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O PANTÁCULO

Publicação interna destinada aos Membros Ativos da Tradicional Ordem Martinista


Nº 31 – 2023
TRADICIONAL ORDEM MARTINISTA
GRANDE HEPTADA
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Sumário

O Sepher Yetzirah ou o Livro do Desejo Divino


Daniel Benlolo.........................................................................................................4
O Sepher Yetirah
Versão « Gra »........................................................................................................15
Histórias de caixas e suas metamorfoses
Josselyne Chourry..................................................................................................18
Os números
René-Jean Piazza...................................................................................................25
Tempo e destino
Alcandro................................................................................................................35
Cabala: o processo da Criação
Rabino Hayyim Vital.............................................................................................44
A língua hebraica restituída
Muriel Roiné.........................................................................................................48
Balzac « esotérico »
Édith Denninger....................................................................................................56
A Catedral azul
J. P. E., do Atrium Hod..........................................................................................59
« Templo essênio nº 3 »
Documento dos arquivos........................................................................................60

Capa: Adão Kadmon, o « homem primordial », segundo Louria, século 17, a partir de
uma ilustração extraída de Kabbala Denudata.

Salvo menção especial, os artigos publicados nesta revista não representam o pensamento
oficial da TOM, mas unicamente o de seus autores. Os manuscritos não inseridos não
são devolvidos.
Editorial
Amados Irmãos e Irmãs da Tradicional Ordem Martinista

Saudações diante das Luminárias da Tradicional Ordem Martinista!

Esta edição do Pantáculo de 2023 está especialmente composta de


artigos que refletem a pesquisa e a reflexão de irmãos e irmãs que são
devotados caminhantes da Senda Martinista.

Estão comtempladas matérias interessantes sobre a Sepher Yetzirah,


sobre os Números, O Tempo e destino, o Timeu de Platão em sua relação
com o tempo, entre outros belos escritos.

Penso que cada tema deve ser estudado por vez para que seja possível
assimilar o conteúdo de cada reflexão.

A riqueza dos ensinamentos da TOM é percebida quando entendemos


a proposta de buscarmos a reintegração à Divindade através de um
processo que nos conscientiza da nossa origem comum. A ciência do
Adão Kadmon, dos Mundos Celeste e Supraceleste e toda a visão
ampliada pela concepção da Criação com o auxílio da Árvore da Vida e
as emanações representadas pelas Sephiroth, acrescidos do conhecimento
da existência do nosso corpo glorioso herdado da fonte de onde viemos,
dão ao Martinismo sua dimensão esotérica e nos ajudam a encontrar a
nossa própria missão na vida.

Há uma assertiva de Martinès de Pasqually a um de seus discípulos


que diz: “Vedes todo tipo de gente a caminhar pelas ruas. Pois bem! Essas
pessoas não sabem sequer por que caminham. Vós, porém, sabereis”.

[ 2 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Quem caminha pelas ruas inconsciente de sua origem divina? Os
homens da torrente. Por sua vez, os Homens de Desejo têm uma perspectiva
diferente da vida, eles anseiam escalar a montanha da Iluminação. De que
valeria chegar ao topo senão para ser útil a Deus e servi-Lo?

O nosso Imperator Emérito, Irmão Ralph Maxwell Lewis resume de


forma inspiradora a questão: “a espiritualidade não é outra coisa senão
a expressão de uma conduta que revela a natureza espiritual do Ser
Humano”.

Essa conduta é que distingue o Velho Homem do Novo Homem.


Parece um velho qualquer mas estamos falando do Velho Homem.

Já estamos planejando a XXVII Convenção Nacional Rosacruz para


2024 com o tema “O Cavaleiro Rosacruz”. Vamos visualizar estarmos
juntos neste evento especial!

Que a Eterna Luz da Sabedoria Divina nos ilumine sempre!

Sincera e Fraternalmente
AMORC-GLP

Hélio de Moraes e Marques


GRANDE MESTRE

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [3]


Daniel Benlolo

O SEPHER YETZIRAH
ou
O LIVRO DO DESEJO DIVINO

“Ele criou Seu mundo por três livros: ‫( בספר‬Be-Sefer,


o escrito), ‫( וספר‬Ve-Sefar, e o número), ‫( וספור‬Ve-
[Sipour,
4 ] e o comentário).” O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
O Sepher Yetzirah (Livro da Formação) é uma das obras mais
conhecidas e mais comentadas da mística judia. Na forma de
um curto tratado, descreve a arquitetura aparente e oculta do
Universo e sua organização hierárquica numa espécie de “corrente do
Ser”. Tal como chegou até nós, a obra é certamente a justaposição de
diversos textos, ou ao menos dois: o mais antigo trata das sephirot de forma
poética, e o mais recente trata das letras sob diferentes aspectos: suas
permutações e sua partição em “três mães, sete duplas e doze simples”.
Persiste no texto um traço da forma poética com a qual as sephirot eram
apresentadas, com a repetição, na forma de anáfora, do sintagma “Dez
sephirot ‫( בלימה‬Belimah, sem quididade)”.

Recorrendo a imagens poéticas, o texto permitia ao leitor ter uma


ideia do movimento e da energia das sephirot. O exemplo da chama unida
à brasa (capítulo I, 6) é característico desse ponto de vista: a brasa é a
raiz ou motor; a chama é o movimento. As sephirot são, portanto, Luz e
Fogo. O Sepher Yetzirah não lhes dá nome, mas as numera, pois pretende
explicar seu grau de ação, cada qual estando inserida nas demais. Ele se
interessa por seu movimento relativamente a um centro – um coração
que é preciso procurar e que só se pode encontrar ingressando-se nesse
movimento. Ele não confere nenhum ensinamento sobre as sephirot,
mas propicia meios de reflexão sobre os seus movimentos enquanto
substâncias do próprio Eterno, imateriais e incriadas como Ele enquanto
Unidade – emanações e pensamentos de Deus.

Essas imagens do Sepher Yetzirah são conformes à ideia original da


palavra poesia, em grego ποίησις (poíēsis), do verbo ποιεĩν (poiein), que
significa “fazer, produzir, transformar da matéria” e que deriva do fenício
‫( פאה‬Phoèh, a palavra, a eloquência, a inspiração oratória) e de ‫( יש‬Yesh, um
ser superior, um ser princípio, Deus no figurado) ou de ‫( אש‬Esh, o fogo).
A obra é frequentemente descrita ao mesmo tempo como um livro de
fogo e um livro selado semelhante às descrições do livro de Ezequiel. Uma
de suas visões é retomada no versículo I, 8, que descreve o movimento
das sephirot de tal forma que poderia ser comparado ao do raio globular.
Aquilo que é fogo e movimento, porém, também é relação e, portanto,

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [5]


desejo. Ora, o princípio de base do Sepher Yetzirah é que o Desejo Divino
está na origem da Criação. É inicialmente um desejo oculto na forma de
Vontade potencial na primeira sephira ‫( כתר‬Kether, a Coroa), e depois um
Desejo manifestado que se realiza entre as duas sephirot seguintes, ‫הכמח‬
(Hokhmah, a Sabedoria) e ‫( בינה‬Binah, a compreensão pela distinção), a
qual o concretizará em Projeto divino segundo três modos nomeados a
partir da raiz ‫( ספר‬SPR, livro):

Por trinta e dois Caminhos maravilhosos da Sabedoria


gravou Yah: Deus dos exércitos, Deus de Israel, Deus vivo,
Deus todo-poderoso, alto e exaltado, que habita a eternidade
e cujo Nome é santo. Ele criou Seu mundo por três livros:
‫( בספר‬Be-Sefer, o escrito), ‫( וספר‬Ve-Sefar, e o número), ‫וספור‬
(Ve-Sipour, e o comentário).

Como outras línguas, o hebraico dispõe de diversas palavras para


designar uma via de comunicação. Em hebraico, uma via larga, bem
traçada e conhecida por todos é chamada de ‫( דרך‬Derekh, uma estrada).
Uma via menos larga e menos conhecida é chamada de ‫( נתיב‬Netiv, um
caminho). O mesmo, mais estreito, mais curto e escondido de todos é
chamado de ‫( שביל‬Shvil, uma trilha). No versículo citado anteriormente,
e no conjunto do Sepher Yetzirah, a preferência favoreceu a palavra ‫נתיבות‬
(Netivoth, os caminhos), feminino plural de ‫( נתיב‬Netiv, caminho).
Citando Jeremias 6, 16: “Posicionai-vos nas estradas e contemplai; perguntai
aos caminhos dos tempos antigos onde fica o caminho da felicidade; e o segui,
para nele encontrar algum descanso para vossas almas!”, os comentaristas do
Sepher Yetzirah quiseram sublinhar que uma estrada traçada e balizada
por outros pode ser tomada por todos, ao passo que um caminho não é
necessariamente aberto a todos: ele é reservado aos iniciados. Ademais,
o termo ‫( פליאות‬Peliot, misterioso), que o qualifica, caracteriza de fato
um caminho oculto ao nosso conhecimento e cujo acesso exige um
pedido. Ao tomar esse caminho, ele pode levar a um novo e maravilhoso
conhecimento (Peliot, maravilhoso), uma vez que o anagrama de ‫נתיב‬
(Netiv) é ‫( תבין‬Tebin, compreensão, conhecimento), contanto que seja
feito o voto sincero de se atingir esse objetivo.

[ 6 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Os caminhos do desejo
Sendo o caminho pouco conhecido, é necessária a força do desejo
para encontrá-lo. É esse desejo que está oculto na palavra Netiv. Sua
raiz ‫( תב‬TAB)1 é composta pela contração da letra ‫( ת‬Tav, símbolo de
simpatia e de reciprocidade) e de ‫( אוּב‬AOUB), um desejo vago, ainda
não determinado, agindo no interior. Juntos, eles descrevem todo tipo
de reunião por simpatia, e portanto um desejo mútuo. A letra ‫( נ‬Nun) que
precede é, nessa posição, o signo da ação passiva e voltada para si. Mas é
a letra ‫( י‬Yod) em seu seio que fará da raiz ‫( נתב‬NTAB) o lugar do desejo,
pois ‫( אי‬AY) enuncia a mesma ideia de desejo que ‫( אוּ‬AOU), mas menos
vaga e mais determinada. Já não é mais uma paixão sem objeto que cai
na incerteza; é o próprio objeto desse sentimento – o centro ao qual
tende a vontade, o local em que ela se fixa: ‫( נתב‬NTAB) se torna então
‫( נתיב‬NTYB). Além disso, 1 (‫ )א‬e 10 (‫ )י‬são de fato os mesmos números,
o primeiro contendo todas as potencialidades expressas pelo segundo
na forma de 10 sephirot e de seu desejo de ser através do movimento
presente no centro do Ser que é o “Deus e a vida essencial, o móbile e o
movimento de todos os seres”.

É a Ele que Louis-Claude de Saint-Martin dirigia a seguinte prece:


“Semeia Teus desejos na alma do homem, nesse campo que é Teu domínio e
que ninguém pode contestar, pois foste Tu quem lhe deste o ser e a existência.
Semeia nele Teus desejos, a fim de que as forças do Teu amor o arranquem
completamente dos abismos que o retêm e que desejariam engoli-lo para sempre
em suas entranhas”. Esse movimento figurado pelos 32 Caminhos remete
a um centro – um coração cujo nome ‫( לב‬LB) tem valor 32, e portanto ele
próprio também em movimento. É nesse coração, enquanto consciência
interior, que está gravada a Lei Universal: “Colocarei minha Lei no interior

1 A raiz ‫( תב‬TB) seria proveniente, de acordo com certos etimologistas, do


som produzido por um passante ao caminhar: “Tap-tap”. Isso teria produzido
então a ideia de “pisar” ou “pisotear”, relativamente a um caminho de pedestre,
pois ‫( נתיב‬Netiv) jamais designa um caminho transitável por veículos. Entre
os samaritanos, as ideias de deslocamento e desejo se encontram no nome do
Messias, ainda hoje aguardado por eles: ele é chamado ‫( תהב‬Taheb, “aquele
que deve vir”).

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [7]


deles e a escreverei em seu coração; e serei seu Deus, e eles serão meu povo
( Jeremias 31, 33)”. Foi isso que os primeiros comentaristas do Sepher
Yetzirah compreenderam fazendo a comparação entre os 32 Caminhos
e as trinta e duas vezes em que o Nome Divino ‫( אלהים‬Elohim, as Leis
Universais) é mencionado no primeiro capítulo do livro do Gênesis para
afirmar a presença dessas Leis no coração da Criação.

Ao contrário do que descrevem muitas obras, os 32 Caminhos não


se limitam unicamente à representação de 10 sephirot e 22 letras. Cada
sephira compreende cada uma das outras acompanhada de seu grupo
de 22 letras, todas as sephirot refletindo-se infinitamente entre si. Elas
formam, portanto, 32 x 10 = 320 Caminhos ou desejos, denominação que o
Sepher Yetzirah dá às 22 letras designadas como “22 desejos (‫חפצים‬, Hafatsim)
em um corpo unido (cap. II, 6)”. A palavra ‫( חפצים‬Hafatsim, desejos) foi
geralmente traduzida como objetos, pois possui também esse significado.
Daí a tendência a objetivar esses 22 desejos como meios no processo da
Criação. Um fragmento do Midrash Tanhuma-Yelamdenu diz: “Quando
Ele criou o mundo, se é possível dizer, a Torá iluminou diante Dele […]. O
Santo, bendito seja Ele, diz: Eis que solicito operários! A Torá Lhe diz: Ponho
à Tua disposição 22 operários – são as 22 letras que compõem a Torá”2.

Caminhos e portas
Desses 320 desejos ou corações brilham a Luz e a Vida que são expressões
do Desejo Divino do “Ser sempre luminoso devido à irradiação de sua energia,
causada por seus ininterruptos esforços para existir”. O Sepher Yetzirah quer

2 E. Urbach, Le Livre Hébreu d’Énoch [O livro hebraico de Enoque]. Qobets


al-Yad 6, 1966, p. 20 (em hebraico). Diversos midrashim (comentários)
fazem referência ao fato que Deus consultava a Torá para criar o mundo,
pois ela é anterior a Ele. Sobre esse tema, ver o belíssimo conto filmado de
Arthur Joffé “Que la Lumière soit!” (Que haja Luz!), que passou totalmente
despercebido quando de seu lançamento nas salas de cinema, no dia da final
da Copa do Mundo de 1998: Deus, não estando mais satisfeito com aquilo
que se tornou Sua Criação, escreve um novo cenário e vem para a terra sob
diferentes aspectos para encontrar aquele ou aquela que poderá realizá-lo,
declarando a cada novo encontro: “Eu tenho um script!”.

[ 8 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
fazer com que ingressemos nesse movimento que está na origem da
complexidade das formas e de sua organização – não analisando cada
elemento da Criação, mas meditando sobre eles. Ora, mui frequentemente
certos comentaristas efetuaram quadros de correspondências entre todos
esses elementos sem levar em consideração o contexto que lhes dava sentido,
misturando assim diferentes planos. Ainda que todos esses esquemas e
quadros apresentem categoricamente um interesse mnemotécnico, o fato
de querer simplificar exageradamente noções complexas, em vez de tentar
explicá-las, acabou sobretudo por complicá-las. E foram sem dúvida o
tema dos 32 Caminhos da Sabedoria e o das 50 Portas da Inteligência que
sofreram as maiores distorções resultantes desse modo de proceder.

Se o primeiro tema é o coração do Sepher Yetzirah, o segundo resulta


de deduções de comentaristas. A obra não atribui nenhum nome a cada
um dos Caminhos; eles eram contudo conhecidos pelos antigos cabalistas
desde o século X. No tocante às 50 Portas da Inteligência, é nos Tiqqounim
do Sepher Ha-Zohar, datadas do final do século XIII, que figuram suas
denominações mais antigas. Religadas à sephira ‫( בינה‬Binah), seria
mais justo chamá-las de Portas da compreensão ou Portas da distinção,
comparativamente à sephira ‫( חכמה‬Hokhmah, a Sabedoria), que é do
âmbito da intuição pura. Abordando esses dois temas, em sua coerência
interna com a noção de desejo tal como ela está oculta na palavra ‫נתיב‬
(Netiv), o conjunto do texto revela princípios místicos associados não
apenas à Criação, mas também a todo processo iniciático autêntico. Isso
foi demonstrado no Sepher Yetzirah pela noção dos 320 desejos evocados
anteriormente aplicados à Árvore das Sephirot. No presente contexto, essa
representação das sephirot na forma de árvore – a mais comum, embora
fonte de confusão – será retida, ainda que imobilize o princípio dinâmico
que as rege, ao passo que os antigos cabalistas as representavam com
esquemas circulares, mais representativos do seu movimento.

No nível das três sephirot superiores – Kether, Hokhmah e Binah, 3 x


32 desejos totalizam 96, que é o valor em gematria da raiz ‫( צו‬Tsav), que
encontramos na palavra ‫( מצוות‬Mitsvot, mandamentos). Estamos, portanto,
no plano que define as Leis da Criação e lhes dá uma direção manifestando

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [9]


o objetivo do Desejo Divino em toda a sua força. Nesse plano, porém,
é a relação entre Hokhmah e Binah que forma as ‫( נתיבות‬Netivoth), os
32 Caminhos da Sabedoria, ao passo que a relação entre Kether-Hokhmah
e Kether-Binah forma as Trilhas ocultas ou ‫( שביל‬Shvil), cujo anagrama
‫( יש לב‬YeSh LeB) pode ser lido como Existe um coração, e portanto um
centro que é preciso penetrar. No plano das sete sephirot inferiores –
Hesed, Geburah, Tipheret, Netsah, Hod, Yesod e Malkuth –, 7 x 32 desejos
totalizam 224, que é o valor em gematria da palavra ‫( דרך‬Derekh, uma
estrada). Se as Trilhas e os Caminhos que fazem parte do plano superior
representam o Desejo de Deus por Sua Criação, então as estradas do plano
inferior são aquelas do desejo do homem por Deus – desejo que necessita
um esforço constante e renovado, de onde a recomendação: “Mantende-
vos na estrada”. Ademais, o anagrama da palavra ‫( דרך‬Derekh, estrada) é
‫( כרד‬Khered), que pode ser lido ‫כ־רד‬, conforme ou segundo (‫ )כ‬aquilo que
foi dominado ou domado (‫)רד‬. É segundo aquilo que foi dominado nessas
estradas que será avaliada a formação do homem interior, em si mesmo e
por si mesmo.

Se por um lado as Trilhas e os Caminhos se referem àquilo que está


oculto ou é misterioso e de difícil acesso, por outro isso não se aplica
às Portas, que se abrem para o homem e lhe são compreensíveis, pois
facultam a entrada para a coisa interior à qual ele tem acesso. Ao
passo que o tema das 50 Portas não é mencionado em nenhuma das
versões conhecidas do Sepher Yetzirah, seus comentaristas muito cedo
estabeleceram uma relação entre o acesso ao conhecimento e Binah
a partir de uma das funções que lhe são atribuídas na obra; como ela
recebe os 32 Caminhos da Sabedoria, esses aspectos lhe dão o nome de
‫( לב‬LeB = 32, o coração) segundo a palavra dos mestres: “‫לב מבין‬, LeB
MeBin, o coração compreende (Talmude da Babilônia [Berakhot 61ª,
29])”. E assim como os comentaristas encontraram um elo entre as
32 menções do nome Elohim no livro do Gênesis e os 32 Caminhos,
eles também o encontraram entre as 50 menções da Saída do Egito no
livro do Êxodo e as 50 Portas, fazendo destas o modelo de todas as
libertações.

[ 10 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
A Saída do Egito dos hebreus é também a ilustração do esforço constante
que exige a formação do homem interior para conseguir a liberdade espiritual
pela purificação. É importante especificar aqui que a tradução de ‫שער‬
(Sha’ar) como Porta não é a mais sensata, pois o batente de uma porta é
chamado de ‫( דלת‬Dalet), ao passo que Sha’ar designa o enquadramento ou
o Pórtico e se refere, portanto, a uma passagem que remete a uma medida
– outro significado de Sha’ar, tanto no sentido físico (conta, cálculo, peso)
quanto no intelectual (julgamento, discernimento, estimativa) ou no
emocional (apreciação, sentimento, desejo). Medida, com esses mesmos
significados, também é a tradução do hebraico ‫( מדה‬Middah), no plural
‫( מדות‬Middot), que designa as 7 sephirot inferiores no Sepher Yetzirah.

Compreende-se melhor então que os 50 Pórticos descritos pelos antigos


cabalistas são na realidade medidas de avaliação das virtudes ou qualidades
a serem adquiridas na formação do homem interior. ‫( מדה‬Middah) tem,
ademais, valor 49 (= 40 + 4 + 5) – o número de virtudes a se adquirir – e o
plural ‫( מדות‬Middot) tem valor 450, ou seja, 10 x 45, ou dez vezes o valor
do nome ‫( אדם‬Adão), o Homem realizado que integrou em si as 10 sephirot.
Essas virtudes devem ser adquiridas por aqueles que desejam deixar o
mundo profano e enveredar pelo caminho da reintegração espiritual dos
32 Caminhos da Sabedoria: “Quem quer que assim aja, traz a libertação para
o mundo”, enuncia a esse respeito um antigo texto que descreve as 50
medidas a se desenvolver para se chegar ao pé do monte da revelação. É
esse percurso que representa a liturgia chamada ‫( ספירת העמר‬Sefirat ha-
Omer, conta do Omer)3, que acontece entre Pessah (a Saída do Egito) e

3 ‫( עמר‬Omer) designa o feixe oferecido ao Templo no dia seguinte à Pessah e


na véspera de Shavouot, ou seja, no começo e no fim do ciclo de 49 dias. Seu
valor (70 + 40 + 200) = 310 é o mesmo que ‫( יש‬Yesh, “existe”, que designa
também “um dom, um presente”). Mas é também uma medida de capacidade
de cereais que vale 1/10º de Ephah (‫)איפה‬, palavra cujo valor (1 + 10 + 80 +
5) = 96 remete aos 3 x 32 = 96 desejos que formam o conjunto das três sephirot
superiores reunidas (postas em feixe = Omer) em Binah, que assume então o
nome de Omer. Essa palavra designa em caldeu a lã cuja cor remete à pureza,
e portanto ao trabalho a ser cumprido no ciclo de 49 dias, que deve permitir
o fim da escravidão (= Omer) e o acesso à liberdade espiritual.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 11 ]
Shavouot (a Revelação do Monte Sinai). Durante esse período de sete
semanas, cada um dos 49 dias deve ser consagrado a uma purificação da
consciência pelo estudo, a meditação e a prece, a fim de se adquirirem
as 7 x 7 = 49 virtudes que dão acesso à 50ª – Binah, que dá por sua vez
acesso aos 32 Caminhos da Sabedoria Divina. É ao cabo desse percurso
que é alcançada a pureza ‫( זכה‬Zakah, valor 32), que permite revestir-se do
manto branco ‫( לבן‬LeBeN = branco = 82 = 50 + 32) dos Santos.
O rei Davi ou o Homem de Desejo
Mas antes que as Almas possam unir em seu coração os 320 desejos,
há muitas provações a serem superadas ou transmutadas ao longo de toda
a subida da árvore a partir de Malkuth, seu degrau mais inferior, que a
Cabala atribui ao rei Davi. Ele é filho do personagem bíblico chamado
‫( ישי‬Yshai, Jessé), cujo nome tem valor 320 = (10 + 300 + 10), mas que
também pode ser lido ‫( יש־י‬YeSh – Iod, há Iod ou há 10 [sephirot]),
indicando com isso que é em Davi que se encontram expressos o começo
e o meio de se elevar até o cimo da árvore, após haver integrado em si as
10 sephirot. O estudo da vida do rei Davi, tal como ela é poeticamente
transcrita nos Salmos, equivale a uma meditação sobre o sentido da Queda
e do combate espiritual a ser empreendido pelas Almas que desejam
reencontrar seu estado angélico. Davi sucumbiu, é certo, mas também
foi um exemplo de arrependimento, e é precisamente isso que deixam
transparecer os Salmos. Eles são ligados ao caminho do arrependimento
que ele traçou para todos aqueles que viriam depois dele, deixando-lhes
as chaves de sua salvação no Salmo 51:
Tem piedade de mim, ó Deus, na medida da Tua bondade;
segundo a grandeza de Tua clemência, apaga minhas falhas.
Lava-me completamente de minha iniquidade, purifica-
me do meu pecado. Pois eu reconheço minhas falhas e meu
pecado está sempre diante dos meus olhos. Desvia Tua face
dos meus pecados, apaga todas as minhas iniquidades. Ó
Deus, cria em mim um coração puro e faz renascer em mim
um espírito reto. Não me rejeites diante da Tua face, não me
retires Tua santa inspiração. Devolve-me a alegria do Teu
socorro e sustenta-me com Teu espírito magnânimo.

[ 12 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
A história de Davi revela a imagem de um homem imperfeito, ao
passo que seus Salmos manifestam um poeta perfeito, pois soube, através
deles, fazer de sua alma um Templo. É sem dúvida o que o primeiro livro
das Crônicas (28, 19) quer exprimir ao nos dizer que Davi entregou a seu
filho Salomão um plano detalhado do Templo, redigido por ele próprio
sob a inspiração divina, dizendo-lhe: “Meu filho, era meu desejo edificar
uma casa em Nome do Eterno, meu Deus”. Deus, contudo, recusando-lhe
a construção de um Templo material, lhe consola: “Sabe que a Justiça e a
Retidão que praticas me aprazem mais que o próprio Templo”. E é começando
a praticar esses valores que Davi transmuta o fogo do desejo recebido de seu
pai ‫ ( ישי‬Jessé) na voz de fogo ‫יש‬-‫( פאה‬Phoeh – Yesh) da poesia, a qual é
“um Templo, e não poderia ter outro nome senão Poesia”, como escreveu o
grande poeta Jean Cocteau finalizando cada um dos seus Sete diálogos com
o Senhor incógnito que existe em nós. Pela construção em Davi do Templo
da alma, que são as 10 sephirot, por sua transfiguração em um homem
novo portador de um conhecimento inédito sobre a vida, ele se torna
o primogênito de uma linhagem espiritual que, segundo o anúncio do
profeta Isaías, produziria o Messias:

Ora, um ramo germinará do tronco de Jessé (‫ ;)ישי‬um rebento


brotará de suas raízes. E sobre ele repousará o Espírito do Senhor:
Espírito de Sabedoria e de Inteligência, Espírito de Conselho e
de Força, Espírito de Ciência e de Temor a Deus. (Is 11, 1-2).

É nos passos do Messias, nas maravilhosas Trilhas do Desejo Divino, que


os Homens de desejo procuraram a Sabedoria anunciada em uma mensagem
de esperança, resumida da seguinte forma pelo Filósofo Desconhecido
(O Homem de Desejo – 121):

Homem, o sentimento de tuas necessidades espirituais te traz


a esperança e o desejo, que é uma fé incipiente. O sentimento
do espírito e da verdadeira natureza te traz a fé, que é uma
esperança completa. O sentimento do Deus homem e
reparador te traz o amor e a caridade, que são a ação viva e
visível da esperança e da fé.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 13 ]
E em Ecce Homo:

Vós, homens de paz, homens de desejo, não vos desencorajeis.


Ainda há, entre os ministros de nosso Deus, homens que
seguem eles próprios os rastros dos verdadeiros profetas, a
santa caridade de nosso mestre, e as luzes de seus discípulos.
Agarrai-vos a esses homens eleitos e suficientemente felizes
por ter respondido fielmente à sua eleição; eles vos conduzirão
pelas trilhas humildades do Ecce Homo até à consecução de
vossa regeneração, que é vosso destino primitivo. […] Se não
há um homem especial em quem todas essas importantes
verdades possam se realizar, convencei-vos então, homens
de paz, homens de desejo, que todo homem nasceu para ser
testemunho dos grandes feitos que a Sabedoria Eterna não
deixou de operar em favor desse mesmo homem tão caro
que é sua imagem. Convencei-vos de que cada um de nós
deveria oferecer um testemunho ativo dos dons e favores
que essa Sabedoria verte continuamente sobre a terra, e
que deveríamos depor ativa e fisicamente em favor de todas
as alianças que ela fez conosco desde a origem das coisas.
Não percamos um único momento no cumprimento dessa
importante tarefa.

Ilustração da página 4: Movimento dinâmico das sephirot em um comentário


do Sepher Yetzirah (século XIII), Bibliothèque National de France. Manuscrito
hebraico 763.

[ 14 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
O SEPHER YETZIRAH
Versão «GRA»
Capítulo I
A versão que segue, comumente chamada Gra-Ari, é o resultado
de uma longa elaboração. Por volta de 1550, Moisés Cordovero, que
dirigia a famosa Escola de Safed, fez uma seleção de seções do Sepher
Yetzirah em uma dezena de manuscritos cujo resultado encontramos
em seu comentário sobre a referida obra e no Pardes Rimonim (21:16).
Mais tarde, o texto foi refinado por Isaque Luria, mais conhecido pelo
nome “Ari”. Essa versão, chamada igualmente Ari, é a única que está
verdadeiramente em concordância com o Zohar. No decorrer do tempo,
entretanto, a versão Ari sofreu alterações, por sua vez. Foi no século XVIII
que Vilna Gaon, conhecido pelo nome “Gra”, redigiu sua forma final
(contendo cerca de 1800 palavras), que ficou conhecida como Gra-Ari e
que propomos logo adiante. A maioria dos cabalistas utiliza essa versão e
reconhece a sua autenticidade…

1-1 Em trinta e duas trilhas maravilhosas da sabedoria está gravado:


Yah Yhwh dos exércitos, Deus de Israel, Elohim vivo, Rei do mundo El
Shaddai. Misericordioso e clemente, elevado e exaltado, habitante
da eternidade. Seu nome é alto e ele é santo. Ele criou seu mundo
por três sefarim: o livro, o número e o relato.
1-2 Dez sephirot-abismo (Sephirot-belimah) e vinte e duas letras de
fundação: três mães, sete duplas e doze simples.
1-3 Dez sephirot-abismo, segundo o número dos dez dedos: cinco
correspondem a cinco. A aliança da unidade centralizada pela
palavra da língua e pela circuncisão da pele.
1-4 Dez sephirot-abismo, dez e não nove, dez e não onze. Sê inteligente
com sabedoria e sê sábio com inteligência. Examina-as, escrutina-
as, eleva a coisa até seu criador e substitui o formador em seu
assento.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 15 ]
1-5 Dez sephirot-abismo, sua medida é dez, pois elas são infinitas:
profundeza de princípio, profundeza de extremidade, profundeza
de bem, profundeza do mal, profundeza do alto, profundeza do
baixo, profundeza do leste, profundeza do oeste, profundeza do
norte, profundeza do sul. O mestre único, Deus rei fiel, as domina
todas desde sua santa morada, para a eternidade das eternidades e
para sempre.
1-6 Dez sephirot-abismo. Sua aparência é como a visão de um relâmpago
cuja extremidade não tem fim. Sua palavra vai e vem nelas. Por sua
ordem elas se deslocam como um furacão e se prosternam diante de
seu Trono.
1-7 Dez sephirot-abismo. Seu fim reside no seu começo e seu começo
no seu fim, assim como a conflagração consumindo o tição. Pois o
mestre é único e sem segundo. Diante do um, por que contas?
1-8 Dez sephirot-abismo. Impede tua boca de falar delas e teu coração
de refletir sobre elas. Se teu coração se descontrolar, volta ao lugar
em que está dito “Os Hayoth iam e vinham” (Ez 1, 14). Foi nessa
palavra que foi concluída a aliança.
1-9 Dez sephirot-abismo: Uma: “Sopro do Elohim vivo”, abençoado
e glorificado seu nome que vive nos mundos. A voz, o sopro e a
palavra são o Espírito Santo.
1-10 Duas: “Sopro oriundo do Sopro”. Com ela, Ele gravou e esculpiu vinte
e duas letras de fundação: três mães, sete duplas e doze simples,
animadas por um único sopro.
1-11 Três: “Água oriunda do Sopro”. Ele gravou e esculpiu vinte e duas
letras a partir de um Tohu Bohu de lama e argila. Ele as gravou
como uma espécie de chão. Ele as esculpiu como uma espécie de
parede. Ele as desenvolveu como uma espécie de teto. Ele verteu
neve e elas se tornaram pó, como foi dito: “Pois à neve ele disse: cai
sobre a terra!” ( Jb 37, 6).
1-12 Quatro: “Fogo oriundo da água”. Com ela, Ele gravou e esculpiu o
Trono de Glória, os Serafim, os Ofanim, os Hayoth haQodesh e os
anjos de serviço. Sobre esses três, Ele fundou sua casa, como foi dito:
“Ele faz dos sopros seus mensageiros, das chamas do fogo seus servos”.

[ 16 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
1-13 Ele escolheu três letras dentre as simples, no mistério das três mães:
Alef, Mem, Shin. Ele as fixou em seu Grande Nome e, com elas,
selou seis extremidades: Cinco: Ele selou o topo e virou para o alto.
Ele o fixou com YHV. Seis: Ele selou o fundo e virou para baixo.
Ele o fixou com HYV. Sete: Ele selou o leste e voltou para adiante.
Ele o fixou com VYH. Oito: Ele selou o oeste e voltou para trás. Ele
o fixou com VHY. Nove: Ele selou o sul e voltou para a direita. Ele
o fixou com YVH. Dez: Ele selou o norte e voltou para a esquerda.
Ele o fixou com HVY.
1-14 Eis as dez sephirot-abismo: Sopro de Elohim vivo, Sopro oriundo
do Sopro, Água oriunda do Sopro, Fogo oriundo da Água, Alto,
Baixo, Oeste, Norte, Leste, Sul.

Ilustração: Simone Pieralli

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 17 ]
Josselyne Chourry

Histórias de caixas e suas


metamorfoses

“Pandora, segurando nas mãos um grande vaso,


ergueu a tampa e os males terríveis que ele encerrava
se
[ 18 ]
espalharam ao longe. ApenasO PANTÁCULO
a Esperança
– Nº 31 – 2023
permaneceu.”
A priori, o que existe de mais banal do que uma caixa? Esse pequeno
objeto feito de papelão, ferro ou plástico no qual guardamos
diversas coisas. As caixas também podem ser “de marcha” nos
carros; ou ainda “pretas”, tão úteis nas investigações de acidentes aéreos.
Há também as “caixas de correspondência” e as “caixas de música”. Esse
objeto muitas vezes anódino tem a sua própria expressão: “botar alguém
na caixa”, significando que se está a provocar uma pessoa ou a zombar
dela1. Etimologicamente, essa pequena palavra vem do latim popular
buxida, que seria uma alteração do latim clássico pyxida, que por sua vez
viria do grego antigo puxís (“pequena caixa de madeira”, que originou
a forma latina buxus). Contudo, como “uma árvore pode esconder a
floresta”, uma caixa pode se dissimular lá onde menos se espera, ou nos
propor ainda outras definições ou funções. As caixas e suas metamorfoses
nos convidam a uma viagem surpreendente.
1 – A Arca de Noé
Quem não conhece o périplo de Noé e de sua família num barco
contendo todos os animais terrestres em pares a fim de salvar as espécies
animais do dilúvio? A palavra “arca” não é um barco; lembremo-nos
que arca em latim possui o sentido de “cofre, armário”, avizinhando-se
também da palavra grega kibotos. A Arca de Noé, por assim dizer, é um
cofre flutuante – mas não um cofre qualquer!
O hebraico bíblico emprega a palavra TeVaH (arca, caixa), que possui
um significado duplo, pois também quer dizer “palavra”. Chamamos de
“polissemia” essa capacidade de leitura com diversos significados para
uma mesma palavra. Aqui, portanto, entrar na arca também significa
entrar numa palavra. De fato, o Gênesis, no capítulo 4, versículo 14, diz:
“Constrói uma arca de madeira de cipreste; tu a dividirás em compartimentos
e a betumarás por dentro e por fora com piche”2. Essa construção, ao mesmo

1 Em português, poderíamos ainda mencionar “fora da caixa”, para coisas fora


de um determinado padrão considerado normal. (N. do T.)
2 A Arca de Noé é feita em madeira de GoPHeR (trata-se de um hápax – ou
seja, de uma ocorrência única – na Torá), palavra que não podemos determinar
exatamente e que costuma ser traduzida por “cipreste” ou “madeira resinosa”
nas traduções disponíveis da Bíblia. (N. do T.)

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 19 ]
tempo física e linguística, nos oferece diversas interpretações possíveis.
Deixando-nos levar pela polissemia, conservamos o espírito aberto e
vigilante. “Colocar alguém na caixa” também significa aqui um modo
de entrar numa palavra-caixa que deriva como um barco. Noé oferece
um continente cheio de conteúdos. O Dilúvio (MaBouL em hebraico)
é um momento crucial no qual basta uma palavra encaixada ou “caixa
falante” para salvar a humanidade. Por trás da ação se encontra o Verbo.
Uma vez que as letras do hebraico também são números, a construção
da Arca assume uma dimensão matemática, pois ocorre que essa caixa
possui medidas precisas: 300 côvados de comprimento, 50 côvados de
largura e 30 côvados de altura. A partir desses três números obtemos a
correspondência com as seguintes letras:

LaMeD 30 / SHiN 300 / NouN 50, formando a palavra


LaSHoN(e), significando ”linguagem, língua”.

Eis-nos de volta à TeVaH, essa palavra-barco veículo de linguagem


que, apesar de todos os dilúvios possíveis, nos “bota na caixa” a fim de
nos interrogarmos ao mesmo tempo sobre os seus significantes e as
suas implicações, que modelam nossa visão do mundo. Se basta uma
caixa falante para nos questionarmos, então vislumbramos perspectivas
construtivas no âmago da matéria.

2 – O berço de Moisés
Mais uma vez, no texto bíblico do Êxodo, eis uma caixa-berço que
não deixa de evocar a Arca de Noé em certos aspectos. O capítulo 2 do
Êxodo relata a astúcia de uma mãe para salvar seu filho recém-nascido,
pois o faraó havia declarado: “Que todo recém-nascido varão seja lançado
ao rio…”.

“Ela lhe preparou um berço de junco, o qual revestiu de betume e piche. Nele
colocou a criança e o depôs entre os caniços na margem do rio”, e depois disso a
filha do faraó, querendo se banhar, viu o berço. Uma serva foi buscar uma
nutriz para amamentá-lo, e esta foi sua própria mãe.

[ 20 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Mas a primeira semelhança com a caixa-barco de Noé é que a palavra
TeVaH3 também é empregada aqui. O berço de Moisés também é uma
palavra escondida incrustrada secretamente em um berço – uma palavra
flutuante lançada às margens de um rio. A água é onipresente nos dois
relatos, e sabemos que, adulto feito, Moisés não precisará de nenhum
barco para atravessar o mar dos juncos, que se abrirá para dar passagem
aos hebreus. Seria esse barco chamado TeVaH um sésamo premonitório do
destino da criança?
Todas as caixas bíblicas parecem ser dotadas de uma palavra potencial.
A outra semelhança entre um berço e uma arca é a sua forma oval, que os
escultores utilizaram na Idade Média com as mandorlas que rodeiam o
Cristo. TeVaH também é o nome dado nas sinagogas ao altar ou estrado
no qual é feita a leitura da THoRaH.
O berço é simbólico na viagem da vida nascente, formando com sua
forma envolvente e protetora uma extensão do ventre da mãe. No final
da viagem, outra caixa fechará o percurso terrestre: um ataúde. A cada
extremo de encarnação existe uma caixa à nossa espera. Evoco a canção
“Petites boîtes” [Caixinhas], do cantautor franco-neozelandês Graeme
Allwright (1926-2020).

Depois eles ajustam todas as suas contas


E vão para os cemitérios
Em caixinhas ordinárias
Que são todas, todas, todas iguais4

3 – Os filactérios ou TePHiLiM
Os TePHiLiM são formados por duas pequenas caixas cúbicas de
couro preto atadas com tiras. Uma dessas caixas é presa ao braço e a outra

3 Gematria: (polissemia) arca, caixa, palavra ‫ = תּ ֵבׇ ה‬TeVaH = 407 = 11 = 2, mes-


mo número que Be = “dentro”.
4 No original francês: Puis ils règlent toutes leurs affaires / Et s’en vont dans des
cimetières / Dans des boîtes faites en ticky-tacky / Qui sont toutes, toutes, toutes
pareilles. (N. do T.)

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 21 ]
na testa. Fora o simbolismo próprio desse rito do Judaísmo, aquilo que
nos interessa é o fato de essas caixas possuírem compartimentos que
encerram pequenos pergaminhos com excertos de textos bíblicos. A
relação com palavras e com a linguagem escrita é evidente.

Ainda que o alcance simbólico seja mais elaborado espiritualmente,


elas evocam todavia os antigos amuletos, espécie de talismãs cujo intuito
seria proteger do mau-olhado aqueles que os portam. A caixa contém um
segredo ou código, uma prece ou uma relíquia.

Contudo, nenhuma idolatria em matéria de TePHiLiM e nenhuma


relação com a caixa que contém as relíquias de um santo, como na
cristandade. Os TePHiLiM são estojos que guardam uma mensagem
em seu interior. Uma passagem do Deuteronômio promulga esse
encaixotamento textual como uma função de transmissão memorial
através do objeto: “Ata-as como símbolo no teu braço, e porta-as na tua fronte,
entre teus olhos”, diz o versículo 8 do capítulo 6. A tradução francesa faz
surgir um interessante jogo de palavras entre lie-les [ata-as] e lis-les [leia-
as], evidenciando o elo entre a leitura e o gesto. Essa dupla capacidade
simbólica de duas caixas-estojo não deixa de evocar a polissemia da
palavra TeVaH. Mais uma vez, uma história de caixa metamorfoseada
que nos convida a uma leitura desprendida dos textos sagrados a fim de
não petrificá-los.

4 – A caixa de Pandora
Deixemos agora a Bíblia e vamos mergulhar na mitologia grega para
falar de outra caixa. É Hesíodo quem apresenta o texto mais antigo a
evocar esse mito, numa série de poemas agrupados sob o título de “Os
trabalhos e os dias”. Originalmente, Pandora é uma mulher feita de argila
por Hefesto e animada pela deusa Atena. Se por um lado isso nos
faz pensar em Adão, também feito de terra, por outro Pandora estava
destinada a desígnios menos virtuosos. É dito que Afrodite lhe havia
concedido a beleza, que Apolo lhe havia dado talento musical, que Hermes
lhe ensinara a mentir e persuadir e que Hera lhe inculcara o ciúme. Além
de todos esses atributos, Pandora ainda possuía uma caixa misteriosa que

[ 22 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Zeus, o deus dos deuses em pessoa, lhe havia proibido de abrir. É sabido
que as proibições são feitas em geral para ser transgredidas (sobretudo se
quisermos escrever uma história) e a jovem moça não demorou a abrir
a famosa caixa (embora Hesíodo evoque se tratar de um vaso ou jarra):

Antes, as tribos dos homens viviam na terra isentas dos tristes


sofrimentos, do penoso trabalho e dessas cruéis doenças que
acarretam a velhice, pois os homens que sofrem envelhecem
prontamente. Pandora, segurando nas mãos um grande vaso,
ergueu a tampa e os males terríveis que ele encerrava se
espalharam ao longe. Apenas a Esperança permaneceu. Tendo
ficado presa nas bordas do vaso, ela não voou para longe, e
Pandora recolocou a tampa por ordem de Zeus, que porta a
égide e reúne as nuvens. Desde aquele dia, mil calamidades
envolvem os homens por todos os lados: a terra e o mar estão
repletos de males, as doenças se rejubilam atormentando os
mortais noite e dia e silenciosamente lhes trazendo todas as
dores, pois o prudente Zeus as privou de voz. Nada pode,
pois, escapar à vontade de Zeus.
(Hesíodo, Os trabalhos e os dias, v. 90-99)

Vaso, jarro ou caixa, trata-se de um recipiente que não encerra palavras,


mas males. O texto de Hesíodo continua de maneira um tanto quanto
misógina, mas apenas a esperança (e seria essa a melhor tradução?),
diz-nos ele, permanece no fundo do recipiente. Como interpretar essa
história? Talvez para além da curiosidade haja os campos inexplorados do
desconhecido, que dá à vida sua graça, pois se tudo nos fosse perceptível
a esperança oculta no mais profundo de nós não poderia atenuar nossos
males. Existem caixas que é melhor não abrir, pois às vezes encerram
nossos segredos íntimos ou nossas esperanças mais insanas.

5 – As caixas de fotos ou caixas-testemunho


Se algum dia você encontrar uma caixa de fotos enterrada no fundo
de uma cave ou de um sótão, ou simplesmente numa gaveta esquecida,
lembranças familiares surgirão junto com esses seres do passado que foram

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 23 ]
os seus ancestrais e que muitas vezes posam para as fotos com gravidade.
A caixa de fotos é polissêmica à sua maneira; pode fazer reaparecerem
dores ou alegrias com acentos nostálgicos.

As caixas de fotos são também às vezes mini caixas de Pandora, pois


nos atiram ao rosto um passado perdido para sempre, retratos de seres
queridos e falecidos, sorrisos congelados para a eternidade e crianças que
cresceram rápido demais. Mas as caixas de fotos também são “caixas-
testemunho” – arcas e berços de esperança que rememoram as etapas do
nosso percurso espiritual. As caixas de fotos são ainda TeVaH – estojos
de palavras nas bocas dos nossos próximos, que voltam para dançar mais
uma vez, para além do tempo. As caixas de fotos ronronam e acalentam
cada batida do nosso coração a cada memória.

Podemos apostar que daqui por diante olharemos nossas caixas


cotidianas de outra forma – e (com as devidas desculpas a Victor Hugo
pelo plágio) “o olho estava na (caixa) e olhava Caim” (excerto do final do
poema “A consciência”).

Ilustração: p. 18:, Pandora, pátio quadrado do Louvre, escultura de Pierre


Loison (1816-1886).

[ 24 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
René-Jean Piazza

Os Números

“Os números são apenas a tradução das verdades e


das leis cujo texto se encontra em Deus, no homem e
na natureza.”
O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 25 ]
L ouis-Claude de Saint-Martin atribuiu muito interesse aos
números e chegou até mesmo a dedicar-lhes uma obra específica.
Seus textos nos inspiraram e suscitaram muitas reflexões
e meditações. Ele nos aconselha, entretanto, a muita prudência ao
abordarmos uma pesquisa sobre eles. De fato, eles podem nos esclarecer,
mas também podem nos extraviar se não formos atentos. Portanto,
este artigo não fará nenhuma análise, deixando ao leitor, desta forma, a
liberdade de empreender suas próprias pesquisas.

Aprendemos que as 22 letras hebraicas são portadoras de sentido e


que a cada uma é atribuído um ou mais números. É até mesmo possível
que antes de serem utilizadas para escrever palavras essas letras tivessem
sido criadas para escrever os números. Sua classificação em letras simples,
duplas ou mães e sua utilização na escritura de palavras, nomes e frases
também têm seu significado e também suscitam, portanto, pesquisas
e meditações. Os números desempenham um papel ao nos ajudar a
compreender o Plano do Grande Arquiteto. Para Louis-Claude de Saint-
Martin, “os números são apenas a tradução das verdades e das leis cujo texto se
encontra em Deus, no homem e na natureza”.

O humano precisou criar os números para contar possessões, é o que


nos é dito. Essa visão é por demais limitadora. Eles foram criados ou
revelados para compreender o Plano do Grande Arquiteto. Ademais,
encontramos os números expressos diretamente desde o princípio do
Gênesis com os “6 dias” da Criação, o 7º sendo apresentado de modo
distinto.

Antes de abordar os números de maneira mais mística, vamos olhar


como nós os utilizamos em nossa vida.

Utilização dos números


Uma parte da matemática estuda os números e suas propriedades.
Os conhecimentos dos matemáticos são, ademais, importantíssimos. A
história da matemática nos mostra as evoluções vividas pelo homem.
Porém, antes mesmo de a matemática existir na forma em que a

[ 26 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
conhecemos, foi preciso codificar a escritura dos números. A passagem
do oral ou dos sinais (com os dedos, por exemplo) à escrita dos números
foi uma etapa excepcional na história da humanidade, assim como a
escrita das palavras e dos nomes (através das letras ou dos ideogramas).
Pode-se além disso questionar-se quanto à temporalidade dessas duas
invenções. Antes de utilizar os algarismos que conhecemos, a escrita dos
números para que estes fossem utilizados para se compreender o Plano
do Grande Arquiteto e realizar operações (outras notáveis invenções), o
homem precisou fixar aquilo que consideramos “uma base” para ter uma
repetição dos sinais e assim fixar “unidades”, “dezenas”, “centenas”… A
técnica de escrita foi então possível. Não devemos pensar que os homens
da Antiguidade não conheciam “as bases”. Eles meditaram muito para
escolher uma base que desse sentido aos números em ligação com sua
compreensão da Criação, de sua(s) divindade(s) e das descobertas feitas.

Mas como escolher uma “base” com o objetivo de traduzir as verdades


e as leis cujo texto está em Deus, no homem e na natureza?

Bases diferentes
A civilizações diferentes tenderíamos a dizer: bases diferentes.
A base 4 (talvez ligada aos intervalos entre os dedos, ou os dedos de
uma mão postos em correspondência com o polegar) ao que parece foi
utilizada na Amazônia e na América do Norte. A base 60 foi utilizada
pelos babilônios. Ainda utilizamos a base 60 para a medida do tempo
(60 segundos compõem 1 minuto) ou a medida dos ângulos em graus,
por exemplo. Pitágoras e sua escola deram importância à base 10 ou
decimal. Esta foi uma das mais utilizadas e desde a mais tenra idade
somos imergidos nela, uma vez que aprendemos a contar em voz alta e
depois a escrever os números nessa base decimal.

O algarismo 0 (zero) foi por muito tempo um problema considerável.


O conceito que lhe dá sentido foi difícil de conceber em nossa história
no Ocidente. 0 vem antes de 1! 0 absorve todos os números em uma
multiplicação (0 multiplicado por qualquer número resulta em 0) e ele não
modifica nada nos números em uma soma (0 + N = N). Sua integração

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 27 ]
na escrita dos números e suas propriedades matemáticas precipitaram
seu uso na matemática e em nossa vida corrente. Observamos, todavia,
quando aprendemos a contar, que começamos por 1, depois 2…
Utilizamos nossos sinais habituais para a escrita dos números para a
sequência deste artigo.
Os algarismos que utilizamos em “base 10” ou decimal são: 1, 2, 3, 4, 5,
6, 7, 8, 9 e 0. Esses algarismos são utilizados para escrever os números, e
em particular os números inteiros. Para os números racionais é necessário
agregar outros sinais (números escritos na forma a/b, já conhecidos na
Antiguidade pelos egípcios, por exemplo), e até mesmo letras (π, e, i) para
números especiais dos quais os matemáticos precisaram.
Se conhecemos bem a base decimal, como escrevemos um número
inteiro em outra base diferente de 10?
Em base 2 (utilizada pelos sistemas numéricos, como no computador,
por exemplo) apenas os algarismos 1 e 0 existem. Assim, o número um
se escreve 1, dois se escreve 10, três se escreve 11, quatro se escreve 100…
Em base 7, os algarismos utilizados são 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 0. O número
um se escreve 1, dois se escreve 2, três se escreve 3, quatro se escreve 4,
cinco se escreve 5, seis se escreve 6, “sete” se escreve 10, “oito” se escreve
11, “nove” se escreve 12, “dez” se escreve 13… O número 7 não possui,
portanto, um signo que lhe dê significado. Ele existe na forma escrita 10
e se pronuncia “um – zero”.
Vejamos agora os números num sentido místico. É o que nos interessa
mais particularmente enquanto martinistas.

Abordagem mística dos números


Nossos mestres nos ensinaram a considerar os números de forma
diferente da matemática. Como vimos, a Década se impôs. Ela foi utilizada
por muitos buscadores e por nossos Mestres para decodificar o Plano do
Grande Arquiteto. Louis-Claude de Saint-Martin escreveu muito sobre
esse assunto complexo. Encontramos esse número 10 nas dez sephirot, nas
dez páginas do Livro do Homem, nas três letras-mães com as sete duplas…

[ 28 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Aprendemos as operações que podemos realizar com os números: a
redução teosófica, a adição teosófica, os produtos: o quadrado e o cubo.

Um número pode se reduzir por redução teosófica a fim de retornar


aos 9 primeiros números. Por exemplo, 51 se reduz a 5 + 1 = 6.

A adição teosófica de um número corresponde à adição de todos os


números que o precedem mais ele próprio. Por exemplo, a adição teosófica
de 4 dá 1 + 2 + 3 + 4 = 10. E depois, por redução teosófica, 1 + 0 = 1.

As árvores
Louis-Claude de Saint-Martin nos indica que um número pode ser
representado na forma de uma árvore (raiz + tronco + fruto): sua raiz
é o resultado da redução da adição teosófica, seu tronco pelo número
multiplicado por ele mesmo e seu fruto pelo número multiplicado três
vezes por ele mesmo. Assim, em base 10, o número 4 tem por raiz 1
(1 + 2 + 3 + 4 = 10 = 1), por tronco 7 (4 x 4 = 16 = 7) e por fruto 1 (4
x 4 x 4 = 64 = 10 = 1). Observamos que o sinal = não possui sentido
matemático aqui.
Assim, podemos realizar para cada um dos números os quadros das
páginas seguintes (páginas 30, 32 e 34). É possível que aqueles que se
deram conta disso por si mesmos tenham se maravilhado. Mas não nos
iludamos com isso e voltemos ao conselho de prudência de nossos Mestres.
Por exemplo, não confundir o fruto (o número ao cubo) com o número.

Eis então os quadros das árvores.


Os números entre parênteses são os resultados das operações antes da
redução teosófica. A título de exemplo (leitura no quadro da página 30):

Em base 10:
A raiz de 2 é 1 + 2 = 3; a de 3 é 1 + 2 + 3 = 6.
O tronco de 2 é 2 x 2 = 4; seu fruto é 2 x 2 x 2 = 8.
O tronco de 3 é 3 x 3 = 9; seu fruto é 3 x 3 x 3 = 27 = 9, pois 2 + 7 = 9
(é o primeiro fruto que necessita uma redução teosófica).

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 29 ]
O NÚMERO N SUA RAIZ SEU TRONCO SEU FRUTO
1+…+N (N x N) (N x N x N)
1 1 1 1
2 3 4 8
3 6 9 9 (27)
4 1 (10) 7 (16) 1 (64)
5 6 (15) 7 (25) 5 (125)
6 3 (21) 9 (36) 9 (216)
7 1 (28) 4 (49) 1 (343)
8 9 (36) 1 (64) 8 (512)
9 9 (45) 9 (81) 9 (729)
10 1 (55) 1 (100) 1 (1000)
11 3 (66) 4 (121) 8 (1331)
12 6 (78) 9 (144) 9 (1728)
13 1 (91) 7 (169) 1 (2197)
14 6 (105) 7 (196) 8 (2744)
15 3 (120) 9 (225) 9 (3375)
16 1 (136) 4 (256) 1 (4096)
17 9 (153) 1 (289) 8 (4913)
18 9 (171) 9 (324) 9 (5832)
19 1 (190) 1 (361) 1 (6859)
20 3 (210) 4 (400) 8 (8000)
21 6 (231) 9 (441) 9 (9261)
22 1 (253) 7 (484) 1 (10648)
23 6 (276) 7 (529) 8 (12167)
24 3 (300) 9 (576) 9 (13824)
25 1 (325) 4 (625) 1 (15625)
26 9 (351) 1 (676) 8 (17576)
27 9 (378) 9 (729) 9 (19683)
28 1 (406) 1 (784) 1 (21952)

[ 30 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Podemos continuar (e é necessário fazê-lo) para compreender da
melhor forma os escritos de nossos Mestres. Louis-Claude de Saint-
Martin nos aconselha até mesmo ir além da quarta década.
Observações complementares…
Os números 2, 4, 5, 7 e 8 não são raízes de nenhum número. Apenas
1, 3, 6 e 9 são raízes nessa base 10. Quanto aos frutos…
Apenas 2 e 5 não são nem raiz, nem tronco, nem fruto.
Podemos fazer o mesmo trabalho em base 7. Por que essa base?
Os algarismos utilizados são 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 0.
Atenção à correta execução dos cálculos, pois “7” escreve-se 10 e se
pronuncia “um – zero”. 8 e 9 são “um – um” e “um – dois”.
Observamos (quadro da página 32) que 2 e 5 não são raízes de nenhum
número. Os números 1, 3, 4 e 6 são raízes.
Todos os números são, ou (e) raiz, ou tronco, ou fruto.
Tudo o que podemos fazer é constatar o resultado das reduções
teosóficas dos frutos de cada um dos números.
Ao olhar os quadros das páginas 30 e 32, esclarecemos certos sentidos
atribuídos aos números por Louis-Claude de Saint-Martin. Observamos
em particular as árvores do 4 em base 7 e em base 10.

Escala dos números que formam a figura


terrestre em toda a sua forma corpórea,
tanto em latitude quanto em curva.
(Fundos Prunelle de Lière, Biblioteca
Municipal de Grenoble, Ms T 4188).

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 31 ]
SUA RAIZ SEU TRONCO SEU FRUTO
O NÚMERO N
1+…+N (N x N) (N x N x N)
1 1 1 1
2 3 4 2 (11)
3 6 3 (12) 3 (36)
4 4 (13) 4 (22) 4 (121)
5 3 (21) 1 (34) 5 (236)
6 3 (30) 6 (51) 6 (426)
10 4 (40) 1 (100) 1 (1 000)
11 6 (51) 4 (121) 2 (1 331)
12 3 (63) 3 (144) 3 (2 061)
13 1 (106) 4 (202) 4 (2 626)
14 6 (123) 1 (232) 5 (3 611)
15 6 (141) 6 (264) 6 (5 016)
16 1 (160) 1 (331) 1 (6 256)
20 3 (210 4 (400) 2 (11 000)
21 6 (231) 3 (441) 3 (12 561)
22 4 (253) 4 (514) 4 (14 641)
23 3 (306) 1 (562) 5 (20 216)
24 3 (333) 6 (642) 6 (23 001)
25 4 (361) 1 (1 024) 1 (25 666)
26 6 (420) 4 (1 111) 2 (32 216)
30 3 (450) 3 (1 200) 3 (36 000)
31 1 (511) 4 (1 261) 4 (43 021)
32 6 (543) 1 (1 354) 5 (50 321)
33 6 (606) 6 (1 452) 6 (55 206)
34 1 (643) 1 (1552) 1 (63 361)
35 3 (1 011) 4 (1 654) 2 (102 146)
36 6 (1 050) 3 (2 061) 3 (111 246)
40 4 (1 120) 4 (2 200) 4 (121 000)
[ 32 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Deixamos o âmbito da matemática e podemos continuar. Para passar
da base 7 à base 10, houve a necessidade de ações divinas. O 7 se manifesta,
o 8 e o 9 surgem! 9 é por 36 a raiz de 8 (quadro da página 30).
Agora, tomemos nota da manifestação de Jesus Cristo. Deus faz uma
ação para todos os homens. Por isso os números foram modificados mais
uma vez – por seu nascimento, por sua passagem entre os homens, por
seu ensinamento, por seu sacrifício, por sua ressurreição, pela remissão
dos pecados, por suas Reparações, por sua mãe Maria… O Caminho está
aberto. Sua imitação é possível… A base 13 deve ser estudada (quadro da
página 34). Por que a escolha da base 13?
Para escrever os números, três letras são necessárias. Com efeito, 10
(um – zero) aparece em décimo-terceiro lugar depois de 1.
Os primeiros números são: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, A, B, C, depois 10,
11, 12, 13… (no quadro, as letras serão escritas A, B, C. Elas representam
efetivamente as três letras-mães Aleph, Mem e Shin – ou, na ordem do
quadro, Aleph, Shin e Mem).
2, 5, 8, ‫( שׁ‬letra B) não são raiz de nenhum número.
Apenas o número 2 não é nem raiz, nem tronco, nem fruto. Como em
base 10, seu fruto (8) está na primeira “Década”. E é novamente o único
número que se encontra nessa situação. O fruto do número seguinte, 3, é
o primeiro a sair das unidades.
Podemos olhar os frutos produzidos por cada um dos números…
As três bases 7, 10 e 13 parecem nos contar uma história. Seria a base
13 uma das bases utilizadas pelo Grande Arquiteto?
Um trabalho pode resultar disso. De fato, sob o efeito da base 13,
vemos claramente as Reparações efetuadas por Jesus Cristo. Aleph é um
centro. O número 7 reassume seu lugar central na Arquitetura do Plano
da Criação.

Ilustração: p. 25: gravura de Dionysus Freher (1649-1728) em Works of Jacob


Behmen, the teutonic theosopher, editado por William Law (1764).

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 33 ]
SUA RAIZ SEU TRONCO SEU FRUTO
O NÚMERO N
1+…+N (N x N) (N x N x N)
1 1 1 1
2 3 4 8
3 6 9 3 (21)
4 A 4 (13) 4 (4 C)
5 3 (12) 1 (1 C) 5 (98)
6 9 (18) C (2 A) C (138)
7 4 (22) 1 (3 A) 7 (205)
8 C (2 A) 4 (4 C) 8 (305)
9 9 (36) 9 (63) 9 (441)
A (‫)א‬ 7 (43) 4 (79) 4 (5 B C)
B (‫)שׁ‬ 6 (51) 1 (94) B (7 B 5)
C( ) 6 (60) C (B 1) C (A 2 C)
10 7 (70) 1 (100) 1 (1 000)
11 9 (81) 4 (121) 8 (1 331)
12 C (93) 9 (144) 3 (16 C 8)
13 4 (A 6) 4 (169) 4 (1 B 31)
14 9 (B A) 1 (193) 5 (230 C)
15 3 (102) C (1 B C) C (2 868)
16 A (118) 1 (21 A) 7 (3 178)
17 6 (132) 4 (24 A) 8 (3 845)
18 3 (14 A) 9 (27 C) 9 (42 A 5)
19 1 (166) 4 (2 B 3) 4 (4 B 01)
1A C (183) 1 (319) B (56 C C)
1B C (1 A 1) C (354) C (63 A 5)
1C 1 (1 C 0) 1 (391) 1 (715 C)
20 3 (210) 4 (400) 8 (8 000)
21 6 (231) 9 (441) 3 (8 C 61)
22 A (253) 4 (484) 4 (9 C B 8)

[ 34 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Alcandro

Tempo e destino

“O tempo destrói aqueles que zombam dele.”


O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 35 ]
“Não deveria haver senão ambições, digamos,
relativamente nobres; e, então, a urgência de
render-se a elas, ainda que isso seja impossível.
Sobretudo se for impossível!”
( Jacques Brel)

O grande Iniciado que foi Antoine Fabre d’Olivet (1767-1825)


legou à posteridade diversas obras de grande valor, dentre as
quais um magistral comentário de uma famosa obra: Os versos
de ouro de Pitágoras. Em seu estudo desse livro atribuído a um autêntico
pitagórico, Fabre d’Olivet sugere a ideia segundo a qual, para purgar o
mundo do mal que o corrompe, Deus criou o tempo. E que, sob o efeito
da evolução cósmica – que ele prefere chamar de “perfectibilidade” –,
a Criação não pode desviar-se do objetivo que Deus lhe fixou em Seu
soberano pensamento. As leis divinas que presidem a Criação não são
elas o reflexo de Sua vontade?

Seria possível, efetivamente, imaginar que Deus possa não atingir o


objetivo que Ele próprio fixou para Si? Acrescentemos que, no plano
que Lhe é próprio – aquele em que reinam a Eternidade e o Infinito,
Seu pensamento, Sua vontade e Sua ação estando na Unidade perfeita
–, ocorre que toda ideia deve ter acesso, sob Seu impulso e a exemplo
do Fiat Lux, à existência sem postergações. Assim, quando o Cristo, que
rende tributo a seu “Pai”, pronuncia as palavras: “Levanta-te e caminha”,
a ordem é executada sumariamente.

Reconciliação do espiritual com o material


Logo, como (re)conciliar aquilo que convém chamar de “o Absoluto” com
a nossa atualidade terrestre, sujeita à imperfeição? Através de uma dialética
permanente entre nossa consciência espiritual – ou seja, nosso Mestre
interior, que é a voz de Deus em nós – e nossa consciência particular em
via de evolução. E mesmo se a primeira faz nascer neste plano, no espírito
dos mais místicos, o amargo sentimento de não ter “em parte alguma
um lugar para repousar a cabeça”, devemos conservar a esperança e tecer
infatigavelmente o elo entre esses dois mundos. Esse elo religa as “águas

[ 36 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
inferiores” com as “águas superiores” e deveria ser o verdadeiro objeto da
religião. Não se encontra aí também uma forma de “caminho do meio”
que coloca o homem entre o mundo das causas e o dos efeitos, e que deve
evoluir para todos rumo a um estado de “meio termo”?

Notemos que, na época atual, a expressão popular “em termos


absolutos” significa “de modo ideal” – um ideal puramente imaginário
e irrealizável. Outrora, porém, o Ideal não era apenas imaginário. Para
Platão, era o plano do qual o mundo manifesto se originava, este último
tendo por vocação refletir o primeiro. Tradicionalmente, é a Realidade
Divina da qual a atualidade terrestre se origina. No século XIX, Joséphin
Péladan também procurará restaurar “o culto do Ideal tendo a Tradição como
base e a Beleza como meio”.
Também sabemos que o mundo no qual o homem evolui é um mundo
de ilusões. Os elementos que o constituem são na realidade formados por
vibrações da energia Espírito – energia vibratória oriunda de Nous, ele
próprio emanado do Invisível e do Intangível. O tempo e o espaço, por
sua vez, são estados da consciência objetiva do homem e não possuem
existência de per si.
Assim sendo, na cosmogonia de Martinès de Pasqually (1727 ? – 1774),
Deus cria o universo (ou, mais exatamente, faz com que ele seja criado
por Seus espíritos) a fim de apartar os “espíritos prevaricadores” (criação
do espaço) e, na sequência, dar-lhes a possibilidade de se reintegrar num
futuro não-especificado (criação do tempo).

Apenas a vida conta…


É apenas no plano da atualidade terrestre, portanto, que as coisas
“tomam tempo” e onde devem irremediavelmente passar por uma fase de
desenvolvimento para atingir o estado de perfeição cuja ideia está inscrita
nelas, e que os alquimistas chamavam de nucleus. O desenvolvimento – o
movimento – é a Vida! E portanto também a garantia da perfectibilidade
de que fala Fabre d’Olivet. De onde a réplica das criaturas superiormente
evoluídas presentes no filme de Luc Besson “O quinto elemento”: “O tempo
não tem nenhuma importância. Apenas a vida conta!”.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 37 ]
Permanece sendo necessário, contudo, respeitar o tempo e seus ciclos.
De onde o adágio: “O tempo destrói aqueles que zombam dele”. Mas a parte
divina em nós, que não está sujeita às contingências do mundo terrestre,
pode propiciar, momentaneamente, o sentimento de não se estar constrito.
A aplicação das faculdades anímicas particulares – que são a paciência,
a temperança, a constância e a coragem – pode assim infundir em nós
esse estado interior reconfortante para aquele que sabe como “passar o
tempo”. Todos já tivemos a experiência de, durante uma viagem, percebê-
la como se passando mais rápido no momento em que decidimos “passar
o tempo”. Certamente, isso é apenas uma impressão, mas será que só por
causa disso deixa de ter valor?

Ainda que não possamos evitar as tribulações associadas à encarnação


em um corpo físico submetido às leis do mundo material, em especial a
morte, podemos mudar nossa visão. Assim, aliviaremos nosso percurso
indispensável ao adotarmos um ponto de vista mais espiritual. E considerar
que “em termos absolutos”, os desígnios de Deus já estão realizados: não
seria esta a melhor maneira de, como diz o adágio, “estar no mundo sem ser
do mundo”?

O tempo é nosso aliado


Assim, portanto, se o advento da perfeição – a “Jerusalém celeste” – é
inelutável e marcará também o fim do mal ou seu desaparecimento, a
exemplo da luz que bane naturalmente as trevas, o tempo permanece
sendo entretanto nosso maior aliado. Aplicado ao homem e à sua evolução
particular, diremos que ele é, assim como a vida, suporte indispensável ao
seu aperfeiçoamento. E se, como vimos, tudo é ilusão e tudo evolui – “a
impermanência é a única coisa permanente” (Lao Tsé) –, então podemos
considerar que este plano de existência deve nos permitir experimentar
“com risco reduzido” a aplicação do nosso livre-arbítrio, até o ponto em
que dominaremos nossa faculdade superior, que é a criatividade.

Essas condições particulares devem efetivamente permitir relativizar


nossa responsabilidade enquanto “agente das causas”: causas que são a
origem de tudo aquilo que “pomos no mundo”, começando pelo bem

[ 38 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
e pelo mal que fazemos, conscientemente ou não. Esse “aprendizado1”
deve ainda nos permitir remontar à nossa origem, quando estávamos na
presença dos frutos da Árvore do Conhecimento do bem e do mal –
embora, naquele momento, sem conhecimento de causa. Trata-se, pois,
no que toca ao homem, de ter a experiência da liberdade, pois no tangente
à obediência cega às regras da Criação talvez Deus já tenha as pedras, as
plantas, as formigas etc.
De fato, é precisamente a faculdade criadora que nos torna imagem de
Deus, e nossa imperfeição momentânea poderia explicar o fato de ainda
não sermos – longe disso! – a Sua semelhança, como supõe, por exemplo,
o cabalista cristão Annick de Souzenelle.
O domínio da lei da causalidade – também chamada de “carma”, mas
também “destino” – é sem dúvida alguma algo de importância primordial
na via da autorrealização. Para voltarmos à cosmogonia de Martinès de
Pasqually, de quem falamos anteriormente, foi porque os primeiros
espíritos quiseram exercer sua faculdade de criação sem Deus que foram
qualificados de “prevaricadores”, ou seja, infiéis (ou “aqueles que faltam com
seus deveres”), e que foram separados do Plano Divino a fim de que sua
ação “desordenada” não comprometesse a Unidade que lá reinava então.

Religar a cabeça e o coração


O homem não pode se desviar de seu Deus, pois jamais será Seu igual.
Ele também deve consultar seu coração – ou seja, sua alma – antes de agir,
em vez de consultar apenas sua cabeça, com o risco de se tornar “cabeça-
dura”. Afinal de contas, “só se vê bem com o coração”, relembra o Pequeno
Príncipe de Saint-Exupéry. O uso que fazemos de nossa liberdade deve
saber refletir o Plano Divino e sua harmonia, pois quando o homem age
de modo insensato ele pode pôr em marcha forças destruidoras. “Sede
prudentes como as serpentes e simples como as pombas”, aconselhou o Mestre
Jesus a seus apóstolos antes de enviá-los pelo mundo.

1 Em francês, o autor escreve apprenti-sage, jogo de palavras reunindo


“aprendiz” e “sábio”, e que resulta na palavra apprentissage (“aprendizagem,
instrução”). (N. do T.)

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 39 ]
Assim, ceder à “an-arquia” não seria querer agir sem elo com os
arquétipos? Podemos qualificar de “aventureiros” os seres inconsequentes,
temerários e inconscientes. Por sua vez, o cavaleiro confia na Providência
e dá provas de uma fé inabalável em seu destino. O sábio, quando
age, sabe aquilo que vai colher, pois domina o destino, ou seja, a lei da
causalidade, ao passo que o “inocente”, que acredita seguir o acaso –
como o (demasiado) “terno” personagem de Pinóquio, que simboliza a
inexperiência, a liberdade “juvenil” e inexperiente –, despertará por sua
vez através dos sofrimentos resultantes de sua ignorância.

O Novo Homem é aquele que tomou consciência de que pode se


esquivar do Destino graças ao Conhecimento adquirido. É o selo de sua
divindade reencontrada – sua alma de toda a eternidade. Caso contrário,
só o desespero é possível! Os projetos do iniciado têm fatalmente de
se realizar, pois se beneficiam, como diz a fórmula, da “aprovação do
Cósmico”. Dito de outra maneira, eles estão em conformidade com as
leis e a vontade divinas e inevitavelmente terão êxito. Basta dizer que eles
então se confundem com aquilo que convém chamar de “o destino”, o
que também redunda, de certa forma, em deixar Deus intervir em nossas
vidas.

Conformar-se às leis universais


Além disso, a criação mental possivelmente seja uma operação
tipicamente humana, pois recorre à memória, à imaginação e à vontade.
Ela permite criar no mundo numenal – ou seja, o mundo das causas
– as condições da manifestação. A verdadeira tradição profética não
seria a leitura esclarecida do desenvolvimento inelutável dos efeitos no
tempo, quando sabemos que as causas estão conformes às leis divinas?
Inversamente, podemos supor que as ações humanas que negligenciam o
conformar-se às leis da harmonia cósmica, sendo portanto desordenadas
e imperfeitas, serão submetidas às leis da impermanência deste plano
e permanecerão vãs, ou seja, ilusórias. Basta dizer que esse é o caso da
maioria delas, como é dito no Eclesiastes: “Vaidade, tudo é vaidade”.
O Mestre Jesus diz outra coisa em sua injunção fundamental: “Antes
de tudo, pensai no reino de Deus e em Sua justiça”, ou seja, no mundo das

[ 40 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
causas inelutáveis do Criador, ao qual se opõe o nada a que toda vaidade
conduz. As más escolhas devidas à nossa imperfeição momentânea
necessitarão outras ações corretivas da nossa parte, a fim de fazer com
que correspondam à boa marcha da evolução divina e, também, a fim de
nos ensinarem. “Ensinar” é um termo que significa literalmente “mostrar
por signos”.

Para concluir…
Nossa vocação natural não é definitivamente a de sermos totalmente
animados pelo Verbo Divino por intermédio de nossa alma, que é da
mesma natureza? Foi o que levou o Cristo, símbolo vivo da alma humana,
a dizer: “Eu sou a porta, o caminho. Ninguém vai ao Pai se não passar por
mim”. “Continuar Deus lá onde Deus não pode intervir Ele próprio, diz-nos
ainda Saint-Martin, pois Ele está na Unidade, e este mundo é o da dualidade”.
É por isso que o homem deve aprender a trabalhar positivamente nesta
dualidade: “Ora et labora!”.

Segundo os astrofísicos, daqui a cinco bilhões de anos nosso Sol


terá consumido todo o seu hidrogênio e começará então a inchar, até
absorver a Terra e então explodir no espaço e desaparecer. Não restará
nada além de luz, então. Daqui até lá, “Solve et coagula” parece ser o ritmo
secreto instaurado por Deus até o fim dos tempos. Aquilo que C. G.
Jung chamou de conceito de “sincronicidade” não poderia ser comparado
à Providência, da qual fala Fabre d’Olivet quase um século antes e que
designa a intervenção direta do Plano Divino na Criação? Assim como
a intuição, faculdade sempre fugidia e que jamais se fixa, nos revela por
sua natureza que sua morada jamais será aqui. Cabe antes ao homem
elevar-se gradualmente até ao plano pensado e previsto para ele desde a
eternidade.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 41 ]
Com relação a este artigo, propomos-lhe um excerto do Timeu de
Platão (segunda seção – a Cosmologia). Segundo Platão, o demiurgo
esforçou-se para eternizar o mundo e lhe conferiu o tempo, imagem
móvel da imobilidade eterna. Foi por isso que ele fez nascer o sol, a lua e
os cinco planetas. Quando cada um dos seres que deviam cooperar para
a criação do tempo foi colocado em sua órbita apropriada, puseram-se a
girar na órbita do Outro, que é oblíqua (a eclíptica), que passa através da
órbita do Próprio (o equador) e que é dominada por ele.

“Ora, quando o pai que engendrou o mundo se deu


conta de que tinha gerado uma representação dos
deuses eternos, animada e dotada de movimento,
rejubilou; por estar tão satisfeito, pensou como
torná-la ainda mais semelhante ao arquétipo (d).
Como ocorre que este é um ser eterno, tentou,
na medida do possível, tornar o mundo também
ele eterno. Mas acontecia que a natureza daquele
ser era eterna, e não era possível evidentemente
ajustá-la por completo ao ser gerado. Então,
teve a ideia de construir uma imagem móvel da
eternidade e, quando ordenou o céu, construiu,
a partir da eternidade imutável que permanece
uma unidade, uma imagem eterna que avança de
acordo com o número; é aquilo a que chamamos
« tempo ». Efetivamente, os dias, as noites, os
meses e os anos não existiam antes de o céu ter
sido gerado, pois ele preparou a geração daqueles
ao mesmo tempo que este era constituído. Todos
eles são partes do tempo, e « o que era » e « o que
será » são modalidades do vir-a-ser do tempo que
aplicamos de forma incorreta ao ser eterno, por via
da nossa ignorância. Dizemos de fato que « é », «
foi » e « será », mas « é » é a única palavra que lhe
é própria de acordo com a verdade, (a) ao passo
que « era » e « será » são adequadas para referir

[ 42 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
aquilo que se torna ao longo do tempo, pois ambos
são movimentos. No entanto, aquilo que é sempre
imutável e imóvel não é passível de se tornar mais
velho nem mais novo pelo passar do tempo nem
tornar-se de todo (nem no que é agora nem no
que será no futuro), bem como em nada daquilo
que o devir atribui às coisas que os sentidos
trazem, já que elas são modalidades do vir-a-ser
do tempo que imita a eternidade descrevendo
ciclos de acordo com o número. […] (b) Assim,
o tempo foi, pois, gerado ao mesmo tempo que
o céu, para que, engendrados simultaneamente,
também simultaneamente sejam dissolvidos, se
é que alguma vez a dissolução lhes seja devida.
Foram gerados também de acordo com o arquétipo
da natureza eterna, para que lhe fossem o mais
semelhantes possível.”

Timeu 37 (c, d, e), 38 (a, b), Platão. Œuvres complètes La Pléiade,


tradução de Léon Robin.

Ilustração: p. 35: O titã Atlas carregando a abóbada celeste sobre seus ombros,
escultura em mármore, Palácio Farnese, Roma.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 43 ]
Rabino Hayyim Vital

Cabala:
O processo da Criação

“Na raiz do ser está o Desejo, que não deixa espaço


para nada além de si mesmo.”
[ 44 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
O texto da página 47, extraído de A Árvore da Vida, do rabino
Hayyim Vital (1562-1620), livro escrito a partir do ensinamento
oral de Isaque Luria Ashkenazi (1534-1572), analisa a ideia de
criação da qual especifica as condições fundamentais. Criar quer dizer
separar, distinguir, diferenciar os dois termos em relação de tal modo que
o vazio se torna a articulação de sua justaposição. Criar, logo, é lembrar
que o intermediário é nada e descontinuidade.

Para Luria, portanto, só existia a luz antes da criação do universo. O


leitor compreende facilmente que se trata de uma linguagem simbólica.
Não se trata da luz tal qual a vemos, nem tampouco do tempo (princípio
ou fim), mas de uma fenomenologia da existência.

Sentido e existência
Na raiz da existência encontra-se a luz, Ensof, ou seja, a exigência
ou ainda o Desejo que não deixa espaço para nada além de si mesmo.
Vamos chamar essa luz simples de “projeto infinito”, “pleno”, “perfeito” ou
ainda “sentido último” da existência. “Luz” não deve ser entendido aqui
como claridade, conhecimento, consciência, amor ou lucidez, mas como
universo do Sentido absoluto que fundamenta a existência como tal e que
a precede em valor.

Falta, a este mundo de Ensof, uma perfeição: a de sua existência


concreta, real, histórica, no sentido de princípio e de fim. Sua finalidade
enquanto projeto, exigência, desejo, é sua realização sob forma de
atualização, de nominação e de atribuição. É preciso então que, num dado
ponto de si próprio, esse Sentido absoluto “se retire”, faça tsimtsum, para
deixar espaço e tempo para a existência que só se produzirá visando-o,
num movimento de infinita perfectibilidade.

Este é o esquema geral que podemos ilustrar de diversas maneiras:


por exemplo, estipulando que a existência só tem sentido se visar a “luz
do Infinito”. O tempo a caracteriza, pois ela precisa dele para progredir
infinitamente na direção dessa luz.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 45 ]
Ou ainda, que o mundo não é divino porque o lugar em que se
encontra está vazio da “luz infinita”. O texto diz precisamente que a
criatura tomou lugar no ponto central do qual a “luz infinita” se retirou.
Lá onde o Criador se encontra, o mundo não está. Lá onde está o mundo,
não se encontra o Criador.

Outra proposição: para que uma relação autêntica se produza é


preciso a mediação da Ausência no coração da Presença. A Presença
total é impossível: é preciso o projeto, ou seja, a vontade do outro. Para
isso, é preciso que ela se retire da Totalidade para deixar espaço para o
outro enquanto outro. A Ausência total também é impossível, pois é uma
ausência frequentada, habitada pelo desejo da Presença.

Assim, o processo geral da criação se estrutura da seguinte forma:


“antes” havia apenas o Criador. Para que o outro – a criatura – existisse,
era preciso que ele lhe desse espaço e se retirasse do espaço ocupado. A
extensão que eu concedo ao outro em minha relação com ele dá a medida
da intensidade do amor que lhe dedico.

Isso é válido nas dimensões do tempo, do lugar e nos âmbitos


psicológicos, moral e espiritual. Quando o outro me fala de sua emoção
ou de seu sofrimento, é preciso que eu me esforce para me retirar da
minha própria emoção ou do meu sofrimento para acolher os dele da
forma como ele lhes dá significado, com sua palavra. Se eu for incapaz
disso, eu reduzo as experiências dele às minhas, os desejos dele aos meus,
os significados dele aos meus. Não lhe deixo então nenhum espaço
para traduzir sua originalidade. Toda relação que não se articula nessa
“retirada” está fundamentada na violência e na negação da personalidade
e da liberdade do outro. Essa ideia cabalística é de uma atualidade
permanente, pois permite a abertura do espírito e a luta contra as tentações
fundamentalistas.

Ilustração: p. 44: A longa face, desenho luriânico.

[ 46 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
“Ele próprio se retirou, Infinito, no ponto central de si.”
1. Sabei que, antes do surgimento dos seres e de as criaturas
passarem a existir, havia uma luz transcendente muito
simples que preenchia toda a existência. Nenhum lugar
vago existia, no sentido de espaço vazio ou nada. Mas
tudo estava repleto dessa luz infinita e simples. Não havia
modalidade de princípio, nem modalidade de fim, mas
tudo era luz única, simples, homogênea a si mesma, e é
essa luz que se chama “luz infinita” (Ensof ).
2. Quando apareceu sua vontade simples de criar os universos
e de fazer surgir seres, de manifestar a perfeição de seus
atos, de seus nomes, de seus atributos, aquilo que era o
intuito da criação dos universos como explicamos […]
3. […] Foi então que ele próprio se retirou (tsimtsum),
Infinito, no ponto central de si, realmente no centro de
sua luz. Essa luz se retirou e se apartou para os lados que
rodeavam o ponto central. Por conseguinte, um espaço
livre realmente ficou vago, um nada, no ponto central.
A Árvore da Vida I, 1º palácio, Echel, Tel Aviv, 1960,
traduzido do hebraico por Armand Abécassis.

A árvore das sephirot


segundo Isaque Luria.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 47 ]
Muriel Roiné

A língua hebraica restituída e o


verdadeiro sentido das palavras hebraicas
restabelecido e provado por Antoine
Fabre d’Olivet

“O sonho de Antoine Fabre d’Olivet é descobrir leis


superiores que permitam restituir a história da Terra
e retraçar a evolução do gênero humano.”

[ 48 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
A ntoine Fabre d’Olivet, escritor, filólogo e ocultista francês,
nasceu em 8 de dezembro de 1767 em Ganges e morreu em 27
de março de 1825 em Paris. Filho de um rico fabricante de meias
de seda instalado em Paris, interessou-se desde muito cedo pela música
e pela literatura. Protestante da região de Cevenas, um grande ímpeto
de ter acesso ao conhecimento o perturba. Tendo chegado à capital
em 1780, naquele momento modesto empregado de um ministério,
estuda sozinho, sobretudo todos os autores da Antiguidade, servindo-se
de textos originais gregos e latinos. Constrói dessa forma uma grande
erudição. O sonho de Antoine Fabre d’Olivet é descobrir leis superiores
que permitam restituir a história da Terra e retraçar a evolução do gênero
humano. Buscador incansável, escreve diversas obras, dentre as quais Os
versos de ouro de Pitágoras (1813), História filosófica do gênero humano (1822)
e Caim (1823). Este artigo propõe fazer uma apresentação do seu estudo
sobre a língua hebraica através de sua obra A língua hebraica restituída e o
verdadeiro sentido das palavras hebraicas restabelecido e provado, escrito em
1816. A despeito de suas numerosas e incessantes pesquisas a serviço do
Conhecimento, Antoine Fabre d’Olivet, desacreditado, morre indigente,
fulminado por uma crise de apoplexia.
A obra
A língua hebraica restituída é uma obra constituída de duas partes
nas quais são integrados os seguintes parágrafos: 1 – uma dissertação
introdutória sobre a origem da Palavra, o estudo das línguas e o objetivo
do autor; 2 – uma gramática hebraica fundada em novos princípios; 3
– uma série de raízes hebraicas; 4 – um discurso preliminar; 5 – uma
tradução para o francês dos dez primeiros capítulos do Sepher, contendo
a cosmogonia de Moisés.
O Sepher, que significa “livro” em hebraico, corresponde à Bíblia
hebraica. A cosmogonia de Moisés, sempre de acordo com o autor,
equivale aos dez primeiros capítulos do Bereshit – ou seja, do Gênesis.
Tradicionalmente, rabinos e pais da Igreja atribuem a escritura do Sepher
a Esdras. Para Antoine Fabre d’Olivet essa informação é equivocada, e o
Livro teria sido escrito por Moisés. Veremos mais adiante a razão evocada
para essa afirmação.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 49 ]
Procurando encontrar a origem da Palavra remontando às línguas-
mães, Antoine Fabre d’Olivet descobriu a língua hebraica, dialeto
anterior ao dos árabes, oriunda dos conhecimentos egípcios dos quais
cada palavra é simultaneamente portadora de uma imagem simbólica e
de um significado próprio da língua oral. Como apoio, ele trabalha sobre
o texto da Bíblia Poliglota de Paris, esta última sendo anterior à versão da
Septuaginta (versão grega) e à versão de Esdras. Ele conserva a pontuação
caldeia, remove os signos massoréticos e as notas musicais (acentos que
servem para a salmodia nas sinagogas). O sentido do texto não depende
da pontuação, nem de pontos-vogais (pontos colocados abaixo, acima
ou no interior das consoantes e que servem para vocalizar as letras. Por
exemplo, o holam é um ponto acima da letra e se vocaliza “ô”, mas no
meio de um Vav se torna um shuruk e se vocaliza “u”). Antoine Fabre
d’Olivet insiste bastante na particularidade de seu procedimento, que é o
de um literato, e não o de um teólogo ou religioso.

Em sua tradução, ele passa inicialmente por uma transliteração, depois


por um “palavra por palavra” literal em inglês e em francês. Assim, o texto
é apresentado na forma de quatro colunas, a primeira das quais sendo o
original. O “palavra por palavra” é particularmente fastidioso pelo fato de
os termos metafóricos da língua hebraica não possuírem equivalente em
francês, salvo na forma de perífrases. Além da Bíblia Poliglota de Paris,
ele trabalha tendo à disposição quatro originais: a dos Samaritanos, dos
Targum caldeus, da Septuaginta e da Vulgata. De fato, o autor, graças à
sua erudição linguística, dominava perfeitamente o caldeu, o samaritano,
o árabe, o siríaco, o grego e o chinês. Sua gramática hebraica, que ele
elabora com base nas raízes das palavras, é utilizável em quase todas as
línguas-mães conhecidas.

Breve história do Sepher


Antoine Fabre d’Olivet formula a hipótese segundo a qual o legislador
teocrático Moisés, igualmente iniciado nas Escolas de Mistérios egípcias,
é o verdadeiro autor do Sepher. Depois de tê-lo escrito, Moisés o confiou
aos sacerdotes de seu povo, no intuito de preservá-lo das vicissitudes
da História. Teve também o cuidado de, conforme a tradição rabínica,

[ 50 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
transmitir oralmente o conteúdo de seu livro aos mais próximos e fiéis
iniciados – herança perpetuada por intermédio da Cabala, palavra que
significa “aquilo que é recebido, que vem doutra parte, que passa de uma
mão a outra”. O Sepher foi conservado durante muitos séculos, perdido e
então reencontrado. O povo judeu – mais exatamente as duas tribos de
Judá, chamados judeus, ligados a Jerusalém – carregou consigo o Livro
no decurso das três deportações para a Babilônia, sucessivamente em 597,
587 e 582 a.C., embora tenha progressivamente perdido o uso da língua
hebraica, aclimatando-se à cultura dominante, e por conseguinte o sentido
profundo do texto mosaico. Nas sinagogas, o texto foi parafraseado sem
que se conhecesse exatamente o conteúdo espiritual do Sepher. Tendo
perdido a inteligência de sua língua-mãe, os judeus falavam o aramaico,
língua oriunda do assírio e do fenício.

É impossível descrever em poucas linhas a longa história da tradução


do livro mosaico. Quando do cativeiro na Babilônia, o texto sofreu
muitíssimas alterações. De retorno a Jerusalém, o sacerdote Esdras
utilizou um Sepher já existente e, a fim de preservá-lo de uma nova deriva,
acrescentou os pontos-vogais dos caldeus para fixar o sentido das palavras.
Esdras, portanto, não é o autor do Livro. Além disso, os samaritanos, povo
oriundo das dez outras tribos de Israel e disseminado dentre as nações
da Ásia, possuíam por sua vez um Sepher – cópia babilônica oferecida
pelo rei da Assíria escrita em um idioma muito próximo do hebraico.
Samaritanos e judeus, em permanente conflito, disputavam portanto a
autenticidade do Livro.

O Sepher foi traduzido para o grego durante o período alexandrino


(Alexandre o Grande, 356-323 a.C. / Alexandria 331 a.C.). Segundo
o nosso autor, são os essênios – comunidade instalada próximo ao lago
Moria, e podemos supor que ele faz referência ao lago Moeris, na região de
Fayyum, no Egito – depositários da tradição oral e secreta do Livro, e que
teriam se dedicado a essa tarefa a pedido do rei Ptolomeu, filho de Lago
(c. 368-283 a.C.). Constritos pela lei religiosa a não divulgar a gentios
um texto tão sagrado, os essênios (em número de cinco, e não setenta)
traduziram o texto de maneira puramente literal, ocultando-lhe o espírito.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 51 ]
Essa versão grega, chamada Septuaginta, foi na sequência traduzida por
São Jerônimo para o latim (a Vulgata). É interessante observar que os
Pais da Igreja se deram conta de certas contradições na coerência do
texto grego. Santo Agostinho reconhecia que o sentido literal dos três
primeiros capítulos da cosmogonia mosaica era difícil de se entender sem
ferir a fé cristã. São Jerônimo procurou obter o texto original, totalmente
desconhecido, junto aos rabinos da escola de Tiberíades. Ele percebeu que
os próprios judeus tinham perdido o verdadeiro sentido do Sepher, bem
como sua gramática. A Vulgata foi acolhida favoravelmente pelo Concílio
de Trento e defendida pela Inquisição. Tendo em vista o que dissemos,
como restituir a inteligência viva da língua hebraica e reencontrar o
sentido verdadeiro da cosmogonia de Moisés?

As raízes
Tendo sido perdida a língua, também o foi sua gramática. A que
conhecemos hoje e sobre a qual trabalhamos é oriunda das línguas
aparentadas ao hebraico, tais como o fenício, o caldeu e o árabe. Trata-
se de certa forma de uma gramática emprestada, na falta da posse da
autêntica. Se nossas traduções são justas, isso diz respeito a um ponto
de vista literal – no melhor dos casos, simbólico. Mas será que restituem
o espírito da língua corrente no tempo de Moisés? Podemos duvidar
disso. Assim sendo, o texto cosmogônico conserva bem guardado seu
significado profundo. Para abrir uma porta, é preciso girar uma chave que
apenas um buscador, por força da constância, pode encontrar e acionar.

Antoine Fabre d’Olivet propõe o uso das raízes das palavras construídas
com os signos hebraicos. Esses signos são as letras portadoras cada
qual de um ou mais significados. A alquimia produzida pelo encontro
de duas ou três letras formará uma raiz-cepa detentora de um sentido
ao redor da qual gravitarão, por adjunção, outras letras. Os significados
assim se tornarão múltiplos e mais refinados. Esse método singular –
e respeitoso da especificidade da língua hebraica – permite entrar em
esferas de compreensão muito mais elevadas, próximas do espírito da
língua. Antoine Fabre d’Olivet distingue três níveis de leitura do texto
cosmogônico: o primeiro nível é o dito literal, o segundo é o metafórico

[ 52 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
ou filosófico e o terceiro é o hieroglífico. Erguer o véu deste último degrau,
com respeito e humildade, redunda em introduzir-se – ao menos por
um breve instante – no mistério divino. Moisés era um grande iniciado
oriundo das Escolas de Mistérios egípcias. Sem dúvida utilizou para o seu
próprio povo os métodos de construção narrativa e simbólica aprendidos
junto a seus mestres, adaptando-os ao hebraico. Se o nível hieroglífico
resiste é porque tem a vocação de só se dirigir aos iniciados testados e
provados dignos de ser admitidos na câmara nupcial. Foi por isso que os
tradutores gregos, ignorantes ou iniciados desobedientes, traduziram as
altas expressões cosmogônicas em um nível muito mais material, fazendo
com isso que o texto caísse, dando origem a equívocos de interpretação e
até mesmo a incoerências narrativas.

Exemplo de pesquisa em torno de uma raiz


Todo o texto do Gênesis parte da primeira palavra que o abre, o famoso
Bereshit – ‫ – בראשית‬que encontramos traduzido na Vulgata como “no
começo”, mas que Antoine Fabre d’Olivet traduz por “no princípio”. Eis
o modo como ele procede para encontrar essa tradução: ‫ בראשית‬contém
a palavra ‫ראש‬, que significa, no sentido literal e particular, “cabeça”. Num
sentido mais amplo, significa “princípio”. Como definir esse princípio
segundo a mentalidade dos antigos (cuja origem é egípcia, não esqueçamos
disso)? Eles o definiram com a ajuda de dois signos, o ‫( א‬Aleph) e o ‫ש‬
(Shin). O poder absoluto é definido por um círculo no interior do qual se
encontra um ponto (escrita hieroglífica). É a origem de tudo. O ponto foi
substituído, na escrita literal, por um ‫( א‬Aleph – observaremos, ademais,
que para os cabalistas a primeira letra do alfabeto hebraico não é Aleph,
mas precisamente Beth, sendo que o Aleph é definido como o próprio
princípio de onde emanam todas as coisas, e o Beth a primeira letra
emanada), e o círculo foi substituído por um ‫( ס‬Samek), o círculo sensível
que transmutou em ‫( ש‬Shin) o círculo inteligível representado envolto
em chamas, conforme indica o movimento ascendente dessa letra. A essa
raiz ‫אש‬, acrescentou-se o signo do movimento, a letra ‫( ר‬Resh), imagem
de uma serpente em pé atravessando o círculo pelo centro, o que resulta
em linguagem hieroglífica: todo princípio dotado de um movimento

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 53 ]
próprio e determinante. O ‫( ב‬Beth) é um determinante que podemos
traduzir como “dentro”, o ‫( ת‬Tav) é uma desinência: “no princípio”.
Compreendemos então perfeitamente que todo o Gênesis está incluído
nessa única palavra – a de uma força inata e divina em movimento de
ser, a Causa primária da qual emanam os diferentes elementos e o tempo
da Criação, que se seguirão. O famoso “no começo” desnatura o sentido,
comprimindo-o – Antoine Fabre d’Olivet diria “tornando-o material” – e
evidenciando um início “histórico” da Criação, “no começo” dos tempos.
Ora, com “no princípio” nos encontramos além de qualquer tempo e de
qualquer espaço. Porém, vamos um pouco mais longe: o ‫ ב‬não quer dizer
apenas “dentro” (in principio, em latim), mas também “em”, “em princípio”.
O que nos dá: “em princípio, Deus criou o céu e a terra”. Tudo está, dessa
forma, contido no pensamento divino. Poderíamos traduzir assim: “Em
poder de ser, mas não ainda manifestado, Deus criou o céu e a terra”.
A tradução consumada de Antoine Fabre d’Olivet será a seguinte: “No
princípio, Elohim, Ele-os-Deuses, o Ser dos seres, havia criado em princípio
aquilo que constitui a existência dos Céus e da Terra”.

Descrédito e apologia
Antoine Fabre d’Olivet foi considerado por muitos de seus
contemporâneos como um ser fantasista dotado de grande imaginação,
suas pesquisas não sendo mais do que um ajuntado de fabulações. Todavia,
um pequeno número de letrados e iniciados reconhece nele um erudito
que renovou, com seu trabalho inveterado e sua audácia, a pesquisa
linguística. Além disso, Papus (Gérard Encausse, 1865-1916), no nº 145
das Publicações de Ísis – revista francesa do ramo teosófico –, defende
vigorosamente o trabalho desse pesquisador, censurando seus detratores
de não terem lido sua obra. Vejamos o que ele disse: “Quantas reputações
literárias são construídas sobre a opinião de pessoas que não conhecem uma
linha sequer daquilo que falam! Um autor passa diversos anos de sua vida a
elaborar uma obra conscienciosa, e o primeiro que chega pode, sem sequer ler
quatro páginas, lançar uma alcunha qualquer, no mais das vezes repetida pela
multidão”. E então ele nos convida a abrir o livro.

[ 54 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Excerto do fac-símile do manuscrito de Fabre d’Olivet
intitulado Teodoxia universal, iniciado em 1º de fevereiro de
1823; Dorbon-Ainé, Paris.

Bibliografia do artigo:
ANTOINE FABRE D’OLIVET: La langue hébraïque restituée et le
véritable sens des mots hébreux rétabli et prouvé [A língua hebraica restituída
e o verdadeiro sentido das palavras hebraicas restabelecido e provado], (Ed.
1815), Hachette Livre, BnF.
PHILIPPE REYMOND: Dictionnaire d’hébreu et d’araméen bibliques
[Dicionário de hebraico e aramaico bíblicos], Cerf, 1999.
PAPUS, FABRE D’OLIVET E SAINT-YVES D’ALVEYDRE nas
Publications de l’Isis, G. Carré, Libraire-Éditeur, nº 145, Paris, 1888.

Ilustração: p. 48: Retrato de Fabre d’Olivet (a partir do frontispício da História


filosófica do gênero humano, Ed. Chacornac, 1910).

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 55 ]
Édith Denninger

Balzac « esotérico »

A obra filosófica ou esotérica de Balzac


Honoré de Balzac (1799-1850) atribuía uma grande importância a
duas de suas obras: Louis Lambert e Seraphita. São obras difíceis. Elas
evidenciam os poderes do cérebro humano e os sistemas de ligação entre
o homem e a Criação que a ciência moderna não consegue explicar mas
que eram, contudo, conhecidos pelas antigas civilizações. Essas obras
associam esses sistemas a uma organização do universo da qual o discurso
de Sigier de Brabant em Os proscritos havia dado um primeiro resumo.
Ainda que sejam apresentadas como obras de imaginação, elas são na
realidade ensaios nos quais Balzac esboça um sistema filosófico. Ele
considerava essas duas obras como obras maiores de sua grande série de
Estudos filosóficos. Essa parte que podemos qualificar de “esotérica” da obra
de Balzac é pouco conhecida e ainda explorada de maneira incompleta.
No entanto, constitui um setor interessantíssimo – e em certos aspectos
moderníssimo – da Comédia humana.

Ainda que Balzac não tenha sido martinista no sentido ortodoxo do


termo, ele foi um fervoroso leitor dos iluministas e ocultistas do século XVIII
– em particular de Swedenborg e Saint-Martin. Como seu herói Balthazar
Claës em A procura do absoluto, ele se impacienta por encontrar a fórmula que
abarcasse ao mesmo tempo a matéria e o pensamento, o homem e o universo.

Presença de Saint-Martin na obra de Balzac


Nos escritos impressos de Balzac, e segundo a cópia de Robert Amadou
(apenas ele poderia levar a cabo esse trabalho titânico!), o teósofo de
Amboise é mencionado dezenove vezes em quinze passagens diferentes
– tanto por seu patronímico, Saint-Martin, regularmente privado da
partícula nobiliárquica (15 vezes), quanto por seu pseudônimo, o Filósofo
Desconhecido (4 vezes), sendo que essa última expressão é numa única
ocasião reduzida apenas à palavra “filósofo”.

[ 56 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Em seis ocasiões Balzac anuncia uma citação textual de Saint-Martin.
Ora, todas as vezes a citação é falsa. Seria porque o romancista optou
por adaptar a expressão de Saint-Martin ao seu gosto? Seria porque suas
notas haviam sido mal formuladas? Seria porque os excertos de Saint-
Martin haviam sido transcritos para si por um copista pouco disciplinado?
Deixemos que os especialistas tenham o cuidado de determinar isso.
Porém, parece-nos útil assinalar que Balzac tratou como citações os textos
de Saint-Martin que ele apresenta, do mesmo modo que as passagens do
mesmo autor das quais se apoderou sub-repticiamente.
A cada ocasião, Balzac aprecia grandemente o Filósofo Desconhecido
e sua obra; os martinistas são, para ele, sempre pessoas de bem. Em Louis
Lambert e a filosofia de Balzac, Henri Evans diz, a esse respeito: “Mais
do que a qualquer outro, devemos a Saint-Martin as enseadas de caridade e
doçura que balizam o deserto de homens que é a sociedade vista por Balzac”.

Menções nominais de Saint-Martin


na obra impressa de Balzac
Referências das passagens da Comédia humana na edição de Marcel
Bouteron (ed. Gallimard, col. Pléiade) por tomo e por página.
1) Os proscritos (1831) (X, 335)
2) Louis Lambert (1832) (X, 359)
3) Seraphita (1835) (X, 513)
4) Prefácio do Livro místico (1835) (XI, 268)
5) Melmoth apaziguado (1835) (IX, 310)
6) O lírio do vale (1836) (VIII, 811 – 812)
(VIII, 854)
(VIII, 881)
(VIII, 934)
7) Os mártires ignorados (1837) (X, 1149)
8) Uma filha de Eva (1838) (II, 66)
9) Ursule Mirouët (1841) (III, 333)
10) Preâmbulo da Comédia humana (1842) (I, 3 – 4)

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 [ 57 ]
SAINT-MARTIN
BALZAC
O homem de desejo
Visão celeste de Seraphita
Capítulo 46

1) Eu ouvia todas as partes do 1) Eles ouviram as diversas partes


universo formarem uma sublime do infinito formando uma viva
melodia. melodia.

2) A cada vez que esse acorde 2) A cada vez em que o acorde


universal se faz sentir, todos os se fazia sentir como uma imensa
seres, como se arrebatados por um respiração, os mundos arrebatados
movimento comum, se prosternam por esse movimento unânime se
juntos diante do Eterno. inclinavam para o Ser imenso.

3) O hino santo que deve se 3) O hino santo que ecoava se


propagar durante os séculos. prolongava nos séculos dos séculos.

4) Ali, tudo era homogêneo. 4) Ali, tudo era homogêneo.

5) A luz produzia sons e a melodia 5) A luz engendrava a melodia e a


engendrava a luz. melodia engendrava a luz.

6) E os objetos eram ao mesmo 6) Ali tudo era ao mesmo tempo


tempo sonoros, diáfanos e sonoro, diáfano e móvel, de forma
suficientemente móveis para que as coisas se interpenetravam e o
interpenetrarem-se e percorrer de espaço não tinha obstáculo.
um só golpe todo o espaço.

7) Eu via a alma humana se elevar, 7) Ele subiu como um sol radiante


como o sol radiante sai do seio das que sai do seio das ondas.
ondas.

8) Ainda mais majestosa que ele, 8) Mais majestoso que o astro e


e feita para outro destino, ela não prometido a destinos ainda mais
estava acorrentada como ele num belos, ele não devia ser acorrentado
curso circular. como as criações inferiores a uma
vida circular.

[ 58 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023
Entra, decide-te, não fiques no umbral
És como uma criança ainda de luto
Teus olhos ainda estão cerrados pela íntima dor
Abre teus olhos para que a alegria te anime.

Que a tua visão se volte para os céus em chamas


Através dos vitrais em seu coração acesos
Em cor, impaciente por se exprimir enfim
Quando o sol se descortina de manhã cedo.

Abre teu coração mortificado às portas da noite


Que ainda te encerram em sua sombra reduzida
Quebra os laços secretos que te acorrentam ao destino
Crê na Providência, teu último arrimo.

Entra, decide-te, vem para esta câmara


Aqui, das forças do mal estarás a salvo.
Nada mais pode afligir teu coração ferido
Pois pelo Amor de Deus teu coração está protegido.

Aqui, encontra a Paz, a quietude da alma


A Verdade absoluta que anima tua chama.
A catedral azul que incendeia teu coração
Se eleva para o céu irradiando suas cores.

O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023 J. P. E., do Atrium Hod


[ 59 ]
« Templo Essênio Nº 3 »
Série De Trabalhos Iniciáticos
(1911-1912)
Pelo Serviço dos Arquivos da Tradicional Ordem Martinista

Um jovem grego residente no Cairo, Platão Demétrio Semelas (1884-


1921), descobre o Martinismo em 1911 graças a um membro da Ordem
Martinista. Já marcado por uma experiência pessoal com a Rosacruz,
solicita imediatamente sua admissão e recebe uma resposta positiva de
Papus (1865-1916) no dia 23 de janeiro.
Como se mostra implicado e entusiasmado, o Grande Mestre
autoriza P. D. Semelas a fundar a primeira Loja martinista do Cairo. De
conformidade com a carta constitutiva estabelecida nesse intuito, o jovem
iniciado batiza essa nova Loja de “Templo Essênio nº 3”. É também nessa
época que ele adota o Nomen Mysticum martinista Selait-Ha – um nome
ao qual Papus vai se referir frequentemente como sendo o de um “irmão
de toda a confiança”.
A Tradicional Ordem Martinista possui em seus arquivos uma série de
33 “trabalhos iniciáticos” redigidos e apresentados por P. D. Semelas entre
1911 e 1912, quando dirigia a referida Loja. Esses textos, reproduzidos
num duplicador a álcool e numerados, “copiados pelo ir. Secretário
Eugène Dupré”, estão reunidos em um arquivo duplo de grandes
dimensões. O primeiro texto apresenta o trabalho que será efetuado,
seguindo-se então as conferências propriamente ditas, cada qual tratando
de assuntos específicos tais como a iniciação, o simbolismo, a alquimia, o
astral, o hermetismo etc. Aí encontramos também os “cadernos secretos”
da Ordem, que contêm as explicações associadas ao simbolismo dos
elementos ritualísticos, ou ainda o Discurso de recepção para um candidato,
de Stanislas de Guaita (1861-1897).
Fora o interesse tradicional que esses 33 textos naturalmente apresentam,
sua leitura mostra que o Martinismo original já tinha um horizonte de
busca espiritual que suplantava o âmbito estrito da tradição judaico-cristã.

[ 60 ] O PANTÁCULO – Nº 31 – 2023

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