
balanço, tornando-se mais fácil. Quando girava com velocidade surgia
um clarão vermelho e em seguida uma chama de que gostava muito,
baixinha, sem deitar fumo, com uma cor azulada fascinante. – Queres
dar à manivela? – Quero. Depois de estar quente, muito quente, en-
fiava uma barra de ferro que ao fim de algum tempo ficava vermelha.
Com uma tenaz retirava-a, punha-a na vertical, olhava, revirava-a e,
em seguida, malhava com um martelo fazendo saltar muitas faíscas,
dando-lhe a forma pretendia. Parecia manteiga. Mergulhava em água,
num recipiente apropriado, ouvia-se o chiar enquanto uma pequena
nuvem se levantava, voltando a enfiar a peça na forja. Ao fim de algu-
mas operações, o objeto estava concluído, uma ferradura. – Serve-te?
– Como? – Estou a perguntar-te se achas que te serve? – Mas eu não
sou um cavalo! – Aí não? Então és o quê? Um homem, não? Quando
começava com esta lengalenga via logo que ia sair asneira. – Sabes
quando é que uma pessoa começa a ser homem? Que diabo de per-
gunta, pensei eu, e respondia-lhe com silêncio. – Já pintas? – O quê?
– Oh minha cavalgadura, então não sabes o que é "pintar". Claro que
sabia, só não queria ter de lhe dar troco, porque aquela rapaziada dos
ofícios gostava de se divertir à nossa custa, mas para isso precisavam
de pretextos e os pretextos surgiam assim que lhes respondíamos.
Entretanto, a conversa interrompeu-se porque o cavalo que estava no
ferreiro estava à espera do novo calçado feito à medida. Quando re-
gressou puxou de um garrafão e começou a beber. O calor das forjas
fez volatizar a aguardente impregnando as minhas narinas. – Queres
dar um golo? – Não, não bebo aguardente, obrigado. – Fazes mal,
rapaz, tens que experimentar para seres um homem.

Uns tempos depois soube que estava doente. Fui vê-lo. Estava deita-
do na cama. O quarto era muito pequeno e a casa humilde, casa de
pobre. Perguntei-lhe como estava. - Mal. E via-se. A conversa não foi
muito longa. Entretanto, pediu-me para tirar o garrafão que estava
debaixo da cama. - Garrafão? – Sim. Estranhei o pedido. Ajoelhei-me
e vi um garrafão deitado. Tirei-o. Agarrou-se ao dito, retirou a rolha e

112
com sofreguidão tragou um valente golo. Um longo “Ah”, perfumado
de aguardente, invadiu as minhas narinas. – Toma, bebe um golo. –
Mas eu não bebo. – Poderias beber à minha saúde, disse com uma
certa tristeza. Incomodado com a situação, fiz-lhe a vontade. Bebi um
pequeno golo. Queimou-me a língua e o céu-da-boca, mas a quei-
madura continuou o seu percurso, pelo menos até ao estômago, eu
bem senti. Olhou-me com satisfação e disse: - Já és um homem!

Não morreu na altura, ao contrário do que se esperava e, curiosamen-


te, acabei por vê-lo, décadas depois, num funeral. Quem é aquele? – É
o meu primo, o Porrudo. – O quê?! Ele ainda está vivo? – Não vês que
sim! - Pois é, estou a ver, mas...

113
k
Uma boleia em Lisboa!

Fiquei preocupado quando soube que no dia em que tinha uma via-
gem marcada para Ponta Delgada, onde ia fazer uma conferência, os
pilotos da aviação civil iriam estar em greve. Após os necessários con-
tactos, garantiram-me que, em princípio, o voo não seria cancelado.

Sofrendo do "síndroma dos gaiteiros" (vou quase sempre de véspe-


ra) abalei em direção à capital. Estacionei no parque habitual e dirigi-
me pela primeira vez ao terminal 2; olhei para os sinais indicadores e
avancei a pé arrastando a pequena mala e o inseparável computador.
Não deve ser longe, pensei, e tempo tinha-o de sobra. Andei por um
passeio de calçada portuguesa mal-amanhada com a mala aos saltos
e comecei a reparar que o raio do novo terminal afinal ficava muito
longe. De repente, confrontei-me com uma avenida nova sem pas-
seios. Fiquei estupefacto. Estes "gajos" não se lembraram dos peões!
Com todo o cuidado, aventurei-me na avenida não sem pensar no
risco de levar com uma trombada de algum automóvel. É certo que,
praticamente, não havia grande circulação naquela artéria, mas nunca
fiando. Já estava meio arrependido de não ter apanhado a carrinha
do aeroporto quando, inesperadamente, sou ultrapassado por um ve-
ículo de transporte com vidros fumados que acabou por parar alguns
metros à frente. Fiquei um pouco perplexo e interroguei-me sobre o
que teria acontecido. Não havia nada nem ninguém na via! De qual-
quer modo, estuguei um pouco o passo, arrastando a “mobília”, com
a ideia de que pudesse ser o tal “shuttle” do aeroporto e cujo moto-
rista tivesse tido a gentileza em me levar. Mas olhei para o veículo
e não li nada que sustentasse tal hipótese. Eis que a porta se abre e
o condutor, amavelmente, perguntou-me se não queria entrar, dado
que o terminal ainda ficava a alguma distância. Entrei, agradecendo a
sua cortesia. O curto espaço de tempo da viajem foi suficiente para

115
verificar que se tratava de um profissional encarregado de transportar
pequenos grupos de executivos.

Estava muito longe de pensar em apanhar uma boleia destas em ple-


na Lisboa. Tal facto fez-me recordar os tempos da minha juventude
em que tinha de calcorrear, às vezes mais do que uma vez, a distância
entre a Estação e a Vila. Eram mais de quatro quilómetros pela estrada
mas encurtava-a indo por atalhos. O pior era subir a Via Cova, muito
íngreme, a ponto de apetecer ir de gatas. Mais suave era a Calçada Ro-
mana, mas mais longa. A esperança era apanhar uma boleia na ponte
sobre o rio Dão. Naquela altura havia poucos carros, mas quem os
tinham eram generosos, parando para dar boleias. Sempre que che-
gava à entrada da ponte, junto da Memória, testemunha da destrui-
ção ocorrida durante a invasão de Massena, desacelerava o passo na
expectativa de que alguém conhecido me aliviasse o tormento da
subida e punha-me a olhar para o rio.

Conhecia o barulho de muitos motores. Quando, ao longe, ouvia


motores rotativos a denunciar velocidades pouco apropriadas para
aquelas curvas muito apertadas pensava: – Será o Sr. Regadas ou o
Carlos Adelino? Este último era mais novo e mais louco que o primei-
ro. Paravam e nem era preciso dizer mais nada. Assim que entrava no
carro arrancavam de imediato a alta velocidade desafiando a curva
em ângulo reto ao fim da ponte. Tinha que me agarrar a tudo quanto
era sítio para não ser projetado para cima do condutor. A taquicar-
dia era uma constante e a aflição de entrar na capela do Senhor da
Ponte situada precisamente no vértice daquele ângulo obrigava-me a
exclamar: – Valha-me Senhor da Ponte! O que é certo, face às loucu-
ras praticadas na época, é que a capela octogonal nunca sofreu uma
beliscadura. Cá para mim, o Senhor deveria divertir-se imenso com
aqueles loucos que, ao entrarem na curva, derrapavam nas suas "bar-
bas" fazendo uma chiadeira dos diabos ao mesmo tempo que larga-
vam parte dos pneus! Depois veio a barragem. Desmontaram a capela
e reedificaram-na à saída da nova ponte. O acesso não é fácil, está
isolada, os carros passam ao lado e não tem a sua "curva". Todas as
semanas passo por ela e não deixo de sentir uma certa tristeza. O Se-
nhor da Ponte, a quem deixava uma coroa, um escudo, vinte e cinco
tostões e até mesmo cinco mil réis (!), tudo dependia do grau de gra-
vidade que eu atribuía aos disparates ou ao tamanho do pedido, deve

116
ter muitas saudades dos tempos em que ouvia o roncar dos malucos
das máquinas, ameaçando entrar no seu reduto, e das promessas e
pedidos dos mais pequenos...

Um bem-haja ao motorista lisboeta que me deu uma boleia!

117
L
Uma curta reflexão…

Certos acontecimentos, quando ocorrem connosco, ou com amigos,


despertam-nos para o recolhimento.

Não sei se é de bom-tom ou adequado falar da morte. Não é um


tema fácil e desmotiva a maioria das pessoas que preferem abordar
assuntos agradáveis ou polémicos. De qualquer modo, sendo a única
certeza comum aos seres vivos, sentimos a necessidade de, tempos a
tempos, fazer uma reflexão.

Hoje em dia, morre-se de uma forma isolada, “assética”, como se hou-


vesse um sentido de vergonha ou mesmo de fuga. A maioria morre
num quarto ou na enfermaria de um hospital só ou acompanhado
pelos técnicos de saúde. Aterroriza-me que alguém morra nestas cir-
cunstâncias sem a companhia de um ente querido. Talvez porque
tenha tido uma educação em que a morte tinha um outro sentido,
não sei.

Lembro-me das primeiras vezes em que fui confrontado com esta


situação. A primeira constitui uma das lembranças mais antigas e
mais fortes. Tinha cinco anos e a minha amiga de brincadeira morreu
de garrotilho. Fui o primeiro a sofrer da doença e, passados poucos
dias, a minha companheira adoecia, caminhando para a morte. Não
me esconderam a situação. Fui vê-la e estive a seu lado. Nunca mais
esqueci essa imagem. Uma cor fria que nunca tinha observado em
ninguém e um buraco na garganta ainda meio ensanguentado. Claro
que perguntei porque é que tinha aquele buraco e lá me explicaram
que era para respirar, mas mesmo assim não conseguiram salvá-la.
Não gostei de ver o buraco. Acompanhei-a ao cemitério atrás da ve-
lha carreta da misericórdia num dia muito quente. Foi a primeira vez

119
que entrei no cemitério e assisti ao cerimonial. Nunca mais a esqueci,
nem mesmo hoje. Passado mais de meio século, sempre que vou
àquele lugar, sou obrigado a olhar para o canto onde a vi desaparecer
na terra. Recordo-me sempre da menina e das nossas brincadeiras.

Posso dizer que a primeira vez que assisti a uma morte tinha seis anos:
não me custou nada, foi um tio velho que acabou os seus dias no seu
quarto acompanhado dos familiares.

No último dia de vida, fim da manhã, mandaram-me chamar o padre


Sobral, mais conhecido pelo padre “Rodelas”, para ministrar a extrema-
unção. Lá fui mais o padre e as minhas primas para o quarto. O padre
“Rodelas” paramentou-se adequadamente e começou a sua prédica,
enquanto eu segurava o balde com o hissopo. Lembro-me, como
hoje, o momento em que o tio Miguel, ofegante, foi aspergido pela
água benta, a qual me salpicou os olhos quando estava a olhar para
o teto onde estava pendurada, em cima da cama, a velha bicicleta do
meu tio. E, ao limpar os olhos, perguntei aos meus botões: – Como
é que o tio Miguel conseguiu por a “pasteleira” lá em cima? E se ela
caísse enquanto dormia? Este tio é mesmo maluco!

Depois do almoço, o tio Miguel adormeceu para sempre e nunca mais


o vi a fazer os seus cigarros de barba de milho enquanto contava as
suas aventuras da Grande Guerra. Morrer assim é outra coisa, sem
sombra de dúvida.

Depois, ao longo dos anos, os familiares foram desaparecendo e eu


acabava por estar presente nas cerimónias com a maior naturalidade.
Claro que tenho saudades daquelas pessoas das quais guardo fios e
fios de afetos e histórias mirabolantes que a foice da morte nunca
conseguiu cortar, nem consegue, a não ser quando Átropos, a parca,
cortar o meu fio…

120
M
Vai para a guerra!

Em tempos assisti a uma reportagem televisiva sobre a participação


dos portugueses na I Grande Guerra. Inesperadamente, ouço uma lin-
díssima canção entoada por um soldado português natural do con-
celho de Santa Comba Dão, mais propriamente de Óvoa. É o registo
mais antigo de uma voz portuguesa que foi gravada por estudiosos
nos campos de prisioneiros alemães. Um poema de amor. Tocou-me.
A canção, estranha e muito bela, acabou por reavivar memórias filhas
de outras memórias de gente que por lá andou. Cheguei a conhecer
alguns e ouvi os seus relatos.

A participação portuguesa nesse terrível confronto marcou, de forma


ímpar, a alma nacional. Basta observar os vários memoriais dispersos
por vilas e cidades do nosso país. Um deles fascina-me desde miúdo:
uma mãe, humilde, de lenço à cabeça a ser abraçada pelo filho, entre-
tanto transformado em soldado, despejando as lágrimas do desespero
no seu ombro como que antevendo o seu não regresso. Quando vi
pela primeira vez este monumento, em Tondela, fiquei hipnotizado.
Não percebi o seu significado, nem mesmo quando perguntei o que
era “aquilo”. “Aquilo”, disseram-me, é uma mãe a despedir-se do filho
que vai para a guerra. – E o que é a guerra? – Onde fica? As respostas
a perguntas simples feitas pelas crianças são as mais difíceis de res-
ponder e, por este motivo, terminavam, invariavelmente, com a frase
do costume, “quando fores mais crescido ficarás a saber”! Tiraram-me
uma fotografia junto do pedestal e, a partir de então, sempre que olha-
va para a fotografia, já desaparecida, sentia um misterioso fascínio, re-
forçado pelas inúmeras vezes que a vi. Não consigo, mesmo hoje, de
deixar de contemplar e de admirar o mais belo monumento erigido
aos sofredores das guerras. O magnetismo continua, sendo reativado
a cada vez que me confronto com estes memoriais onde estão re-

121
gistados os nomes dos que tombaram na Flandres, cujas planícies se
atapetam, todos os anos, de um extenso mar de papoilas vermelhas
como que a recordar o sangue dos que lá morreram.

A arca da memória, a cada dia que passa, abre-se com mais facilidade.
As chaves podem ser uma papoila vermelha, frágil e bela, uma voz do
passado mesclada de ruído a enaltecer o amor de uma mulher, ou,
até, uma notícia de resgate de dois corpos de soldados portugueses
feito por um autarca de uma freguesia de Tondela em Moçambique.

Ir buscar os ossos dos que ficaram em África é uma questão de honra


e de respeito para com os combatentes e para com todos os portu-
gueses. Não se trata apenas da forma indigna do estado das sepultu-
ras, voltadas ao desprezo, mas também, da necessidade de “reaver” os
restos mortais para que repousem no nosso país. Respeitar os mortos
é dignificar os vivos. Que regressem os ossos dos soldados e que se-
jam entregues aos familiares ou, então, coloquem-nos juntos dos os-
sos de muitas das suas mães que choraram nos seus ombros quando
foram para a guerra...

122
n
"Vinismo"

As virtudes do vinho têm sido, nos últimos anos, divulgadas à exaus-


tão. Não há dia que não surja uma notícia sobre os efeitos benéficos
na saúde, apontando como responsáveis, entre outras, substâncias
como os polifenóis e o resveratrol.

As doenças cardiovasculares são a principal atração desta campa-


nha, a que não devem ser alheios muitos dos produtores e industriais.
Quanto mais venderem, mais lucram, além de oferecerem à popu-
lação um meio profilático de preservar a saúde e prolongar a vida!
Enriquecem as economias nacionais e evitam doenças. Nada mau.

Mas não se pense que esta ideia de o vinho fazer bem à saúde é de
agora. Qual quê! Já tem muitos anos. A este propósito, não queria
deixar de comentar um interessante ensaio sobre “O Vinho na Medi-
cina” da autoria de um português, Fernando de Castro Pires de Lima,
incluído na obra, Ensaios, publicada em 1943.

O autor, que era médico, dedicava-se à etnografia, facto que o levou


a escrever um ensaio com o objetivo de demonstrar que o vinho é
um importante elemento terapêutico em diversas doenças, chegando
a ponto de considerar esta hipótese como “revolucionária”. Descreve
exemplos curiosos, sobretudo das pessoas do Minho, que usavam, se-
gundo o Padre António Vieira, “aquele cordeal simples, medicado pela
natureza para alegrar o coração humano”. “As cefaleias desaparecem
com um bom copo de vinho verde” (Dói-me tanto a cabeça, Que me
quer cair ao chão, Dai-me mais uma pinguinha, Ou ela me caia ou
não…). Dores de ouvidos? Lançar um pouco de vinho morno no ouvi-
do doente! E eu que levei com leite de mulher! Laringites e faringites?
Nada melhor do que meia dúzia de copos de vinho verde com açú-

123
car. O indivíduo está fraco? Uma tigela de vinho tinto com sopas de
boroa fortalece-o rapidamente. Espinhela caída? Pão-de-ló embebido
em excelente vinho verde! Aqui fiquei furioso! Quando era pequeno,
talvez porque devia andar meio enfezado, fizeram-me o diagnóstico
popular de que devia ter a espinhela caída. Chamaram uma mulher,
meia trombuda e seca, lá das bandas do Rossio, para me levantar a
espinhela. Foi um tormento. Entre rezas, lamparinas e movimentos
bruscos, fui sujeito a uma besuntada, nos bracitos, nos punhos e no
peito, com azeite. Não suportava aquela gordura e muito menos o
cheiro que me fazia lembrar o azeiteiro que cheirava a ranço que tre-
sandava. Se tivesse tido conhecimento desta medida exigiria de ime-
diato que me dessem pão-de-ló embebido em vinho em vez daquele
ritual assustador. Se não houvesse vinho verde sempre havia tinto!

O ensaísta continua a sua longa lista de efeitos benéficos. Para au-


mentar a diurese, vinho verde e muito! Para tratar as diarreias e a
obstipação, vinho. Para combater as dores do tubo digestivo, vinho.
Para curar furúnculos e feridas exteriores, vinho. Em certos tipos de
doenças cardíacas, nalgumas doenças infeciosas, incluindo blenorra-
gias e enterites (!), nas bronquites e nas anginas, e sei lá que mais,
vinho. Não há praticamente doença nenhuma que, na perspetiva de
antanho, não possa ser tratada com vinho, exceto, talvez, as úlceras
gastroduodenais e o cancro do estômago, afirma o autor. No entanto,
até nas úlceras, se o vinho for fraco ou traçado com água, os efeitos
benéficos manifestam-se quase de imediato.

A apologia ao vinho é de facto extraordinária. O autor recomenda que


toda a gente devia beber vinho, inclusive até as crianças. Deveria ser
um imperativo nacional! Obviamente que descreve alguns cuidados a
ter com a ingestão que deve ser moderada e adequada a cada caso e
a cada tipo particular de afeção. Muitas vezes, preconiza o uso de vi-
nho fraco ou então misturado com água, em proporções adequadas.

A este propósito, de vinho misturado com água, recordo que, em mi-


údo, nos decursos das brincadeiras com os meus amigos, ficava, na-
turalmente, com muita sede. Batia à primeira porta e pedia um copo
de água. – Água? Nem pensar nisso meu menino! Espera um pouco
que eu faço-te um refresco. Passados alguns minutos, era presente-
ado com uma generosa caneca de barro cheiinha de uma mistura

124
de água e vinho a que juntavam um pouco de açúcar. Vinha mesmo
a matar. Sabia tão bem! Noutras casas não me davam este tipo de
refresco, mas sim um à base de groselha ou de capilé. Pessoalmente
preferia o outro, mais saboroso e mais energético…

Daqui a alguns anos, quando os seres humanos andarem cheios de


próteses, de fios, de mecanismos nanotecnológicos, implantes e ór-
gãos artificiais, é provável que apareçam artigos, e as correspondentes
notícias, a afirmarem que está provado, cientificamente, que as pró-
teses duram mais, os fios não fazem curto-circuitos, os dispositivos
nanotecnológicos são muito mais eficientes, enfim, que os doentes,
para não falar dos sãos, viverão muito mais anos, caso bebam vinho!
Espero que não digam: – Mas só do tinto!

Também fiquei a saber que o famoso professor Portman, que presidiu


ao “Primeiro Congresso do Comité Internacional para a propaganda
do vinho” (Lausanne, 1935) citou, na abertura do congresso, a seguinte
frase de Mussolini: “O homem doente que bebe vinho chega a mais
velho que o médico que lhe proíbe”. Nem mais. Não sei se o dito be-
bia vinho! Pelo menos não evita mortes violentas! Deve ser por isso
que, ainda hoje, depois de muitos conselhos dietéticos, higiénicos e
farmacológicos, lá vem, no final da consulta, a pergunta sacramental:
“Senhor doutor, eu posso beber um copito de vinho?”. Ou não fôsse-
mos portugueses e…portuguesas!

Vinismo - termo utilizado no Estado Novo em contraponto ao alcoo-


lismo: “vício benigno e salutar”!!!

125
Índice

5 À sombra do “Templo de Dionísio”


9 Afonso “Caporro”
13 Chocalhar o “velho”!
15 “Criacionismo”
17 Cristo
19 Do “De Profundis” ao Pinóquio
21 "E o sol ficou feliz"!
21 A fotografia
25 “É proibido entrar bêbado. Sair pode”
27 Falta de homem!
29 "Labor Omnia Vincit"
33 Lembranças
37 "Oásis"
41 O boi da câmara
45 “Ó Chiquinho, o lugar?”
49 O corvo que tem raiva a gatos pretos
53 “O galo da torre”
57 O homem que matou o diabo!
59 “O Lima”
61 “O melro do senhor Lopes”
63 O outro “Menino”!
65 O senhor doutor juiz
67 Pintarroxos!
69 “Pois, pois”!
73 Pulseira do equilíbrio
75 Purgatório
77 Queda
81 Raminho de alecrim
83 Roteiro de cheiros
87 Rua de almas
91 Santas Combas
95 Santo Onofre nos valha!
99 Seios
103 Sons
107 “Tocam os sinos na torre da Igreja…”
111 Um golo de aguardente!
115 Uma boleia em Lisboa!
119 Uma curta reflexão
121 Vai para a guerra!
123 "Vinismo"

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