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Aula 04: Parmênides

Não sabemos muito da vida de Parmênides. Nasceu em Eleia, uma


colônia grega no mar Tirreno, provavelmente em 520, e viveu até cerca de 440
a.C. Em seus últimos anos de vida, segundo um testemunho platônico no
diálogo Parmênides, realizou uma viagem a Atenas com seu discípulo Zenão,
onde encontrou Sócrates, então muito jovem. Uma tradição antiga fazia dele
ouvinte e discípulo de Xenófanes, mas já outros antigos negavam esta
descendência filosófica, relacionando-o, pelo contrário, com os ambientes
pitagóricos. Provavelmente foi discípulo do pitagórico Amínias, ao qual
permaneceu ligado mesmo depois da morte deste, mandando construir-lhe um
túmulo (DK28 A1). Participou ativamente da vida política de sua cidade
(juntamente com Zenão), à qual deu ótimas leis, tanto que seus concidadãos se
comprometeram com um juramento a cumpri-las sempre (DK28 A1). De
Parmênides ficaram-nos cerca de 160 versos de um poema intitulado Sobre a
natureza.

Que Parmênides fosse um estudioso da natureza, era pacificamente


aceito por toda a Antiguidade. Iâmblico, nos séculos III-IV d.C., ainda dizia que
todos os que de alguma maneira tiveram a ver com a ciência das coisas físicas
não podiam deixar de mencionar Parmênides (DK28 A4); e ainda no século VI
d.C. Simplício, provavelmente um dos últimos a ter lido em sua totalidade o
poema de Parmênides, transcrevendo amplos trechos antes de ele, como todos
os outros textos dos pré-socráticos, ter se perdido, dizia que Parmênides foi
não só um filósofo, mas também um estudioso das coisas da natureza (DK28
A14). Aristóteles também não tem dúvidas quanto à colocação de Parmênides
no interior daquela que ele via como uma tendência comum de toda a
investigação dos primeiros filósofos da Grécia.

Mesmo assim, de Parmênides chegou à historiografia moderna, e ainda


hoje é afirmada por muitos, a imagem de um filósofo do “ser”, pensador
metafísico por excelência, ou melhor, “pai da metafísica ocidental”,
desvalorizador da experiência e das opiniões dos homens relativamente ao
“puro

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pensamento”, que constituiria só verdades lógicas ou metafísicas. Esta imagem
– que encontra uma base em afirmações de Platão e de Aristóteles, lidas fora
do contexto em que os dois grandes pensadores as inseriram, ou seja, no
contexto de suas críticas à filosofia de Parmênides e das reconstruções que
dela fizeram de maneira instrumental à exposição das próprias teorias – não é
uma imagem da Antiguidade, mas apenas uma interpretação moderna (a partir
de Hegel) e contemporânea (a partir de Heidegger), que depois foi se
afirmando na historiografia.

II

Desde que os gregos começaram a refletir sobre o mundo, digamos desde


Tales, eles distinguiram um mundo sem nascimento nem morte do mundo dos
nascimentos e das mortes, isto é, pensaram uma realidade única, imutável, no
interior da qual decorriam todas as vicissitudes das coisas em devir e mudança.
Não duas realidades, portanto, mas uma só realidade que para ser entendida
deve ser estudada e pensada a partir de dois pontos de vista: o da totalidade e
da unicidade; e o da particularidade e da multiplicidade. Esta concepção
pertenceu também a Parmênides, que a enriqueceu com uma reflexão
completamente original sobre a metodologia diferente a ser usada em nossos
discursos para falar de dois aspectos daquela realidade (frag. 2-7). Mas tratava
se precisamente de uma concepção bem enraizada na filosofia e na ciência
jônicas, que continuará bem viva depois de Parmênides, como veremos, em
Empédocles, Anaxágoras, Hipócrates, Melisso, Demócrito, fato que, de resto,
também Aristóteles confirma (DK28 A24), assim como seus discípulos Teofrasto
e Alexandre (DK28 A7), até Simplício.

Mas vejamos o que sobrou de seu poema. Ele está estruturado,


formalmente, em duas partes: a primeira conta na primeira pessoa uma viagem
extraordinária que o poeta filósofo realizou até a presença de uma deusa (da
qual não nos é dito o nome); a segunda é o resumo do que a deusa disse ao
jovem. Parmênides apresenta-se, portanto, como o depositário de uma doutrina
que lhe é revelada por uma divindade; mas trata-se de uma moldura que,

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embora por um lado se insira nos esquemas da poesia tradicional (em particular
de Hesíodo), por outro se apresenta, em seu conteúdo, bem diversa daqueles
esquemas. Se formalmente se trata de uma revelação, nela estão presentes
todos os caracteres de uma filosofia e de uma ciência que demonstram os
próprios pressupostos e não os comunicam apenas. A segunda parte do
poema, por sua vez, pode ser dividida em duas outras partes: a primeira fala da
via da verdade e a segunda fala da via das opiniões, isto é, dos discursos que
se pode construir concretamente sobre as experiências, sobre as observações
cosmológicas, físicas, biológicas. A leitura tradicional de Parmênides quer que
esta última parte seja o resumo das opiniões falsas que Parmênides deveria
abandonar, com base, como dissemos, na contraposição entre verdade e
opinião que no texto parmenidiano não existe, mas que é afirmada com base
em interpretações posteriores. Mas vejamos.

III

Um carro leva Parmênides à presença de uma deusa que o acolhe com


benevolência e lhe esboça todo um programa do saber bastante vasto e
complexo:
É necessário que tu aprendas tudo, /quer o fundo imutável da verdade sem
contradição, /quer as experiências dos homens, nas quais não há verdadeira
certeza. /Mas a qualquer custo também estas aprenderás, visto que as
experiências/devem ter um valor para aquele que investiga tudo em todos os
sentidos (DK28 B1, 28-32).

Estes últimos versos do fragmento 1 demonstram claramente como o


programa do conhecimento engloba, para a deusa, todo o campo do saber
humano, quer o que a deusa chama de verdade, quer o que chama de
experiências. O fato de que das experiências não se possa obter uma p…stij

¢lhqšj, isto é, uma crença, uma certeza verdadeira, não significa que elas não
tenham nenhum valor, mas apenas que elas têm um valor diferente das
primeiras. De fato, a grande novidade de Parmênides em relação aos
pensadores que o precederam, e com os quais partilha plenamente a distinção
entre uma realidade pensada como uno-todo e uma realidade pensada como
multiplicidade

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dos fenômenos que nela se manifestam, foi ter refletido sobre isso e exprimido
com grande clareza o método, ou melhor, os métodos com os quais o homem
deve conduzir suas investigações: métodos que não podem ser confundidos,
porque, embora olhem para o mesmo objeto, levam a afirmações diversas
exatamente por o verem de duas perspectivas diferentes. O pressuposto
teorético da metodologia parmenidiana é o de que as leis que governam a
realidade governam também o pensamento que reflete sobre a realidade, como
se diz no fragmento 3: “de fato, a mesma coisa é pensar e ser” (DK28 B3).

Estes dois métodos, que Parmênides chama de vias de investigação e


estão ligados aos dois modos de olhar para a realidade, são claramente
expressos desde o frag. 2 até o frag. 8, 45. Parmênides distingue uma via que
existe de uma via que não existe, o que significa que há uma só via para olhar
para a realidade como todo, via que não pode senão afirmar o ser e o existir
daquela realidade, e todas as características que se pode atribuir a ela:
Pois bem, eu expor-te-ei – e tu guarda o discurso que ouvirás como tesouro –/
quais são as únicas vias de investigação pensáveis. /Uma que existe e não pode
não existir/ é o caminho da Persuasão (com efeito, segue a Verdade) // outra que
não existe e que é necessário logicamente que não exista, /e esta eu digo-te que
é uma estrada de todo não percorrível. /Porque o que não é não podes sequer
conhecê-lo (de fato, este conhecimento é irrealizável) /nem o exprimir (DK28
B2).

Mas há mais. Parmênides formaliza, mesmo linguisticamente, o objeto da


via de investigação. A realidade, isto é, o cosmo dos pré-socráticos, pensado
como uno-todo, é chamada por Parmênides tÒ eÒn, “o que é”, enquanto a que
é vista como multiplicidade dos fenômenos que nela acontecem é chamada t£

eonta, as “coisas que são”. Estamos perante não a contraposição entre


realidade e não-realidade, entre um ser metafisicamente pensado e um
aparecer que é condenado, mas perante uma distinção entre o discurso que se
deve fazer sobre a realidade como uno-todo e o que se deve fazer sobre a
realidade como multiplicidade de fenômenos. Portanto, os dois discursos
devem ser metodologicamente distinguidos e não podem ser confundidos, de
modo que todas as características que afirmamos no primeiro são diversas das
que afirmamos no segundo. A estas características Parmênides chama shµata,
isto é,

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sinais: por isso de tÒ eÒn se deverá dizer que é eterno, que não tem tempo,
que não nasce nem morre, que é imóvel; enquanto dos t£ eonta, pelo contrário,
se deverá dizer que nascem e morrem, que mudam, que se movem etc. A
novidade da obra de Parmênides reside, por um lado, em estabelecer
claramente pela primeira vez que estas afirmações são consequência de dois
métodos diferentes de ler a mesma realidade e, por outro, na justificação lógica
de suas afirmações, justificação em que ele faz nitidamente referência ao
princípio de não contradição que será depois teorizado por Aristóteles, motivo
pelo qual se pode afirmar que ele, se não é o pai da metafísica, é certamente o
pai da lógica ocidental. Mas leiamos os frag. 6, 7 e 8 até o verso 45:
É necessário dizer e pensar que aquilo que é existe, de fato, só é possível que
ele exista enquanto o nada não existe: sobre isto te convido a refletir (DK28 B6).

Mas tu afasta os teus pensamentos desta via de investigação,/nem a atitude


dispersiva dos homens te obrigue a percorrer a outra via,/fazendo uso de olhos
que não veem e de orelhas ribombantes,/usando palavras vazias, mas julga com
a razão as provas cheias de argumentações polêmicas expostas por mim./Agora
devemos apenas falar da via/que existe: sobre esta via há muitos sinais,/
relacionados com o fato de que aquilo que é é ingênito e indestrutível./É de fato
compacto em suas partes e imutável e sem um fim ao qual aspirar:/não era nem
será, pois que é agora um todo homogêneo,/uno, contínuo. E com efeito que
origem lhe darias? /Como e onde poderia ser aumentado? Do que não é não to
permitirei/ nem dize-lo nem pensá-lo: porque o que não é não é exprimível nem
pensável/ dado que não existe [...]. / Como poderia o que é existir no futuro?
Como poderia nascer?/Se de fato era, não é; igualmente, se ainda deve ser, não
é./Assim se eliminam os conceitos incompreensíveis de nascimento e
morte./Nem mesmo é divisível, dado que é todo igual [...]./Por isso é todo
contínuo: porque o que é é uno com o que é./Além disso é imóvel nos limites das
poderosas cadeias,/ sem princípio nem fim, porque nascimento e morte/foram
afastados para longe por obra da verdadeira certeza [_]/e é a mesma coisa
pensar e aquilo que é pensado. Já que sem o ser, nos limites do qual é
expresso,/não encontrarás o pensar [...]./ Em relação a ele foram dados todos
aqueles nomes/que os homens estabeleceram acreditando serem
verdadeiros,/isto é, nascer e morrer, existir e não existir [...]./ Dado que, além
disso, existe um limite extremo, é definido/em todos os seus confins, semelhante
à massa de uma esfera bem redonda,/em igual tensão a partir do centro a cada
parte sua: de fato,/é necessário que não seja mais denso ou menos denso numa
direção ou na outra (DK28 B7, B8, 1-22, 25-28, 34-40, 42-45).

Como se vê, Parmênides concebe fisicamente o “que é”, confirmando que


fala não de um ser metafísico, mas do cosmo entendido em sua totalidade; ele
é esférico, como para outros pré-socráticos: é graças à sua esfericidade que

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Parmênides pode afirmar que ele é finito, mas ilimitado, homogêneo, intuição
científica surpreendente, que só encontrará confirmação cerca de dois milênios
mais tarde, na física relativista do século passado.

IV

No verso 50 do fragmento 8 tem início a segunda parte do conto da deusa,


e é precisamente o ponto sobre o qual insistem os intérpretes que pretendem
ver nele a qualquer custo um Parmênides metafísico:
Com isto interrompo o discurso certo e o pensamento/acerca da verdade; daqui
em diante aprende as experiências dos homens,/escutando a ordem, que poderia
enganar, das minhas palavras./Com efeito, dois elementos eles decidiram
nomear: deles não devem nomear só um – nisto, de fato, se enganaram – ;/pelo
contrário, julgaram a sua estrutura completamente oposta e determinaram os
sinais/de um e do outro de maneira completamente separada./De uma parte o
fogo flamejante e claro como o céu [. ]/de outra parte também o outro elemento
separadamente por si mesmo,/com uma estrutura oposta, isto é, a noite escura,
de massa densa e pesada./Esta ordem cósmica, razoavelmente verossímil,
exponho-ta em cada pormenor,/de modo que nunca mais nenhum intelecto
humano possa desviar-te (DK28 B8, 50-61).

Mas dado que todas as coisas foram chamadas luz e noite, /e o que é conforme
às suas propriedades é atribuído a esta ou àquela coisa, /tudo está igualmente
cheio de luz e de noite escura/e ambas se equilibram, pois cada coisa provém
da união das duas (DK28 B9).

De fato, nestes versos não se lê uma contraposição entre “verdade da


razão” e “opiniões enganadoras” dos mortais, que seriam condenadas pela
deusa. Já vimos no fragmento 1 que o saber do homem tem de englobar ambos
os campos, realçando – o que é fundamental aqui para a epistemologia – o
discurso verdadeiro, que não pode senão dizer respeito ao discurso formalizado
acerca de “o que é”, e o discurso sobre as experiências, que não pode possuir
aquelas mesmas características de verdade do primeiro discurso, mas que,
embora não tendo o mesmo grau de verdade que aquele, não é porém falso.
Com efeito, o discurso sobre a realidade fenomênica – em nossos termos,
discurso cosmológico, físico, biológico –, baseando-se inevitavelmente sobre
observações e experiências, não pode ter o mesmo grau de verdade, que
possui ao invés o outro discurso, baseado em princípios lógicos, de
dedutibilidade, poderíamos dizer, “matemática”. Trata-se, pelo contrário, de
introduzir ordem e

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regularidade na sucessão das observações, com base em princípios
explicativos que possam dar conta dos fenômenos. Que é precisamente o que
faziam jônios e pitagóricos, e o que faz também Parmênides, bem inserido na
nova atmosfera cultural de seu tempo. É bastante significativo, a este
propósito, o termo di£kosµoj que Parmênides usa no verso 60 de B8: trata-se
precisamente do “discurso coerente” sobre o cosmos da multiplicidade
fenomênica, de uma recognição sistemática das experiências, de modo que
elas não sejam mais elementos de erro, como acontece nas “opiniões
humanas”, mas objetos de reflexão consciente.

Parmênides fala portanto de dois princípios, a que ele chama “fogo” e


“noite” no fragmento 8, e “luz” e “noite” no fragmento 9, que são os princípios
que constituem a realidade fenomênica; eles estão sempre presentes em todos
os fenômenos (B9, 3), os quais aparecem, por conseguinte, constituídos
sempre por uma relação que os implica a ambos (B9, 4), e são pois
reconhecíveis e nomeáveis na observação de todas as coisas (B9, 1: panta).
Ver ou nomear um só deles (B8, 54), pior ainda, contrapor um ao outro (B8,
55-56), é um dos erros (B8, 54) dos homens. Com esta observação, que é um
a afirmação de princípio, no sentido de que exprime uma teoria cosmogônica e
cosmológica própria do eleata, Parmênides assume uma posição polêmica em
relação à cultura pitagórica que estava bem presente no ambiente onde ele
estava inserido e no qual provavelmente fora educado. Vimos, com efeito, que
a característica do pensamento pitagórico era considerar as duas séries de
contrários segundo um esquema de positivo/negativo ou bem/mal (DK58 B7).
Agora parece claro que a polêmica de Parmênides entre o final do fragmento
B8 e o início do B9 era dirigida exatamente contra este aspecto da doutrina
pitagórica. Não é concebível para o eleata pensar nos contrários em termos de
positivo e de negativo, a partir do momento em que ambos os termos da
oposição entram necessariamente na composição de todas as coisas, e cada
coisa é o resultado de sua união.

Inicia-se assim, no final do fragmento 8, aquela parte do poema em que


Parmênides expõe suas teorias cosmológicas e físicas. Na realidade, não
podemos dizer muito sobre as doutrinas científicas de Parmênides, embora

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possamos ter uma ideia bastante completa delas em linhas gerais; contudo,
elas parecem-nos bem enquadradas no interior do esquema de seu poema.
E tu conhecerás a natureza do éter e todas as estrelas que existem no éter,/e da
pura e clara lâmpada do sol/a obra destruidora, e de onde nasceram,/e
conhecerás o errar da lua do olho redondo/e a sua natureza, e saberás do céu
que tudo envolve e de onde nasceu [...] (DK28 B10, 1-6).

[...] como a terra e o sol e a lua [...]/e a celeste galáxia e o Olimpo/extremo e a


ardente força dos astros foram impelidos/a nascer [...] (DK28 B11).

Trata-se de um sistema cosmológico que põe no centro do todo eterno,


ingênito e esférico (DK28 B 8, 43), a terra esférica (DK28 A1); em primeiro
lugar, Parmênides estabeleceu suas zonas climáticas, no interior das quais
determinou os lugares habitados da terra (DK28 A44a). A propósito da
esfericidade da terra e do universo Parmênides segue a tradição do
pensamento científico anterior, dos jônios aos pitagóricos. Também o universo
está dividido em cinco zonas, a que Parmênides chamou “coroas” (cf. DK28
B11, B12, A37). Não é muito fácil estabelecer de que forma estavam dispostas
as coroas; o que é certo é que se afirma a existência de uma zona mais
extrema do cosmo, um olimpo extremo, ou um céu, que tudo envolve, no
interior da qual se movem os astros, o sol, a lua, a terra.

Eram importantes no desenho cosmológico de Parmênides, por um lado, a


reafirmação do fato de que a luz da lua é um reflexo da luz solar (DK28 B14,
B15), doutrina que fora atribuída também a Tales e a Pitágoras (DK28 A42), e,
por outro, a descoberta de que Vésper, a estrela da tarde, e Fósforo, a estrela
da manhã, portadora de luz, eram a mesma estrela (DK28 A1).

A antropologia de Parmênides está intimamente ligada à sua cosmologia.


“Os homens provêm originariamente da lama” (DK28 A1): a origem dos seres
vivos oriundos da terra e em particular da espécie humana oriunda de outras
espécies animais, o que em nossos termos chamaremos de um esboço da
teoria da evolução, era teoria confirmada, também em Anaximandro e será
confirmada

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depois em Empédocles. Parmênides era aproximado a este último já na
Antiguidade (DK28 A51):
Empédocles [...] afirma [DK31A72] uma tese do gênero, isto é, que antes cada
membro saiu disseminadamente da terra que era como que prenha; depois
uniram-se e formaram a matéria do homem completo, a qual é uma mistura de
fogo e de água [...]. Esta mesma opinião seguiu também Parmênides, que,
exceto por poucas coisas e de pouca importância, não discorda de Empédocles
(DK28 A51).

A terra teve origem, como todos os astros, de uma matéria primigênia; é


da mesma natureza do cosmo, isto é, composta de fogo e de noite. Mas não
está habitada por seres vivos. A vida aparece só num momento posterior, como
uma forma particular de existência da matéria, um produto novo no processo
de evolução do mundo. Aqui há claramente a intuição da série de fases, de
graus do desenvolvimento da matéria, onde se determinam formas sempre
mais complexas de existência dotadas de qualidades novas. Poderíamos
chamar a linguagem fantástica e poética que usaram Parmênides e
Empédocles de uma espécie de “imaginação científica”, porque antecipa
certezas científicas modernas. E, de fato, também os homens, como todos os
seres vivos, são constituídos pelos mesmos elementos que compõem o cosmo
e aparecem apenas num certo momento de seu devir, de sua história.

Mas o nascimento espontâneo de todos os seres vivos oriundos da terra e


da água é só uma fase inicial da história da vida; a um certo momento de sua
evolução, o nascimento dos homens e dos outros animais torna-se sexuado. E
a geração dá-se por obra de Eros, o primeiro dos deuses gerados (DK28 B13)
da deusa primigênia que tudo governa (DK28 B12, 3), força inexorável que
impele o macho e a fêmea a se unir (DK28 B12, 4-6). Assim, do parto doloroso
que se segue à cópula nascem outros homens.

Temos vestígios evidentes de uma embriologia parmenidiana nos


fragmentos 17-18 e em alguns testemunhos; para Parmênides (DK28 B18),
concorrem para a formação do feto as capacidades geradoras do macho e da
fêmea: quando elas se misturam numa relação equilibrada nascem corpos bem
formados; quando, ao invés, elas entram em contraste e não conseguem
unir-se no corpo que resulta da fusão, nascem seres de sexo tormentoso. E,
em geral

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(DK28 B17J, quando a parte direita do útero é fecundada, nascem homens,
quando é fecundada a parte esquerda nascem mulheres: os intérpretes antigos
confirmam (cf. DK28 A54), testemunhando-nos ainda a existência de duas
escolas de pensamento sobre o assunto, uma segundo a qual o sêmen
feminino não serve para a geração, a outra segundo a qual na concepção dos
filhos contribuem o sêmen do pai juntamente com o da mãe. Portanto,
Parmênides coloca-se nesta segunda escola.

Por fim, confirmando o “materialismo” de Parmênides, há o fragmento 16:


E com efeito, conforme a relação que em cada um se instaura entre as móveis
partes que o constituem, /assim nos homens se determina a mente; porque é
sempre o mesmo/aquilo que nos homens pensa: a natureza das suas partes
constituintes, /em todos e em cada um. O pensamento é, de fato, a união de
todas estas relações (DK28 B16).

Fragmento que exprime a autêntica doutrina parmenidiana: prova disso é o


fato de ele nos ter sido legado apenas em textos aristotélicos ou de escola
aristotélica, e em contextos em que a citação era usada com objetivos
polêmicos, isto é, para demonstrar, segundo Aristóteles, o erro em que
Parmênides tinha caído, tal como tantos outros filósofos pré-platônicos. O
homem segundo o fragmento, é uma unidade inseparável de corpo e
pensamento provando ulteriormente a impossibilidade de separar e contrapor
em Parmênides sensibilidade e racionalidade. Com efeito, o fragmento diz-nos
que há uma íntima relação entre as “partes” constituintes de cada homem e
seu intelecto (v. 1-2). O sentido desta relação é que é sempre a configuração
particular que a síntese entre suas partes constituintes assume em cada
homem, a determinar seu pensamento: de fato, é sempre ela aquilo que nos
homens pensa, e o nÒhµa exprime precisamente a totalidade do homem, é a
significação expressiva de seu ser mais pleno. O fragmento fala de uma íntima
unidade entre sensibilidade e racionalidade, razão pela qual o pensamento não
é algo absolutamente estranho à corporeidade, no sentido de que o ser
corpóreo tem alguma influência sobre o modo de pensar do homem. Isto não
significa que o pensamento seja imediatamente o sentir: mesmo sendo ligado a
ele, no sentido de que suas características são as que são porque estão
conectadas à típica corporeidade do

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homem, é contudo algo que difere dele pelas funções, por suas modalidades de
ser e de funcionar, pelas capacidades de refletir sobre a sensibilidade e sobre si
mesmo. Pelo contrário, a redução do pensar ao sentir, ou sua identificação, é
outra das características atribuídas por Aristóteles não só a Parmênides, mas
também a boa parte do pensamento pré-platônico, para marcá-la como
atrasada e primitiva. Com efeito, Aristóteles encontrava-se perante uma
tradição de pensamento filosófico e científico já bem enraizada na cultura
grega, e que exprimia uma clara ruptura com um tipo de argumentação mítica:
também o homem e o mundo específico de seus pensamentos são objeto de
investigação científica e não mais objeto apenas de reflexões éticas ou
religiosas. Havia muito tempo já fora afirmado pela cultura grega, por Homero e
por Arquíloco, por exemplo, que o noàj, o intelecto, dos homens e seu qÚµoj,
sua afetividade, eram “funções variáveis”. Mas, se nos poetas há ainda o
sentido da dependência do homem em relação ao deus, nos primeiros
“filósofos” gregos é evidente o salto de mentalidade.

O poema de Parmênides encerra com um fragmento que reafirma tudo o


que se disse acerca do nascimento, do devir e do fim dos fenômenos
particulares que acontecem no todo eterno e imutável. Por um lado, ele
relaciona-se coerentemente com aquele “programa do saber” que a deusa
havia exposto no final do fragmento 1 e, por outro, comprova a função da
linguagem (“estabelecer os nomes que distinguem”) como instrumento
fundamental para o conhecimento humano:
Portanto, segundo as experiências dos homens, estas coisas nasceram e agora
são/ e depois crescerão e terão um fim:/a elas os homens puseram um nome que
distingue cada uma de todas as outras (DK28 B19).

VI

Tradicionalmente fala-se de uma “escola eleática”, no sentido de que


teriam sido discípulos de Parmênides Zenão de Eleia e Melisso de Samos, que
viveram no século V. Desses, o mais importante, pela genialidade de suas
análises lógicas, é Zenão de Eleia, discípulo direto de Parmênides:
acompanhou Parmênides em sua visita a Atenas (c. 450). Alguns estudiosos
duvidaram da realidade histórica

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desta viagem; os testemunhos relativos a ela são, contudo, significativos do fato
de que naquele período começavam a difundir-se e a discutir-se também em
Atenas as teses da escola eleática. Zenão é descrito por fontes textuais como
“homem eminentíssimo em filosofia e em política”, “filósofo físico e verdadeiro
político” (DK29 A1): de fato, participou ativamente da vida política de sua
cidade combatendo contra o tirano Nearco, por quem foi condenado à morte.
Suportou a tortura e a morte dando provas de grande coragem; os pormenores
de sua tortura e sua morte são contados por Diógenes Laércio (DK29 A1).

Da obra de Zenão restam-nos pouquíssimos fragmentos e uma série de


testemunhos, especialmente aristotélicos, todos, porém, destinados à crítica de
seus argumentos. Parece que em seus escritos Zenão teria atacado com
argúcia e sutileza lógica os adversários das doutrinas de Parmênides, os
pitagóricos, e em particular suas teses sobre a multiplicidade de entidades
geométricas simples (os números) e sobre a existência do vazio. Segundo
alguns estudiosos, Zenão teria criticado também o sofista Górgias, que tinha
escrito um livro contra a possibilidade de conhecer tÒ eÒn. A parte polêmica de
sua obra impressionou muito os antigos, que definiram Zenão como o inventor
da “dialética” (DK29 A2), isto é, da arte de discutir e de refutar, servindo-se
também de brilhantes paradoxos. Contra a tese dos entes pitagóricos Zenão
argumentava que, se se admite sua multiplicidade, diz-se que são limitados e
ilimitados ao mesmo tempo, o que é impossível:
Se os entes são muitos é necessário que sejam tantos quantos são e não mais
nem menos. Mas se são tantos quantos são serão limitados. Se os entes são
muitos são infinitos: de fato, no meio dos entes há sempre outros, e no meio
destes há novamente outros entes. E de tal modo os entes são infinitos (DK29
B3).

Admitir a multiplicidade dos entes não significa conseguir explicar os


fenômenos; pior ainda seria querer explicar o movimento partindo da hipótese
da descontinuidade pitagórica. Para demonstrar o absurdo lógico desta tese,
Zenão elaborou quatro argumentos, todos transcritos por Aristóteles:
1. O que se move deve chegar à metade de seu percurso antes de chegar ao
seu termo, e antes ainda à metade da metade, e assim por diante até o infinito
(DK29 A25).

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2. O argumento chamado de “Aquiles”: o mais lento nunca será alcançado em
sua corrida pelo mais veloz. De fato, é necessário que quem persegue chegue
com antecedência lá de onde se moveu quem foge, de modo que
necessariamente o mais lento terá sempre alguma vantagem (DK29 A26).

3. A flecha em movimento está parada: tudo o que tem o comprimento de um


espaço igual a si, ou está em repouso ou se move; mas é impossível que se
mova por um espaço igual a si: portanto está em repouso. Ora, a flecha que se
move, dado que se encontra num espaço igual a si, em cada instante de tempo
durante o qual se move, estará em repouso; se estiver em repouso em todos os
instantes de tempo que são infinitos, estará em repouso também todo o tempo.
Mas tinha-se dito que ela estava em movimento: portanto a flecha em movimento
estará em repouso (DK29 A27).

4. O argumento do estádio: em relação a um ponto fixo do estádio, dois objetos


que se movem à mesma velocidade, mas em direção contrária, percorrem um
espaço que é ao mesmo tempo igual e duplo: igual, se se considera a relação
entre cada um dos dois objetos e o ponto fixo, o dobro se se considera a relação
dos dois objetos entre si. Mas isto é absurdo (DK29 A28).

A redução ao absurdo da tese pitagórica da mônada e do movimento


(entendido como passagem através de uma infinidade de posições num tempo
finito) não era só uma brilhante refutação da experiência do cotidiano; portanto,
Aristóteles criticou inutilmente os argumentos de Zenão baixando-os à medida
do senso comum. Zenão não queria negar a realidade da multiplicidade de
fenômenos da experiência, nem a realidade do movimento: por um lado, suas
teses queriam demonstrar as grandes dificuldades que se encontram quando se
quer fazer da experiência uma rigorosa análise lógica; por outro lado, queriam
chamar a atenção para a importância daquilo que hoje chamaríamos de lógica
das relações no estudo da natureza, isto é, uma lógica que deve encontrar e
fixar seus pontos de referência, somente em relação aos quais nossos
discursos adquirem estrutura lógica e rigor científico. A importância de Zenão
no campo da filosofia e da ciência reside sobretudo em ter intuído a
necessidade de unir a investigação sobre a natureza (física) ao novo
instrumento da lógica (lógica matemática) e simultaneamente em ter intuído a
dificuldade de realizar uma rigorosa análise lógica da experiência: mas esta
descoberta fundamental de Zenão será logo abandonada, principalmente pela
prevalência da física substancialista de Aristóteles, e terão de passar muitos
séculos antes que a ciência e em seguida a filosofia a revalorizassem.

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