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Da Natureza (Parmênides) Notas de Giovanni Reale

1. O grande prólogo do poema apresenta um jovem sendo trazido por um carro


puxado por cavalos e sob a guia das filhas do sol. Elas indicam a via da casa da
Noite em direção à Luz, até atravessar a porta da Noite e do Dia, para chegar até
à Deusa, que o acolhe de bom ânimo e lhe revela a verdade sobre as coisas.

2. Veremos a interpretação do fato acima dada por Werner Jaeger, historiador e


filólogo alemão, seguida por muitos intérpretes sucessivos, através da via que
ele abriu ou vias paralelas a esta. Escreve Jaeger: “A visão deste fato misterioso
no reino da luz é autêntica experiência religiosa: a experiência dos frágeis olhos
humanos que se dirigem à verdade oculta, de modo que toda a vida vem
transformada”.

3. Trata-se de uma religiosidade conectada aos mistérios. Com efeito, no poema


parmenídeo se encontra uma individual experiência do divino, um zelo pela
anunciação da verdade revelada, um ressoar de exortações de tom religioso.

4. Jaeger diz: “Naturalmente não se pode pensar que Parmênides com a sua
filosofia tenha querido sustentar a causa de qualquer seita religiosa. A intuição
de Parmênides permanece em todo caso um ato original da criação do
pensamento. É muito mais que uma metáfora: é a transposição da expressão
religiosa para o campo filosófico por onde se vem a formar verdadeiramente um
novo mundo espiritual”. Logo, como não poucos concordaram, não se trata de
pura alegoria, mas de uma grandiosa expressão de uma experiência de acesso à
Verdade.

5. E qual é o significado da Deusa, e por que vem chamada em causa uma Deusa e
não um Deus? E como a Deusa parece assumir em vários momentos aspectos e
nomes diferentes? Pode-se notar um nexo cultural bem preciso entre a Deusa e a
figura mítica da Grande Mãe próprio da religiosidade mediterrânea pré-
Helênica, onde Parmênides deve ter se inspirado.

6. A Deusa se manifesta em muitos modos, segundo aquela dinâmica de


manifestação da unidade em muitas maneiras. A unidade da Deusa se implanta
em múltiplas maneiras expressas de modo relativo por nomes emblemáticos que
indicam vários aspectos essenciais e todos femininos.

7. Eis o elenco dos nomes: Deusa (fr. 1, v, 22); Divindade que tudo governa (fr.12,
v.3); Justiça (fr. 1, v.14; 1, v.28; 8, v.14); Sorte (fr. 1, v.26; 8, v.37); Lei Divina
(fr. 1, v.28); Persuasão (fr. 2, v.4); Verdade (fr. 1, v.29; 2, v.4); Necessidade (fr.
8, v.30).
8. Em Parmênides, a única grande Deusa se funde nos seus múltiplos aspectos,
cada um dos quais se mostra necessariamente conexo com o outro e todos juntos
constituem a forma total do divino. Sem esta polinomia, a potência do divino
permaneceria em qualquer modo muda e inexpressiva, indistinta.

9. Cada nome não só exprime um momento ou aspecto essencial do divino, mas


também necessariamente remete a outro, evidenciando um momento do operar
da Deusa e junto um aspecto do real.

10. Em particular é revelado o nome de Verdade: “o sólido coração da verdade bem


redonda” (fr. 1,29) do qual fala a Deusa é o revelar-se do ser mesmo, nos modos
que veremos agora.

11. As três vias da investigação.

12. O prólogo contém o quadro geral da tratação que virá desenvolvida no poema.
Trata-se de versos que foram subentendidos, e que somente nos últimos decênios
foram interpretados de modo correto. Neles se perfilam não dois (como se
acreditou por muito tempo), mas três vias de investigação, ou, se se quer, duas
vias, uma das quais tem dois traços bem distintos, como veremos. Os versos (28-
32) dizem assim:

13. “Terás, pois, de tudo aprender: (1) o coração inabalável da verdade bem redonda
(2) e as opiniões dos mortais, em que não há uma verdadeira certeza. (3) Mas,
também isto aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, sendo
tudo em todo sentido”.

14. Logo, tem a via segundo a qual se colhe o coração inabalável da Verdade bem
redonda; tem a via das opiniões dos mortais, que é de tudo falácias; e tem
também uma via que indica o modo correto como as coisas que aparecem são
interpretadas, ou seja, como são incluídas no ser (no modo em que veremos).

15. Trata-se da via da opinião verdadeira, da opinião em sintonia com a Verdade, e,


como dizia acima, se trata, em certo sentido, de um prosseguimento da via da
verdade. Mas, por comodidade, vamos chama-la de terceira via, ou seja, das
opiniões com veracidade.

16. Infelizmente, enquanto apareceram fragmentos que recobrem por inteiro a


tratação sobre o ser ( a via da verdade), pouquíssimos falam da terceira via.

17. O segundo eleatismo, representado por Zenão e Melisso, tem em larga medida
contestado o significado da doxa, concentrando-se na discussão sobre a Verdade
pura, e os filósofos sucessivos consideraram mais interessante a primeira parte
do poema. Vejamos em seguida estas vias examinando uma a uma.
18. A via do erro e as figuras dos homens errantes que a seguem - O fragmento 2
distingue de modo claro duas vias: aquela da verdade e aquela do erro. A via da
Verdade e da Persuasão é a via do Ser, a via que leva a compreender “que é e
que não é possível que não seja” (fr. 2, v.3).

19. A segunda via é aquela do erro, e é a via do não-ser, a via que induz a crer “que
não é e que é necessário que não seja” (fr. 2, v.5). Esta segunda via deve ser
excluída de forma categórica, porque aquilo que não é não se pode nem
“conhecer”, nem em algum modo “exprimir” (fr. 2, vv. 7-8). O pensar é sempre
e somente pensar o ser. O célebre fragmento 3 diz: “(...) pois o mesmo é pensar e
ser”.

20. E o fragmento 8 (vv. 34-38) reforça: “O mesmo é o que há para pensar e aquilo
por causa de que há pensamento. Pois sem o ser – ao qual está prometido -, não
acharás o pensar. Pois não é e não será outra coisa além do ser, visto o Destino o
ter amarrado para ser inteiro e imóvel”.

21. O fragmento 6, que é um dos mais difíceis de se interpretar, Parmênides


distingue a via do erro em duas vias paralelas e em qualquer modo convergentes.
A primeira é a via do não-ser, da qual a Deusa exorta a estar distante, e que de
fato resulta impossível de percorrer, enquanto o não-ser não é.

22. A paralela via do erro é aquela que crê no devir entendido como ser tocado pelo
não-ser, ou seja, como cíclico passagem do ser ao não-ser e vice-versa. Convém
ler antecipadamente o fragmento 6, porque contém conceitos-chaves do ponto de
vista hermenêutico:

23. “ É necessário o dizer e o pensar que o ser seja: de fato o ser é enquanto o nada
não é: nisto te indico que reflitas. Desta primeira via de investigação te afasto, e
logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, vagueiam, com duas
cabeças: pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados,
surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indecisa, que acredita
que o ser e o não-ser são o mesmo e o não-mesmo, e por isto de todas as coisas
tem um caminho que é reversível”.

24. Uma correta compreensão destes versos é, por muitos aspectos, essencial,
enquanto, no passado, não poucos intérpretes acreditaram que Parmênides toma
uma precisa posição polêmica contra Heráclito.

25. Alguém chegou até mesmo a dizer que o poema de Parmênides é o melhor
comentário – negativo – à doutrina de Heráclito. Porém, outras versões dizem
que Parmênides tem na mira os homens em geral, enquanto faz uso de
expressões gregas usadas para determinar a essência do homem.
26. A fonte de erro em que caem os homens “com duas cabeças”, ou seja, aqueles
que admitem o ser e o não-ser, está nas sensações. A Deusa, em particular no
fragmento 7, exorta a não ter fé nos sentidos e na experiência sensível contra os
ditames do logos, que diz que o Ser é e não pode em algum modo não ser: “ Pois
nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são; mas afasta desta via
de investigação o pensamento, não te force por este caminho o costume muito
experimentado, deixando vaguear olhos que não veem, ouvidos soantes e língua,
mas decide pela razão a prova muito disputada de que falei”. Qual é, então, a via
que se deve seguir?

27. A via do Ser e da Verdade.

28. Sobre a base do que foi dito até aqui, a via que pode ser percorrida é apenas a do
Ser (cf. fr. 8, vv. 1-2). E sobre tal via existem precisos sinais indicadores,
características essenciais do ser, reveladores da sua natureza (fr.8, vv. 2 ss.).

29. Para poder compreender estas características essenciais, é preciso ter bem
presente a interpretação de fundo que Parmênides dá do Ser, considerando-o
como o puro positivo em sentido absoluto livre de qualquer negatividade e
diferenciação, isto é, como contraditório do não-ser como o puro negativo,ou
seja do nada em sentido absoluto. Vejamos quais são esses sinais indicadores:

30. a) O ser não “era”, ou seja, não pode ter um passado, porque para ter um passado
deveria não ser mais; e nem mesmo ‘será’, ou seja, não pode ter um futuro,
porque para ter um futuro deveria não ser ainda (fr. 8, vv. 5s. e vv. 19ss.).

31. b) Portanto, o ser é ‘não-gerado’ e ‘incorruptível’ (fr. 8, vv. 6 ss.). De fato, não
poderia derivar do não-ser, que não é; nem do ser, enquanto, em tal caso, o ser já
seria e não seria preciso nascer (do ser não pode nascer alguma coisa que seja
outro do ser). E pela mesma razão é impossível que se corrompa, ou seja que
caminhe para o não ser: “E assim a gênese se extingue e da destruição não se
fala” (fr.8, v.21).

32. c) O Ser é, além do mais, ‘indivisível’: é um ‘todo inteiro’ absolutamente


‘igual’, enquanto não pode diferenciar-se em um mais ou em um menos porque é
‘todo inteiro e contínuo’ (fr. 8, vv. 22 ss.).

33. d) O Ser não somente é ‘imutável’, mas ‘imóvel’, enquanto mutabilidade e


mobilidade implicaria não ser (fr. 8, vv. 26 ss.).

34. e) O Ser é, portanto, um inteiro absolutamente igual, ‘idêntico no idêntico’ (fr. 8,


v.29), absolutamente completo, como indica a imagem da esfera, que no
conceito dos antigos era o símbolo da perfeição (fr.8, vv. 29-44).
35. f) O Ser é ‘uno, contínuo’ (fr. 8, v.6). É ‘um’ como um inteiro absolutamente
igual a si mesmo e como aquela absoluta identidade, que, excluindo cada
diferenciação, implica também total unidade.

36. Os seguintes versos são verdadeiramente emblemáticos (fr. 8, vv. 42-49): “Visto
que tem um limite extremo, é completo por todos os lados, semelhante à massa
de uma esfera bem redonda, em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem
maior, nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja. Pois nem o não-ser é, que o
impeça de chegar até ao mesmo, nem é possível que o ser seja maior aqui,
menor ali, visto ser todo inviolável: pois é igual por todo o lado,e fica
igualmente nos limites”.

37. Depois de tudo aquilo que vimos, a pergunta vem espontânea: mas este ser é de
caráter imaterial ou material? Esta pergunta, que não poucos intérpretes
colocaram, não é hermeneuticamente correta. Parmênides não podia colocar-se
este problema, enquanto a categoria de material e de imaterial nasceram com
Platão.

38. Todavia, é bem claro que o ser do qual fala Parmênides é o ser do cosmos, em
grande parte purificado e ‘abstrato’ e, se pode dizer com uma expressão
paradoxal, é um tipo de cosmos ‘descosmicizado’.

39. No entanto, se considere o fato que esta doutrina de Parmênides, como já outras
vezes se colocou aqui em evidência, revoluciona de forma radical a problemática
iônica da investigação do ‘princípio’ do qual todas as coisas derivam.

40. Aquilo que na filosofia do Ser de Parmênides vem desaparecer é propriamente a


distinção de ‘princípio’ e ‘principiado’, enquanto o ser não gerado, inalterável,
imóvel, indiferenciado e indiferenciável, absolutamente igual, elimina o tronco
da razão do ser dos problemas mesmos dos quais os Iônicos procuravam a
solução.

41. O modo correto segundo o qual a via da opinião pode ser percorrida, depois de
ter percorrido a via do ser, como um prosseguimento desta mesma via.

42. A tradicional interpretação de Parmênides entendia a segunda parte do poema,


dedicada à opinião, como uma descrição analítica dos erros dos homens e,
portanto, como uma apresentação sistemática da via falsa do não-ser.

43. Com efeito, como vimos, Parmênides fala de duas vias: uma verdadeira e uma
falsa (distinta em duas formas). Mas, sobretudo, através de alguns estudos do
século XX, emergiu com clareza que Parmênides declara, sim, a opinião dos
mortais falaciosos, mas concede à ‘aparência’, oportunamente entendida, uma
certa plausibilidade.

44. Em outros termos, segundo Parmênides, é possível, colocando-se em uma certa


ótica, dar conta dos fenômenos e das aparências de modo plausível, ou seja, sem
andar contra o grande princípio propiciado percorrendo a via da Verdade,ou seja
sem admitir junto o ser e o não-ser.

45. Já na conclusão do prólogo (fr 2, vv. 28-32) do poema a Deusa disse com
clareza que além do “sólido coração da Verdade bem redonda”, e além das
opiniões do s mortais “nas quais não existe uma verdadeira certeza”, mostrará
também que “como as coisas que aparecem precisavam que verdadeiramente
fossem, sendo todas em todo sentido”.

46. E ao início da exposição da via das aparências (fr. 8, vv. 60 s) reforça: “ Este
ordenamento do mundo, verdadeiramente em tudo, completamente te exponho,
de forma que nenhuma convicção dos mortais poderá te transviar.

47. O famoso fr. 3 “...” (...de fato, o mesmo


é pensar e ser) quer dizer precisamente isto: o pensamento é sempre pensamento
de alguma coisa. E similarmente no fr. 8 Parmênides diz: “É a mesma coisa
pensar e pensar que é: - porque sem o ser, naquilo que é dito, não encontrará o
pensar”.

48. Desta constatação, e podemos bem dizer, descoberta, que pensar quer dizer
sempre pensar que é alguma coisa, Parmênides deduz que somente o ser é e que
o não ser não é (como ensina a Verdade), enquanto a via do erro diz que não é,
afirma o não ser.

49. A metafísica parmenidêa do ser único, não gerado e incorruptível leva


necessariamente a uma gnosiologia que esvazia o conhecimento sensível, a
experiência, aquela que nos atesta a multiplicidade e o devir, a doxa, e retém
como verdadeiro somente o conhecimento do único e imutável ser.

50. A Verdade é a redução ao absoluto do puro ser. A opinião é aquele mundo de


determinação, de predicados singulares, cada um dos quais sendo uma negação
do outro, enfim, uma mistura entre o ser e o não- ser.

51. Se como não podemos pensar se não pensando alguma coisa; se como no fundo,
a cada nosso conceito existe um conceito do ser, Parmênides conclui que a
fundamento de cada ente tem um único ser.

52. Portando, a base da doutrina parminidêa tem uma gnosiologia do conhecimento


adequada, perfeita, ou seja, a persuasão que entre o pensamento humano e a
realidade exista uma plena adequação: que todas as características dos nossos
conceitos correspondam exatamente às características da realidade.

53. Na doutrina de Parmênides esta teoria do conhecimento é quase inconsciente, é a


espontânea confiança no absoluto valor do pensamento humano, perfeitamente
compreensível na época juvenil da especulação filosófica.

54. Faz parte da tradição contrapor Parmênides, o filósofo do ser, a Heráclito, o


filósofo do devir. Platão conecta à metafísica heraclitéia a teoria segundo a qual
o conhecimento é sensação: se tudo muda, se nada jamais é, mas sempre devém,
da realidade se poderá apenas dizer aquilo que atesta a atual sensação, não se
poderá mais defini-la. Daqui seguiria também a negação do princípio de não
contradição, negação que alguns atribuem a Heráclito, segundo o testemunho de
Aristóteles.

55. Este relativismo gnosiológico se conectaria também com a afirmada identidade


dos opostos. O que se opõe ao mesmo tempo se convém, e das coisas que
diferem se gera a harmonia mais bela, e todas as coisas nascem segundo
competição e contestação. Dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância
e carestia, tudo se harmoniza pelos contrários.

56. Passemos agora aos Sofistas. É notável o seu relativismo gnosiológico.


Protágoras foi o primeiro a afirmar que de toda coisa se pode afirmar predicados
opostos. O que está de acordo com a famosa afirmação: “O homem é a medida
de todas as coisas: daquelas que são, que são; daquelas que não são, que não são.

57. As coisas são aquelas que aparecem ao homem, tais quais aparecem ao homem.
Portanto, é inútil investigar o que a realidade em si: a única tarefa séria é aquela
de procurar colocar em acordo as opiniões dos homens e ali prospectar uma “lei”
que regule em melhor modo a vida e a convivência humana.

58. De Górgias, é famosa a argumentação para demonstrar que nada é: se alguma


coisa fosse não se poderia conhecê-la e, se pudesse conhecê-la não se poderia
comunicar aos outros este conhecimento.

59. Em Platão, a separação dos dois mundos, inteligível e sensível, corresponde a


distinção de dois tipos de conhecimento.

60. A teoria das ideias é antes de tudo a afirmação que a realidade verdadeira não é
aquela que se colhe sensivelmente, aquela que nasce e perece e muda, mas uma
realidade transcendente, que não se colhe com o olho material ou com algum
outro sentido, mas com a mente.

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