TY - BOOK AU - Langue, Frédérique AU - Pesavento, Sandra PY - 2007/01/01 SP - T1 - Sensibilidades Na História: Memorias Singulares e Identidades Sociais ER
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TY - BOOK AU - Langue, Frédérique AU - Pesavento, Sandra PY - 2007/01/01 SP - T1 - Sensibilidades Na História: Memorias Singulares e Identidades Sociais ER
que dedicasse as suas hábeis mãos à arte de cozinhar a
omelete de amoras, não poderia oferecer os sentimentos sentidos à época, assim, jamais poderia ofertar ao rei tais sabores, odores, lembranças. A narrativa contada por Walter Benjamin, nos faz pensar sobre as experiências vividas, imaginadas pelo ou- vir contar. Pensamos de imediato que “a experiência é o primeiro lugar, um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova” (LARROSA, 2016, p. 26). O rei rememorou os fatos que levou sua família a floresta escura e a casa da velha senhora que os acolheu servindo a omelete de amoras. As memórias trouxeram à tona aquilo que foi provado, experimentado, vivido. Apesar do contexto ser de fuga, graças a derrota da batalha, o en- tão menino provou a mais saborosa das omeletes. Talvez não pela receita, mas pela fome que sentia, pela acolhida recebida, pelos sentimentos de medo e desproteção que rondava-os. A experiência daquele momento fez aflorar as sensibilidades fazendo com que ficasse gravado em sua memória não a fuga, o medo, a dor, mas o sabor do cui- dado, do aconchego, do alimento. Provar a omelete de amoras, era reviver uma certa segurança; era sentir-se em casa novamente. Porém o que mais nos chama a atenção é o posici- onamento do cozinheiro ao ser colocado a prova: “[...] mi- nha omelete não vos agradará ao paladar. Pois, como ha- veria eu de tempera-la com tudo aquilo, que naquela época desfrutastes: o perigo da batalha e a vigilância do perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o pre- sente exótico e o futuro obscuro” (BENJAMIN, 1995). Por Escritas do sensível | 10 | Experiência, história cultural e práticas educativas
mais que guardasse anotado na memória a receita e o
modo de fazer, a experiência vivida não seria a mesma, as emoções também não. Nesse sentido Walter Benjamin e Jorge Larrosa comungam com o fato de “as ações da ex- periência estão em baixa” e que “a experiência é cada vez mais rara pela falta de tempo”. Para Benjamin (1986), as histórias contadas tem se perdido devido a nossa incapa- cidade de intercambiar experiências, perdemos a cada dia a capacidade que o narrador possui de retirar da experi- ência o que ele conta: sua própria experiência ou a rela- tada pelos outros. Para Larrosa (2016) o sujeito da experi- ência se define não por sua atividade, mas por sua passi- vidade, por sua receptividade, por sua disponibilidade e abertura, exercício que demanda tempo num momento em que temos menos tempo. Se para um perdemos a ex- periência de contar histórias, para o outro perdemos a ex- periência de sentir as histórias, de imaginar as emoções, de sermos afetados, de fazermos leituras da alma. A expe- riência, enquanto possibilidade de que
algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de in-
terrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar pra pensar, para olhar, para es- cutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escu- tar mais devagar; parar para sentir, sentir maisdevagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspen- der o juízo, suspender a vontade, suspender o automa- tismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, apren- der a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do en- contro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e es- paço (LARROSA, 2016, p. 25). Escritas do sensível | 11 | Experiência, história cultural e práticas educativas
Carece de tempo, de espaço, de desejo, de emoções,
de sensibilidade e imaginação. A história jamais terá sen- tido se não for imaginada, refletida, contextualizada. Não entrou em extinção apenas a experiência do contar, mas também do ouvir, e sobretudo, do sentir. Uma história sem emoção não tem graça. Uma história que não ativa as sensibilidades não é desejada. Ela precisa ser tesuda, vi- gorosa, cheias de alegorias, de graça e de simpatia. Se vi- vemos metaforicamente a atividade de nos deslocamos até o passado para transforma-lo em história qualificada, fazemos graças a imaginação e as sensibilidades que ad- quirimos através da experiência da vida. Essas sensações são colocadas, por vezes a métodos sisudos, que acabam por produzir histórias também sisudas. Mas, quem disse que a história não pode ser leve, sensível, sedutora? Vive- mos, como historiadores, o desafio de seduzir, de ofertar o direito de imaginar, de manter as narrativas vivas, de ofertar o direito a experiência, de atribuir sentido à vida. Nossas experiências, ou seja, permitir que algonos aconteça, nos toque, nos afete, requer atenção, delicadeza na hora de ler, de imaginar e de escrever. Requer sensibi- lidade, pois elas são formas “de apreensão e de conheci- mento do mundo para além do conhecimento científico, que não brota do racional ou das construções mentais ela- boradas” (PESAVENTO, 2007, p. 10). Por essa razão elas são difíceis de serem capturadas, transmutadas em pala- vras: estão no campo da sutileza, da subjetividade. Para que a experiência do sensível individual ou coletiva seja imaginada, ela precisa estar timbrada numa fonte, preci- sando ser lida, sentida, analisada, esmiuçada, pois o “his- toriador precisa encontrar a tradução das subjetividades Escritas do sensível | 12 | Experiência, história cultural e práticas educativas
e dos sentimentos em materialidades, objetividades pal-
páveis que operem com a manifestação de uma experiên- cia íntima, individual ou coletiva” (PESAVENTO, 2007, p. 10). É preciso ler nas fontes históricas os sentimentos, as emoções, as formas de agir e pensar, as motivações e os sentidos. Signos do sensível. Perceptíveis apenas quando o olhar foi educado para tal tarefa. Atividade que nós, his- toriadores da cultura aprendemos desde cedo! Foi discutindo sobre experiências e sensibilidades que surgiu a proposta deste livro. Numa sala de aula de Metodologia da História Cultural das Práticas Educati- vas, resolvemos unir numa coletânea, os textos que rela- tam as experiências de pesquisas desenvolvidas pelos dis- centes da turma do ano de 2018. Aqui o leitor irá encon- trar os primeiros escritos, as primeiras sensibilidades, os resultados das primeiras experiências vividas no Pro- grama de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. Para tanto, organizamos o livro em sessões para agrupar por temas a disposiçãodos textos: Para início de conversa, batizamos os primeiros es- critos de “Práticas Educativas e Saberes Históricos”. Estão dispostos ao leitor os textos de Thiago Acácio Raposo e Vivian Galdino Andrade, que convidam o leitor a navegar num mar digital, que discute as possibilidades de perceber as ricas funções da internet para o ensino de história esco- lar e não escolar; em seguida apresentamos “O enlace en- tre a história e a enfermagem”, matrimonio problemati- zado por Flávia Gomes Silva e Iranilson Buriti de Oliveira: escritos sobre a história do ensino de enfermagem; o terceiro Escritas do sensível | 13 | Experiência, história cultural e práticas educativas
texto foi timbrado por Thaís Luana Felipe Santos e Aze-
mar dos Santos Soares Júnior e apresenta ao leitor as difi- culdades enfrentadas pela Escola de Aprendizes Marinheiro na capital paraibana nas primeiras décadas do vigésimo século; e, fechando o primeiro grupo, Erik Alves Ama- rante nos contempla com um texto confessional sobre os cristãos da cidade de Patos durante a Era Vargas. O segundo grupo, intitulado “Praticas Educativas e Sensibilidades” traz em seu interior, narrativas históri- cas sobre a água dentre o povo Pankararu, contado por Jo- sélia Ramos da Silva e Vivian Galdino de Andrade; apre- senta as práticas educativas do terreiro de candomblé Ilê Axé Omilodé, sob os sons dos tambores tocados por Dulce Edite Soares Loss e Matheus da Cruz e Zica; conta sobre a construção do discurso do amor fraterno na Comunidade Católica Remidos no Senhor, sob as bênçãos de Fabiano Melo de Oliveira; a problematização das sensibilidades de Dom José Maria Pires enquanto um “pastor de almas e guia das consciências” experienciadas por meio dos discursos analisados por Leonardo Sousa da Silva; e, para concluir, narrativas de resistências a partir do vivido por Maria Va- léria Rezende, dialogada por Velbiane Luzia da Silva Cha- ves e Joedna Reis de Meneses. “Práticas Educativas do Corpo”, assim se apre- senta o terceiro grupo. Nele o leitor é contemplado com os textos de Eulina Souto Dias sobre a construção do mas- culino multifacetado através das práticas educativas da dança na cidade de Campina Grande e o artigo de Edu- ardo Sebastião da Silva sobre mulheres violentadas e que tiveram suas histórias estampadas a sangue nas páginas da imprensa campinense na década de 1970. Escritas do sensível | 14 | Experiência, história cultural e práticas educativas
Quanto ao último grupo temático, chamamos de
“Práticas Educativas da Saúde e das Doenças”. Aqui estão reunidos os três últimos textos desse livro: “estrelas que sonhavam em brilhar”, uma análise da subjetividade e da saúde mental de meninas campinenses, apresentadas por Verônica Figueiredo Pereira; a problematização dos dis- cursos publicados na imprensa paraibana sobre a Sífilis na primeira metade do vigésimo século, escrita por Rafael Nóbrega Araújo; e as memórias azedas sobre o câncer, o relato da experiência vivida de um corpo deformadopela ação de um tumor maligno, sobre as sensibilidades da dor, emoções inscritas através da memória de Azemar dos Santos Soares Júnior. Assim, esse livro apresenta ao leitor as “Escritas do sensível”. Sãohistórias sobre experiências banhadas pelas águas da História Cultural responsável por problematizar as práticas educativas. Dessa forma, convidamos o leitor não a provar o sabor do figo, como fez Walter Benjamin, mas a imaginar as sensibilidades inscritas nos textos, a sa- borear as amoras contidas nas omeletes, a perceber os afe- tos que a circundam, a se deliciar com uma boa prosa! Boa leitura!
Azemar dos Santos Soares Júnior
Vivian Galdino de Andrade
Referências
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1986. Escritas do sensível | 15 | Experiência, história cultural e práticas educativas
BENJAMIN, Walter. Omelete de amoras. In: BENJAMIN, Walter.
Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Editora Brasili- ense,1995, p. 219-220. LARROSA, Jorge. Tremores. Escritos sobre experiência. Belo Hori- zonte: Autêntica, 2016. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades na História: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Escritas do sensível | 16 | Experiência, história cultural e práticas educativas