Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract This study aims to present theoret- Resumo O objetivo é apresentar os pressu-
ical and methodological principles of research postos teórico-metodológicos das investigações
about health problems that are marked by mu- sobre problemas de saúde atuais marcados
tations in work processes. In order to reach its pelas mutações nos processos de trabalho em
goal, this article present results of recent re- curso. Para isso, o artigo apresenta os resulta-
searches about the health and work relation- dos de algumas pesquisas recentes realizadas
ship that observed the effects of work muta- no campo de estudo das relações saúde e tra-
tions from the perspective of workers’ com- balho que observam os efeitos das mutações do
plaints and the will to face daily life. The re- trabalho, a partir das queixas que os traba-
sults from these studies reveals an illness process lhadores vêm apresentando no que diz respeito
among workers with unspecific complaints and à sua saúde e disposição para o enfrentamen-
bring about the interest in the ethnographic to cotidiano. Os resultados dos estudos descritos
approach and in the work ergonomic analysis. permitem visualizar um quadro de adoeci-
Traditional approaches to the theme are criti- mento dos trabalhadores em que as queixas são
cized and the author envisages the possibility inespecíficas e suscitam o interesse pela abor-
of articulating disciplines in order to solve im- dagem da etnografia e pela metodologia da
passes posed by classic approaches análise ergonômica do trabalho. As aborda-
Key words Health, Work, Ergonomics, Pro- gens tradicionais são criticadas e o autor vis-
ductive reorganization lumbra a possibilidade de articular as disci-
plinas, a fim de resolver impasses colocados
pelas abordagens clássicas.
Palavras-chave Saúde, Trabalho, Ergonomia,
Reestruturação produtiva
1 Departamento
de Medicina Preventiva
e Social da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Av. Alfredo Balena
190/8.009, Bairro Santa
Efigênia, 30130-100,
Belo Horizonte MG.
adavila@medicina.ufmg.br
1006
dadas pelo mercado. Ao contrário do modelo tuações mais rudimentares de trabalho. Cate-
fordista de produção em série, voltada para o gorias profissionais que se pensavam estáveis
consumo de massa, demandando grandes esto- e permanentes até há bem pouco tempo vêem-
ques, o momento atual supõe formas mais fle- se ameaçadas de extinção à medida que o em-
xíveis de organização e de gestão do trabalho. prego de novas tecnologias no processo produ-
A rígida divisão das tarefas, característica tivo tem substituído a força de trabalho huma-
marcante do fordismo, vem cedendo lugar, mas na por máquinas e que a terceirização tem per-
sem desaparecer completamente, a formas ho- mitido outras formas de contratação que subs-
rizontais e aparentemente mais autônomas de tituem o emprego formal, regulamentado e re-
organização do trabalho que, no entanto, possi- lativamente estável (Antunes, 2003).
bilitam a intensificação da exploração do traba- No plano social, as mutações nos processos
lho (Castels, 1999). produtivos forjam uma nova realidade para a
Os trabalhadores do setor de serviços, da organização dos trabalhadores: desenham-se
indústria ou inseridos na ponta da geração das formas veladas de resistência e/ou submissão,
tecnologias da informação e comunicação, se muitas vezes isoladas e individualizadas, dos
ressentem dos prazos indevidos para entregar trabalhadores às condições de trabalho impos-
os produtos planejados (Abrahão, 2000). Dessa tas (Bernardo, 1991; Oliveira, 1992). A organi-
forma, cria-se um ambiente em que as pessoas zação sindical, incluindo as Organizações por
só se encontram para resolver conflitos entre o Local de Trabalho (OLT), está fraturada e divi-
sistema e as necessidades do cliente, entre o sis- dida pelos próprios antagonismos que provo-
tema e a máquina, porque não há espaço para cam a precarização (Castel, 1997).
o diálogo e as vivências humanas... Assim sen- O processo de reestruturação capitalista mo-
do, a divisão do trabalho termina por engen- difica as condições de trabalho no que diz res-
drar formas sofisticadas de competição entre peito às suas formas de organização e controle,
as pessoas. implicando novos ritmos, muitas vezes deter-
Além da flexibilização da produção e da sua minados pela demanda externa do comprador
gestão, as relações de emprego também são fle- e exigências com relação à formação dos traba-
xibilizadas à medida que passam a ser entendi- lhadores e sua disciplina no local de trabalho.
das como a possibilidade de se contratar traba- No plano econômico, a empresa não é mais
lhadores sem os ônus advindos da legislação do organizada no interior dos limites políticos do
trabalho, a qual consolidou ao longo das últi- Estado onde se encontra a sua sede, pois os sis-
mas quatro décadas, direitos e garantias mí- temas de informação "permitiram o controle
nimas, como 13o salário, férias, FGTS, entre do processo a partir de um ponto central e pra-
outros. ticamente em tempo real" (Hobsbawm, 2000).
Na atualidade, criou-se um movimento con- Os mercados ficaram diversificados e o ritmo
siderado processo de precarização do trabalho, de transformação tecnológica tornou obsole-
por implicar mudanças nas relações de traba- tos os equipamentos de produção com apenas
lho, incluindo as condições de realização, e nas uma função.
relações de emprego que apontam para maior Nota-se também uma mudança no perfil
instabilidade e insegurança para os trabalha- da força de trabalho. Como assinala Oliveira
dores. O processo em curso pode estar ocor- (2000), as tecnologias de gestão e organização
rendo pela constatação de que, hoje, mais que do trabalho emergentes têm exigido trabalha-
em qualquer momento do passado, é possível dores polivalentes, o que implica novos desafios
o crescimento econômico sem a ampliação do para os mesmos pois não contam com o supor-
número de empregos. Para alguns autores co- te social, como será exemplificado adiante.
mo Castel (1997) tal evidência contribuiu para As queixas de saúde são pouco apreendi-
o acirramento das desigualdades sociais no fi- das pelos serviços médicos das empresas, por-
nal do século 20, com importantes conseqüên- que, muitas vezes, dizem respeito aos efeitos da
cias nos ambientes de trabalho. corrida tecnológica e à falta de tempo para dar
O referido processo de precarização do tra- conta das metas e dos prazos. De acordo com
balho caracteriza-se, ainda, por uma forte seg- Sennett (2001), flexibilidade é a capacidade de
mentação do mercado produtivo, implicando ceder e recuperar-se de uma árvore, principal-
um fracionamento da oferta de empregos e mente dos seus galhos. Mas as práticas de flexi-
suas condições de realização, que variam desde bilidade na produção parecem tentar flexibili-
os cenários fortemente “tecnologizados” às si- zar as capacidades dos trabalhadores até o pon-
1008
funde trabalho repetitivo com trabalho auto- trabalhadores, seus objetivos e impositivos do
matizado e reforça o mito do trabalho essenci- objeto trabalhado, no caso, de proporções pe-
almente manual. quenas, caro e bonito.
O caso das posturas estáticas dos trabalha- No setor de teleatendimento, a análise que
dores de uma indústria de jóias resultantes da considera o trabalho repetitivo desvestido de
tarefa de fabricar anéis, brincos e alianças que sentido não apreende os fatores que estão na
exige movimentos precisos e controlados das origem das queixas de esgotamento, pois uti-
extremidades dos membros superiores, permi- lizando-se de uma abordagem biomecânica di-
te discutir a postura de trabalho não como ob- rige-se unicamente aos efeitos musculo-esque-
jeto de idiossincrasias pessoais, nos termos léticos, que nem sempre estão presentes e, nem
propostos por Lima (2001), mas como resulta- por isso, a situação deixa de ser penosa. Assun-
do do planejamento da ação que opera em ní- ção & Vilela (2002) descrevem o controle ga-
veis cognitivos. Alves e Assunção (2002) mos- rantido por mecanismos eletrônicos que cal-
traram que é o tamanho da peça que explica a culam em situação real o tempo de atendimen-
maneira como os indivíduos vão organizar os to ao cliente, que servirá para outro cálculo o
seus segmentos corporais. Por exemplo, em fle- Tempo Médio de Atendimento (TMA), utiliza-
xão cervical permanente para enxergar deta- do para a avaliação individual do teleatenden-
lhes da peça (em sua maioria, muito pequenas) te. No setor de auxílio à lista, o TMA é de 25 se-
ao mesmo tempo em que é lapidada, o traba- gundos, de acordo com o prescrito pela empre-
lhador aproxima sua cabeça para garantir me- sa. Se o operador não encontrar a informação,
lhor foco (visível), intensificando a flexão. Os deve dizer ao cliente que “Não consta”. Se exis-
cinco componentes da atividade, movimentos tem várias informações possíveis, o operador
precisos dos membros superiores, responsabi- investiga, dialogando, qual seria a melhor para
lidade, atenção, medo de errar e pressão tem- o cliente, mas sob economia de tempo.
poral, aumentam a atividade muscular, fragili- Na empresa estudada, vê-se, pela figura 1,
zando o pressuposto clássico de que a organi- que apenas no mês de janeiro o conjunto de te-
zação dos segmentos corporais depende so- leoperadores não conseguiu, pela média esta-
mente da vontade dos indivíduos, na maioria belecida, atingir a meta de 25 segundos para o
das vezes “mal-educados” ou “ignorantes” quan- trato de uma ligação no setor de auxílio à lista.
to à postura correta. As medidas para o confor- A performance obtida tem um custo físico e
to nos postos de trabalho analisados devem ser cognitivo, considerando que as demandas são
elaboradas levando-se em conta as ações dos variadas e as condições materiais de trabalho
Figura 1
Média do TMA (em segundos) de todos os operadores do setor auxílio à lista por mês.
1011
to de outras enfermeiras ou auxiliares, o que para que os alunos as completem. Viu-se que
provoca mais absenteísmo... e sobrecarga para ela evita fazer competição vocal com os alunos,
as funcionárias que comparecem ao trabalho. e raramente se dirige somente a um grupo de
Reduzir o trabalho das auxiliares de enfer- alunos ou um aluno individualmente e preser-
magem estudadas ao seu componente biome- va o hábito de levar uma garrafinha com água
cânico seria injusto para o investimento de ca- para sala e bebê-la durante a aula e aproveita
da uma delas em responder às necessidades dos os freqüentes “exercícios” durante as aulas de
usuários do serviço e não explicaria as queixas matemática, momentos em que alunos traba-
de esgotamento. lham sozinhos, para realizar o necessário re-
Os exemplos citados permitem afirmar que, pouso vocal. Ou seja, quando é possível, os tra-
freqüentemente, é no imprevisto das situações balhadores elaboram estratégias de preserva-
de trabalho (pouco conhecidas dos organiza- ção da saúde.
dores da produção) que se situa a explicação Os resultados desse estudo permitem supor
dos problemas de saúde. É essa a tese geral que que nem todas as professoras conseguiram ela-
orienta as investigações em curso, partindo da borar e obter sucesso com as suas estratégias,
crítica de certos aspectos das abordagens tradi- pois se observou outra professora com quei-
cionais, a fim de estabelecer outros princípios xa de problemas vocais apresentar poucos re-
de análise da relação saúde-trabalho, inspira- cursos de autoproteção vocal. No entanto, nas
dos na experiência dos diferentes profissionais duas situações descritas, é possível localizar os
envolvidos presentes na II Conferência de Saú- elementos da organização do trabalho que são
de Ocupacional e Ambiental em Salvador, em determinantes da hipersolicitação vocal, como
2002. as normas rígidas para vencer o conteúdo pre-
Ainda voltado para a compreensão das quei- visto.
xas de cansaço e esgotamento em algumas ca- O estudo de Diniz (1993) também focaliza
tegorias profissionais, o estudo de Noronha as estratégias implementadas pelos trabalha-
(2002) buscou, por meio da análise do traba- dores para fazer face aos constrangimentos ori-
lho de um grupo de professoras do ensino fun- undos da organização do trabalho e seus obje-
damental, em sala de aula, situar as práticas lo- tivos de tempo e qualidade. No caso, são os de-
calizadas no contexto mais amplo da atual or- terminantes externos que explicam os riscos
ganização do ensino, tentando identificar a ori- que os motociclistas profissionais enfrentam
gem das queixas. Os resultados apresentados no trânsito e desmontam as crenças de que os
permitem afirmar que grande parte do tempo profissionais das motocicletas agiriam pela im-
da professora em sala de aula é ocupado com o prudência ou irresponsabilidade. Salientam-
controle, visando diminuir a indisciplina na se na rede global pelo menos dois fatores que
sala, gerando insatisfação para a professora in- sustentam o crescimento do número de moto-
vestigada (Noronha, op. cit.). A hipótese da au- ciclistas profissionais: as novas tecnologias de
tora discute a regulamentação expressa na Lei comunicação (telefonia fixa/móvel e internet),
de Diretrizes e Bases (LDB) sobre o trabalho dos aproximando consumidores, clientes e presta-
professores e as reformas educacionais que não dores de serviços; e a possibilidade de financia-
são acompanhadas de uma efetiva adequação mento da motocicleta em prestações de baixo
das condições de trabalho ao perfil do aluno valor. A articulação entre produção de bens,
nas escolas públicas da periferia, cada vez mais serviços e consumo passa a exigir um meio ca-
carente e violento. paz de interconectar os extremos fornecedor-
Outro problema de saúde atual que atrai cliente de modo rápido, pontual e confiável.
cada vez mais pesquisadores é a disfonia pre- Com efeito, expandiu-se o serviço prestado
valente em algumas categorias profissionais. pela categoria não apenas como alternativa de
Gonçalves (2003) interessado em compreen- emprego, mas, sobretudo, como resposta a uma
der a alta prevalência de disfonia entre as pro- necessidade estabelecida na sociedade contem-
fessoras, analisa o uso da voz em sala de aula e porânea. Cada toque no mouse que fecha um
a sua relação com aspectos da organização do negócio via internet e cada telefonema do cli-
trabalho e da gestão escolar pública. As estraté- ente que demanda um produto ao fornecedor
gias das professoras para economizar a solicita- acionam a ignição de um exército de motoci-
ção das cordas vocais são descritas. O caso da cletas que transportam uma infinidade de ma-
uma professora é ilustrativo, pois ela mobiliza teriais e produtos: remédios, passagens, alimen-
um recurso freqüente de não terminar as frases tos, materiais de escritório, fotocópias, cilindros
1013
de gás de cozinha, garrafões de água mineral, As relações saúde e trabalho não são anali-
talões de cheques, malotes de empresas, etc. sadas baseando-se exclusivamente nos regis-
Eles realizam também serviços de cunho buro- tros médicos, ou no perfil de adoecimento ou
crático, como: efetuam pagamentos e depósi- nas taxas de absenteísmo originadas pelas esta-
tos; obtêm certidões negativas e “nada-consta” tísticas oficiais. Embora os indicadores dêem
em repartições públicas e privadas. uma idéia do problema, há o risco de tornar te-
Os resultados apontam que o modo opera- ma médico uma questão social que deriva das
tório de risco implementado no trânsito pelos condições de trabalho, e não das características
motociclistas profissionais constitui o último estritamente biológicas dos indivíduos. O so-
recurso da categoria, não como um procedi- frimento dos trabalhadores nem sempre é visí-
mento de rotina, mas como forma de ação di- vel ou objetivo como insistem algumas aborda-
ante de circunstâncias especiais relacionadas à gens (Dejours et al., 1994). O efeito do trabalho
organização do trabalho. A adoção de procedi- sobre a saúde é muitas vezes silencioso e não
mentos que potencializam os riscos de aciden- apreendido pelo saber estritamente médico.
tes é reconhecida pela categoria como efeito da A abordagem proposta visa compreender o
organização do trabalho, e não uma necessida- que se passa no trabalho, sem se deixar captu-
de particular na busca de fortes emoções. Se as rar pela idéia de que o responsável é a tecnolo-
margens da organização do trabalho permitem, gia ou o progresso.
os motociclistas profissionais tentam cumprir A noção de condições de trabalho está no
os objetivos estabelecidos pelo setor sustentan- eixo da análise dos problemas de saúde rela-
do-se, como permitiu descrever a pesquisa rea- tados; ela designa as circunstâncias em que o
lizada, centrada na noção de atividade de tra- trabalhador mobiliza as suas capacidades pa-
balho, nas redes sociais solidárias, no planeja- ra obter os resultados almejados. Embora ain-
mento das rotas, no controle temporal das ta- da exista o mito do trabalho essencialmente in-
refas, nas negociações das demandas de serviço telectual, trabalhar nos ambientes fortemente
com chefias e clientes. tecnologizados sob restrição temporal só é pos-
sível congelando o corpo, inibindo alguns dos
seus movimentos e hipersolicitando a repeti-
Os pressupostos para futuras ções de outros (Sznelwar & Massetti, 2000). So-
investigações bre a individualização no trabalho automati-
zado, Carvalho (2002) sustenta que a atividade
As categorias – saúde e trabalho – se referem a realizada por meio das novas técnicas e sob as
fenômenos que, por sua natureza, são cambi- regras capitalistas de produção engendra efei-
antes. O uso do corpo no trabalho está associa- tos nos trabalhadores que são inéditos em sua
do a uma série de fenômenos de saúde, para os forma e na freqüência de sua ocorrência, tra-
quais ainda temos dado pouca visibilidade e zendo mudanças no modo pelo qual as pessoas
mínimas vias de transformação. Nos contornos se individualizam, isto é, se constituem como
da reestruturação produtiva, a desigualdade no alguém perante os outros.
interior dos processos de trabalho, imanente ao Os exemplos acima sobre a natureza do tra-
sistema capitalista, assume efeitos ainda não balho repetitivo permitem contestar a idéia
bem traduzidos, do seu modelo de flexibiliza- dominante no senso comum e, infelizmente,
ção, conforme discutido anteriormente. para as práticas em saúde e segurança ocupa-
Se as condições de trabalho hoje são sensi- cional, de que o trabalho repetitivo é aquele
velmente melhores que antigamente, numero- que mobiliza os membros do corpo humano,
sos problemas se colocam e, muitas vezes, de dispensando qualquer atividade mental. Nes-
maneira aguda. Muitas das questões levanta- sa concepção, trabalho repetitivo é sinônimo
das pertencem ao campo da ação preventiva, de trabalho automatizado, onde as tarefas são
outros da pesquisa, se quisermos, em um esfor- realizadas sem qualquer mobilização da inteli-
ço de análise, dissociá-las. Mas o campo da saú- gência.
de do trabalhador se distancia da postura que O problema deste engano teórico, por as-
favorece o acúmulo de conhecimentos já ad- sim dizer, é que dele derivam ações preventi-
quiridos sem avançar nas ações práticas. A ini- vas e práticas que desconsideram o esforço hu-
ciativa é de investigar objetos inexplorados ou mano para driblar o paradoxo oriundo da con-
aqueles que permanecem em suspenso, como cepção de tarefas repetitivas (Teiger & Laville,
são exemplos os casos apresentados acima. 1972). A hipótese de nossas pesquisas é a de que
1014
todo trabalho, mesmo o que solicita gestos re- poucos, constroem a sua história e a identidade
petitivos, só é possível graças à capacidade dos social (Assunção, 1998).
trabalhadores de constituir problemas, anteci- Em suma, para os trabalhadores, a constru-
pá-los e tomar decisões em tempo real, inclusi- ção da saúde é a mobilização consciente ou não
ve durante a realização de tarefas de curta du- das potencialidades de adaptação do ser hu-
ração que se repetem na unidade temporal. mano, permitindo-lhe interagir com o meio de
Em suma, os resultados das pesquisas ao trabalho, lutando contra o sofrimento, contra a
identificarem o paradoxo entre gesto repetiti- morte, as deficiências, as doenças e a tristeza.
vo e exigência de atenção no interior de um O homem se distingue nitidamente do fun-
curto ciclo de trabalho podem contribuir para cionamento dos sistemas técnicos com os quais
a compreensão das queixas de saúde entre os ele se defronta, pois é um organismo vivo, per-
grupos expostos (Assunção, 2002). petuamente em desenvolvimento. Isso quer di-
Procura-se construir uma abordagem ca- zer que ele varia constantemente no tempo, que
paz, como sugere Morin (1995): “de reconhe- aprende e é marcado permanentemente pelas
cer o singular, o individual, o concreto”, pois, situações vivenciadas, que ajusta sua atividade
na contemporaneidade, o desafio para a ação a situações diferentes, dentro de certos limites,
visando à melhoria das condições de traba- ligadas às próprias regras de funcionamento
lho pressupõe questionar a evolução do siste- biológico, fisiológico, perceptivo e mental.
ma produtivo, tentando compreender as lógi- Toda atividade predominantemente física
cas que originam a precarização do trabalho, a ou predominantemente mental exercida pelo
fim de desvelar as implicações profundas para homem tem repercussões sobre o seu estado
aqueles que sofrem as conseqüências dessas ló- funcional, o que implica um custo psicofisio-
gicas (Doniol-Shaw, 1993-94). lógico do trabalho, que pode se manifestar de
No espaço de trabalho, as exigências são maneiras diversas a curto e a médio prazo: mu-
contraditórias, mas os trabalhadores constro- danças do modo operatório, fadiga, doenças,
em uma prática para contorná-las, que só é efi- acidentes (Daniellou et al., 1989; Abrahão,
caz, porque é rica em conhecimentos. São os 2002).
conhecimentos que permitem responder aos Por outro lado, a variabilidade interindivi-
imprevistos no desenvolvimento, implantação dual é grande: o custo psicofisiológico, as mo-
e manutenção dos sistemas, e ainda gerir os ris- dalidades de execução deste trabalho são dife-
cos para a saúde. rentes de um trabalhador para outro, e um mes-
Os gestores do capital são cônscios da im- mo indivíduo não as cumpre sempre da mes-
portância do saber, mas não o valorizam; ao ma maneira. Alguns encontram saídas para evi-
contrário, adotam técnicas que infantilizam os tar o sofrimento e o adoecimento e protegem o
funcionários, não reconhecem o investimento seu tempo extralaboral, não levando para casa
pessoal para compensar a ausência da ferra- as marcas do trabalho, como foi citado no caso
menta adequada e os tempos exíguos para tra- das professoras do ensino fundamental. Os fa-
tar as necessidades dos clientes, como visto no tores constitucionais, como sexo, idade, origem
caso dos teleatendentes. geográfica; os fatores ambientais, como forma-
A relação saúde e trabalho não diz respeito ção, aprendizagem, nutrição, tradições socio-
apenas ao adoecimento, aos acidentes e ao so- culturais; e os fatores limitantes, por exemplo,
frimento. Para os trabalhadores, a saúde é cons- a senescência, deficiências e hábitos alimenta-
truída no trabalho. Em primeiro lugar, porque res irregulares, interferem na maneira de fazer
ao conseguir os resultados desejados pela hie- o trabalho e de reagir aos agentes agressores. O
rarquia, sem contar com as condições ideais, e indivíduo-padrão não existe e, tampouco, a ta-
ao dar conta das demandas complexas, inusita- refa-padrão da organização científica do traba-
das e não previstas, os trabalhadores reafirmam lho (Wisner & Marcelin, 1971).
a sua auto-estima, desenvolvem as suas habili- Um dos aspectos que ajudam a explicar a
dades, expressam as suas emoções, como no ca- variabilidade da exposição aos fatores de ris-
so estudado do banco de leite humano. co conhecidos é a diferença entre o trabalho
Em segundo lugar, o trabalho é uma via pa- prescrito e o trabalho real, e o fato de a ativida-
ra desenvolver a personalidade. Relacionan- de se realizar sempre em contextos específicos.
do-se com o outro por meio do material a ser Apesar da tentativa de se controlar todos os fa-
transformado, torna-se possível constituir os tores intervenientes na produção, sempre ocor-
coletivos de trabalho, e os trabalhadores, aos rem incidentes e variações que mudam a situa-
1015
Referências
Abrahão JI, Torres CC & Assunção AA 2003. Penosidade das greves de dezembro de 1995] In Contrafogos. Jor-
e estratégias de atenuação do risco: o caso das telefo- ge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
nistas de uma instituição pública. Estudos, Vida e Breilh J 1991. Epidemiologia: economia, política e saúde.
Saúde 30(1):85-110. Unesp-Hucitec, São Paulo.
Abrahão JI 2000. Reestruturação produtiva e variabili- Carvalho MB 2002. A automatização das atividades e a
dade do trabalho. Psicologia Teoria e Pesquisa 16(1): produção de novos sintomas mentais no trabalho, pp.
49-54. 27. II Conferência de Saúde Ocupacional e Ambien-
Abrahão JI 2002. As transformações do trabalho e desa- tal: Integrando as Américas. Salvador, 17 a 20 de jun-
fios teórico-metodológicos na Ergonomia. Estudos ho. Livro de resumos.
de Psicologia 7:45-52. Castel R 1997. As armadilhas da exclusão, pp.15-48. In L
Alves GB & Assunção AA 2002. A abordagem ergonômica Bógus, MC Yazbek & M Belfiore-Wanderley (orgs.).
no estudo das posturas do trabalho: o caso de uma Desigualdade e a questão social. Editora Educ, São
fábrica de jóias. Revista de Terapia Ocupacional 13 Paulo.
(3):111-117. Castels M 1999. Trajetórias organizacionais na reestru-
Almeida IM 2003. Introdução à abordagem de concep- turação do capitalismo e na transição do industrial-
ções de acidentes e suas implicações na análise des- ismo para o informacionismo, pp. 174-187. In A so-
ses eventos, pp. 57-66. In Ministério do Trabalho e ciedade em rede. Editora Paz e Terra, São Paulo.
Emprego. Caminhos da análise de acidentes do traba- Chauí M 2001. Escritos sobre a universidade. Editora
lho. MTE, Brasília. Unesp, São Paulo.
Antunes R 2001. A questão do emprego no contexto da Cru D & Volkoff S 1996. La difficile construction de la
reestruturação do trabalho no final do século XX, santé au travail. La revue de lÍRES 20:37-61.
pp. 38-57. In CR Horta & RAA Carvalho (orgs.). Daniellou F, Laville A & Teiger C 1989. Ficção e realida-
Globalização, trabalho e desemprego: um enfoque in- de do trabalho operário. Revista Brasileira de Saúde
ternacional. Editora C/Arte, Belo Horizonte. Ocupacional 17(68):7-13.
Antunes R 2002-2003. Os caminhos da liofilização orga- De la Garza C & Weill-Fassina A 1995. Les modalités
nizacional: as formas diferenciadas da reestruturação de gestion collective des risques ferroviaires sur des
produtiva no Brasil. Idéias 9(2)/10(1):13-24. chantiers d'entretien des voies. Recherche Transports
Assunção AA 1998. De la déficience à la gestion collective Sécurité 49:73-84.
du travail: les troubles musculo-squelettiques dans la Dejours C, Dessors D & Molinier P 1994. Pour compren-
restauration collective. Tese de doutorado em ergono- dre la résistance au changement. Documents du Mé-
mia. Ecole Pratique des Hautes Etudes, Paris, 207 pp. decin du Travail 58:112-117.
Assunção AA 2001.Trabalho ou gesto repetitivo? Impli- Dejours C & Molinier P 1994. Le travail comme énigme.
cações na análise dos riscos biológicos. Anais do XI Sociologie du Travail 2:35-44.
Congresso da Associação Brasileira de Ergonomia. Diniz EPH 2003. As condições acidentogênicas e as estraté-
ABERGO Gramado, 2 a 5 de setembro. [CD-ROM]. gias de regulação dos riscos dos motociclistas profis-
Assunção AA 2002. Analisar o trabalho para compreen der sionais: entre as exigências de tempo e os limites do es-
as queixas músculo-esqueléticas dos trabalhadores: seis paço. Dissertação de mestrado, Escola de Engenharia
estudos de caso, pp. 40. II Conferência de Saúde Ocu- de Produção. UFMG, Belo Horizonte.
pacional e Ambiental: Integrando as Américas. Sal- Doniol-Shaw G 1993-94. Travail précaire, santé précaire.
vador, 17 a 20 de junho. Livro de resumos. Synthèse de la deuxième table ronde. Travail 30:70-
Assunção AA 2002. Gesto repetitivo, trabalho variável, 72.
pp. 77-92. In CA Salim, LF Carvalho (orgs.). Saúde e Engels F 1975. A situação da classe trabalhadora em In-
segurança no trabalho: contextos e vertentes. PRO- glaterra. Editora Afrontamento, Porto.
DAT-Fundacentro, Belo Horizonte. Fenadados 2003. Seminários O trabalho humano na so-
Assunção AA & Lima FPA 2003. A contribuição da er- ciedade das máquinas. Relatório Final. FENADADOS,
gonomia para a identificação, redução e eliminação Belo Horizonte, 2003, 53pp.
da nocividade do trabalho, pp. 1.767-1.789. In R Gonçalves GBB 2003. Uso profissional da voz em sala de
Mendes (org.). Patologia do trabalho. (2a ed. revisada aula e organização do trabalho docente. Dissertação
e ampliada). Editora Atheneu, São Paulo. de mestrado, Faculdade de Educação. UFMG, Belo
Assunção AA & Luz MG 2001. O componente afetivo na Horizonte.
atividade da enfermagem: o caso do banco de leite hu- Gorny P 1991. L’aventure de la médecine. Lattès, Paris.
mano. Revista Mineira de Enfermagem 5(1/2):13-19. Guedes R 2003. A incompatibilidade entre a natureza da
Assunção AA & Souza RJ 2001. Telemática. Cadernos atividade do auxiliar de enfermagem e a organização
do Instituo Nacional de Saúde do trabalhador. CUT/ do trabalho: o caso da distribuição de medicamentos
INST, São Paulo. numa instituição hospitalar. Dissertação de mestra-
Assunção AA & Vilela LVO 2002. As condições de adoe- do, Escola de Engenharia de Produção. UFMG, Belo
cimento em uma empresa de teleatendimento. Rela- Horizonte.
tório de pesquisa. Belo Horizonte, Convênio UFMG/ Hobsbawm E 2000. O novo século. Entrevista a Antônio
Ministério Público do trabalho. Polito. Companhia das letras, São Paulo.
Bernardo J 1991. Economia dos conflitos sociais. Editora Laurell AC & Noriega M 1989. Processo de produção e
Cortez, São Paulo. saúde. Hucitec, São Paulo.
Bourdieu P 1998. Contra a destruição de uma civilização, Le Guillant L 1984. A neurose das telefonistas. Revista
pp. 37-41 [intervenção na Gare de Lyon, por ocasião Brasileira de Saúde Ocupacional 47(12):7-11.
1018
Lima FPA 2001. A formação em ergonomia: reflexões so- Silva LS 1985. Organização do espaço e da doença, pp. 157-
bre algumas experiências de ensino da metodologia 185. Textos de Apoio. Epidemiologia I. PEC/ENSP/
de análise ergonômica do trabalho, pp. 133-148. In C Abrasco, Rio de Janeiro.
Kiefer, I Fagá, MR Sampaio (orgs.). Trabalho – edu- Sznelwar LI & Massetti M 2000. Sofrimento no trabalho:
cação – saúde: um mosaico em múltiplos tons. Fun- uma leitura a partir de grupos de expressão, pp. 105-
dacentro, São Paulo. 117. In LI Sznelwar, LN Zidan (orgs.). O trabalho hu-
Morin E 1995. Vers un nouveau paradigme. Sciences Hu- mano com Sistemas Informatizados no Setor de Ser-
maines 47:s20-23. viços. Editora Plêiade, São Paulo.
Noronha MMB 2002. Condições do exercício profissional Tambellini AM 1978. O trabalho e doença, pp. 93-119. In
da professora e os seus possíveis efeitos sobre a saúde: R Guimarães (org.). Saúde e medicina no Brasil: con-
estudo de casos das professoras do ensino fundamental tribuição para um debate. Graal, Rio de Janeiro.
em uma escola pública de Montes Claros, Minas Ge- Teiger C & Laville A 1972. Nature et variations de l’activi-
rais. II Conferência de Saúde Ocupacional e Ambi- té mentale dans des tâches répétitives: essai d’évalua-
ental: Integrando as Américas. Salvador, 17 a 20 de tion de la charge de travail. Le Travail Humain 35(1):
junho. Livro de resumos. 99-116.
Oliveira DA 1992. As organizações por local de trabalho Teiger C & Laville A 1989. Expression des travailleurs sur
entre a ruptura e o consentimento: a dimensão educa- leurs conditions de travail. Rapport no 100. CNAM,
tiva das lutas autônomas. Dissertação de mestrado. Paris.
Faculdade de Educação, UFMG, Belo Horizonte. Vilela LVO & Assunção AA 2002. Prevenção dos proble-
Oliveira DA 2000. Educação básica. Gestão do trabalho e mas de saúde no ramo da telemática: uma proposta
da pobreza. Editora Vozes, Petrópolis. tripartite envolvendo Universidade, Ministério Públi-
Paim JS 1997. Abordagens teórico-conceituais em estu- co e Sindicato, pp. 24. II Conferência de Saúde Ocu-
dos de condições de vida e saúde: notas para reflexão pacional e Ambiental: Integrando as Américas. Sal-
e ação, pp. 7-30. In RB Barata (org.). Condições de vi- vador, 17 a 20 de junho. Livro de resumos.
da e saúde. Abrasco, Rio de Janeiro. Wisner A & Marcelin J. 1971. A quel homme le travail
Sennet RA 2001. Corrosão do caráter. Conseqüências pes- doit-il être adapté. Rapport n o 22. CNAM, Paris,
soais do trabalho no novo capitalismo. Editora Re- 13pp.
cord, Rio de Janeiro.
Silva AM 2003. Regulamentação das condições de traba- Artigo apresentado em 16/8/2003
lho no setor de teleatendimento no Brasil: necessidades Aprovado em 20/11/2003
e desafios. Projeto aprovado em banca de qualifica- Versão final apresentada em 24/11/2003
ção. Faculdade de Medicina. UFMG, Belo Horizonte,
33pp.