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Sumário
Capa: Adão Kadmon, o « homem primordial », segundo Louria, século 17, a partir de
uma ilustração extraída de Kabbala Denudata.
Salvo menção especial, os artigos publicados nesta revista não representam o pensamento
oficial da TOM, mas unicamente o de seus autores. Os manuscritos não inseridos não
são devolvidos.
Editorial
Amados Irmãos e Irmãs da Tradicional Ordem Martinista
Penso que cada tema deve ser estudado por vez para que seja possível
assimilar o conteúdo de cada reflexão.
[ 2 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Quem caminha pelas ruas inconsciente de sua origem divina? Os
homens da torrente. Por sua vez, os Homens de Desejo têm uma perspectiva
diferente da vida, eles anseiam escalar a montanha da Iluminação. De que
valeria chegar ao topo senão para ser útil a Deus e servi-Lo?
Sincera e Fraternalmente
AMORC-GLP
O SEPHER YETZIRAH
ou
O LIVRO DO DESEJO DIVINO
[ 6 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Os caminhos do desejo
Sendo o caminho pouco conhecido, é necessária a força do desejo
para encontrá-lo. É esse desejo que está oculto na palavra Netiv. Sua
raiz ( תבTAB)1 é composta pela contração da letra ( תTav, símbolo de
simpatia e de reciprocidade) e de ( אוּבAOUB), um desejo vago, ainda
não determinado, agindo no interior. Juntos, eles descrevem todo tipo
de reunião por simpatia, e portanto um desejo mútuo. A letra ( נNun) que
precede é, nessa posição, o signo da ação passiva e voltada para si. Mas é
a letra ( יYod) em seu seio que fará da raiz ( נתבNTAB) o lugar do desejo,
pois ( איAY) enuncia a mesma ideia de desejo que ( אוּAOU), mas menos
vaga e mais determinada. Já não é mais uma paixão sem objeto que cai
na incerteza; é o próprio objeto desse sentimento – o centro ao qual
tende a vontade, o local em que ela se fixa: ( נתבNTAB) se torna então
( נתיבNTYB). Além disso, 1 ( )אe 10 ( )יsão de fato os mesmos números,
o primeiro contendo todas as potencialidades expressas pelo segundo
na forma de 10 sephirot e de seu desejo de ser através do movimento
presente no centro do Ser que é o “Deus e a vida essencial, o móbile e o
movimento de todos os seres”.
Caminhos e portas
Desses 320 desejos ou corações brilham a Luz e a Vida que são expressões
do Desejo Divino do “Ser sempre luminoso devido à irradiação de sua energia,
causada por seus ininterruptos esforços para existir”. O Sepher Yetzirah quer
[ 8 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
fazer com que ingressemos nesse movimento que está na origem da
complexidade das formas e de sua organização – não analisando cada
elemento da Criação, mas meditando sobre eles. Ora, mui frequentemente
certos comentaristas efetuaram quadros de correspondências entre todos
esses elementos sem levar em consideração o contexto que lhes dava sentido,
misturando assim diferentes planos. Ainda que todos esses esquemas e
quadros apresentem categoricamente um interesse mnemotécnico, o fato
de querer simplificar exageradamente noções complexas, em vez de tentar
explicá-las, acabou sobretudo por complicá-las. E foram sem dúvida o
tema dos 32 Caminhos da Sabedoria e o das 50 Portas da Inteligência que
sofreram as maiores distorções resultantes desse modo de proceder.
[ 10 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
A Saída do Egito dos hebreus é também a ilustração do esforço constante
que exige a formação do homem interior para conseguir a liberdade espiritual
pela purificação. É importante especificar aqui que a tradução de שער
(Sha’ar) como Porta não é a mais sensata, pois o batente de uma porta é
chamado de ( דלתDalet), ao passo que Sha’ar designa o enquadramento ou
o Pórtico e se refere, portanto, a uma passagem que remete a uma medida
– outro significado de Sha’ar, tanto no sentido físico (conta, cálculo, peso)
quanto no intelectual (julgamento, discernimento, estimativa) ou no
emocional (apreciação, sentimento, desejo). Medida, com esses mesmos
significados, também é a tradução do hebraico ( מדהMiddah), no plural
( מדותMiddot), que designa as 7 sephirot inferiores no Sepher Yetzirah.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 11 ]
Shavouot (a Revelação do Monte Sinai). Durante esse período de sete
semanas, cada um dos 49 dias deve ser consagrado a uma purificação da
consciência pelo estudo, a meditação e a prece, a fim de se adquirirem
as 7 x 7 = 49 virtudes que dão acesso à 50ª – Binah, que dá por sua vez
acesso aos 32 Caminhos da Sabedoria Divina. É ao cabo desse percurso
que é alcançada a pureza ( זכהZakah, valor 32), que permite revestir-se do
manto branco ( לבןLeBeN = branco = 82 = 50 + 32) dos Santos.
O rei Davi ou o Homem de Desejo
Mas antes que as Almas possam unir em seu coração os 320 desejos,
há muitas provações a serem superadas ou transmutadas ao longo de toda
a subida da árvore a partir de Malkuth, seu degrau mais inferior, que a
Cabala atribui ao rei Davi. Ele é filho do personagem bíblico chamado
( ישיYshai, Jessé), cujo nome tem valor 320 = (10 + 300 + 10), mas que
também pode ser lido ( יש־יYeSh – Iod, há Iod ou há 10 [sephirot]),
indicando com isso que é em Davi que se encontram expressos o começo
e o meio de se elevar até o cimo da árvore, após haver integrado em si as
10 sephirot. O estudo da vida do rei Davi, tal como ela é poeticamente
transcrita nos Salmos, equivale a uma meditação sobre o sentido da Queda
e do combate espiritual a ser empreendido pelas Almas que desejam
reencontrar seu estado angélico. Davi sucumbiu, é certo, mas também
foi um exemplo de arrependimento, e é precisamente isso que deixam
transparecer os Salmos. Eles são ligados ao caminho do arrependimento
que ele traçou para todos aqueles que viriam depois dele, deixando-lhes
as chaves de sua salvação no Salmo 51:
Tem piedade de mim, ó Deus, na medida da Tua bondade;
segundo a grandeza de Tua clemência, apaga minhas falhas.
Lava-me completamente de minha iniquidade, purifica-
me do meu pecado. Pois eu reconheço minhas falhas e meu
pecado está sempre diante dos meus olhos. Desvia Tua face
dos meus pecados, apaga todas as minhas iniquidades. Ó
Deus, cria em mim um coração puro e faz renascer em mim
um espírito reto. Não me rejeites diante da Tua face, não me
retires Tua santa inspiração. Devolve-me a alegria do Teu
socorro e sustenta-me com Teu espírito magnânimo.
[ 12 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
A história de Davi revela a imagem de um homem imperfeito, ao
passo que seus Salmos manifestam um poeta perfeito, pois soube, através
deles, fazer de sua alma um Templo. É sem dúvida o que o primeiro livro
das Crônicas (28, 19) quer exprimir ao nos dizer que Davi entregou a seu
filho Salomão um plano detalhado do Templo, redigido por ele próprio
sob a inspiração divina, dizendo-lhe: “Meu filho, era meu desejo edificar
uma casa em Nome do Eterno, meu Deus”. Deus, contudo, recusando-lhe
a construção de um Templo material, lhe consola: “Sabe que a Justiça e a
Retidão que praticas me aprazem mais que o próprio Templo”. E é começando
a praticar esses valores que Davi transmuta o fogo do desejo recebido de seu
pai ( ישיJessé) na voz de fogo יש-( פאהPhoeh – Yesh) da poesia, a qual é
“um Templo, e não poderia ter outro nome senão Poesia”, como escreveu o
grande poeta Jean Cocteau finalizando cada um dos seus Sete diálogos com
o Senhor incógnito que existe em nós. Pela construção em Davi do Templo
da alma, que são as 10 sephirot, por sua transfiguração em um homem
novo portador de um conhecimento inédito sobre a vida, ele se torna
o primogênito de uma linhagem espiritual que, segundo o anúncio do
profeta Isaías, produziria o Messias:
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 13 ]
E em Ecce Homo:
[ 14 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
O SEPHER YETZIRAH
Versão «GRA»
Capítulo I
A versão que segue, comumente chamada Gra-Ari, é o resultado
de uma longa elaboração. Por volta de 1550, Moisés Cordovero, que
dirigia a famosa Escola de Safed, fez uma seleção de seções do Sepher
Yetzirah em uma dezena de manuscritos cujo resultado encontramos
em seu comentário sobre a referida obra e no Pardes Rimonim (21:16).
Mais tarde, o texto foi refinado por Isaque Luria, mais conhecido pelo
nome “Ari”. Essa versão, chamada igualmente Ari, é a única que está
verdadeiramente em concordância com o Zohar. No decorrer do tempo,
entretanto, a versão Ari sofreu alterações, por sua vez. Foi no século XVIII
que Vilna Gaon, conhecido pelo nome “Gra”, redigiu sua forma final
(contendo cerca de 1800 palavras), que ficou conhecida como Gra-Ari e
que propomos logo adiante. A maioria dos cabalistas utiliza essa versão e
reconhece a sua autenticidade…
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 15 ]
1-5 Dez sephirot-abismo, sua medida é dez, pois elas são infinitas:
profundeza de princípio, profundeza de extremidade, profundeza
de bem, profundeza do mal, profundeza do alto, profundeza do
baixo, profundeza do leste, profundeza do oeste, profundeza do
norte, profundeza do sul. O mestre único, Deus rei fiel, as domina
todas desde sua santa morada, para a eternidade das eternidades e
para sempre.
1-6 Dez sephirot-abismo. Sua aparência é como a visão de um relâmpago
cuja extremidade não tem fim. Sua palavra vai e vem nelas. Por sua
ordem elas se deslocam como um furacão e se prosternam diante de
seu Trono.
1-7 Dez sephirot-abismo. Seu fim reside no seu começo e seu começo
no seu fim, assim como a conflagração consumindo o tição. Pois o
mestre é único e sem segundo. Diante do um, por que contas?
1-8 Dez sephirot-abismo. Impede tua boca de falar delas e teu coração
de refletir sobre elas. Se teu coração se descontrolar, volta ao lugar
em que está dito “Os Hayoth iam e vinham” (Ez 1, 14). Foi nessa
palavra que foi concluída a aliança.
1-9 Dez sephirot-abismo: Uma: “Sopro do Elohim vivo”, abençoado
e glorificado seu nome que vive nos mundos. A voz, o sopro e a
palavra são o Espírito Santo.
1-10 Duas: “Sopro oriundo do Sopro”. Com ela, Ele gravou e esculpiu vinte
e duas letras de fundação: três mães, sete duplas e doze simples,
animadas por um único sopro.
1-11 Três: “Água oriunda do Sopro”. Ele gravou e esculpiu vinte e duas
letras a partir de um Tohu Bohu de lama e argila. Ele as gravou
como uma espécie de chão. Ele as esculpiu como uma espécie de
parede. Ele as desenvolveu como uma espécie de teto. Ele verteu
neve e elas se tornaram pó, como foi dito: “Pois à neve ele disse: cai
sobre a terra!” ( Jb 37, 6).
1-12 Quatro: “Fogo oriundo da água”. Com ela, Ele gravou e esculpiu o
Trono de Glória, os Serafim, os Ofanim, os Hayoth haQodesh e os
anjos de serviço. Sobre esses três, Ele fundou sua casa, como foi dito:
“Ele faz dos sopros seus mensageiros, das chamas do fogo seus servos”.
[ 16 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
1-13 Ele escolheu três letras dentre as simples, no mistério das três mães:
Alef, Mem, Shin. Ele as fixou em seu Grande Nome e, com elas,
selou seis extremidades: Cinco: Ele selou o topo e virou para o alto.
Ele o fixou com YHV. Seis: Ele selou o fundo e virou para baixo.
Ele o fixou com HYV. Sete: Ele selou o leste e voltou para adiante.
Ele o fixou com VYH. Oito: Ele selou o oeste e voltou para trás. Ele
o fixou com VHY. Nove: Ele selou o sul e voltou para a direita. Ele
o fixou com YVH. Dez: Ele selou o norte e voltou para a esquerda.
Ele o fixou com HVY.
1-14 Eis as dez sephirot-abismo: Sopro de Elohim vivo, Sopro oriundo
do Sopro, Água oriunda do Sopro, Fogo oriundo da Água, Alto,
Baixo, Oeste, Norte, Leste, Sul.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 17 ]
Josselyne Chourry
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 19 ]
tempo física e linguística, nos oferece diversas interpretações possíveis.
Deixando-nos levar pela polissemia, conservamos o espírito aberto e
vigilante. “Colocar alguém na caixa” também significa aqui um modo
de entrar numa palavra-caixa que deriva como um barco. Noé oferece
um continente cheio de conteúdos. O Dilúvio (MaBouL em hebraico)
é um momento crucial no qual basta uma palavra encaixada ou “caixa
falante” para salvar a humanidade. Por trás da ação se encontra o Verbo.
Uma vez que as letras do hebraico também são números, a construção
da Arca assume uma dimensão matemática, pois ocorre que essa caixa
possui medidas precisas: 300 côvados de comprimento, 50 côvados de
largura e 30 côvados de altura. A partir desses três números obtemos a
correspondência com as seguintes letras:
2 – O berço de Moisés
Mais uma vez, no texto bíblico do Êxodo, eis uma caixa-berço que
não deixa de evocar a Arca de Noé em certos aspectos. O capítulo 2 do
Êxodo relata a astúcia de uma mãe para salvar seu filho recém-nascido,
pois o faraó havia declarado: “Que todo recém-nascido varão seja lançado
ao rio…”.
“Ela lhe preparou um berço de junco, o qual revestiu de betume e piche. Nele
colocou a criança e o depôs entre os caniços na margem do rio”, e depois disso a
filha do faraó, querendo se banhar, viu o berço. Uma serva foi buscar uma
nutriz para amamentá-lo, e esta foi sua própria mãe.
[ 20 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Mas a primeira semelhança com a caixa-barco de Noé é que a palavra
TeVaH3 também é empregada aqui. O berço de Moisés também é uma
palavra escondida incrustrada secretamente em um berço – uma palavra
flutuante lançada às margens de um rio. A água é onipresente nos dois
relatos, e sabemos que, adulto feito, Moisés não precisará de nenhum
barco para atravessar o mar dos juncos, que se abrirá para dar passagem
aos hebreus. Seria esse barco chamado TeVaH um sésamo premonitório do
destino da criança?
Todas as caixas bíblicas parecem ser dotadas de uma palavra potencial.
A outra semelhança entre um berço e uma arca é a sua forma oval, que os
escultores utilizaram na Idade Média com as mandorlas que rodeiam o
Cristo. TeVaH também é o nome dado nas sinagogas ao altar ou estrado
no qual é feita a leitura da THoRaH.
O berço é simbólico na viagem da vida nascente, formando com sua
forma envolvente e protetora uma extensão do ventre da mãe. No final
da viagem, outra caixa fechará o percurso terrestre: um ataúde. A cada
extremo de encarnação existe uma caixa à nossa espera. Evoco a canção
“Petites boîtes” [Caixinhas], do cantautor franco-neozelandês Graeme
Allwright (1926-2020).
3 – Os filactérios ou TePHiLiM
Os TePHiLiM são formados por duas pequenas caixas cúbicas de
couro preto atadas com tiras. Uma dessas caixas é presa ao braço e a outra
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 21 ]
na testa. Fora o simbolismo próprio desse rito do Judaísmo, aquilo que
nos interessa é o fato de essas caixas possuírem compartimentos que
encerram pequenos pergaminhos com excertos de textos bíblicos. A
relação com palavras e com a linguagem escrita é evidente.
4 – A caixa de Pandora
Deixemos agora a Bíblia e vamos mergulhar na mitologia grega para
falar de outra caixa. É Hesíodo quem apresenta o texto mais antigo a
evocar esse mito, numa série de poemas agrupados sob o título de “Os
trabalhos e os dias”. Originalmente, Pandora é uma mulher feita de argila
por Hefesto e animada pela deusa Atena. Se por um lado isso nos
faz pensar em Adão, também feito de terra, por outro Pandora estava
destinada a desígnios menos virtuosos. É dito que Afrodite lhe havia
concedido a beleza, que Apolo lhe havia dado talento musical, que Hermes
lhe ensinara a mentir e persuadir e que Hera lhe inculcara o ciúme. Além
de todos esses atributos, Pandora ainda possuía uma caixa misteriosa que
[ 22 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Zeus, o deus dos deuses em pessoa, lhe havia proibido de abrir. É sabido
que as proibições são feitas em geral para ser transgredidas (sobretudo se
quisermos escrever uma história) e a jovem moça não demorou a abrir
a famosa caixa (embora Hesíodo evoque se tratar de um vaso ou jarra):
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 23 ]
os seus ancestrais e que muitas vezes posam para as fotos com gravidade.
A caixa de fotos é polissêmica à sua maneira; pode fazer reaparecerem
dores ou alegrias com acentos nostálgicos.
[ 24 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
René-Jean Piazza
Os Números
[ 26 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
conhecemos, foi preciso codificar a escritura dos números. A passagem
do oral ou dos sinais (com os dedos, por exemplo) à escrita dos números
foi uma etapa excepcional na história da humanidade, assim como a
escrita das palavras e dos nomes (através das letras ou dos ideogramas).
Pode-se além disso questionar-se quanto à temporalidade dessas duas
invenções. Antes de utilizar os algarismos que conhecemos, a escrita dos
números para que estes fossem utilizados para se compreender o Plano
do Grande Arquiteto e realizar operações (outras notáveis invenções), o
homem precisou fixar aquilo que consideramos “uma base” para ter uma
repetição dos sinais e assim fixar “unidades”, “dezenas”, “centenas”… A
técnica de escrita foi então possível. Não devemos pensar que os homens
da Antiguidade não conheciam “as bases”. Eles meditaram muito para
escolher uma base que desse sentido aos números em ligação com sua
compreensão da Criação, de sua(s) divindade(s) e das descobertas feitas.
Bases diferentes
A civilizações diferentes tenderíamos a dizer: bases diferentes.
A base 4 (talvez ligada aos intervalos entre os dedos, ou os dedos de
uma mão postos em correspondência com o polegar) ao que parece foi
utilizada na Amazônia e na América do Norte. A base 60 foi utilizada
pelos babilônios. Ainda utilizamos a base 60 para a medida do tempo
(60 segundos compõem 1 minuto) ou a medida dos ângulos em graus,
por exemplo. Pitágoras e sua escola deram importância à base 10 ou
decimal. Esta foi uma das mais utilizadas e desde a mais tenra idade
somos imergidos nela, uma vez que aprendemos a contar em voz alta e
depois a escrever os números nessa base decimal.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 27 ]
na escrita dos números e suas propriedades matemáticas precipitaram
seu uso na matemática e em nossa vida corrente. Observamos, todavia,
quando aprendemos a contar, que começamos por 1, depois 2…
Utilizamos nossos sinais habituais para a escrita dos números para a
sequência deste artigo.
Os algarismos que utilizamos em “base 10” ou decimal são: 1, 2, 3, 4, 5,
6, 7, 8, 9 e 0. Esses algarismos são utilizados para escrever os números, e
em particular os números inteiros. Para os números racionais é necessário
agregar outros sinais (números escritos na forma a/b, já conhecidos na
Antiguidade pelos egípcios, por exemplo), e até mesmo letras (π, e, i) para
números especiais dos quais os matemáticos precisaram.
Se conhecemos bem a base decimal, como escrevemos um número
inteiro em outra base diferente de 10?
Em base 2 (utilizada pelos sistemas numéricos, como no computador,
por exemplo) apenas os algarismos 1 e 0 existem. Assim, o número um
se escreve 1, dois se escreve 10, três se escreve 11, quatro se escreve 100…
Em base 7, os algarismos utilizados são 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 0. O número
um se escreve 1, dois se escreve 2, três se escreve 3, quatro se escreve 4,
cinco se escreve 5, seis se escreve 6, “sete” se escreve 10, “oito” se escreve
11, “nove” se escreve 12, “dez” se escreve 13… O número 7 não possui,
portanto, um signo que lhe dê significado. Ele existe na forma escrita 10
e se pronuncia “um – zero”.
Vejamos agora os números num sentido místico. É o que nos interessa
mais particularmente enquanto martinistas.
[ 28 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Aprendemos as operações que podemos realizar com os números: a
redução teosófica, a adição teosófica, os produtos: o quadrado e o cubo.
As árvores
Louis-Claude de Saint-Martin nos indica que um número pode ser
representado na forma de uma árvore (raiz + tronco + fruto): sua raiz
é o resultado da redução da adição teosófica, seu tronco pelo número
multiplicado por ele mesmo e seu fruto pelo número multiplicado três
vezes por ele mesmo. Assim, em base 10, o número 4 tem por raiz 1
(1 + 2 + 3 + 4 = 10 = 1), por tronco 7 (4 x 4 = 16 = 7) e por fruto 1 (4
x 4 x 4 = 64 = 10 = 1). Observamos que o sinal = não possui sentido
matemático aqui.
Assim, podemos realizar para cada um dos números os quadros das
páginas seguintes (páginas 30, 32 e 34). É possível que aqueles que se
deram conta disso por si mesmos tenham se maravilhado. Mas não nos
iludamos com isso e voltemos ao conselho de prudência de nossos Mestres.
Por exemplo, não confundir o fruto (o número ao cubo) com o número.
Em base 10:
A raiz de 2 é 1 + 2 = 3; a de 3 é 1 + 2 + 3 = 6.
O tronco de 2 é 2 x 2 = 4; seu fruto é 2 x 2 x 2 = 8.
O tronco de 3 é 3 x 3 = 9; seu fruto é 3 x 3 x 3 = 27 = 9, pois 2 + 7 = 9
(é o primeiro fruto que necessita uma redução teosófica).
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 29 ]
O NÚMERO N SUA RAIZ SEU TRONCO SEU FRUTO
1+…+N (N x N) (N x N x N)
1 1 1 1
2 3 4 8
3 6 9 9 (27)
4 1 (10) 7 (16) 1 (64)
5 6 (15) 7 (25) 5 (125)
6 3 (21) 9 (36) 9 (216)
7 1 (28) 4 (49) 1 (343)
8 9 (36) 1 (64) 8 (512)
9 9 (45) 9 (81) 9 (729)
10 1 (55) 1 (100) 1 (1000)
11 3 (66) 4 (121) 8 (1331)
12 6 (78) 9 (144) 9 (1728)
13 1 (91) 7 (169) 1 (2197)
14 6 (105) 7 (196) 8 (2744)
15 3 (120) 9 (225) 9 (3375)
16 1 (136) 4 (256) 1 (4096)
17 9 (153) 1 (289) 8 (4913)
18 9 (171) 9 (324) 9 (5832)
19 1 (190) 1 (361) 1 (6859)
20 3 (210) 4 (400) 8 (8000)
21 6 (231) 9 (441) 9 (9261)
22 1 (253) 7 (484) 1 (10648)
23 6 (276) 7 (529) 8 (12167)
24 3 (300) 9 (576) 9 (13824)
25 1 (325) 4 (625) 1 (15625)
26 9 (351) 1 (676) 8 (17576)
27 9 (378) 9 (729) 9 (19683)
28 1 (406) 1 (784) 1 (21952)
[ 30 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Podemos continuar (e é necessário fazê-lo) para compreender da
melhor forma os escritos de nossos Mestres. Louis-Claude de Saint-
Martin nos aconselha até mesmo ir além da quarta década.
Observações complementares…
Os números 2, 4, 5, 7 e 8 não são raízes de nenhum número. Apenas
1, 3, 6 e 9 são raízes nessa base 10. Quanto aos frutos…
Apenas 2 e 5 não são nem raiz, nem tronco, nem fruto.
Podemos fazer o mesmo trabalho em base 7. Por que essa base?
Os algarismos utilizados são 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 0.
Atenção à correta execução dos cálculos, pois “7” escreve-se 10 e se
pronuncia “um – zero”. 8 e 9 são “um – um” e “um – dois”.
Observamos (quadro da página 32) que 2 e 5 não são raízes de nenhum
número. Os números 1, 3, 4 e 6 são raízes.
Todos os números são, ou (e) raiz, ou tronco, ou fruto.
Tudo o que podemos fazer é constatar o resultado das reduções
teosóficas dos frutos de cada um dos números.
Ao olhar os quadros das páginas 30 e 32, esclarecemos certos sentidos
atribuídos aos números por Louis-Claude de Saint-Martin. Observamos
em particular as árvores do 4 em base 7 e em base 10.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 31 ]
SUA RAIZ SEU TRONCO SEU FRUTO
O NÚMERO N
1+…+N (N x N) (N x N x N)
1 1 1 1
2 3 4 2 (11)
3 6 3 (12) 3 (36)
4 4 (13) 4 (22) 4 (121)
5 3 (21) 1 (34) 5 (236)
6 3 (30) 6 (51) 6 (426)
10 4 (40) 1 (100) 1 (1 000)
11 6 (51) 4 (121) 2 (1 331)
12 3 (63) 3 (144) 3 (2 061)
13 1 (106) 4 (202) 4 (2 626)
14 6 (123) 1 (232) 5 (3 611)
15 6 (141) 6 (264) 6 (5 016)
16 1 (160) 1 (331) 1 (6 256)
20 3 (210 4 (400) 2 (11 000)
21 6 (231) 3 (441) 3 (12 561)
22 4 (253) 4 (514) 4 (14 641)
23 3 (306) 1 (562) 5 (20 216)
24 3 (333) 6 (642) 6 (23 001)
25 4 (361) 1 (1 024) 1 (25 666)
26 6 (420) 4 (1 111) 2 (32 216)
30 3 (450) 3 (1 200) 3 (36 000)
31 1 (511) 4 (1 261) 4 (43 021)
32 6 (543) 1 (1 354) 5 (50 321)
33 6 (606) 6 (1 452) 6 (55 206)
34 1 (643) 1 (1552) 1 (63 361)
35 3 (1 011) 4 (1 654) 2 (102 146)
36 6 (1 050) 3 (2 061) 3 (111 246)
40 4 (1 120) 4 (2 200) 4 (121 000)
[ 32 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Deixamos o âmbito da matemática e podemos continuar. Para passar
da base 7 à base 10, houve a necessidade de ações divinas. O 7 se manifesta,
o 8 e o 9 surgem! 9 é por 36 a raiz de 8 (quadro da página 30).
Agora, tomemos nota da manifestação de Jesus Cristo. Deus faz uma
ação para todos os homens. Por isso os números foram modificados mais
uma vez – por seu nascimento, por sua passagem entre os homens, por
seu ensinamento, por seu sacrifício, por sua ressurreição, pela remissão
dos pecados, por suas Reparações, por sua mãe Maria… O Caminho está
aberto. Sua imitação é possível… A base 13 deve ser estudada (quadro da
página 34). Por que a escolha da base 13?
Para escrever os números, três letras são necessárias. Com efeito, 10
(um – zero) aparece em décimo-terceiro lugar depois de 1.
Os primeiros números são: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, A, B, C, depois 10,
11, 12, 13… (no quadro, as letras serão escritas A, B, C. Elas representam
efetivamente as três letras-mães Aleph, Mem e Shin – ou, na ordem do
quadro, Aleph, Shin e Mem).
2, 5, 8, ( שׁletra B) não são raiz de nenhum número.
Apenas o número 2 não é nem raiz, nem tronco, nem fruto. Como em
base 10, seu fruto (8) está na primeira “Década”. E é novamente o único
número que se encontra nessa situação. O fruto do número seguinte, 3, é
o primeiro a sair das unidades.
Podemos olhar os frutos produzidos por cada um dos números…
As três bases 7, 10 e 13 parecem nos contar uma história. Seria a base
13 uma das bases utilizadas pelo Grande Arquiteto?
Um trabalho pode resultar disso. De fato, sob o efeito da base 13,
vemos claramente as Reparações efetuadas por Jesus Cristo. Aleph é um
centro. O número 7 reassume seu lugar central na Arquitetura do Plano
da Criação.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 33 ]
SUA RAIZ SEU TRONCO SEU FRUTO
O NÚMERO N
1+…+N (N x N) (N x N x N)
1 1 1 1
2 3 4 8
3 6 9 3 (21)
4 A 4 (13) 4 (4 C)
5 3 (12) 1 (1 C) 5 (98)
6 9 (18) C (2 A) C (138)
7 4 (22) 1 (3 A) 7 (205)
8 C (2 A) 4 (4 C) 8 (305)
9 9 (36) 9 (63) 9 (441)
A ()א 7 (43) 4 (79) 4 (5 B C)
B ()שׁ 6 (51) 1 (94) B (7 B 5)
C( ) 6 (60) C (B 1) C (A 2 C)
10 7 (70) 1 (100) 1 (1 000)
11 9 (81) 4 (121) 8 (1 331)
12 C (93) 9 (144) 3 (16 C 8)
13 4 (A 6) 4 (169) 4 (1 B 31)
14 9 (B A) 1 (193) 5 (230 C)
15 3 (102) C (1 B C) C (2 868)
16 A (118) 1 (21 A) 7 (3 178)
17 6 (132) 4 (24 A) 8 (3 845)
18 3 (14 A) 9 (27 C) 9 (42 A 5)
19 1 (166) 4 (2 B 3) 4 (4 B 01)
1A C (183) 1 (319) B (56 C C)
1B C (1 A 1) C (354) C (63 A 5)
1C 1 (1 C 0) 1 (391) 1 (715 C)
20 3 (210) 4 (400) 8 (8 000)
21 6 (231) 9 (441) 3 (8 C 61)
22 A (253) 4 (484) 4 (9 C B 8)
[ 34 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Alcandro
Tempo e destino
[ 36 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
inferiores” com as “águas superiores” e deveria ser o verdadeiro objeto da
religião. Não se encontra aí também uma forma de “caminho do meio”
que coloca o homem entre o mundo das causas e o dos efeitos, e que deve
evoluir para todos rumo a um estado de “meio termo”?
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 37 ]
Permanece sendo necessário, contudo, respeitar o tempo e seus ciclos.
De onde o adágio: “O tempo destrói aqueles que zombam dele”. Mas a parte
divina em nós, que não está sujeita às contingências do mundo terrestre,
pode propiciar, momentaneamente, o sentimento de não se estar constrito.
A aplicação das faculdades anímicas particulares – que são a paciência,
a temperança, a constância e a coragem – pode assim infundir em nós
esse estado interior reconfortante para aquele que sabe como “passar o
tempo”. Todos já tivemos a experiência de, durante uma viagem, percebê-
la como se passando mais rápido no momento em que decidimos “passar
o tempo”. Certamente, isso é apenas uma impressão, mas será que só por
causa disso deixa de ter valor?
[ 38 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
e pelo mal que fazemos, conscientemente ou não. Esse “aprendizado1”
deve ainda nos permitir remontar à nossa origem, quando estávamos na
presença dos frutos da Árvore do Conhecimento do bem e do mal –
embora, naquele momento, sem conhecimento de causa. Trata-se, pois,
no que toca ao homem, de ter a experiência da liberdade, pois no tangente
à obediência cega às regras da Criação talvez Deus já tenha as pedras, as
plantas, as formigas etc.
De fato, é precisamente a faculdade criadora que nos torna imagem de
Deus, e nossa imperfeição momentânea poderia explicar o fato de ainda
não sermos – longe disso! – a Sua semelhança, como supõe, por exemplo,
o cabalista cristão Annick de Souzenelle.
O domínio da lei da causalidade – também chamada de “carma”, mas
também “destino” – é sem dúvida alguma algo de importância primordial
na via da autorrealização. Para voltarmos à cosmogonia de Martinès de
Pasqually, de quem falamos anteriormente, foi porque os primeiros
espíritos quiseram exercer sua faculdade de criação sem Deus que foram
qualificados de “prevaricadores”, ou seja, infiéis (ou “aqueles que faltam com
seus deveres”), e que foram separados do Plano Divino a fim de que sua
ação “desordenada” não comprometesse a Unidade que lá reinava então.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 39 ]
Assim, ceder à “an-arquia” não seria querer agir sem elo com os
arquétipos? Podemos qualificar de “aventureiros” os seres inconsequentes,
temerários e inconscientes. Por sua vez, o cavaleiro confia na Providência
e dá provas de uma fé inabalável em seu destino. O sábio, quando
age, sabe aquilo que vai colher, pois domina o destino, ou seja, a lei da
causalidade, ao passo que o “inocente”, que acredita seguir o acaso –
como o (demasiado) “terno” personagem de Pinóquio, que simboliza a
inexperiência, a liberdade “juvenil” e inexperiente –, despertará por sua
vez através dos sofrimentos resultantes de sua ignorância.
[ 40 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
causas inelutáveis do Criador, ao qual se opõe o nada a que toda vaidade
conduz. As más escolhas devidas à nossa imperfeição momentânea
necessitarão outras ações corretivas da nossa parte, a fim de fazer com
que correspondam à boa marcha da evolução divina e, também, a fim de
nos ensinarem. “Ensinar” é um termo que significa literalmente “mostrar
por signos”.
Para concluir…
Nossa vocação natural não é definitivamente a de sermos totalmente
animados pelo Verbo Divino por intermédio de nossa alma, que é da
mesma natureza? Foi o que levou o Cristo, símbolo vivo da alma humana,
a dizer: “Eu sou a porta, o caminho. Ninguém vai ao Pai se não passar por
mim”. “Continuar Deus lá onde Deus não pode intervir Ele próprio, diz-nos
ainda Saint-Martin, pois Ele está na Unidade, e este mundo é o da dualidade”.
É por isso que o homem deve aprender a trabalhar positivamente nesta
dualidade: “Ora et labora!”.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 41 ]
Com relação a este artigo, propomos-lhe um excerto do Timeu de
Platão (segunda seção – a Cosmologia). Segundo Platão, o demiurgo
esforçou-se para eternizar o mundo e lhe conferiu o tempo, imagem
móvel da imobilidade eterna. Foi por isso que ele fez nascer o sol, a lua e
os cinco planetas. Quando cada um dos seres que deviam cooperar para
a criação do tempo foi colocado em sua órbita apropriada, puseram-se a
girar na órbita do Outro, que é oblíqua (a eclíptica), que passa através da
órbita do Próprio (o equador) e que é dominada por ele.
[ 42 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
aquilo que se torna ao longo do tempo, pois ambos
são movimentos. No entanto, aquilo que é sempre
imutável e imóvel não é passível de se tornar mais
velho nem mais novo pelo passar do tempo nem
tornar-se de todo (nem no que é agora nem no
que será no futuro), bem como em nada daquilo
que o devir atribui às coisas que os sentidos
trazem, já que elas são modalidades do vir-a-ser
do tempo que imita a eternidade descrevendo
ciclos de acordo com o número. […] (b) Assim,
o tempo foi, pois, gerado ao mesmo tempo que
o céu, para que, engendrados simultaneamente,
também simultaneamente sejam dissolvidos, se
é que alguma vez a dissolução lhes seja devida.
Foram gerados também de acordo com o arquétipo
da natureza eterna, para que lhe fossem o mais
semelhantes possível.”
Ilustração: p. 35: O titã Atlas carregando a abóbada celeste sobre seus ombros,
escultura em mármore, Palácio Farnese, Roma.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 43 ]
Rabino Hayyim Vital
Cabala:
O processo da Criação
Sentido e existência
Na raiz da existência encontra-se a luz, Ensof, ou seja, a exigência
ou ainda o Desejo que não deixa espaço para nada além de si mesmo.
Vamos chamar essa luz simples de “projeto infinito”, “pleno”, “perfeito” ou
ainda “sentido último” da existência. “Luz” não deve ser entendido aqui
como claridade, conhecimento, consciência, amor ou lucidez, mas como
universo do Sentido absoluto que fundamenta a existência como tal e que
a precede em valor.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 45 ]
Ou ainda, que o mundo não é divino porque o lugar em que se
encontra está vazio da “luz infinita”. O texto diz precisamente que a
criatura tomou lugar no ponto central do qual a “luz infinita” se retirou.
Lá onde o Criador se encontra, o mundo não está. Lá onde está o mundo,
não se encontra o Criador.
[ 46 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
“Ele próprio se retirou, Infinito, no ponto central de si.”
1. Sabei que, antes do surgimento dos seres e de as criaturas
passarem a existir, havia uma luz transcendente muito
simples que preenchia toda a existência. Nenhum lugar
vago existia, no sentido de espaço vazio ou nada. Mas
tudo estava repleto dessa luz infinita e simples. Não havia
modalidade de princípio, nem modalidade de fim, mas
tudo era luz única, simples, homogênea a si mesma, e é
essa luz que se chama “luz infinita” (Ensof ).
2. Quando apareceu sua vontade simples de criar os universos
e de fazer surgir seres, de manifestar a perfeição de seus
atos, de seus nomes, de seus atributos, aquilo que era o
intuito da criação dos universos como explicamos […]
3. […] Foi então que ele próprio se retirou (tsimtsum),
Infinito, no ponto central de si, realmente no centro de
sua luz. Essa luz se retirou e se apartou para os lados que
rodeavam o ponto central. Por conseguinte, um espaço
livre realmente ficou vago, um nada, no ponto central.
A Árvore da Vida I, 1º palácio, Echel, Tel Aviv, 1960,
traduzido do hebraico por Armand Abécassis.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 47 ]
Muriel Roiné
[ 48 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
A ntoine Fabre d’Olivet, escritor, filólogo e ocultista francês,
nasceu em 8 de dezembro de 1767 em Ganges e morreu em 27
de março de 1825 em Paris. Filho de um rico fabricante de meias
de seda instalado em Paris, interessou-se desde muito cedo pela música
e pela literatura. Protestante da região de Cevenas, um grande ímpeto
de ter acesso ao conhecimento o perturba. Tendo chegado à capital
em 1780, naquele momento modesto empregado de um ministério,
estuda sozinho, sobretudo todos os autores da Antiguidade, servindo-se
de textos originais gregos e latinos. Constrói dessa forma uma grande
erudição. O sonho de Antoine Fabre d’Olivet é descobrir leis superiores
que permitam restituir a história da Terra e retraçar a evolução do gênero
humano. Buscador incansável, escreve diversas obras, dentre as quais Os
versos de ouro de Pitágoras (1813), História filosófica do gênero humano (1822)
e Caim (1823). Este artigo propõe fazer uma apresentação do seu estudo
sobre a língua hebraica através de sua obra A língua hebraica restituída e o
verdadeiro sentido das palavras hebraicas restabelecido e provado, escrito em
1816. A despeito de suas numerosas e incessantes pesquisas a serviço do
Conhecimento, Antoine Fabre d’Olivet, desacreditado, morre indigente,
fulminado por uma crise de apoplexia.
A obra
A língua hebraica restituída é uma obra constituída de duas partes
nas quais são integrados os seguintes parágrafos: 1 – uma dissertação
introdutória sobre a origem da Palavra, o estudo das línguas e o objetivo
do autor; 2 – uma gramática hebraica fundada em novos princípios; 3
– uma série de raízes hebraicas; 4 – um discurso preliminar; 5 – uma
tradução para o francês dos dez primeiros capítulos do Sepher, contendo
a cosmogonia de Moisés.
O Sepher, que significa “livro” em hebraico, corresponde à Bíblia
hebraica. A cosmogonia de Moisés, sempre de acordo com o autor,
equivale aos dez primeiros capítulos do Bereshit – ou seja, do Gênesis.
Tradicionalmente, rabinos e pais da Igreja atribuem a escritura do Sepher
a Esdras. Para Antoine Fabre d’Olivet essa informação é equivocada, e o
Livro teria sido escrito por Moisés. Veremos mais adiante a razão evocada
para essa afirmação.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 49 ]
Procurando encontrar a origem da Palavra remontando às línguas-
mães, Antoine Fabre d’Olivet descobriu a língua hebraica, dialeto
anterior ao dos árabes, oriunda dos conhecimentos egípcios dos quais
cada palavra é simultaneamente portadora de uma imagem simbólica e
de um significado próprio da língua oral. Como apoio, ele trabalha sobre
o texto da Bíblia Poliglota de Paris, esta última sendo anterior à versão da
Septuaginta (versão grega) e à versão de Esdras. Ele conserva a pontuação
caldeia, remove os signos massoréticos e as notas musicais (acentos que
servem para a salmodia nas sinagogas). O sentido do texto não depende
da pontuação, nem de pontos-vogais (pontos colocados abaixo, acima
ou no interior das consoantes e que servem para vocalizar as letras. Por
exemplo, o holam é um ponto acima da letra e se vocaliza “ô”, mas no
meio de um Vav se torna um shuruk e se vocaliza “u”). Antoine Fabre
d’Olivet insiste bastante na particularidade de seu procedimento, que é o
de um literato, e não o de um teólogo ou religioso.
[ 50 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
transmitir oralmente o conteúdo de seu livro aos mais próximos e fiéis
iniciados – herança perpetuada por intermédio da Cabala, palavra que
significa “aquilo que é recebido, que vem doutra parte, que passa de uma
mão a outra”. O Sepher foi conservado durante muitos séculos, perdido e
então reencontrado. O povo judeu – mais exatamente as duas tribos de
Judá, chamados judeus, ligados a Jerusalém – carregou consigo o Livro
no decurso das três deportações para a Babilônia, sucessivamente em 597,
587 e 582 a.C., embora tenha progressivamente perdido o uso da língua
hebraica, aclimatando-se à cultura dominante, e por conseguinte o sentido
profundo do texto mosaico. Nas sinagogas, o texto foi parafraseado sem
que se conhecesse exatamente o conteúdo espiritual do Sepher. Tendo
perdido a inteligência de sua língua-mãe, os judeus falavam o aramaico,
língua oriunda do assírio e do fenício.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 51 ]
Essa versão grega, chamada Septuaginta, foi na sequência traduzida por
São Jerônimo para o latim (a Vulgata). É interessante observar que os
Pais da Igreja se deram conta de certas contradições na coerência do
texto grego. Santo Agostinho reconhecia que o sentido literal dos três
primeiros capítulos da cosmogonia mosaica era difícil de se entender sem
ferir a fé cristã. São Jerônimo procurou obter o texto original, totalmente
desconhecido, junto aos rabinos da escola de Tiberíades. Ele percebeu que
os próprios judeus tinham perdido o verdadeiro sentido do Sepher, bem
como sua gramática. A Vulgata foi acolhida favoravelmente pelo Concílio
de Trento e defendida pela Inquisição. Tendo em vista o que dissemos,
como restituir a inteligência viva da língua hebraica e reencontrar o
sentido verdadeiro da cosmogonia de Moisés?
As raízes
Tendo sido perdida a língua, também o foi sua gramática. A que
conhecemos hoje e sobre a qual trabalhamos é oriunda das línguas
aparentadas ao hebraico, tais como o fenício, o caldeu e o árabe. Trata-
se de certa forma de uma gramática emprestada, na falta da posse da
autêntica. Se nossas traduções são justas, isso diz respeito a um ponto
de vista literal – no melhor dos casos, simbólico. Mas será que restituem
o espírito da língua corrente no tempo de Moisés? Podemos duvidar
disso. Assim sendo, o texto cosmogônico conserva bem guardado seu
significado profundo. Para abrir uma porta, é preciso girar uma chave que
apenas um buscador, por força da constância, pode encontrar e acionar.
Antoine Fabre d’Olivet propõe o uso das raízes das palavras construídas
com os signos hebraicos. Esses signos são as letras portadoras cada
qual de um ou mais significados. A alquimia produzida pelo encontro
de duas ou três letras formará uma raiz-cepa detentora de um sentido
ao redor da qual gravitarão, por adjunção, outras letras. Os significados
assim se tornarão múltiplos e mais refinados. Esse método singular –
e respeitoso da especificidade da língua hebraica – permite entrar em
esferas de compreensão muito mais elevadas, próximas do espírito da
língua. Antoine Fabre d’Olivet distingue três níveis de leitura do texto
cosmogônico: o primeiro nível é o dito literal, o segundo é o metafórico
[ 52 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
ou filosófico e o terceiro é o hieroglífico. Erguer o véu deste último degrau,
com respeito e humildade, redunda em introduzir-se – ao menos por
um breve instante – no mistério divino. Moisés era um grande iniciado
oriundo das Escolas de Mistérios egípcias. Sem dúvida utilizou para o seu
próprio povo os métodos de construção narrativa e simbólica aprendidos
junto a seus mestres, adaptando-os ao hebraico. Se o nível hieroglífico
resiste é porque tem a vocação de só se dirigir aos iniciados testados e
provados dignos de ser admitidos na câmara nupcial. Foi por isso que os
tradutores gregos, ignorantes ou iniciados desobedientes, traduziram as
altas expressões cosmogônicas em um nível muito mais material, fazendo
com isso que o texto caísse, dando origem a equívocos de interpretação e
até mesmo a incoerências narrativas.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 53 ]
próprio e determinante. O ( בBeth) é um determinante que podemos
traduzir como “dentro”, o ( תTav) é uma desinência: “no princípio”.
Compreendemos então perfeitamente que todo o Gênesis está incluído
nessa única palavra – a de uma força inata e divina em movimento de
ser, a Causa primária da qual emanam os diferentes elementos e o tempo
da Criação, que se seguirão. O famoso “no começo” desnatura o sentido,
comprimindo-o – Antoine Fabre d’Olivet diria “tornando-o material” – e
evidenciando um início “histórico” da Criação, “no começo” dos tempos.
Ora, com “no princípio” nos encontramos além de qualquer tempo e de
qualquer espaço. Porém, vamos um pouco mais longe: o בnão quer dizer
apenas “dentro” (in principio, em latim), mas também “em”, “em princípio”.
O que nos dá: “em princípio, Deus criou o céu e a terra”. Tudo está, dessa
forma, contido no pensamento divino. Poderíamos traduzir assim: “Em
poder de ser, mas não ainda manifestado, Deus criou o céu e a terra”.
A tradução consumada de Antoine Fabre d’Olivet será a seguinte: “No
princípio, Elohim, Ele-os-Deuses, o Ser dos seres, havia criado em princípio
aquilo que constitui a existência dos Céus e da Terra”.
Descrédito e apologia
Antoine Fabre d’Olivet foi considerado por muitos de seus
contemporâneos como um ser fantasista dotado de grande imaginação,
suas pesquisas não sendo mais do que um ajuntado de fabulações. Todavia,
um pequeno número de letrados e iniciados reconhece nele um erudito
que renovou, com seu trabalho inveterado e sua audácia, a pesquisa
linguística. Além disso, Papus (Gérard Encausse, 1865-1916), no nº 145
das Publicações de Ísis – revista francesa do ramo teosófico –, defende
vigorosamente o trabalho desse pesquisador, censurando seus detratores
de não terem lido sua obra. Vejamos o que ele disse: “Quantas reputações
literárias são construídas sobre a opinião de pessoas que não conhecem uma
linha sequer daquilo que falam! Um autor passa diversos anos de sua vida a
elaborar uma obra conscienciosa, e o primeiro que chega pode, sem sequer ler
quatro páginas, lançar uma alcunha qualquer, no mais das vezes repetida pela
multidão”. E então ele nos convida a abrir o livro.
[ 54 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Excerto do fac-símile do manuscrito de Fabre d’Olivet
intitulado Teodoxia universal, iniciado em 1º de fevereiro de
1823; Dorbon-Ainé, Paris.
Bibliografia do artigo:
ANTOINE FABRE D’OLIVET: La langue hébraïque restituée et le
véritable sens des mots hébreux rétabli et prouvé [A língua hebraica restituída
e o verdadeiro sentido das palavras hebraicas restabelecido e provado], (Ed.
1815), Hachette Livre, BnF.
PHILIPPE REYMOND: Dictionnaire d’hébreu et d’araméen bibliques
[Dicionário de hebraico e aramaico bíblicos], Cerf, 1999.
PAPUS, FABRE D’OLIVET E SAINT-YVES D’ALVEYDRE nas
Publications de l’Isis, G. Carré, Libraire-Éditeur, nº 145, Paris, 1888.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 55 ]
Édith Denninger
Balzac « esotérico »
[ 56 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Em seis ocasiões Balzac anuncia uma citação textual de Saint-Martin.
Ora, todas as vezes a citação é falsa. Seria porque o romancista optou
por adaptar a expressão de Saint-Martin ao seu gosto? Seria porque suas
notas haviam sido mal formuladas? Seria porque os excertos de Saint-
Martin haviam sido transcritos para si por um copista pouco disciplinado?
Deixemos que os especialistas tenham o cuidado de determinar isso.
Porém, parece-nos útil assinalar que Balzac tratou como citações os textos
de Saint-Martin que ele apresenta, do mesmo modo que as passagens do
mesmo autor das quais se apoderou sub-repticiamente.
A cada ocasião, Balzac aprecia grandemente o Filósofo Desconhecido
e sua obra; os martinistas são, para ele, sempre pessoas de bem. Em Louis
Lambert e a filosofia de Balzac, Henri Evans diz, a esse respeito: “Mais
do que a qualquer outro, devemos a Saint-Martin as enseadas de caridade e
doçura que balizam o deserto de homens que é a sociedade vista por Balzac”.
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 57 ]
SAINT-MARTIN
BALZAC
O homem de desejo
Visão celeste de Seraphita
Capítulo 46
[ 58 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Entra, decide-te, não fiques no umbral
És como uma criança ainda de luto
Teus olhos ainda estão cerrados pela íntima dor
Abre teus olhos para que a alegria te anime.
[ 60 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023