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Heidegger tratou dos conceitos de logos e aletheia em Sein und Zeit [Ser e
Tempo] (1927, p.32 e seguintes, p.219 e seguintes) e assim determinou, em
grande parte, o pensamento de toda uma geração ao explicar o motivo de
termos, por vezes, de nos voltar à especificação etimológica: para ele, a tarefa
da filosofia é “preservar a força dos termos mais elementares nos quais o ser
[Dasein] é expresso, para que não sejam levados, seguindo o sentido do
pensamento comum, ao nível da ininteligibilidade”. Em seu livro Platons Lehre
von der Wahrheit [A Doutrina Platônica da Verdade] (l947), Heidegger
interpretou, calcado em tais fundamentos, o mito da caverna de Platão. O
filósofo procura trazer a lume o contido na linguagem; e que termo seria tão
digno de ser analisado senão o “verdade”? O conceito de verdade, de acordo
com Heidegger, corrompeu-se no curso do pensamento e assim permaneceu
durante muitas gerações. De acordo com o significado dominante
hodiernamente, a verdade relaciona-se ao pensamento e à linguagem e não à
coisa em si mesma. O conceito de verdade teria passado por uma mutação,
“do sentido originário do desocultamento [Unverborgenheit] para a exatidão do
visar” (p.46). Sendo assim, o esforço de Heidegger centra-se na eliminação
dessa degeneração que, a seu ver, começa com Platão, e a mutação que se
dá na determinação do ser como ιδέα; então faz-se necessário examinar o que
isso significa. Entretanto, podemos adotar como regra geral a advertência de
Heidegger de que, ao admitir tais evidências (i.e., linguísticas), devemos nos
precaver contra certo misticismo verbal (Sein und Zeit, p. 220).
A etimologia de αληθήϛ, αλήθεια, assim como com de ἀ-ληθής e ἀ-λήθεια é
geralmente aceita como aquilo que não está escondido, segredado ou
esquecido ou ainda quem não se esconde, segreda-se ou cai no
esquecimento;[1] mas tal etimologia não é tão inabalável quanto à primeira
vista. Comparemos duas palavras não muito diferentes em forma e significado:
ἀτρεκής, ἀτρέκεια, e ἀκριβής, ἀκρίβεια. A etimologia de ambos os casos não é
totalmente clara, permanece incerta, e, apesar de todas as laboriosas
pesquisas dos etimologistas, não sabemos se elas derivam de raízes indo-
européias ou não. Mesmo ψευδός, ψεῦδος, o oposto habitual de ἀληθήϛ,
ἀλήθεια desde Homero, e outro oposto, ὰπάτη, a decepção, a mentira, não
parecem ter raízes indo-européias. Assim, ἀληθής, que pertence à mesma
esfera semântica, talvez não ἀ-ληθής, assim como a interpretação de ἀ-τρεκής,
ἀ-κριβής e ὰ-πάτη, imporia a estas palavras um alfa privativo que é realmente
difícil que lhes pertença, e que não nos ajuda, por fim, a entender seu
significado.
Apenas uma vez em Homero é que a palavra ἁληθές é usada para se referir a
uma pessoa; semelhantemente, (XII 433) um fiador é chamado de “honesto,
digno de confiança”.[6] Como este termo com este significado é encontrado
apenas nesta passagem, os antigos já desconfiavam se Homero realmente o
usou; mas não é toda similitude uma espécie de hapax? E não há dúvida de
que pertença aos tempos antigos. Aqui, portanto, ἁληθήϛ não indica nem o ser
que não se dá oculto e nem a correção do visar, mas a natureza leal e
verdadeira da pessoa; portanto, um terceiro significado que a palavra viria a
assumir em tempos posteriores. Se Hesíodo e Homero forem tomados em
conjunto, acontece que os três significados de ἁληθήϛ e αλήθεια já se
encontram na linguagem dos antigos como: 1) a correção reveladora e não-
oculta do dizer e do pensar, 2) a realidade não-oculta e reveladora da entidade
em sua concretude e 3) a veracidade e honestidade da consciência do
indivíduo, o caráter, “existência” em sentido hodierno, ou seja, “a verdade que
eu mesmo sou” (Jaspers). Os opostos são, então: 1) a mentira, o engano, o
erro, a verborragia e a dissimulação, todos referentes ao discurso e às crenças;
2) o truque, o irreal, a imitação e a falsificação, todos referentes ao ser; 3) a
desonestidade, o enganoso e o indigno de fé, todos referentes à existência [da
pessoa].
Heidegger: Quando Platão diz que a ιδέα que é a matriz dominante que permite
o desocultamento, ele insinua uma implicação…
Glosa: Não da pura e simples ιδέα, mas de ιδέα de perfeição. Não permite, mas
prepara, mantém, apresenta (παρασχομένη, 517 C). Não o desocultamento,
mas mais claro e menos unilateralmente: a verdade desvelante e a realidade
desvelada.
Heidegger: De certa forma Platão deve, todavia, manter a verdade ainda como
característica do ente.
No final, o que Heidegger diz é simples, claro e justo (p. 48): “A coisa mais alta
no domínio do suprassensível é aquela idéia que, como a idéia de todas as
idéias, continua sendo a causa da existência e aparência de todas as
entidades”. Mas o que resta, então, — pelo menos no que se refere a Platão —
de toda aquela construção que seguimos?
Em minha disputa com Martin Heidegger, percebi que minha oposição inicial à
interpretação da aletheia como desocultamento era injustificada. O que
permanece firme é minha crítica à construção histórica heideggeriana, cujo
resultado se tornou ainda mais claro: não foi pela primeira vez em Platão que a
verdade se tornou a precisão da percepção e da asserção. Este significado já
estava presente no épico antigo. Para Platão, reina na alethes e na aletheia um
equilíbrio entre a verdade que revela, a realidade desvelada e a veracidade que
orienta aquela verdade para essa realidade. Platão não corrompeu, como
afirma Heidegger, o conceito de aletheia, mas o especificou e o elevou,
integrando-o a um sistema.
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Nota do Tradutor: Dado que não tive acesso à edição alemã, a presente
tradução teve por base a edição italiana [um tijolo de 1560 páginas] traduzida
por Andrea Le Moli. Optou-se pela edição italiana porque a edição inglesa
contém uma série de falhas, entre elas, simplesmente omite boa parte do
conteúdo traduzido aqui. Por ser minha primeira tentativa de traduzir algo do
italiano, peço ao leitor que não me amaldiçoe por possíveis erros. Espero que
algum dia tenhamos o Platão de Paul Friedländer em Português. O estudioso
de Platão sofre neste país…
Bibliografia
Hesíodo — Teogonia
Homero — Ilíada
Notas
[1] Para αληθήϛ, αλήθεια etc. cf. E. Boísacq, Dictionnaire étymologique de la
langue grecque, Heídelberg 1950; também Líddel-Scott, PassowCrönert e o já
citado artigo em R. Kíttel, Theologisches Worterbuch I, p. 239. Muito prudente é
a tese de doutorado da W. Luther, Wahrheit und Lüge im àltesten Griechentum,
Boroa 1935. [N.A.]
[6] Sobre a Ilíada, XII 433: γυνὴ χερνῆτις ἀληθής, ou ἀλῆτις ver W Luther, op.
cit., p. 24; Leaf, The Iliad, London 1902, I, p. 555; H. Frankel, Die homerischen
Gleichnisse, Gõttingen 1921, p. 58 e seguintes. A variante ἀλῆτις parece ser
improvável por causa da rima χερνῆτις ἀλῆτις; à ἀληθής concorda, ao que
parece, com επι ισα (cf. ισάςουσα) enquanto ἀλῆτις seria um mero ornamento.
[N.A.]
[7] Parmênides, Vorsokr. 28 [18] B 3: τό γαρ γαρ αύτό νοεῖν έστιν τε και ειναι
ειναι ‘Pois é o mesmo pensar e ser’: Diels-Kranz; símilarmente K. Riezler,
Parmenides, Frankfurt a. M. 1934, p. 29. “Pois é a mesma coisa que se pode
pensar e pode ser”: Comford, Parmenides, cit., p. 31 e seguintes; da mesma
forma, Hölscher, Der Logos hei Heraklit cit., p. 79 e seguintes; ver também H.-
G. Gadamer in Varia Variorum cit., p. 64 e H. Fränkel, Dichtung und
Philosophie des früheren Griechentums, cit., p. 457 ss. Parece-me certo que o
ontólogo Parmênides precise έστιν ou έστιν para significar ‘e’, não ‘pode’. Por
outro lado, έστιν provavelmente está enfraquecido se tomado como uma
cópula. Talvez isto seja OK: ‘pensar é e ser e, e um e outro são o mesmo’ (a
colocação de ti é forçada pelo verso). [N.A.]
[9] Platons Lehre von der Wahrheit, Bena, 1947. Os números das páginas
seguintes referem-se a este artigo. [N.A.]
[10] Cf. Heidegger, Vom Wesen des Grundes, “Festschrift für Edmund Husserl”,
Halle 1929, p. 71 e seguintes, em particular p. 98: “A transcendência
explicitamente indicada na frase de Platão ἐπεκεινα τῇς ούσίας”. No cap. XI, ver
G. Krüger, Heidegger und der Humanismus, em “Studia Philosophica” XI,
Basiléia 1949, p. 93 ss., em particular pp. 108 ss.; D. Faucci, Una recente
interpretatione heideggeriana dei mito della caverna, em “Leonardo”, Milão
1946. [N.A.]