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Junguiana

v.35-2, p.59-68

Da natureza e do inconsciente coletivo

Zilda Gorresio*

Resumo Palavras-chave
Este artigo tem como objetivo traçar um pa- Inconsciente
ralelo entre o conceito de inconsciente coletivo coletivo,
da psicologia analítica e a concepção de natureza natureza,
Phýsis,
dentro da tradição filosófica. Tenta demonstrar a
cosmos,
proximidade do pensamento analítico, no que se arché.
refere à concepção de Natureza e inconsciente,
com a concepção de Natureza no Romantismo
alemão e na filosofia grega. ■

* Psicóloga, psicoterapeuta. Especialização em Psicoterapia de


Orientação Junguiana pela Pontifícia Universidade Católica – PUC.
Ex-professora de psicologia analítica do Instituto Sedes Sapientiae.
Mestre em Filosofia pela PUC, São Paulo.
E-mail: <zgorresio@uol.com.br>

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Da natureza e do inconsciente coletivo

O conceito de natureza é um dos concei- No sentido de entendermos a nova aliança


tos fundamentais do pensamento filosófico com a Natureza, estabelecida por Jung, teremos
e, mais ainda, da inteligibilidade humana. que percorrer história do conceito, sem a preten-
Nos Pré-socráticos, em Platão e Aristóteles e ao são, no entanto, de exauri-lo, mas de trazer os
largo de toda a história do pensamento ociden- marcos importantes da sua história.
tal, a palavra “natureza” ocupou um lugar capital Ao longo da história do pensamento, o ter-
e tomou vários significados ao longo da história mo Natureza (do grego, Phýsis, do latim, natura)
das ideias. Para compreendê-lo, é necessário foi definido dentro da Filosofia pelos seguintes
por às claras o que é o principal nele e despojá- conceitos principais: princípio de movimento e
-lo de conotações secundárias. substância; ordem necessária ou conexão cau-
Tecendo comparações entre as várias tradi- sal; exterioridade contraposta à interioridade da
ções religiosas e filosóficas da cultura ocidental consciência; o macro e o microcosmo formando
e oriental, e amplificando os símbolos, na ten- uma unidade, como também aquilo que singula-
tativa de melhor compreender a alma humana, riza algo existente, ou seja, seu princípio ou sua
sempre dentro da prática empírica, Jung redes- essência ou princípio diretivo.
cobriu a ideia muito antiga da correspondência A noção da natureza como princípio de vida e
entre o microcosmo humano e o macrocosmo de movimento de todas as coisas existentes é a sua
divino. E foi dentro do conceito de Natureza pen- mais antiga e venerável noção, e os primeiros repre-
sada pelo romantismo alemão, que a noção de sentantes dessa visão foram os pré-socráticos.
inconsciente na psicologia de Jung teve seu am- Os filósofos pré-socráticos, chamados mais
paro histórico-filosófico. Foram os românticos os costumeiramente de physiológoi ou kosmólogoi,
primeiros filósofos a pensar a interioridade hu- foram os primeiros pensadores do Ocidente,
mana como Natureza, como veremos. que, a partir do século VI AC, iniciaram uma nova
Para Jung o inconsciente é o mesmo que forma de explicação do universo, de maneira ra-
Natureza, e o projeto da psicologia analítica é cional e não mitológica. Com eles o mito deixa
integrar a Natureza em nós, estabelecendo um de ser a forma de explicar a realidade e o logos
profundo diálogo com ela, e não extirpá-la ou passa a ser a nova forma de discurso.
fazê-la calar. Isto fica claro ao lermos a seguinte Estes primeiros filósofos começaram a inda-
passagem de sua obra: gar sobre a arché da realidade. A palavra arché,
por sua vez, designa não somente o início de
Vivemos protegidos por nossas mura- algo, mas é a fonte inaudita de tudo que é, e de
lhas racionalistas contra a “eternidade onde tudo brota incessantemente; é também o
da natureza”. A psicologia analítica pro- poder, a força, o princípio constitutivo, a matéria
cura justamente romper essas muralhas, prima ou substância primeira, do que estes pen-
ao desencavar de novo as imagens fanta- sadores chamavam Phýsis. O interesse funda-
siosas do inconsciente que a nossa men- mental dos pensadores pré-socráticos foi pensar
te racional havia rejeitado. Essas imagens a arché da Phýsis. Neste sentido, Phýsis e arché
situam-se para além das muralhas; “são não são conceitos que podem ser separados, an-
parte da natureza que há em nós” [...], tes disso, denominam dimensões de uma mes-
e contra qual nos entrincheiramos por ma realidade em perpétuo devir.
trás das muralhas da ratio (razão) (JUNG, A palavra grega Phýsis, “é um derivado da
1991,§739[grifo nosso]). raiz phy, que quer dizer brotar, crescer. O sufixo

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sis, em grego, corresponde ao tione, em latim, como a de movimento. “Nisto se revela a dupla
e ção, em português. [...] Podemos dizer, então, carga semântica da raiz Phy, da qual procede a
que Phýsis significa ‘brotação’, isto é, o ato di- palavra Phýsis, a do ser e a de tornar-se ou vir a
nâmico de nascer e de brotar” (MURACHCO, ser” (PANNIKAR, 1972, p. 56).
1996a, p. 14). Phýsis carrega, portanto, o senti- A Natureza para Aristóteles, portanto, é “a
do de devir, de tornar-se, de vir a ser. Designa substância das coisas que têm o princípio do
o crescimento espontâneo de algo não por um movimento em si próprio em quanto tal” (1998,
fator extrínseco, mas pela força que lhe é intrín- v.4 4, 1015a13).
seca. Designa a própria experiência do devir de Neste sentido, a Natureza não é só causal,
tudo que existe. Por isso, a palavra Phýsis tem mas causa final, ela é teleológica, ela tende a um
um sentido muito abrangente, pois abarca tudo fim. A tese do finalismo da Natureza compreen-
que é em qualquer nível de ser: o céu, a terra, um de um princípio movimento teleológico inerente
animal, uma pedra, uma planta, o ser humano, à Natureza, ao qual Aristóteles deu o nome de
mas também um sentimento, um deus, tudo que enteléchia: a realização plena e completa de
é, é uma expressão de Phýsis: “À Phýsis perten- uma tendência, potencialidade ou finalidade
cem o acontecer humano como obra do homem natural, em qualquer um dos seres animados e
e dos deuses, e os próprios deuses, como a ex- inanimados do cosmos.
pressão mais brilhante da Phýsis, sua ontofania” A segunda concepção fundamental de Nature-
(UNGER, 2006, p. 26). za é a de ordem e necessidade e finalidade. Se Pla-
Poderíamos afirmar que a intuição essen- tão e Aristóteles tinham já formulado uma concep-
cial dos pensadores pré-socráticos é a unida- ção teleológica do cosmos, os estoicos vão mais
de profunda e dinâmica de tudo que é, vale além, pois acentuam a regularidade e a ordem do
dizer, da Phýsis. devir à qual a Natureza preside. "Trata-se do fato
Outra palavra que se adere ao conceito de estoico, que é a necessidade absoluta da ordem
Phýsis dentro desse período na Grécia é a palavra cósmica estabelecida por Deus (Pneuma, ou Zeus).
kósmos. A concepção de Phýsis induziu os pré-so- Essa concepção de natureza necessária para os
cráticos a trabalhar a palavra kósmos, que signi- estoicos levou-os a pensar a Natureza como desti-
fica ordenação e beleza. A Phýsis é um kósmos, no, como necessidade inelutável, denominada de
isto é, a natureza é vida dotada de movimento e Hiemarméne" (REALE, 1994, v.3, p. 316).
ordem intrínseca a ela mesma. E já que para os Devemos esclarecer que durante a Idade
gregos o que é dotado de movimento próprio é Média, período que se estende entre o século
divino, em sendo assim, a Phýsis ou Natureza é V e o XV, culturalmente abarca filósofos ára-
divina. Nesse sentido disse Heráclito: “Esta or- bes, judeus e cristãos como em nenhum outro
dem do mundo (a mesma de todos) não a criou momento da história da filosofia. Tal fato torna
nenhum dos deuses, nem dos homens, mas sem- difícil enquadrar uma única posição a respei-
pre existiu e existe e há de existir: um fogo sempre to da filosofia da natureza nesse período. Mas
vivo que se acende com medida e com medida se com certeza, a ideia de correspondência entre
extingue” (KIRK; RAVEN, 1994, p. 205). a ordem macrocósmica e a ordem microcósmi-
Outra definição de Natureza como substância ca permanece. O homem ainda é parte de um
ou essência necessária encontra-se na Metafísi- macrocosmo divino, suas raízes ainda estão
ca de Aristóteles (384–322) que envolve o con- plantadas na Natureza que é divina, mesmo
ceito de matéria e forma (essência-ousia). Duas quando é compreendida como “exterioridade”
ideias básicas dominam o conceito de Natureza do espírito e por isso imperfeita e descaracteri-
em Aristóteles, a gênese das coisas e a substân- zada, como é o caso de Plotino (2002) e de toda
cia (ousia), isto é, a essência das mesmas, bem teosofia medieval.

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Mais à frente na história das ideias, no pe- “De sorte que, esse eu, isto é a alma, pela qual
ríodo renascentista, o naturalismo renascentista sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e
recorreu ao sentido de Natureza como Deus mes- de fato é mais fácil de conhecer do que o corpo,
mo, dado a virtude divina que se manifesta nas e, ainda que nada fosse, ela não deixaria de ser
coisas, portanto, a Natureza é divina. A Natureza tudo o que é” (DESCARTES,1983, p. 47).
é compreendida como um sistema vital de cone- Esta citação de Descartes marca a transforma-
xões necessárias. Já o aristotelismo renascentis- ção da Natureza num mero espaço geometrizável,
ta retoma o conceito de Natureza como ordem, o lugar sem sacralidade e valor, além disso, mar-
como necessidade absoluta da ordem cósmica ca a cisão entre a Natureza e o pensamento.
estabelecida por Deus. Essa noção de natureza Com Descartes, a tradição da filosofia entra
fundamenta as primeiras noções da ciência mo- em um processo de aniquilamento e com ela a
derna sem, no entanto, desenraizar o homem mais venerável noção de Natureza como divina,
dela. Em Copérnico, Kepler e Galileu, a concep- e do homem como parte da Natureza. A dessacra-
ção da natureza é entendida ainda como ordem lização da Natureza, agora compreendida como
necessária, mas de caráter matemático, porém res extensa separada da res cogitans, é pensada
perde a noção finalista. como substância que não pensa, extensa, im-
Esse sentido de Natureza atravessou todo perfeita, finita e dependente, passa a ser alvo
o naturalismo renascentista até o século XVII, de manipulação e especulação físico matemáti-
quando, nesse século mesmo, começou a con- ca, o que desencadeou um longo processo his-
traposição entre o homem e a Natureza com tórico de domínio e manejo da natureza, cujas
René Descartes, ao dar início à filosofia moder- consequências podemos sentir em nossos dias.
na, processo que já havia sido iniciado um sécu- Iniciou-se assim, a quebra da tradição milenar
lo antes com Roger Bacon, empirista inglês. do cosmo estético-religioso da cultura ocidental.
Desde a Grécia arcaica, os sábios e os filó- O desenraizamento do homem da natureza
sofos elaboraram um modelo de cosmos, como ganha um plus com Immanuel Kant (1724– 1804).
podemos ver, no seio do qual prevaleceu a cor- Kant é famoso, sobretudo, pela elaboração do
respondência entre o microcosmo humano e o denominado idealismo transcendental. A filoso-
macrocosmo divino. Esse esquema teve sua au- fia da natureza e da natureza humana de Kant
toridade no Ocidente até a ruptura instalada com é historicamente uma das mais determinantes
o advento das primeiras manifestações da ciên- fontes do  relativismo conceptual que dominou
cia moderna, com os empiristas ingleses, depois a vida intelectual do século XX. Diferentemente
com Descartes e para finalizar com Kant. de Descartes, Kant reduziu o ser à razão, negan-
René Descartes (1596–1650), filósofo francês do totalmente existência da realidade exterior
do século XVII, foi o pensador que demarcou as quando coloca a sua total dependência em rela-
bases do pensamento da ciência moderna. Sua ção ao sujeito conhecedor.
filosofia teve profundo impacto no Ocidente. Como o grande crítico da metafísica parmanece
Suas ideias influenciaram muito a relação do ho- dogmática, para Kant a ideia de alma, de mundo,
mem com a natureza, pois Descartes foi o primei- unidade absoluta da experiência externa, e de Deus
ro filósofo a romper com a tradição e a desenrai- são conceitos necessários da Razão, e não realida-
zar-se de tudo que fosse história, como parte de des em si, pois deles não podemos ter conhecimen-
seu método de conhecimento. Seu desenraiza- to objetivo, isto é, que envolva sensibilidade e en-
mento foi tanto que ele chegou a se pensar como tendimento. Portanto, a cosmologia pensada pela
apenas uma substância, cuja essência é “pen- metafísica permanece dogmática que culmina com
sar”, destituindo-se de toda materialidade (cor- a ideia de Natureza como cosmos, para Kant é uma
po) e espaço. Como disse em suas meditações: das ilusões transcendentais (KANT, 1997, p. XVII).

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Segundo ele, pela expressão natureza enten- gião do inconsciente” (1846, 2ª ed. apud GUS-
de-se apenas o conjunto dos fenômenos que só DORF, 1993, v.2, p. 160).
existem segundo regras necessárias ou leis do Fica claro que, para estes filósofos, Natureza
pensamento. A natureza para Kant não é um prin- é o mesmo que inconsciente. Esta filosofia supri-
cípio metafísico, um sistema vital divino de cone- me, assim, a dualidade entre o res cogitans e a
xões necessárias, mas a possibilidade da Razão, res extensa, afirmando como fez Schelling: “que a
ou das leis universais originárias da Razão, gra- atividade consciente é primitivamente idêntica ao
ças às quais é possível a experiência empírica. inconsciente” (1797, apud GUSDORF, 1993, p. 418).
Estava instalado assim, o paradigma moder- Para F.W. Schelling (1775–1854), filósofo que
no, leitura do ser, do conhecer e do homem. Den- sistematizou as concepções da filosofia român-
tro desse paradigma o homem agora centrado na tica, o Absoluto é o princípio divino condicionan-
Razão soberana, desintegrou-se da Natureza. do o real total, é a harmonia, a identidade, a uni-
O movimento romântico, do final do século dade sintética dos contrários, unidade vivente
XVIII e início do século XIX, assinalou um momen- onde se encontra o germe de toda a diversidade
to decisivo na filosofia europeia. O movimento existente. Segundo ele, o real pensado como
organismo é compreendido como um Todo pree-
romântico foi um movimento contra iluminista,
xistente às suas partes, dotado de sentido e mo-
sendo assim, questionar o paradigma moderno
vimento próprio. Compreendeu a Natureza como
foi a grande tarefa filosófica do Romantismo ale-
um sistema teleológico em processo, resultante
mão. Um novo paradigma nasce com o Roman-
de uma força inteligente criativa nela mesma.
tismo, em que o ser, o conhecer e o homem são
Sendo assim, a primitiva aliança do homem com
pensados em novas bases filosóficas, escapan-
a Natureza fora restaurada, o que Schelling cha-
do do empirismo experimental, sem consistên-
mou, de “estado de natureza da filosofia” (1797,
cia e sem fundamento, e do idealismo crítico
apud GUSDORF, 1993, v.2, p. 460).
incapaz de respeitar a autonomia da realidade.
Para Schelling, o homem é um complexo de
O objetivo da Naturphilosophie, assim deno-
matéria e espírito, imerso nesse Organismo,
minada pelos românticos, foi pôr em evidência
a Natureza, inteligente em perpétuo devir. Para
o organismo total da Natureza. Para eles a Natu-
ele não há um fio misterioso que liga nosso es-
reza existe por ela mesma, e este realismo é sin- pírito à natureza, ou um “órgão” intermediário
cronizado com o idealismo, “dado que a nature- através do qual a natureza fala ao espírito e o es-
za é o organismo visível correspondente àquele pírito à natureza, como pensou Descartes, mas:
que existe invisivelmente no nosso entendimen- “A Natureza deve ser o Espírito visível, e o Espí-
to” (GUSDORF, 1993, p. 419). Para os românticos, rito a Natureza invisível” (1797, pp. 45-46, apud
a totalidade, ou seja, a Natureza, este grande GUSDORF, 1993, v.2, p. 460).
organismo ou sistema vivo, é um princípio onto- Portanto, a consciência e a razão humana fo-
lógico, e não um produto lógico do pensamento, ram vistas como a floração própria de sua esta-
como pretendeu Kant. A tese de seus trabalhos é ção, isto é, do seu momento histórico. A consci-
que a consciência não é homóloga à alma. Esta ência humana representa um momento no devir
última possui uma expansão igual àquela do da inteligibilidade da Natureza em busca da sua
universo; ela emerge, das profundezas onde a própria perfeição. Por isso, a respeito do conhe-
vida se desdobra sem consciência da vida. cimento, se o espírito é Natureza e Natureza é
A primeira frase do livro Psyche de C. G. Carus espírito e, se a consciência humana é a revela-
(1789–1869), filósofo romântico alemão, revela: ção da inteligibilidade da Natureza, decorre daí
“[...] a chave para o conhecimento da essência que o espírito conhece a Natureza, pois é Natu-
da vida consciente da alma se encontra na re- reza. E foi a partir da redescoberta da linguagem

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simbólica, a que se dá através da imaginação no próprio espírito humano uma razão


criativa e da intuição pura, que se percebeu que para essa crença de vida da natureza.
a Natureza fala de uma maneira tanto ou mais E é realmente assim; [...] é por essa razão
inteligente que o nosso pensamento reflexivo1. que o espírito humano concebeu a ideia
Assim sendo, desta perspectiva, a nossa de uma matéria organizando-se ela mes-
consciência pressupõe uma inteligibilidade uni- ma e, como a organização só pode ser re-
tária com aquilo que é seu fundamento ontológi- presentada pelo relacionamento com um
co. Essa unidade liga indissoluvelmente a cons- espírito, temos que admitir que o espírito
ciência conhecedora e a realidade conhecida. e a matéria estão desde sempre indisso-
Tal visão de mundo reconecta a humanidade a luvelmente unidos nas coisas (1797, apud
uma totalidade originária preestabelecida e res- GUSDORF, 1993, v. 2, p. 471).
tabelece o sentido da vida humana, na medida
em que assegura a existência de sua vida inte- Schelling, relembrando os físicos pré-socráti-
rior pela eternidade. A humanidade: “[...] é uma cos e a cosmologia tradicional, descobriu o pres-
força num sistema de todas as forças, um ser na sentimento dessa verdade permanente, ou seja,
imensa harmonia de um mundo de Deus” (1962 da ordem da Natureza. Então, pensamos que
apud GUSDORF 1993, p. 423). essa ideia permanente é uma expressão arque-
Esta visão da Natureza abrange o sentido gre- típica pertencente à própria natureza humana,
go de theós, “uma projeção, uma ideia, uma visão e que as ciências ditas positivas só mascararam
pela mente” (MURACHCO, 1996b, p. 75). Ou como a verdade essencial que habita o universo. A flor
disse Schelling, opondo-se ao criticismo, “[...] o azul romântica, emblema do Romantismo, repre-
verdadeiro sistema não pode ser inventado, pode sentou um novo valor de vida, pois, a seu modo,
apenas ser encontrado enquanto um sistema em o romantismo retomou a Grécia, tentando restau-
si; a saber, no entendimento divino, já existente” rar a tradição milenar do cosmo estético-sagrado.
(1985 apud SCHUNBACK, 1998, p. 130). Como herdeiro do romantismo, formular uma
A hipótese de uma harmonia preestabele- visão unificada de mundo também foi preocupa-
cida da Natureza e do espírito recobrou com os ção de Jung, sendo grande sua contribuição para
a psicologia nesse sentido, ao formular uma con-
românticos aquela imagem tão antiga do divino
cepção mais ampla de inconsciente, vale dizer,
como Phýsis. O mundo retomou, para os român-
como psique objetiva ou inconsciente coletivo.
ticos, a antiga imagem de uma realidade preor-
Jung, aprofundando sua compreensão do in-
denada, vital e infinita em perpétuo devir. Esta
consciente coletivo, em 1931, num artigo cujo
intuição se afirmou, parece-nos, em todos os
título original é Die Entscheierung der Seele
tempos e lugares e, segundo Schelling:
traduzido para o português como O problema
fundamental da psicologia contemporânea, in-
[...] Esta ideia é tão antiga e se manteve
troduz o termo “psique objetiva”, que é o equi-
sob formas as mais variadas até nossos
valente a inconsciente coletivo, para mostrar
dias de uma forma tão constante (nos
que o inconsciente é uma realidade em si mes-
tempos mais antigos, acreditava-se que o
ma, ou como ele diz: uma realidade objetiva.
mundo inteiro estava penetrado por uma
Cabe ressaltar que Jung, no entanto, como mé-
alma chamada alma do mundo, e na épo-
dico da alma, chegou a conceber o inconscien-
ca de Leibniz atribuía-se uma alma a cada
te como realidade autônoma e objetiva a partir
planta) que se é obrigado a supor que há
de sua práxis como médico, e argumenta que
pensar o inconsciente como fonte de vida parte
1 Aqui estão os pressupostos junguianos da análise do sonhos e
dos mitos, como linguagem da própria natureza. da “experiência” de sua autonomia. Pois, “[...]

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De onde surgem o entusiasmo, e a inspiração Esse trecho mostra a viva ideia de que o in-
e o exaltado sentimento de vida” (JUNG, 1911, consciente coletivo é muito mais que um legado
§668)? Nós sentimos a presença desta realida- histórico, a somatória da experiência da humani-
de misteriosa e temível toda vez que “traímos” dade, ou seu legado filogenético. Jung, ao dizer
nossas intenções conscientes, e toda vez que que o inconsciente coletivo é uma “objetividade
subitamente somos tomados por um sentimen- vasta aberta ao mundo inteiro”, concebe-o como
to de medo ou de vida inspirador, e não sabe- uma vida objetiva, como espécie de uma tessi-
mos de onde vem. Como disse nosso venerável tura invisível onde todos os seres, e não só os
mestre, Jung: homens têm seu ser. Assim compreendido, o in-
consciente coletivo é o fundamento de toda es-
O psiquismo aparece como uma fonte de pécie de existência, alma de tudo o que vive, ele
vida, um “primum movens” (motor primeiro), é Natureza como pensaram os românticos.
uma presença espiritual que tem objetiva Em outro trecho, em que o inconsciente cole-
realidade [...] o psíquico não é [...] a quintes- tivo aparece como a metáfora do oceano e dos
sência do subjetivo e do arbitrário; é algo ob- peixes nele contidos, podemos ver a mesma ideia
de Natureza como um sistema, a invisível interde-
jetivo, subsistente em si mesmo e possuidor
pendência de toda vida no cosmos. Leiamos:
de vida própria (JUNG, 1991, §666).

Enquanto o não-ego (inconsciente) pa-


Fica evidente a aproximação, neste parágra-
rece ser oposto a nós, naturalmente o
fo, de inconsciente com o conceito romântico de
sentimos como um oposto, mas depois
Natureza, fonte inaudita de tudo que é e de onde
entenderemos que o inconsciente coleti-
tudo brota incessantemente, a prima matéria de
vo é como um vasto oceano, com o ego
tudo que existe. É o que os pensadores gregos
flutuando sobre ele como um pequeno
chamavam de Phýsis, e os românticos, de Natu-
barco. Então, quando vemos isto, surge a
reza, como já vimos.
questão se estamos contidos no oceano.
Podemos ler o inconsciente coletivo desta
[...] os peixes são unidades vivas no ocea-
perspectiva em várias passagens de sua obra.
no; eles não são absolutamente como ele,
Recolhemos alguma delas no sentido de demons- mas estão contidos nele; seus corpos,
trar sua aproximação com o romantismo alemão, suas funções, estão maravilhosamente
em relação ao inconsciente como Natureza. Citan- adaptados à natureza da água, a água e
do Jung, percebemos que o inconsciente: o peixe formam um “continuum” vivente.
[...] Quando aceitamos este ponto de vista
É o mundo da água onde todo o vivente temos que supor que a vida é realmente
flutua em suspenso, onde começa o reino um “continuum” e destinado a ser como
do “simpático” da alma de todo ser vivo é, isto é, toda uma tessitura na qual as
[...].O inconsciente coletivo é tudo salvo coisas vivem com ou por meio uma da ou-
um sistema pessoal fechado, é uma ob- tra. Assim, árvores não podem existir sem
jetividade vasta como o mundo e aberta animais, ou animais sem plantas, e talvez
ao mundo inteiro. [...] Lá, no inconsciente animais não possam ser sem o homem,
coletivo, eu estou ligado ao mundo numa ou o homem sem animais e plantas,
ligação tão mais imediata que eu esqueço e assim por diante. E sendo a coisa inteira
muito facilmente quem eu sou em realida- uma tessitura, não é de admirar que todas
de (JUNG, 2000, v.1, §45 e 46). suas partes funcionem juntas [...] porque

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são partes de um continuum vivo” (JUNG, O inconsciente coletivo, portanto, é a misteriosa


1976, p. 180). ordem do mundo, compreendida como Phýsis pe-
los gregos, e Natureza pelos românticos. Sendo
Não podemos deixar de ver aqui presente assim, não seria demais pensarmos que o incons-
ideia de um organismo, de um todo orgânico, ciente tenha uma inteligência nele mesmo, o que
de um grande sistema em que cada ser individu- Jung irá afirmar quando, em seu estudo Sincro-
al está mergulhado, é onde nos movemos, vive- nicidade: um Princípio de Conexões Acausais, de
mos e temos nosso ser. Este relato traz a ideia de 1952, refere-se à qualidade de conhecimento ab-
que entre a vida do grande todo e a vida huma- soluto do inconsciente coletivo. Conforme Jung:
na existem uma relação de englobamento ou de
pertença, tônica distintiva da Naturphilosophie. O conhecimento absoluto, que é caracte-
A compreensão do inconsciente coletivo rístico dos fenômenos sincronísticos [...]
como continuum vivente reúne o subjetivo com serve de base à hipótese do significado
o objetivo, o indivíduo com o mundo, o fato exte- subsistente em si mesmo, ou exprime sua
rior com a imagem interna, o corpo com a alma, existência. Esta forma de existência só
matéria com o espírito, o múltiplo com o uno, em pode ser “transcendental” porque, como
outras palavras, é onde os opostos se anulam e no-lo mostra o conhecimento de aconteci-
fazem parte de um círculo intacto. mentos futuros ou espacialmente distan-
Esta ideia exprime que as coisas são em con- tes, situa-se em um espaço psiquicamen-
junto e evidencia a qualidade do inconsciente co- te relativo e num tempo correspondente,
letivo como Natureza. Nós estamos na psique e isto é, em um contínuo espaço-tempo irre-
não ela em nós; nossas raízes estão mergulhadas presentável (JUNG, 1991, §938).
na Natureza, o que vale dizer, no inconsciente.
Ainda em outro texto, aproximando incons- O fenômeno da sincronicidade atesta a au-
ciente à ideia grega de arché, Jung descreve tonomia do inconsciente capaz de organizar e
o inconsciente coletivo como origem de toda dar forma aos acontecimentos exteriores, bem
manifestação de vida, como a prima matéria como, ao nível das imagens internas tem o po-
de toda vida. Cito a passagem em que essa der de organizar e ordená-las significativamente.
perspectiva aparece: Demonstra ainda a atemporalidade do incons-
ciente, pois ao situar-se “num contínuo espaço-
E talvez seja apenas o modo pelo qual ele -tempo irrepresentável”, vive num tempo eterno.
é destacado (o indivíduo), apenas o tama- Pensando ter demonstrado a relação entre
nho ou a forma como é talhado, que indi- Natureza e inconsciente, no sentido romântico,
ca o indivíduo particular, um tendo mais na psicologia analítica, gostaria de terminar ci-
desta substância e menos da outra, esta tando Vernant, que resumiu tão magnificamente
forma ou aquela forma. Mas todos são o que abordamos até agora:
sempre feitos da matéria do inconsciente
coletivo... (JUNG, 1976, p. 180). A alma humana é um pedaço da natureza,
talhado no estofo dos elementos. O divino
Diante de tais textos, a compreensão de in- é o fundo da natureza, o tecido inesgotá-
consciente coletivo não pode ficar restrita à com- vel, a tapeçaria sempre em movimento
preensão de um substrato filogenético e experien- onde, sem fim, se desenham e apagam-se
cial, como colocamos, mas tem que ser entendida as formas (VERNANT, 1973, p. 300, n. 20). ■
como a harmonia preestabelecida ou arché de
toda individualidade, bem como da totalidade. Recebido em: 1\8\2017 Revisão: 13/11/2017

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Junguiana
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Abstract

Of Nature and the Collective Unconscious


This article aims to draw a parallel between demonstrate the proximity of analytical thinking,
the concept of the collective unconscious of an- regarding the conception of Nature and uncon-
alytical psychology and the conception of Na- scious, with the conception of Nature in German
ture within the philosophical tradition. It tries to Romanticism and Greek philosophy. ■

Unitermos: Collective Unconscious, Nature, Phýsis, cosmos, arché.

Resumen

De la Naturaleza y del Inconsciente Colectivo


Este artículo tiene como objetivo trazar un pensamiento analítico, en lo que se refiere a la
paralelo entre el concepto de inconsciente col- concepción de Naturaleza e inconsciente, con la
ectivo de la psicología analítica y la concep- concepción de Naturaleza en el Romanticismo
ción de la naturaleza dentro de la tradición fi- alemán y en la filosofía griega. ■
losófica. Intenta demostrar la proximidad del

Uniterms: Inconsciente colectivo, naturaleza, Phýsis, cosmos, arché.

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Junguiana
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