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Após tal narrativa, seguiu alegando que por mais

que dedicasse as suas hábeis mãos à arte de cozinhar a


omelete de amoras, não poderia oferecer os sentimentos
sentidos à época, assim, jamais poderia ofertar ao rei tais
sabores, odores, lembranças.
A narrativa contada por Walter Benjamin, nos faz
pensar sobre as experiências vividas, imaginadas pelo ou-
vir contar. Pensamos de imediato que “a experiência é o
primeiro lugar, um encontro ou uma relação com algo que
se experimenta, que se prova” (LARROSA, 2016, p. 26). O
rei rememorou os fatos que levou sua família a floresta
escura e a casa da velha senhora que os acolheu servindo
a omelete de amoras. As memórias trouxeram à tona
aquilo que foi provado, experimentado, vivido. Apesar
do contexto ser de fuga, graças a derrota da batalha, o en-
tão menino provou a mais saborosa das omeletes. Talvez
não pela receita, mas pela fome que sentia, pela acolhida
recebida, pelos sentimentos de medo e desproteção que
rondava-os. A experiência daquele momento fez aflorar
as sensibilidades fazendo com que ficasse gravado em sua
memória não a fuga, o medo, a dor, mas o sabor do cui-
dado, do aconchego, do alimento. Provar a omelete de
amoras, era reviver uma certa segurança; era sentir-se em
casa novamente.
Porém o que mais nos chama a atenção é o posici-
onamento do cozinheiro ao ser colocado a prova: “[...] mi-
nha omelete não vos agradará ao paladar. Pois, como ha-
veria eu de tempera-la com tudo aquilo, que naquela
época desfrutastes: o perigo da batalha e a vigilância do
perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o pre-
sente exótico e o futuro obscuro” (BENJAMIN, 1995). Por
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mais que guardasse anotado na memória a receita e o


modo de fazer, a experiência vivida não seria a mesma, as
emoções também não. Nesse sentido Walter Benjamin e
Jorge Larrosa comungam com o fato de “as ações da ex-
periência estão em baixa” e que “a experiência é cada vez
mais rara pela falta de tempo”. Para Benjamin (1986), as
histórias contadas tem se perdido devido a nossa incapa-
cidade de intercambiar experiências, perdemos a cada dia
a capacidade que o narrador possui de retirar da experi-
ência o que ele conta: sua própria experiência ou a rela-
tada pelos outros. Para Larrosa (2016) o sujeito da experi-
ência se define não por sua atividade, mas por sua passi-
vidade, por sua receptividade, por sua disponibilidade e
abertura, exercício que demanda tempo num momento
em que temos menos tempo. Se para um perdemos a ex-
periência de contar histórias, para o outro perdemos a ex-
periência de sentir as histórias, de imaginar as emoções,
de sermos afetados, de fazermos leituras da alma. A expe-
riência, enquanto possibilidade de que

algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de in-


terrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos
que correm: requer parar pra pensar, para olhar, para es-
cutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escu-
tar mais devagar; parar para sentir, sentir maisdevagar,
demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspen-
der o juízo, suspender a vontade, suspender o automa-
tismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os
olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, apren-
der a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do en-
contro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e es-
paço (LARROSA, 2016, p. 25).
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Carece de tempo, de espaço, de desejo, de emoções,


de sensibilidade e imaginação. A história jamais terá sen-
tido se não for imaginada, refletida, contextualizada. Não
entrou em extinção apenas a experiência do contar, mas
também do ouvir, e sobretudo, do sentir. Uma história
sem emoção não tem graça. Uma história que não ativa as
sensibilidades não é desejada. Ela precisa ser tesuda, vi-
gorosa, cheias de alegorias, de graça e de simpatia. Se vi-
vemos metaforicamente a atividade de nos deslocamos
até o passado para transforma-lo em história qualificada,
fazemos graças a imaginação e as sensibilidades que ad-
quirimos através da experiência da vida. Essas sensações
são colocadas, por vezes a métodos sisudos, que acabam
por produzir histórias também sisudas. Mas, quem disse
que a história não pode ser leve, sensível, sedutora? Vive-
mos, como historiadores, o desafio de seduzir, de ofertar
o direito de imaginar, de manter as narrativas vivas, de
ofertar o direito a experiência, de atribuir sentido à vida.
Nossas experiências, ou seja, permitir que algonos
aconteça, nos toque, nos afete, requer atenção, delicadeza
na hora de ler, de imaginar e de escrever. Requer sensibi-
lidade, pois elas são formas “de apreensão e de conheci-
mento do mundo para além do conhecimento científico,
que não brota do racional ou das construções mentais ela-
boradas” (PESAVENTO, 2007, p. 10). Por essa razão elas
são difíceis de serem capturadas, transmutadas em pala-
vras: estão no campo da sutileza, da subjetividade. Para
que a experiência do sensível individual ou coletiva seja
imaginada, ela precisa estar timbrada numa fonte, preci-
sando ser lida, sentida, analisada, esmiuçada, pois o “his-
toriador precisa encontrar a tradução das subjetividades
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e dos sentimentos em materialidades, objetividades pal-


páveis que operem com a manifestação de uma experiên-
cia íntima, individual ou coletiva” (PESAVENTO, 2007, p.
10). É preciso ler nas fontes históricas os sentimentos, as
emoções, as formas de agir e pensar, as motivações e os
sentidos. Signos do sensível. Perceptíveis apenas quando
o olhar foi educado para tal tarefa. Atividade que nós, his-
toriadores da cultura aprendemos desde cedo!
Foi discutindo sobre experiências e sensibilidades
que surgiu a proposta deste livro. Numa sala de aula de
Metodologia da História Cultural das Práticas Educati-
vas, resolvemos unir numa coletânea, os textos que rela-
tam as experiências de pesquisas desenvolvidas pelos dis-
centes da turma do ano de 2018. Aqui o leitor irá encon-
trar os primeiros escritos, as primeiras sensibilidades, os
resultados das primeiras experiências vividas no Pro-
grama de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Campina Grande. Para tanto, organizamos o
livro em sessões para agrupar por temas a disposiçãodos
textos:
Para início de conversa, batizamos os primeiros es-
critos de “Práticas Educativas e Saberes Históricos”. Estão
dispostos ao leitor os textos de Thiago Acácio Raposo e
Vivian Galdino Andrade, que convidam o leitor a navegar
num mar digital, que discute as possibilidades de perceber
as ricas funções da internet para o ensino de história esco-
lar e não escolar; em seguida apresentamos “O enlace en-
tre a história e a enfermagem”, matrimonio problemati-
zado por Flávia Gomes Silva e Iranilson Buriti de Oliveira:
escritos sobre a história do ensino de enfermagem; o terceiro
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texto foi timbrado por Thaís Luana Felipe Santos e Aze-


mar dos Santos Soares Júnior e apresenta ao leitor as difi-
culdades enfrentadas pela Escola de Aprendizes Marinheiro
na capital paraibana nas primeiras décadas do vigésimo
século; e, fechando o primeiro grupo, Erik Alves Ama-
rante nos contempla com um texto confessional sobre os
cristãos da cidade de Patos durante a Era Vargas.
O segundo grupo, intitulado “Praticas Educativas
e Sensibilidades” traz em seu interior, narrativas históri-
cas sobre a água dentre o povo Pankararu, contado por Jo-
sélia Ramos da Silva e Vivian Galdino de Andrade; apre-
senta as práticas educativas do terreiro de candomblé Ilê
Axé Omilodé, sob os sons dos tambores tocados por Dulce
Edite Soares Loss e Matheus da Cruz e Zica; conta sobre a
construção do discurso do amor fraterno na Comunidade
Católica Remidos no Senhor, sob as bênçãos de Fabiano
Melo de Oliveira; a problematização das sensibilidades de
Dom José Maria Pires enquanto um “pastor de almas e guia
das consciências” experienciadas por meio dos discursos
analisados por Leonardo Sousa da Silva; e, para concluir,
narrativas de resistências a partir do vivido por Maria Va-
léria Rezende, dialogada por Velbiane Luzia da Silva Cha-
ves e Joedna Reis de Meneses.
“Práticas Educativas do Corpo”, assim se apre-
senta o terceiro grupo. Nele o leitor é contemplado com
os textos de Eulina Souto Dias sobre a construção do mas-
culino multifacetado através das práticas educativas da
dança na cidade de Campina Grande e o artigo de Edu-
ardo Sebastião da Silva sobre mulheres violentadas e que
tiveram suas histórias estampadas a sangue nas páginas
da imprensa campinense na década de 1970.
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Quanto ao último grupo temático, chamamos de


“Práticas Educativas da Saúde e das Doenças”. Aqui estão
reunidos os três últimos textos desse livro: “estrelas que
sonhavam em brilhar”, uma análise da subjetividade e da
saúde mental de meninas campinenses, apresentadas por
Verônica Figueiredo Pereira; a problematização dos dis-
cursos publicados na imprensa paraibana sobre a Sífilis
na primeira metade do vigésimo século, escrita por Rafael
Nóbrega Araújo; e as memórias azedas sobre o câncer, o
relato da experiência vivida de um corpo deformadopela
ação de um tumor maligno, sobre as sensibilidades da
dor, emoções inscritas através da memória de Azemar dos
Santos Soares Júnior.
Assim, esse livro apresenta ao leitor as “Escritas do
sensível”. Sãohistórias sobre experiências banhadas pelas
águas da História Cultural responsável por problematizar
as práticas educativas. Dessa forma, convidamos o leitor
não a provar o sabor do figo, como fez Walter Benjamin,
mas a imaginar as sensibilidades inscritas nos textos, a sa-
borear as amoras contidas nas omeletes, a perceber os afe-
tos que a circundam, a se deliciar com uma boa prosa! Boa
leitura!

Azemar dos Santos Soares Júnior


Vivian Galdino de Andrade

Referências

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e


técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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BENJAMIN, Walter. Omelete de amoras. In: BENJAMIN, Walter.


Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Editora Brasili-
ense,1995, p. 219-220.
LARROSA, Jorge. Tremores. Escritos sobre experiência. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2016.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades na História: memórias
singulares e identidades sociais. Porto Alegre: UFRGS, 2007.
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