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FCSHA. Filosofia, Política e Relações Internacionais, 3º Ano, 2019-2020.

Filosofia da
Linguagem e Comunicação. HACKING, I. (1997 [1975]). Porque a Linguagem Interessa
à Filosofia?, trad. de Maria E. M. Sayeg. São Paulo: UNESP, Cap. 13, pp. 157-183.

“Já é hora de ter uma visão geral de nossos estudos de caso. Eles se classificam em três grupos: o
apogeu das ideias (Descartes, Hobbes, Locke e Berkeley); o apogeu dos significados (Frege, Dilthey,
Max Weber, Hüsserl, Russell, Wittgenstein, Positivismo Lógico, Ayer, Malcolm) e o apogeu das
sentenças (Quine, Davidson, Feyrabend, Grice...). As relações entre esses três irão nos ensinar
alguma coisa sobre porque a linguagem é importante para a filosofia (...) Qual é a conexão entre o
período no qual tomamos Locke e Berkeley como típicos (apogeu das ideias) e aquele representado
aqui por Feyrabend ou Davidson (apogeu das sentenças)? (...) Essa conversa pesada...será
caricaturada por dois diagramas (figuras) que...têm a mesma estrutura, mas conteúdos diferentes. (...)
Alegarei que o nó fundamental do século XVII ocupado pelas ideias é hoje em dia ocupado pela
sentença.
1. O pogeu das Ideias. As ideias (doutrina das ideias) foram uma vez objecto de todo o filosofar, e
constituiam a ligação entre o ego cartesiano e o mundo externo a ele. As conexões entre as ideias
eram expressas no discurso mental e formavam representações da realidade em resposta a mudanças
na experiência e reflexão do ego. Na discussão atual o discurso público substitui o discurso mental.

Figura 1: o apogeu das Ideias (1615-1710)

Um ingrediente inquestionado de todo discurso público é a sentença (...) A sentença é o objecto


simples visto como fundamental na explicação da verdade, significado, experimento e realidade.
Quine disse que “o saber dos nossos pais é um tecido de sentenças”. As sentenças nesse tecido de
discurso público são um artefacto do sujeito cognoscente. Talvez, como irei logo sugerir, elas na
verdade constituem este “sujeito cognoscente”. De qualquer forma, elas são responsáveis pela
representação da realidade em um corpo de conhecimento. Assim, as sentenças parecem ter
substituído as ideias (...) Não é somente uma transição local das ideias para as sentenças que
precisamos notar, mas uma transformação radical em nossos modos de entendimento (...) Penso que
o próprio conhecimento deve ter sido a força primária que provocou a transformação do apogeu das
ideias em apogeu das sentenças. O conhecimento não é mais o que era (...) A própria natureza do
conhecimento mudou...O que ele se tornou? ...um tecido de sentenças (i,e, um sistema de
enunciados), ou seja, sentencial (como acontece em W. Quine, D. Davidson e P. Feyrabend...).
Nossos modernos filósofos da ciência nos dizem que todo o conhecimento é sentencial (e mesmo no
tempo dos primeiros princípios da filosofia antiga referia-se a sentenças que são axiomas – sentenças
auto-evidentes; igualmente os signficados no sentido fregeano (Sinn) entendidos como o estoque
comum de pensamentos humanos/conhecimentos transmitidos de geração em geração, são
armazenados nas sentenças. As ideais têm significados que são exprimidos nas sentenças (...)
2. O pogeu dos Significados. Os significados tornam possível o discurso público. Neste livro
seguimos Frege e consideramos que uma teoria do significado é uma teoria sobre a possibilidade do
discurso público (...) aqui o problema não é a respeito do significado das palavras, mas sobre como
os significados emergem da estrutura das sentenças (...) No apogeu dos significados (G. Frege, B.
Russell, L. Wittgenstein, A. J. Ayer, Norman Malcolm...) pensamos que podemos decidir questões

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filosóficas substantivas (p.e, o que pode ser verdadeiro no mundo; a (imor)talidade da alma...)
contemplando significados. Isso leva a novo tipo de idealismo filosófico que...bem poderia ser
chamado de lingualismo (com o seu apelo ao princípio de verificação dos signficados como apelo à
forma lógica do mundo nas proposições ou sentenças que exprimem, na visão wittgensteiana, a forma
lógica do mundo).
3. O pogeu das Sentenças. Os significados, sugere Quine, (o mais notável crítico dos significados)
são um embuste (...) tudo o que precisamos são as sentenças e as suas relações (donde), a “mudança
de significados para as sentenças” com Quine (o conhecimento é um tecido das sentenças e não o
que elas significam isoladamente), Davidson (a tradução de signficados em enunciados
observacionais como pretendem os positivistas lógicos depende de uma teoria da verdade, i.e, das
sentenças e das suas condições de verdade) e Feyrabend (não são os enunciados observacionais que
permitem solucionar disputas entre teorias rivais, mas as sentenças completas em si mesmas e não as
adornadas com significados). (...) O significado ao que parece, vive (mas nas sentenças) e, segundo
Paul Grice, nas “intenções do agente de afectar as testemunhas da ação”. Os significados das
sentenças, diz Grice, são derivados do que uma pessoa quer dizer (o significado depende das
intenções dos falantes e crenças dos ouvintes) e têm relação com certas maneiras convencionais pelas
quais as intenções podem ser expressas.

Figura 2: O apogeu das Sentenças


Minha própria conjectura (sobre a teoria do conhecimento e do signficado) já está dada em minha
sinopse: o próprio conhecimento tornou-se sentencial (i.e, uma entidade linguística)... A doutrina do
lingualismo é que somente a sentença é real como “no tempo de Espinosa, em que as ideais eram
exactamente como as sentenças hoje em dia, a interface entre o conhecedor e o conhecido”- (o
mundo das sentenças que é o mundo autónomo dos conteúdos lógicos segundo a epistemologia de
Karl Popper, i.é, o mundo 3) (...) O reconhecimento de um conhecimento autónomo essencialmente
sentencial traz consigo novos objectos de pesquisa, novos domínios de investigação (a prática
discursiva e comunicativa ou aquilo que é dito segundo certas especificidades, em certs lugares, sob a
égide de várias instituições...).
Podemos perguntar se as condições que tornam um discurso possível são aquelas que determinam as
possibilidades do que pode ser dito dentro de um discurso. Podemos refeltir sobre como as nossas
sentenças participam em algum discurso presente, não como nossas mesmo, mas antes como
separadas de nós que falamos, autónomas e anónimas, como todo o discurso. A metodologia de tais
investigações apenas começou, e talvez as rotas mais promissoras a seguir sejam bem diferentes de
qualquer uma que eu pudesse citar.
De qualquer forma, tenho agora uma resposta para a questão de por que a linguagem interessa à
filosofia: interessa pelas mesmas razões pelas quais as ideias interessavam à filosofia do século
XVII, porque as ideias, então, e as sentenças, agora, servem como interface entre o sujeito
cognoscente e aquilo que é conhecido. A sentença interessa ainda mais se começaramos a descartar
a ficção do sujeito cognoscente e considerarmos autónomos o discurso. A linguagem interessa à
filosofia por causa daquilo em que o conhecimento se tornou (i.e, sentencial). Os tópicos dessa ou
daquela escola, de “filosofia linguística”, “estruturalismo”, ou o que seja, vão se mostrar efémeros e
se parecerão com alguns dos breves episódios recentes em que o próprio discurso tentou reconhecer
a situação histórica na qual se encontra, não mais meramente um instrumento através do qual as
experiências são compartilhadas, não mais sequer a interface entre o conhecedor e o conhecido,
mas aquilo que constitui o conhecimento humano”. (HACKING, I. 1997:183).
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