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HONNETH, A. Atualização histórica: o direito da liberdade. In: ______.

O direito da
liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, pp. 34-127.

Prefácio e introdução

Dando prosseguimento às reflexões desenvolvidas em seu Sofrimento de Indeterminação:


uma tentativa de reatualização da filosofia do direito de Hegel (Honneth, 2007), Axel
Honneth apresenta em O direito da liberdade (2015) sua compreensão dos princípios da
justiça social moderna. Em sua concepção, os valores de uma sociedade liberal-
democrática moderna podem ser fundidos no valor da liberdade, nos múltiplos sentidos
em que temos acesso. Este anseio de liberdade, entretanto, passa por uma promessa de
institucionalização que se manifesta nas lutas reivindicatórias, por isso, “toda e qualquer
esfera constitutiva de nossa sociedade materializa institucionalmente um determinado
aspecto de nossa experiência de liberdade individual” (Honneth, 2015, p. 10).
Retomando, mais uma vez, a tradição filosófica do direito hegeliano, Honneth se
contrapõe a uma concepção de desenvolvimento da legitimidade moral de forma
autônoma e se volta para uma convergência entre a realidade social e a racionalidade
moral. Apesar de beber na fonte de Hegel, as mudanças pelas quais a sociedade passou –
com a evolução da industrialização e a negação da humanidade no holocausto –, obrigam
Honneth a retomar uma teoria da justiça fundamentada nas estruturas da sociedade
contemporânea. Nesse trajeto, apresenta quatro premissas que norteiam a sua reflexão.
A primeira premissa diz respeito à reprodução das sociedades ligadas a uma
orientação comum por ideias e valores basilares. Estas normas éticas não determinam de
cima como valores finais, mas também são determinadas de baixo, demonstrando uma
construção contínua que leva em conta expressões de grupos heterogêneos na constituição
social e sua interação, como numa fusão de sistemas distintos que se complementam.
Nesta concepção, a reprodução da sociedade se dá, portanto, por meio dos valores, e não
da economia ou da cultura. A reprodução e socialização organizadas ocorrem de acordo
com as exigências de normas compartilhadas, conduzindo a cooperação interativa. E
“todos os ordenamentos sociais, sem exceção, encontram-se vinculados ao pressuposto
de uma legitimação por meio de valores éticos, de ideais dignos de serem buscados”
(Honneth, 2015, p. 20).
A segunda premissa apregoa que apenas os valores ou ideais devem ser tomados
como ponto de referência moral de uma justiça que constitui reivindicações normativas e
condições de reprodução da sociedade. Os critérios de justiça não são autônomos. São
critérios analisáveis somente a partir da referência a “ideais faticamente
institucionalizados naquela sociedade”. Por isso, “deve-se considerar justo o que, em
diferentes esferas sociais, é feito para promover um tratamento abrangente no sentido do
papel que lhe é efetivamente destinado na divisão ética de tarefas de uma sociedade” (p.
22).
Como alternativa à divisão de trabalho entre as ciências, Honneth apresenta o
método da reconstrução normativa: “processo pelo qual se procura implantar as intenções
normativas de uma teoria da justiça mediante a teoria da sociedade, já que valores
justificados de modo imanente são, de maneira direta, tomados como fio condutor de
elaboração e classificação do material empírico” (p. 24). Por meio deste, é possível
representar as rotinas e instituições indispensáveis à reprodução social, demarcando
aqueles aspectos que mais contribuem à divisão social do trabalho. A validação da
reconstrução normativa corresponde à terceira premissa. Neste ponto da investigação,
Honneth afasta-se da metodologia hegeliana e encontra maiores aproximações com as
filosofias de Durkheim e Parsons, que, embora não apresentem uma teoria da justiça, se
concentraram nas esferas significativas que “contribuem para a garantia e realização dos
valores institucionalizados na sociedade” (p.25).
Os valores, entretanto, nem sempre se encontram já institucionalizados. A
concepção de moral aqui presente atenta muito mais para as práticas sociais, manifestas
em hábitos praticados de forma intersubjetiva, do que para as convicções cognitivas.
Nesse sentido, a eticidade apresenta-se como uma compreensão que engloba mais do que
uma mera descrição das formas de vida já existentes:
para Hegel, a multiplicidade de formas éticas de vida só era aceita em sua
filosofia do direito se estivessem sob o conceito de ‘eticidade’, o que
comprovadamente poderia servir para auxiliar na realização dos valores e
ideais universais das sociedades modernas. E deixaria de ser justificado como
objeto da reconstrução normativa tudo o que se chocasse com essas exigências
normativas e tudo o que representasse valores particulares ou materializasse
ideais ultrapassados” (p. 28)

O processo de reconstrução dos valores encontra-se no cerne da eticidade. Esta


afirmação nos conduz precisamente à quarta e última premissa. Nela, Honneth prevê a
necessidade de crítica: a utilização dos valores para revisão das práticas inadequadas. “Se
na condição de uma instancia de eticidade conta o que representa valores ou ideias gerais
mediante um conjunto de práticas institucionalizadas, então se poderia recorrer aos
mesmos valores para criticar aquelas práticas consideradas ainda inadequadas quanto a
seus esforços representativos” (Honneth, 2015, p. 31). Assim, a interpretação da realidade
se volta para seus potenciais, avaliando as práticas nas quais os valores poderiam se
realizar melhor, de maneira mais ampla ou mais adequada.
CONCLUSÃO DO ÍTEM NO RELATÓRIO Como o próprio Honneth (2015,
p. 9) destaca, são necessárias comprovações empíricas da teoria que ali se delineia. Para
tal, nos debruçamos sobre a etnometodologia, tendo como grupo de estudo o grupo da
infância em contextos de brincar, para apresentar algumas intuições acerca da
aproximação entre a eticidade e a etnometodologia enquanto campo de pesquisa empírica.

Atualização histórica
A constituição de valores na modernidade atrelada a uma concepção de justiça acaba por
perpassar profundamente a noção de liberdade. A liberdade, considerada como autonomia
individual, é apresentada enquanto o único valor ético capaz de caracterizar o
ordenamento institucional da sociedade moderna de modo efetivamente duradouro:

Quer se trate da evocação de um ordenamento natural ou da idealização da voz


interior, tendo em vista o valor da comunidade ou o louvor da autenticidade,
sempre se deverá contar com seus componentes de significação adicional, e
isso quer dizer que sempre se vai falar em autodeterminação individual. Como
que por mágica atração, todos os ideais éticos da modernidade entram na esfera
de influência de uma representação, por vezes se aprofundam, por vezes
adquirem novas ênfases, mas a eles já não se contrapõe uma alternativa
autônoma (p. 35).

O pensamento da autonomia é capaz de associar o si mesmo individual e o ordenamento


social por meio de uma relação entre a autodeterminação e as regras de convívio geral,
pois “a ideia de liberdade individual suscita uma ligação entre as duas grandezas de
referência: sua representação do que é bom para o indivíduo contem ao mesmo tempo
indicações para a instituição de um ordenamento social legítimo” (p. 35). Esta relação
fundamentou todas as lutas sociais que sucederam a Revolução Francesa: suas
representações contrapunham o desrespeito sofrido social e juridicamente a uma
reivindicação de autoestima e autonomia na qual a justiça se fundamentava em uma
perspectiva de distribuição igualitária de chances de liberdade. Entretanto, embora
bastante difundida, a ideia da liberdade não se apresenta de forma tão clara assim nos
debates teóricos, sendo necessário um delineamento mais objetivo de qual concepção
deve ser adotada para a discussão em questão. Para tal escolha, Honneth se fundamenta
na clássica definição de liberdade negativa e positiva apresentada por Isaiah Berlin
(1952/2009).
De um lado, figura a concepção negativa de liberdade. Concebida em
concomitância com guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII, a liberdade negativa
tem seu maior expoente na filosofia política de Hobbes. A ausência de coerções externas
à busca de objetivos seria a maior característica dessa concepção, fundamentada em uma
noção de estado de natureza e uma liberdade natural: “uma vez que a liberdade do homem
deve consistir em fazer tudo o que seja de seu interesse próprio imediato, não devem ser
tomadas como restrições às ações livres mesmo as complicações motivacionais que
resultam, no mais amplo sentido, de uma falta de clareza sobre suas próprias intenções”
(Honneth, 2015, p. 44). Embora aperfeiçoada ao longo do tempo (Locke, Mill, Nozick),
a ideia de Hobbes assegura uma margem de ação protegida para práticas egocêntricas e
encontra-se arraigada a uma intenção do individualismo moderno, abandonando qualquer
possibilidade de reflexividade:

não é necessário nenhum passo adicional na reflexão, uma vez que para a
realização da liberdade não cabe uma justificação dos propósitos em virtude
de pontos de vista de grau superior: ‘negativa’ é essa classe de liberdade, já
que não se deve voltar a questionar seus objetivos quanto à sua capacidade de
satisfazer ou não suas condições de liberdade; tampouco o devem ser quanto à
escolha existencial e aos desejos que serão satisfeitos, bastando o ato puro e
desimpedido do decidir para que a ação resultante seja qualificada como ‘livre’
(Honneth, 2015, p. 49).

Por outro lado, há uma concepção reflexiva de liberdade, surgida desde


Aristóteles, fundamentada na determinação do sujeito livre a partir da tomada das próprias
decisões e a realização da vontade. A liberdade reflexiva se estabelece na relação do
sujeito consigo mesmo, com a condução por suas próprias intenções, não sendo, portanto,
uma mera ampliação ou aprofundamento da liberdade negativa. Em Isaiah Berlin (ANO),
encontramos uma distinção entre duas perspectivas de liberdade positiva/reflexiva: uma
fundamentada na autonomia, outra, na autorrealização. Outros autores advogam em
defesa de uma pluralidade ainda maior de possibilidades de se conceber a liberdade
reflexiva.
O cerne da liberdade reflexiva encontra-se na distinção entre ações autônomas e
heterônomas, com a precursão de Rousseau no desenvolvimento de ideias sobre a
natureza humana e moral. Nesta perspectiva, “uma ação só pode ser livre se for realizada
no mundo exterior sem deparar com resistências devendo acontecer no momento em que
a intenção de executá-la tiver origem em sua própria vontade” (Honneth, 2015, p. 60). A
concepção de liberdade rousseauniana está fundamentada em uma união entre a
autorrealização e a autenticidade, considerando-se também a possibilidade de autonomia
do sujeito. Kant, e, por conseguinte, Piaget e Freud, retomou tal perspectiva de liberdade
considerando a necessidade de o sujeito tornar-se um autolegislador para alcançar a
liberdade. Por meio de uma concepção transcendental das leis do agir o humano, o
pensador de Könisberg desenvolveu suas reflexões a partir do conceito de
“autodeterminação”, no qual o homem é livre pela orientação da ação por leis morais
determinadas no exercício de sua vontade.
Outros autores (Habermas, Apel, Pierce e Mead, por exemplo) realizaram uma
reinterpretação intersubjetiva da autonomia transcendental, ampliando a concepção
monológica a qual esta se vinculava. Na concepção intersubjetiva, a identificação do
sujeito moral a uma comunidade de comunicação conduz a presunções que atuam por trás
da linguagem e à concepção de si e dos outros como pessoas autônomas. Ainda assim, a
ampliação do eu para o nós na autolegislação não abarca as reflexões sobre liberdade
intersubjetiva, pela falta de clareza em relação às condições institucionais de realização
destas. Neste cenário, Honneth retoma a impossibilidade de dissociação entre
autorrealização e autodeterminação, autonomia e autenticidade, características do
discurso filosófico da modernidade, para compreensão da liberdade. Para ele, embora as
concepções de autonomia não possam predeteterminar razões, é possível apresentar certo
conhecimento externo das condições sociais das quais os sujeitos dependem, por isso é
necessária a ampliação da compreensão da liberdade por meio da consideração do papel
institucional nessa realidade.
Frente a tais concepções, incompletas, de liberdade, Honneth se debruça sobre a
apresentação de uma terceira concepção: a liberdade social, na qual social é a
“circunstância segundo a qual determinada instituição de realidade social já não é
considerada mero aditivo, mas condição e meio para o exercício da liberdade” (p. 81).
Nela, a autodeterminação dos sujeitos se dá de modo intersubjetivo, perspectiva que só
pode ser encontrada no retorno à Hegel, pois, mesmo a ética do discurso de Habermas e
Apel que apresenta uma inflexão para o social o faz entre o transcendentalismo e o
institucionalismo.
Para Hegel (apud Honneth) “não só as intenções individuais deveriam satisfazer
ao padrão de ter surgido sem nenhuma influência estranha de sua parte, mas também se
deve poder apresentar a realidade social externa livre de toda heteronomia e de coerção”
(p. 84), por isso, a própria sociedade se apresenta como responsável por oferecer os
padrões de liberdade. A existência de instituições sociais que permitem aos sujeitos se
relacionarem uns com os outros e também como outro de si mesmos ratifica o
reconhecimento recíproco como chave para a ideia de liberdade. Desta feita, o
intersubjetivo se converte em social, pois é por meio das instituições da liberdade que
encontra o entendimento recíproco necessário à sua realização:

o sujeito só é ‘livre’ quando, no contexto de práticas institucionais, ele encontra


uma contrapartida com a qual se conecta por uma relação de reconhecimento
recíproco, porque nos fins dessa contrapartida ele pode vislumbrar uma
condição para realizar seus próprios fins (Honneth, 2015, p. 87).

A proposta de Hegel é uma reconciliação entre o particular e o universal, o subjetivo e o


objetivo, portanto, entre as liberdades negativa e reflexiva, oferecendo uma perspectiva
mais completa das possibilidades de ética e liberdade. Nela, práticas institucionalizadas
conduzem os sujeitos ao aprendizado do alinhamento de seus motivos aos fins internos:

com a proposta de incluir também a própria objetividade na determinação da


liberdade, com algum direito se afirma que nós só podemos nos vivenciar como
realmente livres quando nos encontramos na realidade exterior a precondição
para realizar nossos fins autodeterminados (p. 90)

Este modelo também pode ser encontrado em Marx, no qual a liberdade de


autorrealização se dá pela complementariedade com o outro. A presença de uma
organização ou instituição social promove uma interconexão entre os membros de uma
comunidade via mediação interna e externa, a partir da qual “a produção cooperativa
apresenta o meio institucionalizado entre as liberdades individuais de todos os membros
de uma comunidade” (p. 97). Nesse cenário, a reciprocidade das práticas é um condutor
da liberdade entre os sujeitos. As instituições se apresentam como veículo comunicativo
fundante, contrapondo-se a percepções de páthos da liberdade em que são consideradas
apenas como forças coercitivas, como na leitura de Arnold Gehlen.
A liberdade social em Hegel está vinculada a intuições pré-teóricas e experiências
sociais, por isso, “à medida que os sujeitos, por meio de sua atuação, mantêm e
reproduzem ativamente as instituições que garantem a liberdade, aí poderá se constituir
uma prova teórica de seu valor histórico” (p. 114). Ela dá fundamento a uma teoria da
justiça que concebe o direito em suas manifestações cotidianas, concebendo a formação
de valores na prática social e afastando-se de concepções formais e abstratas, tal qual
como devem ser concebidos os direitos humanos.
CONCLUSÃO:

em Hegel, instituições conseguem fazer-se valer no conceito mesmo da


liberdade porque sua estrutura intersubjetiva depende de aliviar a custosa
necessidade de coordenação: nas práticas harmoniosas e objetivadas numa
estrutura institucional, os sujeitos podem ler quais contribuições têm de
fornecer para chegar à realização de seus objetivos de maneira quase
automática, possível somente em sua comunalidade. Por isso, Hegel não pode
admitir qualquer instituição como componente de seu conceito de liberdade;
na verdade, tem de se limitar a estruturas institucionais nas quais são fixadas
as relações de reconhecimento, que possibilitam uma forma duradoura de
relação recíproca de objetivos individuais (Honneth, 2015, p. 102)

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