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T
Sons e odores
do passado
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a ponte, saltava, invariavelmente, de um lado para o outro tentando
compreender o mistério. A montante da ponte, e um pouco afastado
desta, o rio era ternurento, social, amoroso e convidativo a mergu-
lharmos no seu seio. Inspirava confiança, destilava alegria, prometia
traquinices, oferecia prazer e sorria através da superfície azulada. Ao
afunilar, já perto dos arcos da ponte, começava a dar sinais de mau
humor, revelando um temperamento agressivo e preocupante. Nesta
travessia, quando passava para o outro lado, as águas acalmavam-
se e mudavam de cor, ficando verdes escuras como quem denuncia
um abismo que deveria esconder terríveis segredos. Ficava assustado,
não obstante reconhecer uma certa beleza lúgubre. Presumo que esta
parte do rio deveria ser o tal “pego torvo” descrito por Pascoaes, a dita
faceta de um Dão muito misterioso. Em oposição às águas verdes es-
curas do “pego torvo”, as águas de tonalidade verde-esmeralda, e por
vezes azulada, quase que diziam: aqui podes vir, aqui podes desfrutar
o prazer de te banhares e deliciares com as minhas belas ninfas. Do
outro lado, a mensagem era oposta. Imaginava uma prisão de ve-
lhos espíritos celtas agrilhoados às longas escarpas que penetravam
na profundidade do rio para que não invadissem o pequeno paraíso
situado a montante.
“Não há céu sem nuvens...”, dizia o poeta saudosista. Pois não! As nu-
vens ficavam a jusante da ponte e o céu a montante.
No entanto, o autor da “Arte de ser português” não fica por aqui. Logo
a seguir podemos ler:
Pois bem Pascoaes: nem sabes o que perdeste! Tiveste que utilizar
a imaginação para mergulhares os “lábios quiméricos” na maciez da
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bebida que seduziu os sentidos de Dionísio. Eu não! Neste momento,
em que acabo de escrever esta despretensiosa crónica, mergulho os
meus lábios num suave rubi translúcido em tua honra, pelo bem que
me fizeste sentir. Que outros possam sentir o mesmo prazer.
À tua memória!
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b
Afonso “Caporro”
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para a turma encolerizado e gritou: – Todos lá para fora! Vão fazer um
intervalo! E fomos mais cedo que o habitual.
Muitos anos mais tarde tive de apanhar o comboio, o “rápido” das sete,
para Coimbra. A estação estava apinhada de pessoas, entre os quais
soldados que iam para os quartéis. Era domingo. O comboio chegou
e corri para uma carruagem para ver se conseguia um lugar sentado.
Qual quê! Tive que ir em pé como era habitual. Ainda fui às carrua-
gens da frente, mas nada. Olho pela janela da porta e vejo um soldado
deitado no chão. Agitado, vomitado, totalmente descomposto, con-
vulsivo, como se de um epilético se tratasse, sem ninguém em redor.
Como o comboio tardava em começar a marcha, tive tempo mais
do que suficiente para analisar tão desconfortável situação. Quem se-
ria aquele jovem? Depressa vi que era o Afonso. O Afonso! Bêbado
que nem um cacho, deitado na gare de uma estação. Aquela imagem
colou-se de tal forma na retina que nem reparei que o comboio já ia a
caminho. Durante toda a viagem não pensei noutra coisa. O que é lhe
iria acontecer? Provavelmente não iria durar muitos anos e sabe-se lá
com que sofrimento para si e familiares.
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senhor era o Caporro? Mas ele bebia que nem um desalmado, desde
os bancos da escola! – Pois foi, mas desistiu. Tornou-se, há alguns
anos, numa pessoa respeitável, faz a sua vidinha, tem uma família
composta e nunca mais tocou numa gota de álcool.
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c
Chocalhar o “velho”!
Não sei quantos anos tinha quando me apercebi deste tipo de festi-
vidade, mas recordo-me ter estado de cama, devido a uma daquelas
doenças que atingia a miudagem. Estava em casa da minha avó e
havia alguma azáfama. À noite, deitado na cama, ouvia a ribeira a con-
torcer-se de dores porque, quando chegava aos Aldrogãos, tinha que
contornar algumas pedras e furar debaixo de uma velha passagem de
pedra. Pelo tipo de barulho conseguia calcular o caudal que, consoan-
te aumentava ou diminuía, se transformava em múltiplos cantos. Os
daquela noite eram sugestivos de um caudal já apreciável, dado que
chovera nos dias anteriores. Sabia, também, que o frio ondulava lá fora
entre a ribeira e o céu estrelado. Enquanto as ramagens do arvoredo
se esfregavam umas nas outras, na esperança de se aquecerem, eu
pensava que coisa era essa de acabar um ano e começar outro. A mi-
nha mãe, sentada na beira da cama, dava os últimos retoques numa
camisola que deveria vestir no dia seguinte. Perguntei-lhe se a mu-
dança de ano era feita sempre de noite e com tempo frio. Respondeu-
me que sim, o fim de ano ocorre no inverno, por isso é frio, e de noite,
porque o começo de um novo dia inicia-se sempre à meia-noite. – E
há sempre festa? – Há! Com mais ou menos arraial e com mais ou
menos comezaina. Pensei durante um bocado. Depois, com a maior
naturalidade, perguntei-lhe se não poderiam alterar a mudança do
ano para o verão, para o meio-dia, assim as crianças podiam participar
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nos festejos. Olhou-me com ar meio surpreendida, abanando a cabe-
ça ao jeito típico dos adultos quando ouvem disparates infantis.
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d
“Criacionismo”…
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generoso de uma moeda de prata de dez escudos, a qual sobressaía
numa frondosa cabeleira – pachorrentamente, e com uma simpatia
que nunca mais se esquece, começou a descrever a criação do Mun-
do. Aceitei todas as explicações dadas, mas quando chegou ao dia da
criação do Homem fiquei incomodado. Primeiro, segundo o padre,
Deus criou o Adão, depois tirou-lhe uma costela e fez a Eva. Aqui,
lembro-me de o ter questionado por que é que Deus fez sofrer o ho-
mem arrancando-lhe a costela! Disse-me que estava a dormir e não
tinha sentido nada. Fiquei desconfiado. Depois ensinou-nos que Adão
e Eva tiveram filhos e que, por isso, éramos todos irmãos. Lembro-me,
mais uma vez, de lhe perguntar como era possível uma coisa dessas.
Então os irmãos casavam-se uns com os outros? Irmãos com irmãs?
Pai com filhas e mãe com filhos? Fiquei triste e muito preocupado.
Não podia aceitar uma coisa dessas. Então – na altura não conhecia a
palavra promiscuidade, mas agora interpreto como tal – sendo Deus
tão poderoso não podia ter criado mais pessoas, diferentes, homens
e mulheres de forma a evitar uma situação daquelas? Não consigo
lembrar-me das explicações que deu, mas nenhuma me convenceu.
Tinha apenas seis anos e foi a primeira vez que tive consciência de
não aceitar uma explicação de um adulto. Contestei-a e fui para casa
muito perturbado. Agora, meio século depois, com tanto saber acu-
mulado pelos homens, ter de ler estas coisas é de bradar aos céus.
Penso que nem Deus aceitaria uma proposta destas…
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e
Cristo
Ainda hoje recordo com nostalgia os momentos das férias, que aspi-
rava ansiosamente, não para descansar, porque energia era coisa que
não faltava na altura, mas para desfrutar mais à vontade as brincadei-
ras e as festividades que os embrulhavam. Quantas recordações des-
ses tempos me acariciam o pensamento. Mas não se pense que não
tinha de dar, também, o meu contributo para as festividades. Dava, e
com muito gosto. Nessas alturas, a turbulência infantil desligava-se,
momentaneamente, quando era encarregado de limpar com cuidado
um Cristo de marfim, que vinha do antigamente. Limpar o Cristo não
era a mesma coisa que limpar as pratas com o “coração limpa metais”.
Tinha que ser feito com o coração e o máximo de respeito. A minha
avó, na altura da Páscoa, encarregava-me dessa tarefa. Em primei-
ro lugar retirava o pó, e, depois, com um pano embebido em água
dava-lhe o tradicional banho, olhando sempre para a face, tentando
observar se não estaria a incomodá-lo, porque quando me esfrega-
vam a fuça, faltava-me sempre o ar, e eu não queria problemas. O
olhar do Cristo era forte, não revelava propriamente sofrimento, mas
intimidava, impunha respeito, era como se fosse um rei e era bonito.
Ao longo dos braços compridos viam-se as veias, coisa que eu nunca
tinha visto em mais nenhum, e imaginava o sangue a correr. Também
não tinha as chagas, o marfim é duro. Por mais voltas que lhe desse
não conseguia retirar aquele amarelo, nalguns pontos a descair para
o torrado, mas, apesar de tudo, ficava com outro aspeto, sobretudo
quando o expunha ao sol a” secar”. O amarelo, que parecia ser sujida-
de, passava a brilhar de forma dourada a responder ao sol na mesma
moeda. No domingo de Páscoa ficava na mesa, no meio da sala, ro-
deado de tudo quanto era bom, à espera do compasso. Aos pés, numa
salva de prata, um envelope com dinheiro. Quando ouvíamos a sineta
a avisar a chegada, corríamos para a sala. Entrava o puto a ribombar
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o sino, e a repetir a ladainha da ocasião, acompanhado pelos demais.
Será que este ano alguém irá reparar no Cristo e dizer ao menos que é
bonito? Era a pergunta que colocava sempre, porque o Cristo que nos
davam a beijar era frio, de metal, uma imitação que não chegava aos
calcanhares do “meu”. Mas não, nunca disseram nada. O homem da
pasta de cabedal só se preocupava com duas coisas, recolher o enve-
lope e enfiar mais um copo a tantos outros, a ponto de não dizer coisa
com coisa, nem olhava para o Cristo, e mesmo se olhasse devia vê-lo
a duplicar ou a triplicar e muito embaciado; os outros despachavam-
se fazendo deslocar o metal debaixo dos nossos olhos e bocas, mas
mesmo assim ainda tinha tempo para ver que não tinha a categoria
do rei da mesa. Esse sim é que merecia ser beijado. O padre, blá, blá,
blá, corado, testa cheia de suor, espalhava a água benta por cima dos
bolos e guloseimas sem se aperceber do Cristo de marfim, com enfa-
do e desejoso de se ir embora. O pessoal acompanhante aproveitava
o momento para enfardar novamente as suas panças de gula pascal, e
eu ficava, mais uma vez, aborrecido por ninguém ter dito nada sobre
o Cristo. No final do dia, colocava-o no seu poiso, a aguardar a Pás-
coa seguinte. A vida roda e nunca mais soube dele. Acontece que há
algumas semanas vi-o em casa de um familiar. Foi o suficiente para
recordar numa fração de segundos tantos episódios. Não o cobicei,
mas uma sensação de vazio foi-se construindo dentro de mim, sem
me aperceber, até que, por uma mera casualidade, acabou por cair
em minhas mãos, preenchendo esse espaço repleto de lembranças
prontas a serem vividas. Está mais escuro, sujo, até mais magro e um
pouco triste, embora não tenha perdido aquele ar de rei, de senhor, e
continua detentor de uma beleza que as imitações não conseguem
atingir, as próprias veias dos seus longos braços deixam transparecer o
sangue a circular; é quente, não é frio, mas está a precisar de um bom
banho, tomara, há decénios que ninguém o limpa como eu fazia. Sei
que não é Páscoa, estamos no Natal, mas é um bom momento para
o fazer. Daqui a uns dias já deverá estar mais composto, com outro
aspeto, mais alegre e, decerto, mortinho para reviver alguns episódios,
meus, porque com a idade que tem quantas e quantas histórias não
ficaram por contar...
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f
Do “De Profundis” ao Pinóquio....
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co, até o cabelo do “Pedrinho”. A noite já tinha caído naquele inverno.
Olhou para mim e viu que devia estar assustado como um coelho à
vista de um furão. Apertava as mãos protetoras nas minhas. – Olha lá
meu rapaz, eu vou pintar a tua garganta com esta tinta. E mostrou-
me uma zaragatoa com algodão na ponta que era branco mas que de
repente ficou escuro com o líquido com que o embebeu. Empunhou
o instrumento de tortura com uma das mãos e com a outra mostrou-
me um livro com figuras. – Conheces a história do Pinóquio? – Pinó-
quio?! Quem é? Respondi cheio de medo. – Ah! Não sabes! É a histó-
ria de um boneco de madeira que... E à medida que me ia contando a
história, pediu-me para abrir a boca na qual começou a escarafunchar
à vontade e repetidamente. Causou-me vómitos e uma sensação de
sabor terrível que demorou muito tempo a passar. Mas aguentei tudo,
porque estava anestesiado pela história, a primeira vez que a ouvi. No
fim do tormento, já conhecia a história que me encantou sobrema-
neira, ao mesmo tempo que ia sendo atacado por um desejo louco
de querer ficar com o livro com as belas imagens do Pinóquio, do seu
pai e do grilo. Mas o livro era do senhor! Mesmo assim, passou-me
pela ideia que o livro deveria ser uma coisa cheia de magia, capaz de
contar histórias. Na altura, não tinha a ideia do que era um livro e que
pudesse ter sido feito por alguém. Não! Julgava que o livro é que tinha
criado as palavras, as figuras coloridas e a história! Foi esta a primeira
impressão consciente da existência de um livro. Ao sair ouvi o “Pedri-
nho”: – Se disseres a verdade e o teu nariz não crescer eu dou-te o
livro! Doeu-te alguma coisa quando te pincelei a garganta? Foi então
que, preventivamente, coloquei a mão no nariz e pressionei-o com
força e disse: – Não senhor! – Hum! Então toma lá! Fiquei radiante
de felicidade e quis sair imediatamente do consultório, sempre com
a mão a tapar o nariz, até chegar a casa que ficava a escassos cem
metros. Assim que chegámos, perguntei: – O meu nariz está muito
comprido? Olharam, olharam e disseram: – Um pouco, mas não se
nota muito. Amanhã já deverá estar normal! Um alívio.
Senti pela primeira vez a sensação de ser a pessoa mais feliz do mun-
do, tinha um livro, mesmo sem conhecer as letras. Nem o amargo da
mistela, que ainda pairava nas minhas goelas, foi suficiente para des-
truir aquele momento que se tem repetido incessantemente desde
aquele dia até hoje.
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g
"E o sol ficou feliz"!
Hoje tenho de dar por terminada uma história que comecei a escre-
ver há três anos a propósito de uma "fotografia". Na altura pensei que
ela iria ser entregue ao José Luís, que sofre de grave perturbação visu-
al, está quase cego, e nunca viu a mãe, nem em fotografia, mas não,
por um conjunto de vicissitudes, não foi possível. Por causalidade, a
prima, que tinha conseguido uma ampliação da única fotografia que
havia em casa, foi apresentada a uma senhora acompanhada de uma
menina de sete anos. – Sabes quem são, perguntou-lhe a madrinha, –
não, não sei, – são tuas primas, – primas, sim - a filha e a neta do José
Luís. Ficou de boca aberta, perguntando, onde é que ele está, onde é
que ele está, quero vê-lo e entregar-lhe uma coisa. Disseram-lhe onde
estava e, passado pouco tempo, o primo viu pela primeira vez a ima-
gem da mãe, sessenta e sete anos depois de ter entrado neste mundo.
Testemunharam o facto a neta e a bisneta que também passaram a
conhecê-la.
A fotografia...
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provavelmente tirada no dia do batizado. A foto conseguiu captar um
momento mágico em que o olhar da mãe, cheio de amor, de cari-
nho e de alegria captava a atenção de um petiz com um olhar meio-
esbugalhado. Perguntou-me: – Sabes quem é? – Não. Respondi. É
a minha tia Ilda. – E a pequena? Não é uma rapariga! É um rapaz, o
meu primo José Luís. Subitamente fiz uma revisão sobre o assunto.
A senhora tinha falecido muito nova, há uns sessenta anos, durante a
segunda gravidez. A história familiar revela que não foi bafejada pela
sorte e muito menos pela felicidade, a que não foram alheios os maus
tratos. O pai refez a vida, mas, incompatibilizado com os familiares,
impediu qualquer relacionamento do miúdo com os seus parentes
mais chegados. Quer o pai, quer a madrasta, nunca revelaram afetos
por uma criança com grave problema de visão, traduzido no uso de
óculos com as lentes mais grossas que já vi em toda a vida. Quando
era miúdo cheguei a conviver com ele, apesar de ser “muito” mais
velho do que eu. A memória que guardo dele é de um jovem muito
triste, que falava baixinho e que andava sempre cabisbaixo, isolando-
se de tudo e de todos. Não conhecia o seu passado, nem nada da
sua família. Gostava muito de jogar dominó e ping-pong com ele, à
noite, na Casa do Povo, porque era um dos poucos a quem conseguia
ganhar, facto a que não devia ser estranho a sua péssima visão, já que
não era uma grande espingarda no uso das raquetes. Ao fim de alguns
anos deixei de o ver. Saiu da vila na companhia do pai, da madrasta e
do meio-irmão. Sei que se casou e que vive para as bandas de Tábua
numa pequena aldeola. Nunca houve qualquer aproximação com os
familiares da mãe, apesar de alguns esforços nesse sentido. Mágoas
antigas aliadas à privação já denunciada deverão explicar a situação.
Enquanto congeminava nestes factos, a minha mulher explicava-me
que a madrinha lhe tinha perguntado se não teria uma foto da tia Ilda.
É que um grande amigo, o Só, pediu-lhe se não arranjaria uma foto,
porque o Zé Luís tem uma grande mágoa em não ter conhecido a
mãe, nem através de uma fotografia! Este lamento levou-a à procura
de uma foto. A única que encontrou em casa foi tirada há mais de 60
anos em Nova Lisboa, na altura do batizado. Fotografia pequena, mas
que, graças às técnicas de computorização, aumentou substancial-
mente de tamanho, sem perder qualidade, facto que irá permitir ser
melhor observada por quem está praticamente quase cego. Ao fim
de mais de sessenta anos o filho vai ver pela primeira vez a mãe, num
momento íntimo, em que os dois olhavam um para o outro. Estou
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convicto que deverá ser a maior alegria da sua vida, porque poderá ver
a mãe a acarinhá-lo e a dar-lhe amor. Amor que nunca sentiu, mas
que agora vai ver pela primeira vez, antes que a escuridão chegue...
(4 de Julho de 2009)
– Ainda me viu.
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h
“É proibido entrar bêbado.
Sair pode”
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Perguntei ao taberneiro, que fazia jus à sua profissão, se era verdade
que saíam mesmo bêbados. Respondeu-me que sim e muitas vezes
até já entravam nesse estado.
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i
Falta de homem!
Este episódio fez-me recuar muitos anos, quando uma senhora negra,
na casa dos trinta e poucos anos, me consultou por causa de dores
na coluna. As queixas eram sérias e levou-me a questioná-la sobre a
atividade profissional. Confessou que andava a colher ramagens de
eucaliptos para serem usadas numa destiladora para obter óleo. Claro
que não foi difícil estabelecer um nexo de causalidade entre a ativida-
de profissional, longas horas dobrada, e as queixas. Mas antes que eu
lhe explicasse as razões das dores, adiantou a seguinte pergunta: – O
senhor doutor acha que é falta de homem? – O quê?! Falta de ho-
mem?! Fiquei de boca aberta, porque a forma humilde e sincera com
que a senhora fez a pergunta tocou-me sobremaneira. Respondi-lhe
que não, mas ao mesmo tempo, curioso, perguntei-lhe a razão de
ser de tamanha preocupação. Disse que foram as colegas que lhe
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explicaram que as dores nas costas eram devidas a falta de homem.
A senhora, de tão simples que era, deverá ter sido alvo de chacota
por parte das colegas. Mas a forma como me interpelou e aceitou as
minhas explicações tiveram o seu quê de emocionante. Mediquei-a
de acordo com a situação e temi que, se não melhorasse, as soluções
das colegas poderiam levar a melhor.
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j
"Labor Omnia Vincit"
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Hoje, no decurso das festividades, fui obrigado a conversar comigo
próprio. Lembrei-me do senhor Moura, não é que tenha privado inti-
mamente com o senhor, na altura era um mero catraio, mas conheci-
o e retenho alguns episódios. Vou relatar apenas três. O primeiro tem
que ver com o atrevimento da canalhada de então que, quando ia para
a escola, entrava na Fornecedora para pedir amendoins. Eu também
ia. Uma das vezes foi o próprio que me questionou o que eu queria,
não estava à espera. Comecei a tremer e, de cabeça baixa, disse que
era por causa dos amendoins. Hum! – E onde é que os levas? Meti as
mãos nos bolsos dos calções, como quem diz, aqui. Aí não levas gran-
de coisa. Dá cá o boné. Atrapalhado, sem saber para que é quereria o
boné, entreguei-lho. Passado pouco tempo apareceu com ele cheio
de amendoins, cujo fabuloso odor precedeu a entrega. Fiquei com os
olhos arregalados e agradeci como pude e sabia tão generoso gesto.
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uma frase em latim. – E o que é significa? – Significa, "O trabalho ven-
ce tudo". No dia seguinte voltei a olhar para a minha primeira locução
latina, "Labor Omnia Vincit". Achei-a tão bela, tão simples e tão rica
que me apaixonei por ela, adotei-a, instintivamente, como o lema da
minha vida e, até hoje, não me arrependo. Afinal, a minha zanga, por
ter tirado o segundo recreio, foi compensada como uma das mais
elegantes expressões que está na base do sucesso das pessoas e das
sociedades. Passo amiúde por aquelas bandas, muitas vezes só para
voltar a ler "Labor Omnia Vincit"...
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jk
Lembranças...
Uma parábola hassídica diz-nos que Deus criou o homem para que
contasse histórias. “Esta narração de histórias é a própria condição do
nosso ser. A alternativa seria a inércia total ou o eclipse do nosso ser”.
Por este motivo, passo a contar uma história.
Recordo que era muito miúdo e fazia um calor diabólico. Em casa dos
meus avós procurava a escadaria em madeira da entrada por ser a
zona mais fresca, contribuindo para o efeito uma brisa produzida por
uma pequena janela situada no topo que, assim, protestava contra o
calor que entrava pela porta. Fosse verão ou inverno a porta estava
sempre entreaberta de manhã à noite, porque dava, também, serven-
tia a um escritório. Naquela tarde, estava, mais uma vez, proibido de
sair à rua por causa do calor que se fazia sentir. O medo da exposição
ao sol era uma constante, talvez porque lhe atribuíssem muitas doen-
ças que afetavam as meninges dos miúdos. Mas não estive sozinho:
uma jovem familiar, mais uma amiga, sentadas num degrau a meio
das escadas, conversavam e riam-se alegremente a lerem cartas. As
gargalhadas eram diferentes das habituais, brilhavam, faiscavam e
fascinavam, porque nunca tinha ouvido nada semelhante, até então.
Com o meu carrinho de linhas, movido pela força de um elástico que
prendia de um lado num bocado de sabão e no outro a um fósforo já
usado, e que colocava no vale do longo corrimão de madeira, como
se fosse uma pista, descia a correr os degraus para depois esperar
pela chegada do meu veículo. Sempre que passava pelas duas, a toda
a velocidade, perturbava-as, interrompia a conversa e era repreendi-
do devido ao perigo de queda iminente. Numa das vertiginosas des-
cidas, parei e, atrevidamente, perguntei porque estavam tão felizes.
Responderam-me que eu era pequeno demais e não compreendia.
Era pequeno, de facto, mas apercebi-me que se tratava de namoros.
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Curioso, fingindo que não dava qualquer atenção ao alegre colóquio,
confirmei que afinal se tratava daquilo a que mais tarde vim a conhe-
cer como “anda moiro na costa”. E andava mesmo!
Muitos anos mais tarde, a minha familiar, a tal que usava naquela tar-
de de verão uma saia branca e salpicada de pequenas pintas verme-
lhas, tão ao costume dos anos cinquenta, foi confrontada com um
tumor da mama. Como jovem médico vivi aquele dramático período.
O sorriso mantinha-se, mas era triste, revelando ansiedade quanto ao
futuro. Foi operada e pediu-me para assistir. Assim o fiz, talvez porque
lhe propiciasse algum conforto, mais do que isso seria impossível. Na
altura, em pleno bloco operatório, o meu velho professor de cirur-
gia, homem de poucas falas e de trato difícil, depois de ter o campo
preparado, empunhou o bisturi, olhou para mim e questionou-me: –
Dá-me licença que comece? Surpreso, perante este ritual a que não
estava habituado, senti como que estivesse irmanado aos tecidos que
iriam ser alvo daquele instrumento. Acenei com a cabeça, ao mesmo
tempo que balbuciava qualquer coisa como: – Com certeza, Senhor
professor! No final embrulhou a peça em gaze e pediu-me: – Não se
importa de a levar ao Instituto de Anatomia Patológica? Ao mesmo
tempo que fez o pedido, colocou-me a mama nas mãos, sentindo
um estranho calor. Um calor violentamente extirpado da sua fonte
original. Vesti-me, acondicionei a peça num saco de plástico e dirigi-
me ao instituto, onde, um outro professor a recebeu e começou a
analisar. – Já não é pequeno, mas está bem encapsulado. Amanhã,
já sabemos como estão os gânglios. No dia seguinte, lá estava para
receber a notícia, afinal, estavam todos íntegros. Foi um alívio que
rapidamente lhe transmiti. O seu sorriso ansioso transformou-se, su-
bitamente, num novo sorriso. Um sorriso de esperança!
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Ao fim de muitos anos a “boa morte” apanhou-a, subitamente, numa
linda manhã primaveril. Deitada à minha frente, com a cara tapada por
um singelo lenço de seda, observava as pessoas que o retiravam para
dar uma última olhadela. Não o fiz. Nunca faço a ninguém. Recuso.
Não porque tenha qualquer dificuldade em lidar com a morte, mas
porque prefiro saborear momentos da vida. A visão da máscara da
morte não me serve para nada e não quero que ofusque as minhas
lembranças, porque a vida resume-se a um sucedâneo de pequenas
lembranças, lembranças que se alimentam da vida, à espera de nós
próprios nos transformarmos em meras e transitórias lembranças...
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l
"Oásis"
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dor, o único da terra, com o qual abrilhantava pequenas festas e baila-
ricos. Sabia dançar muito bem. Tinha uma moto potente que andava
sempre a montar e a desmontar. Quando me dava boleia para ir à vila
ficava sem ar. Andava muito depressa, com segurança, mas eu não
sentia grande prazer. Talvez fosse por isso que nunca gostei de motos.
Agarra-te bem, ouviste? Nas curvas deixa-te ir, não faças nada que eu
controlo tudo. Pois, pois, o pior é quando fazia um ângulo inferior a 45
graus e via os paralelos a aproximarem-se. Mais tarde, mudou-se para
junto da ponte onde havia um jardim mal cuidado. Pediu autoriza-
ção e remodelou aquele espaço de árvores frondosas. Transformou-o
num verdadeiro oásis onde construiu um pequeno e discreto estabe-
lecimento. O Oásis foi o melhor e mais importante espaço de convívio
da terra, permitindo, durante muitos anos, debater ideias, desfrutar fes-
tas, numa socialização única, fazendo crescer os novos e deliciando
os mais velhos. Discutia-se tudo em tertúlias mais ou menos espon-
tâneas. Os grupos ansiavam pela chegada dos diferentes elementos.
Os mais novos, apesar de serem, por vezes, objeto de escárnio, eram
estimulados a associar-se às velhas e experimentadas raposas. Não
havia assunto que não fosse passível de debate, havia apenas muito
cuidado quando se tocava na política. O espaço era aberto, olhava-se
para o lado, via-se que não havia desconhecidos, baixava-se mesmo
assim a voz e falava-se por enigmas, com segundas e terceiras inten-
ções, até porque nunca se sabia se algum dos presentes não poderia
ser informador ou bufo. Todo o cuidado era pouco. Só havia desaca-
tos quando era abordado o desporto, sobretudo o futebol. Perdiam
as estribeiras. Cada um fechava-se no seu clube e era o momento de
discussão a ponto de alguns desaparecerem durante dias e ficarem
mesmo zangados. Com o Arlindo não se podia falar mal do Sporting.
Ficava possesso. De elétrico passava quase para um estado convulsivo
capaz de destruir o Oásis. Chiça! Até o Pinóquio, o cão malhado, de-
saparecia durante dias, não sei se era por causa do Sporting ou se era
por medo do dono. – Então, o Pinóquio desapareceu outra vez? – Foi
às cadelas. Hum! É certo que o cãozito deveria sofrer de satiríase cani-
na, mas daí a desaparecer durante tantos dias. Depois voltava fazendo
jus ao termo escanzelado.
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resto da manhã a recordar tantas coisas que aprendi naquele espaço,
onde também me diverti em comunhão com muitas pessoas e com
o rio Dão, o rio da minha infância e adolescência, enterrado pela albu-
feira que acabou por afogar o Oásis. Resta-me um pequenino oásis na
minha memória onde me refugiei ao escrever este texto.
Morreu o Arlindo!
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m
O boi da câmara
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um pensamento: – Se o boi anda no Rossio, então, pode muito bem
voltar para trás e apanhar-me. Enchi-me de coragem e corri que nem
um doido até entrar no portão da casa do meu avô. Fechei-o bem e,
nesse dia, não mais voltei a sair!
O boi era mesmo agressivo. Era o boi da câmara. Resta saber se a sua
agressividade era inata ou se era adquirida, às tantas era responsabili-
dade de ambas. O desgraçado do animal tinha que puxar a carroça da
carne do matadouro até ao talho. Acredito que não devia ser fácil ver
e ouvir o massacre exercido sobre os seus irmãos e, depois, transpor-
tar os seus restos para alimentar a cáfila dos humanos. Passou-se. E
eu, sem ter qualquer culpa no cartório, ia pagando as favas.
42
que muitos expressam nos seus comportamentos, uma inativação de
alguns genes poderia ser muito interessante. E, em vez de andarmos
a querer domesticar os animais selvagens, o melhor seria centrar a
atenção na “domesticação” de alguns seres humanos que, afinal, aca-
bam por ser muito mais agressivos e perigosos do que o boi da câ-
mara.
43
n
“Ó Chiquinho, o lugar?”
45
nome: Mário Braga. Presumo que passou mais do que um Verão.
46
lítica e social de uma vila tipicamente beirã. A personagem principal
era o Chiquinho Boavida, barbeiro, cronista do semanário da região,
presidente da junta de freguesia, dotado para as artes de fígaro e ex-
celente orador, desejoso de voos mais altos, que lhe possibilitassem
ir para Lisboa, a fim de fugir à tirania da mãe e poder casar com a sua
eterna amada, além de tirar rendimentos dos seus talentos.
47
Estou a vê-los – se pudessem lá chegar, claro – a puxarem a manga
do senhor Primeiro-Ministro dizendo-lhe: – “Ó Chiquinho, o lugar?”.
A do Boavida já eu sei...
48
o
O corvo que tem raiva a gatos
pretos
49
tudo. Ao chegar ao cimo fui saudado pela filha e, por detrás, sentado
num mocho à entrada para a cozinha, estava o senhor. Não esperava
que estivesse ali, com um ar bonacheirão, sorriso malandro e cheio
de carnes. A imagem que estava à espera era deitado no sofá, boca
aberta, olhar no vazio, corpo rígido, sem dizer coisa com coisa e com
a saliva a escorrer pelo canto da boca. Qual quê! Estava ali, sentado,
na posse de todas as suas faculdades mentais, prolixo, satisfeito por
se mostrar que estava em forma, embora estivesse preocupado com
a sua saúde. A filha disse-me que andava com medo de morrer. – Ai
anda? Bom sinal! – Viva senhor X., o senhor está com um aspeto for-
midável! Nem quero acreditar. – Foram aqueles dois medicamentos
que o senhor doutor lhe deu. Interveio a filha. – Ele anda, anda sozi-
nho e muitas vezes sem a bengala. Vai até ao quintal e tudo. Enquanto
a filha ia debitando o sucesso da sua recuperação, o senhor X, inchado
de satisfação, fixava-me com um sorriso irónico, um sorriso destilado
ao longo de décadas e décadas de vida bem recheada de experiências
e de histórias que mereciam ser contadas. Dotado de uma capaci-
dade argumentativa muito difícil de rebater, apesar de não ter for-
mação escolar, obrigou-me, desde sempre, a um cuidado redobrado
na forma como lidar com ele. Ai de mim se lhe desse pretexto para
contra-argumentar, desfazia-me com uma lógica terrível, embora não
lhe assistisse a razão. Depressa aprendi esta sua qualidade para me
impor e fazer com que aceitasse os meus conselhos e determinações.
– Enquanto se ia desenrolando estas cenas, o corvo lembrou-se de
começar a crocitar. – Afinal está vivo. Ainda bem. Mas por que razão
estará a crocitar? Olhei para baixo e vi um gato preto. Ah! Está expli-
cado. O corvo tem raiva a gatos pretos e se pudesse decerto que lhe
arrancaria os olhos. – Bom, este final de tarde está a correr melhor do
que esperava, o sol está simpático, o corvo está vivo e o senhor X está
em forma. Levantou-se com uma agilidade surpreendente e fomos
para o sofá. Direito, sem ajuda, sentou-se e disse-me que andava pre-
ocupado com aqueles "ais" que lhe vem lá do fundo, suspiros que não
consegue controlar. – Preciso de arrotar, para ver se isto sai. Arranje-
me qualquer coisa para deixar de suspirar. Expliquei-lhe que não era
sinal de perigo, às tantas eram saudades de outros tempos, das rapa-
rigas... – Olhou-me com um sorriso muito malicioso, dizendo: – Acha
que sim? Era bom, era! Fui obrigado a admitir que as suas capacidades
estavam a funcionar bem. Um pequeno teste, fácil de aplicar. – Mas
esta coisa da barriga - parece que estou empanturrado, chateia-me. É
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nas voltas de lua que isto me dá. – Ai sim? Então, eu vou-lhe dar um
medicamento para tomar quando se sentir empanturrado nas mu-
danças de lua.. – Está bem! A conversa continuou ao redor de outros
assuntos e pude ver que o senhor estava muito melhor. Até quando
não sei. O senhor X. estava feliz e ficou melhor depois da visita. Eu
também fiquei feliz.
51
p
“O galo da torre”...
Diz uma lenda que a única vez que um galo cantou à meia-noite
foi quando nasceu Jesus. É capaz de não ter sido, se dermos fé a
Henrique Lopes de Mendonça, o pai da letra do nosso Hino, na sua
obra “Santos de Casa”. Inicia-a com um conto sobre o “galo branco de
Azoia”; um galo intrépido que fazia frente a qualquer alimária bravia
com as “modulações do seu canto, heroico e soberbo como um peão
da Hélade”. A sua audácia devia provir “mais da fortaleza do coração
do que pedra na figadeira”.
Frei Gil de Santarém retomou a sua prática, afirmando que “cada be-
nefício feito na Terra às criaturas mais humildes era um passo dado no
caminho do paraíso, e como cada iniquidade praticada era um peso a
mais que nos puxava para os abismos”. A partir deste momento, a voz
começou a claudicar e os dizeres passaram a ser titubeantes e muito
confusos. Todos se entreolhavam estupefactos perante tão inusitada
53
situação. Foi então que o frade começou a confessar que tinha co-
metido um pecado infando, porque lhe faltou “o ânimo da paciência”.
Dirigiu-se a Ermesinda e perguntou-lhe o que escondia debaixo da
capa. Com lágrimas nos olhos entregou-lhe o belo corpo branco do
galo. Frei Gil, invocando Deus, conseguiu que o galo voltasse a viver,
ofertando-lhe os anos que ainda lhe restavam de vida terrena. Foi o
momento do galo se erguer de pronto, para espanto de todos, pror-
rompendo um cântico que mais parecia um hino de glória.
54
colocarem na torre.
Aos muitos “galos políticos” que andam por aí, quase que me apetecia
dizer: “Vão para o raio que vos partam”, porque não conseguem anun-
ciar um novo dia, nem uma nova esperança, nem transportar a luz da
verdade..
55
q
O homem que matou o diabo!
57
pacidade de sobrevivência".
Nos dias seguintes fiquei a saber que o “Ferrão”, o que tinha dito que
matou o diabo, afinal tinha morto o “pai-avô” (uma designação que
demorei anos a perceber o seu significado) à machadada no pinhal
da bica. Só anos mais tarde fiquei a saberes certos pormenores da
tragédia, nomeadamente o internamento no Sobral Cid, por ter sido
considerado inimputável pelo tribunal, devido a uma grave doença
psiquiátrica. Ainda hoje lhe é atribuída a seguinte afirmação proferida,
num momento de aparente lucidez, ao entrar na instituição: – Eu vou
mas ficam cá fora muitos!
O mesmo sorriso...
58
r
“O Lima”...
59
zendo pela vida, vida essa que foi mesmo dura, conseguindo dar uma
formação superior à sua Rosinha, com muito sacrifício.
60
s
“O melro do senhor Lopes”...
Tenho um amigo que vive com a mulher num local isolado na mar-
gem esquerda do rio Dão. Em boa verdade, é uma de três famílias
que lá habitam, sendo uma delas o filho e uma nora. Zona paradisí-
aca, onde guardo a minha gaivota com a qual pretendo fazer algum
exercício durante as férias, vasculhando recantos maravilhosos do rio
e desfrutando momentos únicos, num pretenso silêncio natural, em
comunhão com as mais diversas aves e animais cujos hábitos acabei
por conhecer ao longo do tempo.
61
mesmo assim continua a dar as suas escapadelas. – Oh senhor doutor
essas coisas também atingem os animais? Disse-lhe que sim, mas nas
aves não sabia. – Cá me parecia. O que o gajo quer é dar uns passeios
e depois casa. – Mas, Oh senhor Lopes, o animal tem por aí tanta
comida, árvores de fruto, insetos e vermes, logo não tinha razão para
regressar. – Aí é que o senhor doutor se engana. Procurar comida dá
trabalho, muito trabalho, ao passo que aqui a comidinha está sempre
à mão. Julga que os melros são parvos? – Oh senhor Lopes, então tal-
vez venha daí aquela frase: “Fulano é um grande melro. Sabe-a toda”!
Usar o bico para depenicar a papinha feita é obra de passarão. – Quem
sabe, quem sabe? Sempre acompanhado de um encantador sorriso
que volta e não volta entremeava com uma gargalhada sonora, rivali-
zando com o cantar das aves da quinta que tanto adora.
Escrevi esta pequena crónica há algum tempo. Já não vai lê-la, porque
o seu sorriso desapareceu e, com ele, um dos homens mais afáveis
que conheci até hoje. Um dia destes tenho que ir à Quinta do Rio ver
o melro. O melro do Sr. Lopes...
62
t
O outro “Menino”!
63
as pessoas “vivas” em condições impensáveis há alguns anos atrás.
Recordo-me dos meus tempos de estudante, em que não haviam
ainda medidas deste cariz, de ter lido uma frase do prémio Nobel da
Medicina de 1960, Sir Macfarlane Burnet que, a propósito das medidas
já existentes, embora muito aquém das atuais, dizia que andava com
um cartão na sua carteira onde pedia para que não fosse sujeito a téc-
nicas de “ressuscitação”, se as mesmas pudessem por em causa a sua
condição de ser humano, “exigindo” morrer com dignidade. Nunca
mais esqueci aquela frase.
Houve uma altura em que o “Menino” não aparecia com muita fre-
quência, ia rareando a sua presença. Começámos a andar tristes e, um
dia, ficámos a saber que o “Menino” nunca mais iria aparecer - fomos
com ele ao cemitério atrás do padre.
Piergiorgio Welby não teve funeral cristão, mas teve uma morte adia-
da!
64
u
O senhor doutor juiz
O meu avô ensinou-me coisas muito importantes. Uma delas diz res-
peito à justiça. Quando era pequeno passávamos muitas vezes em
frente do Tribunal Velho. Afirmava que aquela casa era o local onde
um homem honrado sentia o verdadeiro significado do respeito, ex-
plicando-me que, quando alguém sentisse que tinha sido injustiçado,
era ali que encontrava a reparação, vendo os maus a serem punidos.
Para mim, o juiz passou a ser a pessoa mais importante, nem o mé-
dico, nem o padre, nem o professor, nem o chefe da estação, nem os
guardas chegavam ao calcanhar daquele homem! Não tinha medo e
gostava de o ver. Parecia-me diferente de todos os outros. Afinal, havia
alguém que nos protegia e eu conhecia-o. De igual modo, se houves-
se algum problema, o juiz resolvia-o. Até cheguei a pensar dizer-lhe
que andava aborrecido, porque já me tinham roubado, mais do que
uma vez, os meus queridos piões. No entanto, havia sempre um fami-
liar que me comprava um novo, mas não era a mesma coisa, porque
não tinha ainda uso e sem uso é diferente.
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irreversíveis. Neste caso, as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos
atuaram e aplicaram penas disciplinares, ao passo que a justiça deixou
impunes os responsáveis.
66
v
Pintarroxos!
os pássaros
os pássaros
não os vemos
só as crianças são pássaros
só elas os veem
(Francisco d'Eulália)
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Alguns pássaros eram intocáveis, falo das andorinhas ou dos pintarro-
xos, por exemplo. Ao invés, os pardais e os melros levavam na perna,
à pedrada, à fisga ou com os costilos. Recordo-me de um “puto” mais
novo querer fisgar um pintarroxo, levando, automaticamente, no ca-
chaço! – Então não sabes que não se pode fazer mal a este pássaro? E
lá lhe explicámos que a mancha vermelha no peito era devido a uma
gota de sangue de Cristo quando quis tirar um espinho da coroa que
se tinha enterrado na cabeça do Senhor durante a Via Sacra. O “puto”,
com cara de parvo, ficou de boca aberta, e só deverá ter aprendido
que não ia meter-se mais com pintarroxos, porque senão levava no
focinho.
68
x
“Pois, pois”!
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um recipiente gigante para pipocas onde tinha ainda algumas fichas
De repente, comecei a ouvir “tlim, tlim, tlim”, que nunca mais para-
va. Encheu o pacote com as fichas, mas como continuavam a cair,
colocou-me nas mãos, pedindo para o guardar enquanto ia buscar
outro. Fiquei especado à sua espera. Quando voltou, encheu o novo
pacote e eu dei-lhe o primeiro. Foi então que lhe disse: – A senhora
já ganhou bastante, por que é que não vai para casa? Já é tão tar-
de! Respondeu-me, ao mesmo tempo que segurava os dois pacotes
cheios de fichas colados ao peito, com um enigmático sorriso: – Pois,
pois! Fiquei convencido de que ia mesmo, mas, mais tarde, encontrei-
a agarrada a outras máquinas. Afinal ainda lá andava. Devia ser a últi-
ma a sair.
70
porta do seu consultório da última vez.
71
y
Pulseira do equilíbrio
– Sabe? A sua pulseira fez-me recordar uma velha tia e uma história
que lhe vou contar quando era pequeno. Aconteceu há meio século.
A minha tia Custódia, solteira, que conheci sempre velha, de voz toni-
truante e com duas manápulas capazes de dobrar o cachaço a um boi,
tinha o hábito de contar histórias, inicialmente agradáveis, acabando
sempre por as terminar de forma a chatear-me, - um estupor. Um dia
comprou uma pulseira magnética na feira que não lhe ficou barata
(pelo que a ouvi dizer à minha avó). Mas como lhe disseram que era
73
o melhor que havia para o reumático não hesitou. A pulseira compor-
tava vários elos, quadrados, feitos de latão, e dentro de cada um de-
via haver qualquer coisa, porque se ouvia quando a chocalhava. Feia,
mas fascinou-me de imediato devido à atração entre os elos. Abria a
pulseira e depois, lentamente, aproximava-os até sentir uma força de
atração e zás! Colapsava-se. – Mas como é possível uma coisa destas?
Parecia um milagre. Intrigado com o interior dos elos, aproveitei uma
distração da minha tia. A pulseira estava sobre a cómoda do quarto.
Entrei, peguei no “antirreumático” magnético e, com a ajuda de uma
chave de fendas, consegui retirar do interior pequenos cubos negros
com os quais comecei a fazer comboios e vê-los a chocar sozinhos
entre eles. Uma delícia. O pior foi a seguir. Ao ver o estado em que
se encontrava o remédio para as suas dores, não lhe foi difícil saber
quem teria sido o autor. Sem dizer uma palavra, e com o resto da
pulseira na mão esquerda, pregou-me um estalo de tal ordem que caí
desequilibrado no chão. Vi estrelas, como se tivesse sido atropelado
pelas enormes máquinas a vapor que puxavam o comboio-correio.
Umas bestas, mas a minha tia também não lhes ficava atrás.
Cinquenta anos depois, tudo na mesma, ou pior! Bom, pior não digo.
Pelo menos desta vez não estraguei a frágil pulseira...
74
z
Purgatório
75
se ainda no purgatório. Corria o risco de não subir ou então ter que
descer.
76
w
Queda
O seu gosto por máquinas novas, e cada vez mais potentes, ofuscava-
lhe o discernimento quanto ao futuro, como se toda aquela imensa
fortuna o vacinasse eternamente ante qualquer infortúnio ou “malha-
dice” do destino. O fosso entre ele e os outros era tão evidente que
nós, os que vivíamos neste planeta, e também num mais do que pre-
visível e estranho país, não conseguíamos entender o que era ter tan-
77
to dinheiro e tantas mordomias. Foi através dele que soubemos que
existia tabaco Marlboro. Ficávamos fascinados quando rapava de um
maço, abria a caixa, retirava a cinta interna de prata e após acender o
cigarro ficávamos inebriados com aquele cheiro suave e perfumado
que contrastava com os nossos cigarros sem filtro, de sabor e cheiro
grosseiros, cheios de arestas que o fumo, entretanto, limava ao passar
através das nossas pobres gargantas.
Não sei se chegou a tirar o quinto ano, mas acho que não. Não tinha
tempo, nem paciência para essas miudezas, e nem precisava.
O tempo não para, exceto para os que morrem, por isso mesmo é que
são os únicos que sabem como ninguém o que é a eternidade. Mui-
tos anos depois, o Senhor da Ponte, também um pouco mais velho,
esqueceu-se de o proteger. Teve um acidente, não muito longe da
ponte, mas pelos vistos longe do Senhor. Uns tempos antes começou
a sinalizar algumas dificuldades, ele, que nunca trabalhou, resolveu
trabalhar, mas, afinal, mais valia não o ter feito, dado que o negócio
não lhe terá corrido bem.
Soube que tinha falecido por mera casualidade. Tudo por causa de
um outro falecimento que ocorreu na semana anterior e que, tam-
bém, tive conhecimento por acaso. Não era muito mais velho do que
eu, teria mais três ou quatro anos. Pedi alguns pormenores. Fiquei
estarrecido. Numa miséria total. Vivia do rendimento de inserção mí-
nimo e estava num lar. Um desastre!
78
A ponte há muito que está submersa. A capela foi retirada do seu sítio.
Colocaram-na num local onde o Senhor da Ponte pode ver ou ouvir
os carros a passarem, mas não é o mesmo. Não sei se ainda se lembra
daquele "meio peão", louco, muito louco, que ele fazia mesmo à sua
frente e que deveria diverti-lo. Evitou tantas vezes o acidente, exceto
daquela vez em que não se apercebeu. Em memória dos velhos tem-
pos, apetece-me dizer-lhe o seguinte: – Já que evitaste tantas vezes o
desastre, também poderias ter evitado este, o desastre da decadência
humana...
79
A
Raminho de alecrim…
81
há três semanas. – Morreu?! Mas como? Explicou-me que o filho tinha
entrado na cozinha e que caiu. Foi ver o que se passava e ao tentar
levantá-lo viu que não bulia: estava morto.
– Foi do coração não foi Sr. Doutor? – Deve ter sido, claro. Mas ele
andava doente? – Não! Andava bem!
Diz o povo que cada um sabe de si e que Deus sabe de todos. Pode
ser que seja, o que é certo é que eu também sei de alguns...
82
B
Roteiro de cheiros
83
álcool proveniente da barbearia de portas abertas. Bastava dar meia
dúzia de passos e o cheiro a colas marcava o território do sapateiro
que, rapidamente, dava lugar aos odores nauseabundos e agressivos
do talho. Passava à velocidade da luz na ânsia de me acalmar, aspi-
rando os aromas adocicados da farmácia vizinha em que os perfumes
imperavam. Mais à frente, salivava com as invisíveis nuvens de prazer
provenientes da torrefação do café ou dos amendoins, a ponto de a
roupa ficar impregnada para todo o dia. Aqui, invariavelmente, parava
durante algum tempo. Ao passar pela Fornecedora não ligava aos aro-
mas que as farinhas se entretinham a libertar dos sacos acumulados,
a não ser nos dias em que a torrefação não funcionava. Do outro lado
da rua, além do cheiro típico da petroleira, o suor das mulas e dos
cavalos, e os excrementos dos animais, que iam ao ferrador, não cau-
savam grande asco. Às tantas deveria ser um mero efeito da queima
do carvão e do calor provenientes das forjas do meu primo Porrudo,
situado praticamente em frente. Ao passar pela Estação, o cheiro a
creosote usado nas travessas estimulava os sentidos. De todos, o que
mais me seduzia era o sensual cheiro a café de saco que inundava o
pequeno jardim proveniente do “Zé do Café”. Um cheiro inconfundível
que se perpetuava noite e dia. Na própria gare, o cheiro à cola de tri-
go entremeava-se com o aroma de laranjas do vendedor Humberto.
Ao lado, antes de chegar aos sanitários, lançavam, frequentemente,
num pequeno tanque, restos do carbureto que, em contacto com a
água, libertava o gás que tinha o condão de penetrar profundamente
no nariz a ponto de me provocar dores, conseguindo, deste modo,
reduzir a desagradável sensação olfativa do “mijo” em decomposição.
Acelerava o passo, ou melhor, corria para chegar ao jardim florido que,
discretamente, perfumava os sentidos. Quando ia à vila, passava por
uma tasca onde os aromas acumulados de vinho impregnavam tanto
as madeiras das habitações como os paralelepípedos da rua. Se fosse
pela calçada, o armazém de sal, fonte de uma secura fria e sepulcral,
incomodava-me sobremaneira. Logo a seguir, passava pela fábrica de
sabão que lançava as escorrências a céu aberto, obrigando-me a sal-
tar os carreiros azulados e apontar o nariz para a resineira na espe-
rança de aspirar os vapores inebriantes do pez. Ao descer a calçada
romana retardava o passo para desfrutar a tranquilidade dos aromas
das mimosas que desapareciam a meio da ponte. Neste local, aspirava
longa e profundamente a frescura e o cheiro único da água doce do
rio, capaz de limpar todos os cheiros e até os fedores emanantes de
84
muitas almas. Na subida, regressavam os aromas das mimosas, subs-
tituídos pelas fragrâncias das flores dos campos e dos jardins anun-
ciadores da chegada à vila. Nesta, tinha que passar pela praça onde o
cheiro a peixe conseguia reinar sobre quaisquer outros. Até as pedras
não conseguiam libertar-se de tão desagradável “fedor”.
85
C
Rua de almas
Ouvi pela primeira vez o seu nome quando o Arvelos cantava ao fim
da tarde, bêbado que nem um cacho, o fado Hilário, junto ao pontão
do caminho-de-ferro, com uma voz triste, mas bem timbrada, que o
álcool não conseguia roubar. Tinha dias. Quando dava para a tristeza,
em oposição a momentos mais alegres, em que entoava músicas e
versos muito “marotos”, era certo e sabido que tinha de ser aquele
fado.
Conheço aquela rua há muito tempo, mas só hoje é que parei e esco-
lhi uma casa de pasto, embora se autointitulasse restaurante. Simples,
desde o espaço às pessoas, comida incluída, mas saborosa. Nas pare-
des, quadros, relíquias e um resto de capa de estudante rasgada presa
à parede com uma fita de grelo amarela, a homenagear o boémio que
morreu precocemente.
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Uma certa nostalgia emergia naquele espaço a que não era estranho a
violenta luz do sol arrefecida por um vento caprichoso e pelas poucas
almas que passeavam nas redondezas. Uma estranha sensação que já
vivi em alguns funerais.
Quando dou por mim verifico que já tinha calcorreado mais do que
uma vez as estreitas ruas. Um ritual que se repete sempre que passo
por aquelas bandas. Ao olhar para a casa onde nasceu o Hilário, re-
cordo que o cantador da minha terra, a quem ouvi pela primeira vez o
seu fado, também andou por ali ondulando ao sabor do acaso e à in-
diferença dos homens como uma velha e rasgada capa de estudante...
88
A minha capa ondulante
Foi feita de negro tecido
Não é capa de estudante
Mas é capa de vencido
89
D
Santas Combas
Numa das minhas incursões a alfarrabistas, que são cada vez mais
raras devido aos múltiplos afazeres, encontrei alguns volumes da Co-
leção Educativa que fazia parte do plano de educação popular do Es-
tado Novo. Pequenas obras didáticas. Uma delas intitulava-se “Santos
de Portugal” da autoria de Américo Cortez Pinto.
91
províncias, e mais uma em Trás-os-Montes com seu diminutivo
carinhoso: - Santa Combinha!
Isto nos diz, mais do que tudo, do amor e devoção que desde
tempos muito antigos tiveram sempre por Santa Comba as gen-
tes de Portugal.
Por Santa Coma, não: - pelas Santas Combas, que elas foram cin-
co! Santa Comba de Entre Douro e Minho, Santa Comba de Trás-
os-Montes, Santa Comba de Lamego, Santa Comba de Coimbra,
Santa Comba do Alentejo, cinco pombas, cinco Santas que foram
Mártires, todas cinco formosas e castas, com suas verdes palmas
abraçadas ao peito, por preservarem a sua Fé e virgindade.
Santa Comba de Entre Douro e Minho, foi uma das nove irmãs,
todas santas, filhas de Lúcio Caio Atílio, Cônsul Romano, que fo-
ram todas martirizadas por ordem do Imperador numa das per-
seguições aos Cristãos da Península.
A outra Santa Comba, que deu o nome a Santa Comba Dão, era
Abadessa do Mosteiro da Tourega, perto de Lamego, e ali foi
morta pelos moiros, com todas as suas religiosas, numa investida
que os Infiéis fizeram às terras dessa província.
92
povoações da mesma província. Foi também perseguida por um
rei moiro que tudo fez para atentar contra a sua pureza. E tendo
esgotado todas as forças contra a violência do renegado, Deus a
tornou invisível, e desta maneira se lhe escapou dentre os braços
sem que o perseguidor pudesse entender como ela levara sumi-
ço do cerco das suas mãos. Tão irado porém se pôs o malvado
moiro que mais tarde para satisfazer a sua vingança a degolou a
ela e a um irmão. E foi mais uma alminha doutra Santa Comba
que voou da terra direitinha aos Céus.
93
E
Santo Onofre nos valha!
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também ando, nem dinheiro me falta desde que arranjei um Santo
Onofre. – !!! Arranjou o quê? – Um Santo Onofre! – Sim. Arranjei um
Santo Onofre, tirei a parte de baixo, que era de madeira, enfiei-o numa
taça com aguardente até os joelhos do santo e coloco todos os dias
um euro. – Explique-me bem, que eu não estou a perceber. – O Santo
Onofre é o santo da prosperidade. Coloca-se um euro, diariamente, e
reza-se uma oração durante 21 dias. Ao lado direito do santo põe-se
um copinho de água com um raminho de salsa. Foi então que lhe dis-
se: – Já que está enfiado em aguardente até aos joelhos, a água deve
ser para a ressaca! – Mas olhe que a aguardente desaparece todos os
dias. Veja lá que no primeiro dia, o gajo, que é “bêbado que nem um
caraças (esta do caraças é a versão soft)”, bebeu toda a aguardente.
Todos os dias tenho que botar mais.
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aguardente e cheia de moedas de um euro. Peguei numa moeda e
fiquei com a mão impregnada do seu cheiro. Pus-me a pensar: – No
dia em que tirar notas de euro da minha carteira a cheirar a aguarden-
te, então, o país estará salvo! A não ser que, entretanto, a bebam toda...
97
F
Seios
Muitos anos mais tarde, uma familiar de idade muito avançada, com
queixas muito dolorosas numa anca, que não aliviavam com nada,
levou a um diagnóstico de metástase óssea. A procura do tumor pri-
mitivo foi um tormento, até que um dia, depois de muitos exames,
perguntei-lhe se não tinha nada no peito. Respondeu-me que tinha
uma "coisita", mas não devia ter importância. Já a tinha há muitos
anos! Sem pedir licença - mandei às malvas qualquer pudor - desnu-
dei-lhe a mama direita. Fiquei aterrorizado com o que apalpei. Não lhe
perguntei qual a razão de não ter dito nada. Já sabia. Pudor por um
lado, e recusa em aceitar o que quer que fosse, por outro. O que se
seguiu não tem descrição.
99
disse-me que a mãe tinha qualquer coisita na mama. Perguntei-lhe
se tinha há muito tempo. Respondeu-me a simpática senhora, an-
tecipando-se-lhe, que não, apenas há cerca de um mês. Senti um
estremeção e com muito cuidado tirei-lhe a blusa. Olhei, e bastou
tocar com as pontas dos dedos para ver o que se tratava. Um mês?
Qual quê?! Quantos e quantos! Não fiz quaisquer comentários e co-
mecei a providenciar a resolução do problema o mais rapidamente
possível. Mais uma vez estava perante a mama da dor, do sofrimento
e da morte.
100
reram as ruas londrinas. Neste caso, a mama reveste-se de angaria-
dora de fundos.
101
G
Sons
103
galés do que seres livres, não emitiam sons, nem de dor nem de má-
goa, mas na hora certa, o acumular de muitos meios quartilhos liber-
tavam as línguas e, então, sabia que eram humanos.
104
sinfonia da nostalgia, dando origem a novos sons que emergem da
combinação de sons do passado, sons que não se esquecem e que a
noite nunca conseguirá silenciar...
105
H
“Tocam os sinos na torre
da Igreja…”
Desde muito novo aprendi com a minha avó a contar ao som das
badaladas, a aprender as horas no relógio da torre, a conhecer os to-
ques dos finados, dos casamentos e batizados, das “Ave Marias”, das
“Almas” ou das “Trindades”. Estas últimas obrigavam-me a correr para
casa a tempo de fazer os deveres da escola. Sabia distinguir os sons de
outros sinos, o da Misericórdia, o de Óvoa e até o do Coito que se ou-
viam muito bem em certos dias, prenunciando mudança de tempo.
Até comecei a fazer meteorologia, porque a minha avó dizia, ao ouvir
o sino de Óvoa, “amanhã vai chover”. E chovia! Mais tarde encontrei a
explicação nas aulas, segundo o professor, quando a humidade no ar
aumenta, os sons propagam-se mais facilmente.
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Toda a vida se fazia ao redor do sino. A camioneta partia ao som da
última badalada das seis (no toque de repetição), os homens come-
çavam, interrompiam ou largavam o trabalho às suas ordens. Quan-
do tocava a finados era um corrupio até se saber quem é que tinha
morrido. Em pouco tempo todos ficavam a saber a desdita. Também
se sabia se o padrinho tinha dado ou não uma valente gorjeta ao sa-
cristão. Havia alturas em que o toque nunca mais parava, chegando
mesmo a irritar, denunciando a festividade e, sobretudo, o tamanho
da generosidade. Se as solenidades se desenrolassem da parte da tar-
de já não haveria problemas! Como é que o sacristão subiria à torre?
Só se fosse de gatas!
Alternava a estadia entre a casa dos meus avós na vila e em casa dos
meus pais, na estação, a 2,5 km de distância. Uma noite de fevereiro,
gélida, ouvi o toque de aflição da igreja. Levantei-me e vi pela primei-
ra vez um nevão, raro naquelas bandas. A lua cheia fez a sua entrada
iluminando os vagões, as linhas e todo o casario da vila, que se desta-
cava ao longe, no monte, coberto de neve, onde se poderia identificar
uma mancha rubra. A brancura da neve, a mancha vermelha das ha-
bitações a arder, a falta de energia elétrica e o som do sino produziam
uma combinação arrepiante. De manhã, a tragédia não deixou gozar
a beleza do nevão. Da segunda vez estava em casa dos avós e, mais
uma vez, faltou a eletricidade. O sino toca a rebate, a curta distância, a
meio da madrugada. As pessoas correm aflitas, até que ouvi alguém a
dizer, no meio dos Aldrogãos, que era a fábrica de serração na estação
que estava a arder. A casa dos meus pais estava praticamente pegada
à fábrica. Arrepiei-me e encolhi-me aterrorizado por saber que a casa
devia também estar a arder. O meu avô meteu pés a caminho e, pas-
sado algumas horas, já a manhã tinha despontado, regressou, dizendo
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que a casa tinha sido poupada. A fábrica desapareceu para sempre,
acompanhada de muita miséria para os que lá trabalhavam.
É curioso conhecer tão bem o toque de um sino que um dia irá tocar
sem que o possa ouvir. Preferia que o tocassem à maneira, porque,
pelos vistos, o tal sistema eletrónico não é de confiança, mas também
não é de excluir que o padre, amante de choques tecnológicos, possa
vir a adquirir um CD com toques meio foleiros e um altifalante qual-
quer! Deus queira que não...
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I
Um golo de aguardente!
Morava na estação. Era um catraio. Nos tempos livres corria pelas re-
dondezas, mas não para muito longe, dado que a povoação era peque-
na, rica de atividades e atraía tudo o que havia em muitos quilómetros
em redor. Os comboios assim o determinavam como, igualmente,
as fábricas de serração, de sabão, do pez e os grandes armazéns de
distribuição. Dir-se-ia: um verdadeiro polo industrial e comercial que
tinha vida e dava vida aos que necessitavam de viver.
Uma bela época, apesar da pobreza típica de Portugal dos finais dos
anos cinquenta e da década de sessenta. Munido de um papo-seco,
recheado de uma mistura de manteiga e de açúcar amarelo, corria
pela ladeira passando pelo taberneiro, cumprimentando efusivamente
os que saíam trôpegos e os que entravam sequiosos em matar a sede
com meios quartilhos até sentirem a felicidade a invadi-los de forma
grotesca, dando expressão às suas formas naturais de ver o mundo.
Passava em seguida, a toda à bolina, em frente da padaria, do barbei-
ro, do sapateiro, do talho, da farmácia, para atravessar com cuidado a
estrada. Antes de continuar pelo velho caminho de macadame, que
desaguava naquele ponto, via do lado direito mais uma tasca, algo
que não faltava naquelas aldeias, enquanto do lado esquerdo podia
imaginar os tiquetaques do relojoeiro e a mistura dos cheiros da loja
de mercadorias. Continuava sempre apressado, só parava momen-
taneamente em frente do petroleiro, pelo simples facto de ficar ine-
briado com mistura de cheiro entre o petróleo e o bacalhau, um odor
que nunca mais esqueci. Do lado direito, um pouco mais à frente, o
marceneiro fazia-se ouvir através dos sons despertados na madeira,
enquanto do lado esquerdo já se sentia a mistura entre os berros do
ferrador e o cheiro dos animais; só parava mais à frente na oficina do
Porrudo: primo do meu pai. Trabalhava em ferro e fazia carroças viço-
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sas, deixando-me deslumbrado com a maneira de fazer as rodas. No
final colocava uma cinta de aço a toda à volta. Tinha forjas e muitos
foles, uns mais pequenos e um que era monstruoso. Aquele que gos-
tava mais era da forja pequena onde colocava um tipo de carvão mui-
to redondo e duro. Tinha acoplado um pequeno dispositivo ao qual se
tinha de dar à manivela. Ao princípio custava, mas depois ganhava-se
balanço, tornando-se mais fácil. Quando girava com velocidade surgia
um clarão vermelho e em seguida uma chama de que gostava muito,
baixinha, sem deitar fumo, com uma cor azulada fascinante. – Queres
dar à manivela? – Quero. Depois de estar quente, muito quente, en-
fiava uma barra de ferro que ao fim de algum tempo ficava vermelha.
Com uma tenaz retirava-a, punha-a na vertical, olhava, revirava-a e,
em seguida, malhava com um martelo fazendo saltar muitas faíscas,
dando-lhe a forma pretendia. Parecia manteiga. Mergulhava em água,
num recipiente apropriado, ouvia-se o chiar enquanto uma pequena
nuvem se levantava, voltando a enfiar a peça na forja. Ao fim de algu-
mas operações, o objeto estava concluído, uma ferradura. – Serve-te?
– Como? – Estou a perguntar-te se achas que te serve? – Mas eu não
sou um cavalo! – Aí não? Então és o quê? Um homem, não? Quando
começava com esta lengalenga via logo que ia sair asneira. – Sabes
quando é que uma pessoa começa a ser homem? Que diabo de per-
gunta, pensei eu, e respondia-lhe com silêncio. – Já pintas? – O quê?
– Oh minha cavalgadura, então não sabes o que é "pintar". Claro que
sabia, só não queria ter de lhe dar troco, porque aquela rapaziada dos
ofícios gostava de se divertir à nossa custa, mas para isso precisavam
de pretextos e os pretextos surgiam assim que lhes respondíamos.
Entretanto, a conversa interrompeu-se porque o cavalo que estava no
ferreiro estava à espera do novo calçado feito à medida. Quando re-
gressou puxou de um garrafão e começou a beber. O calor das forjas
fez volatizar a aguardente impregnando as minhas narinas. – Queres
dar um golo? – Não, não bebo aguardente, obrigado. – Fazes mal,
rapaz, tens que experimentar para seres um homem.
Uns tempos depois soube que estava doente. Fui vê-lo. Estava deita-
do na cama. O quarto era muito pequeno e a casa humilde, casa de
pobre. Perguntei-lhe como estava. - Mal. E via-se. A conversa não foi
muito longa. Entretanto, pediu-me para tirar o garrafão que estava
debaixo da cama. - Garrafão? – Sim. Estranhei o pedido. Ajoelhei-me
e vi um garrafão deitado. Tirei-o. Agarrou-se ao dito, retirou a rolha e
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com sofreguidão tragou um valente golo. Um longo “Ah”, perfumado
de aguardente, invadiu as minhas narinas. – Toma, bebe um golo. –
Mas eu não bebo. – Poderias beber à minha saúde, disse com uma
certa tristeza. Incomodado com a situação, fiz-lhe a vontade. Bebi um
pequeno golo. Queimou-me a língua e o céu-da-boca, mas a quei-
madura continuou o seu percurso, pelo menos até ao estômago, eu
bem senti. Olhou-me com satisfação e disse: - Já és um homem!
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k
Uma boleia em Lisboa!
Fiquei preocupado quando soube que no dia em que tinha uma via-
gem marcada para Ponta Delgada, onde ia fazer uma conferência, os
pilotos da aviação civil iriam estar em greve. Após os necessários con-
tactos, garantiram-me que, em princípio, o voo não seria cancelado.
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verificar que se tratava de um profissional encarregado de transportar
pequenos grupos de executivos.
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ter muitas saudades dos tempos em que ouvia o roncar dos malucos
das máquinas, ameaçando entrar no seu reduto, e das promessas e
pedidos dos mais pequenos...
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L
Uma curta reflexão…
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que entrei no cemitério e assisti ao cerimonial. Nunca mais a esqueci,
nem mesmo hoje. Passado mais de meio século, sempre que vou
àquele lugar, sou obrigado a olhar para o canto onde a vi desaparecer
na terra. Recordo-me sempre da menina e das nossas brincadeiras.
Posso dizer que a primeira vez que assisti a uma morte tinha seis anos:
não me custou nada, foi um tio velho que acabou os seus dias no seu
quarto acompanhado dos familiares.
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M
Vai para a guerra!
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gistados os nomes dos que tombaram na Flandres, cujas planícies se
atapetam, todos os anos, de um extenso mar de papoilas vermelhas
como que a recordar o sangue dos que lá morreram.
A arca da memória, a cada dia que passa, abre-se com mais facilidade.
As chaves podem ser uma papoila vermelha, frágil e bela, uma voz do
passado mesclada de ruído a enaltecer o amor de uma mulher, ou,
até, uma notícia de resgate de dois corpos de soldados portugueses
feito por um autarca de uma freguesia de Tondela em Moçambique.
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n
"Vinismo"
Mas não se pense que esta ideia de o vinho fazer bem à saúde é de
agora. Qual quê! Já tem muitos anos. A este propósito, não queria
deixar de comentar um interessante ensaio sobre “O Vinho na Medi-
cina” da autoria de um português, Fernando de Castro Pires de Lima,
incluído na obra, Ensaios, publicada em 1943.
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car. O indivíduo está fraco? Uma tigela de vinho tinto com sopas de
boroa fortalece-o rapidamente. Espinhela caída? Pão-de-ló embebido
em excelente vinho verde! Aqui fiquei furioso! Quando era pequeno,
talvez porque devia andar meio enfezado, fizeram-me o diagnóstico
popular de que devia ter a espinhela caída. Chamaram uma mulher,
meia trombuda e seca, lá das bandas do Rossio, para me levantar a
espinhela. Foi um tormento. Entre rezas, lamparinas e movimentos
bruscos, fui sujeito a uma besuntada, nos bracitos, nos punhos e no
peito, com azeite. Não suportava aquela gordura e muito menos o
cheiro que me fazia lembrar o azeiteiro que cheirava a ranço que tre-
sandava. Se tivesse tido conhecimento desta medida exigiria de ime-
diato que me dessem pão-de-ló embebido em vinho em vez daquele
ritual assustador. Se não houvesse vinho verde sempre havia tinto!
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de água e vinho a que juntavam um pouco de açúcar. Vinha mesmo
a matar. Sabia tão bem! Noutras casas não me davam este tipo de
refresco, mas sim um à base de groselha ou de capilé. Pessoalmente
preferia o outro, mais saboroso e mais energético…
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Índice
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