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dez filósofos para entender o mundo hoje

O Tempo do Agora

Entrevista com Vladimir Safatle

Dez filósofos pra entender o hoje

Carpe Diem com Georgette Fadel

A arte lê o presente
Quando é hoje?

O tempo do agora

Entre a sensação de impotência diante do passado e a incerteza em relação ao futuro, o


contemporâneo se desenha como uma era marcada pelo risco, pela insegurança e pelo
provisório, na sociedade e na arte

Almir de Freitas (texto) e Henk Nieman (fotos)

Em um texto que se tornou famoso, o filósofo alemão Walter Benjamin fez uma interpretação
muito pessoal de Angelus Novus (1920), quadro expressionista de Paul Klee. Tratava-se, segundo
escreveu em uma de suas Teses Sobre a Filosofia da História (1940), do “anjo da história”: asas
abertas, esse anjo caído não pode parar, impulsionado em direção ao futuro por uma
tempestade que sopra do paraíso; rosto eternamente voltado para o passado, ele assiste com
seus “olhos encarquilhados” às ruínas que se acumulam até o céu, resultado de uma única e
imensa catástrofe humana. “Essa tempestade”, assinalou, “é o que denominamos o progresso”.

Não demoraria muito para que Walter Benjamin, judeu, fizesse ele também parte da catástrofe,
tão costumeira no século 20. Acredita-se que, em 26 de setembro de 1940, ele tenha cometido
suicídio depois de ser impedido de atravessar a fronteira da Espanha, rumo aos Estados Unidos,
fugindo da França ocupada pelos nazistas. Se não predizia seu futuro imediato quando escreveu
o texto, Benjamin tinha claras diante de si, muito próximas, as ruínas da sua – nossa – civilização,
aceleradas então pela Segunda Guerra Mundial e pelo nazismo – um horror que preenchia todo
o seu presente.

Daí que esse anjo novo de Klee-Benjamin possa ser tomado também como emblema de um
presente persistente – esse “tempo histórico coletivo” que chamamos costumeira, e às vezes
imprecisamente, de “contemporâneo”. Um tempo difuso espremido entre a sensação de
impotência diante do passado e a incerteza em relação ao futuro, feito de marcos de difícil
apreensão. Para o próprio Benjamin, a história era o “objeto de uma construção cujo lugar não é
o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras.”

Mas o que é o contemporâneo? Quem nos ajuda a desenhar uma resposta é o filósofo italiano
Giorgio Agamben, autor de outro texto famosinho, cujo título, muito a calhar, é O Que É o
Contemporâneo? (2006). Recorrendo a uma anotação de Roland Barthes, que por sua vez se
utilizou de uma formulação de Friedrich Nietzsche, Agamben afirma de início que “o
contemporâneo é o intempestivo” – o que equivale a dizer que ele não deve ser pensado apenas
em conexão com o tempo presente. Muito ao contrário:
“A contemporaneidade (...) é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e,
ao mesmo tempo, dele toma distâncias (...) Aqueles que coincidem muito plenamente com a
época, em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.”

O aparente paradoxo, segundo essa concepção, é a de que é preciso enxergar além de seu
tempo – de olho no passado, no arcaico – para compreender o presente. Não apenas isso:

“Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber nele não as
luzes, mas o escuro. (...) Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas
luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. (...) É
como se aquela invisível luz, que é escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado,
e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do
agora.”

O contemporâneo seria, digamos, algo como uma Medusa: é possível encará-lo, mas com certo
método. Quem é bem-sucedido nessa missão está apto a “transformar e colocar o presente em
relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história.” Se é assim é, supõe-se que
haveria outros modos de aquele anjo ler com mais clareza o cenário das ruínas a seus pés. E,
mais importante, compreender sua condição presente.

Angelus Novus (1920), de Paul Klee

Para enxergar o presente, é preciso olhar para a sua escuridão

A sociedade do medo

O filósofo Vladimir Safatle afirma que o medo se transformou em um elemento de coesão de


uma sociedade refém de um discurso de crise permanente

Almir de Freitas
Professor livre-docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir
Safatle defende no livro O Circuito dos Afetos (Autêntica, 2016) que as sociedades se pautam
não apenas por relações de troca de riquezas, mas são também sistemas de “afetos” políticos.
Na vida contemporânea, ele assinala, o afeto hegemônico é o medo – medo que se transformou
no elemento de coesão de uma sociedade refém de um discurso de crise permanente, em que
essa crise virou ela mesma “uma forma de governo.” Na entrevista que se segue, concedida por
Safatle em sua sala na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, ele fala sobre esse
estado de coisas, violência, amor e felicidade, além do discurso “problemático” do humanismo. E
ressalta, por fim, o papel fundamental da obra de arte nas potencialidades de transformação
social, ao modificar nossa sensibilidade. “Toda verdadeira obra de arte é a instauração de uma
nova gramática”, afirma.

Como se caracteriza o circuito dos afetos da sociedade contemporânea?

A ideia central é de que as sociedades não são só circuitos de bens e de riquezas, não são só
baseadas em sistemas de trocas – sejam elas trocas de objetos, trocas econômicas, trocas
matrimoniais. Elas são também sistemas de circuitos de afetos, ou seja, são modos de circulação
e produção de afetos. Isso significa que, para entendermos o que uma sociedade é capaz de
fazer ou não, como ela constitui laços sociais e constrói sua coesão, é necessário saber quais são
os afetos hegemônicos que produzem esses contatos entre corpos, esses contatos entre sujeitos.
Essa questão nos leva a perguntar, primeiro, se há um afeto hegemônico na vida
contemporânea; e, segundo, qual seria esse afeto.

E qual é?

Não é muito difícil encontrar uma resposta a essa pergunta se levarmos em conta a maneira
como o medo se transformou num afeto político central das nossas vidas. Não só por questões
concretas, mas também como o resultado de um certo modelo de gestão social: gere-se o medo
como elemento fundamental de construção de unidade, de coesão e também de paralisia da
maneira como essa sociedade prefere ficar na situação em que está do que tentar utilizar sua
imaginação para procurar novos caminhos, novos modos de existência.

E o desamparo?

Eu utilizei o desamparo como um contraponto a isso, na verdade, quase como uma espécie de
manobra inesperada. Porque, a princípio, pode parecer que nós vivemos em uma sociedade na
qual o desamparo é um elemento central, haja vista a maneira como as pessoas vão constituindo
suas relações de autoridade a partir de demandas de amparo. Os americanos chamam isso de
“care”, política do “care”. Uma das coisas interessantes da psicanálise freudiana, e que tem um
forte impacto nas nossas reflexões sociais, é a ideia muito própria de Freud de que o desamparo
não é algo que se cura, nem é algo que se trata – o desamparo é algo que se afirma. Ou seja,
esse desamparo não é, na verdade, algo contra o qual nós devemos lutar, mas uma condição
fundamental para nossa liberdade. Há uma relação muito importante entre liberdade e
desamparo, e acho que ela tende a desaparecer um pouco dentro das nossas formas atuais de
vida.

No seu Quando as Ruas Queimam: Manifesto pela Emergência, você diz que nossa época vai
passar para a história como o momento em que a crise virou uma forma de governo. Você está
falando do medo que é gerado pela crise?

Sim, como efeito. É importante entender como o discurso da crise se transformou num modo de
gestão social. As crises vêm para não passar. Por exemplo, nós vivemos numa crise global há oito
anos. Isso do lado socioeconômico. No que diz respeito aos problemas de segurança, vivemos
uma situação de emergência há quinze anos, desde 2001. Ou seja, são situações nas quais vários
direitos vão sendo flexibilizados, em que os governos vão tendo a possibilidade de intervir na
vida privada dos seus cidadãos em nome de sua própria segurança. É muito mais fácil você gerir
uma sociedade em crise. Então, a sociedade em crise é uma sociedade, primeiro, amedrontada;
segundo, é uma sociedade aberta a toda forma de intervenção do poder soberano, mesmo
aqueles que quebram as regras, quebram as normas constitucionais. Como estamos em uma
situação excepcional, essas quebras começam a se virar coisa normal. Esses discursos a respeito
da luta contra a crise são muito claros no sentido de impedir a sociedade de reagir. Não se reage
porque “a situação é de crise”.

E aí entra o medo.

Exatamente. Aí entra um pouco essa maneira de transformar o medo num elemento


fundamental da gestão social. Ou seja, o medo produzido, em larga medida, potencializado,
administrado, gerenciado. É o gerenciamento do medo como único forma de construir coesão
hoje em dia. Nós podemos construir coesão a partir da partilha de ideias; só que, quando a
sociedade chega no ponto em que ela desconfia dos ideais que lhe foram apresentados como
consensuais, quando desconfia das gramáticas sociais que são responsáveis pela mediação dos
conflitos, não resta outra coisa a não ser um tipo de coesão negativa. Não coesão por algo que
todos afirmam, mas uma coesão através de algo que todos negam.

Quando você fala da gestão da crise, quem são os agentes? O poder constituído do Estado, os
agentes financeiros, o corpo social?
De fato, o discurso da maneira como eu estava colocando pode dar um pouco a impressão de
que há uma espécie de grande sujeito por trás. Eu diria que o que acontece é: nós partilhamos
de um modo de existência que, por não conseguir realizar as suas próprias promessas, e
também por impedir uma abertura em direção a outros modos de existência, começa a
funcionar numa chave de conservação. É importante falar de modos de existência porque isso
tira um pouco a figura do sujeito que delibera. Então temos, sei lá, o poder do Estado, a
burocracia que controla o poder do Estado, o capital financeiro. É inegável que haja de fato
projetos de grupos nos modos de gestão social, mas para além disso há uma coisa muito mais
brutal: uma forma de racionalidade que se transformou para nós em um elemento quase
natural, que faz com que todos comecem a pensar dessa maneira. Essa forma de racionalidade,
que acaba operando esses processos de dominação, deixa uma situação mais complexa. Não se
trata simplesmente de subverter o poder, mas de pensar de outra maneira, o que é muito mais
complicado do que pode parecer.

Quais são os instrumentos de que dispomos pra romper com essa racionalidade, com esse
circuito baseado no medo? O que fazer?

Tenho duas colocações a fazer. A primeira é: muitos acreditam que a melhor maneira de se
contrapor a circuitos de afetos vinculados ao medo seja constituir outros circuitos vinculados aos
afetos que seriam o oposto ao medo – por exemplo, a esperança. Só que aí há uma reflexão
muito interessante, de toda uma tradição filosófica, de insistir que o medo e a esperança não
são afetos contraditórios – são complementares. O que é o medo a não ser a expectativa de um
mal que pode ocorrer? O que é a esperança a não ser a expectativa de um bem que pode
ocorrer? Quem tem a expectativa de que um mal ocorra, também espera que esse mal não
ocorra. Da mesma maneira, quem tem a expectativa de que um bem ocorra, teme que esse bem
não ocorra. Então, a reversão contínua de um pólo a outro, da esperança ao medo, é uma
constante, porque são dois tipos de afetos ligados a um mesmo modo de experiência temporal.
São afetos ligados à projeção de um horizonte de expectativas. Nesse sentido, toda forma de
pensar o tempo de maneira simétrica vai produzir resultados simétricos. Então, um outro afeto
seria necessariamente um afeto que teria uma outra relação com a ideia de acontecimento.

Não temporal.

Não essa temporal, projetiva. Aí tem uma segunda questão, que é a natureza de perguntas como
O que fazer? Eu não nego que sempre fiquei muito impressionado com esse tipo de questão.
Não pela questão em si, mas pelo que a motiva, quer dizer, que posição é essa nossa que parece
natural perguntemos a outra pessoa o que fazer. Ou seja, a naturalização de uma situação de
impotência nos leva a fazer esse tipo de questão, sendo que a questão interessante é: o que
aconteceu com nossa imaginação para que seja natural pra nós perguntarmos, agora, o que
fazer? O que aconteceu com nossa imaginação política, com nossa imaginação social? Que tipo
de receio temos a respeito daquilo que não conseguimos controlar? Como, por exemplo, a
ordem dos acontecimentos. Será que toda a nossa questão não está exatamente aí, ou seja,
quem pergunta O que fazer? pergunta na verdade O que esperar?. Talvez eu me perguntasse
não o que fazer, mas Como eu devo ser?. Uma coisa é a normatividade do tipo de ação que eu
preciso ter, outra é o tipo de sujeito que precisa emergir para que a gente tenha capacidade,
então, de se deparar com aquilo que nem eu nem você pode prever ou controlar.

Pensando na transformação da sociedade, a violência tem algum papel que precisa ser pensado?

Nenhuma transformação é feita sem violência. E uma sociedade doente é aquela que só
consegue entender a violência de uma forma – como um impulso de destruição, como uma
vontade de dominação. Uma sociedade que só conjuga dessa maneira, que só conhece essa
gramática, tem problemas em relação à força, à potência. E força não é necessariamente algo
ligado a um impulso de dominação. Força é ligado a um exercício também, ao exercício da
existência de algo. Quando existe, esse algo impõe uma força. Para mim é muito sintomático
termos perdido um pouco a capacidade de perceber o quão violento pode ser um poema.
Diderot falava, por exemplo, n’O Sobrinho de Rameau, sobre a música, a mais violenta das artes.
Porque ela nos invade, mesmo quando você não quer. Monteverdi falava da música como a
tirania da alma. É claro que você pode dizer: ah, mas você está sendo diversionista trazendo
movimentos da estética quando você está falando sobre outro campo, do campos das relações
sociais.

E como seria nas relações sociais?

Relações sociais sempre serão relações de força. E isso está longe de ser um problema. Nós
nunca tivemos um problema com a força, nós temos um problema com a dominação. Há uma
força vinculada à passividade também. Uma força vinculada ao deixar acontecer. Essa segurança
de quem se coloca diante daquilo que, de uma maneira ou de outra, não é resultado mero e
simples da sua intencionalidade. Ou essa segurança de quem se abre para o que te é Outro, no
sentido forte do termo. Tudo isso configura não só as relações pessoais, mas também as relações
sociais, no sentido mais amplo do termo. A sociedade que se vê como um corpo doente, à
procura de sistemas de defesa contra aquilo que pode retirá-la da sua tradição, da sua
identidade, das suas fronteiras, do seu limite, é uma sociedade que, em larga medida, é incapaz
de lidar com uma violência que é um elemento contínuo no processo de autocriação.

E o que é tido como o oposto da violência, o amor? Que papel tem o amor nas transformações?

Essa é uma questão singular, eu diria, porque um problema interessante é: do que se está
falando quando a gente fala de amor? Porque não é claro que estamos falando do mesmo tipo
de fenômeno. E essa é uma bela questão porque nossas sociedades sabem do caráter
transformador das experiências amorosas. Isso é uma conquista social desde o século 19. Só que
há um embate sobre o que amor realmente significa, porque há uma ideia de amor quase
contratual que muitas vezes se vê, uma espécie de “estar confirmado no outro”. O outro como
aquele que me confirma: que me confirma nos meus interesses, que me confirma nos meus
atributos, que me confirma nos meus predicados. Então com ele é possível passar quase uma
espécie de contrato, mas um contrato marcado por uma certa compatibilidade, por uma certa
simetria: eu tenho esses interesses e atributos, eu procuro que eles sejam confirmados e eu
confirmo alguns dos seus interesses e atributos.... É quase uma relação comercial bem-sucedida.
É quase uma relação na qual eu dou aquilo que eu recebo.

É uma relação mercantil.

Tem uma lógica mercantil. Então, talvez uma das questões mais interessantes que a psicanálise
nos trouxe a respeito desse problema é como as relações afetivas não são relações que nos
confirmam – são relações que nos despossuem. São relações que nos despossuem das nossas
narrativas que até então funcionaram, nos obrigam a nos narrar de outra forma. É uma
modalidade de experiência na qual essa compatibilidade mercantil entra em colapso, na qual
sempre se dá demais. Mas não porque nós sejamos tontos nas relações afetivas, mas porque
elas são marcadas por uma certa desmedida, ou seja, desmedida daquilo que desconhece
medida, que não saberia o que fazer com uma medida. Nesse sentido, seria interessante
perguntarmos até que ponto somos capazes de lidar com experiências dessa natureza, se não
quisermos construir uma espécie de relação segura no interior de um processo no qual a
insegurança é um elemento produtivo.

O que caracteriza o fascismo e a democracia hoje?

Adorno tem um belíssimo texto que chama A Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda
Fascista, em que ele insiste que, se quisermos entender o fascismo, temos de entender que as
pessoas agiam sem crença. Na verdade, elas não acreditavam na ideologia fascista, toda ela
construída como uma verdadeira bricabraque. Elas performavam sua crença, agiam como se
estivessem acreditando, e isso permitia que agissem sem engajamento efetivo. E essa é a pior
das ações, é a mais implacável, porque é imune a autocorreções, não se autocorrige. Ela é imune
a qualquer tipo de crítica, porque já é constituída dentro de um tipo de lógica na qual se diz:
“Não, mas eu sei que isso não é exatamente assim. Eu sei que não é bem desta forma, mas é
importante dizer desta maneira porque só assim que o outro vai acreditar e vai agir da mesma
maneira”. Então é sempre um sujeito, um outro, que crê no meu lugar... Lévi-Strauss descreve
isso num texto muito sui generis chamado O Suplício do Papai Noel. Ele fala que essa figura
bisonha do Papai Noel é uma figura da crença que é externalizada. As pessoas agem, na verdade,
esperando que as crianças também acreditem; mas, agindo como se de fato acreditassem nisso,
perpetuam o modelo, digamos assim, de reprodução social e reprodução material da vida.
E isso se aplica à democracia?

A questão muito preocupante é que, de fato, nossas democracias são cada vez mais marcadas
por esse modelo de crença desprovida de crença. Todos nós conhecemos muito bem os limites
da nossa democracia, os defeitos do nosso sistema de representação, mas acreditamos nele,
mesmo sabendo que o sistema está longe de ser o ideal, mas é o único possível. Então esse
modelo, que parece um modelo desencantado, de maturidade desencantada (para alguns soa
assim), para mim é o mais perigoso. Porque é o modelo em que se naturalizam processos em
desagregação e, quando se está em processo de desagregação, é preciso agir com muito mais
força, senão eles perdem completamente a sua dinâmica. Porque não há convicção nenhuma
por trás, tem só uma engrenagem e um medo de que a engrenagem pare. E se ela parar, vai ser
muito pior. Então, alimenta-se um tipo de coesão que é baseada basicamente na ideia de que
você não se engaja, você simplesmente fala: “Sim, mas se a engrenagem parar, aí sim a gente vai
ter um problema.”

Voltamos à questão da crise e do medo.

Exatamente. E quais são as consequências? Você gerencia a sociedade pelo medo, bloqueia a
imaginação social de toda as pessoas, impede que elas consigam acreditar nelas mesmas para
que possam desenvolver alternativas. Você melancoliza a sociedade. É uma sociedade
melancólica. E as sociedades melancólicas são as mais violentas.

É possível dizer que a felicidade, durante um bom tempo do século 20 pelo menos, foi uma força
do individualismo?

Se voltarmos à Grécia, Aristóteles, em sua Ética, coloca a felicidade como um horizonte


fundamental da sua moral. Por que ele pode fazer isso, por que ele acha que os indivíduos
devem agir a partir das suas demandas individuais de felicidade? Ou por que ele compreende a
felicidade como uma condição social? Ou seja, a felicidade é uma adequação dessas minhas
virtudes e as virtudes que a pólis exige. Nesse sentido, não é possível uma felicidade individual
que não seja ao mesmo tempo uma felicidade social, ou seja, uma compreensão de que a
sociedade alcança a sua excelência.

E isso mudou?

Kant já não acredita mais que a felicidade deva aparecer como horizonte da moral. Acha, ao
contrário, que isso é um problema, porque se a pessoa age moralmente procurando a felicidade,
então, não age por amor à lei moral, age por interesse de alcançar alguma coisa que se chama
felicidade. Quer dizer: é uma ação condicionada, não incondicional. Essa reflexão tem um
contexto histórico muito evidente. O que acontece entre um e outro, entre Aristóteles e Kant?
Acontece muita coisa, é verdade. Mas uma das coisas é: há a emergência da ideia de indivíduo. E
é muito interessante como a ética kantiana é uma ética que desconfia do indivíduo, nesse
sentido por boas razões. Ele diz que a felicidade é marcada por uma comparação: eu sei quando
eu estou feliz olhando os outros. Ou seja, a felicidade aumenta ou diminui a partir da
comparação. Daí porque ele vai insistir: é necessário agir sem levar em conta o problema da
felicidade. Há algo de inteligente nesse tipo de colocação, a gente deveria ser um pouco mais
sensível a ela. Quer dizer, entender como de uma certa maneira a felicidade há muito tempo já
se transformou numa espécie de lógica do impossível.

Por quê?

Uma lógica do impossível porque, se vivemos em um tipo de modelo social marcado por uma
sociedade de indivíduos, é impossível que os indivíduos sejam felizes. O indivíduo é ao contrário.
Pense como os indivíduos aparecem na filosofia... vamos pensar em Hobbes, por exemplo. O
que temos é um guerra de todos contra todos, em que, de certa maneira, aprendemos a desejar
olhando o que o outro deseja. Entramos aí em uma relação rapidamente concorrencial, ou uma
relação belicista. Uma situação na qual é necessário um poder pra mediar os conflitos. E a minha
relação com você sempre vai ser uma relação, digamos, de desconfiança. E esse elemento talvez
mostre que só é possível de fato compreender alguma forma de contentamento para além desse
modelo no qual o indivíduo aparece como a célula elementar da vida social. Mas esse é que é o
dado interessante: para que isso aconteça, algo da demanda de felicidade deve desaparecer.
Não é porque a gente vai ser mais infeliz, entendeu? Não vamos falar: “vamos fazer uma espécie
de sacrifício da minha auto-realização, vamos aceitar que as pessoas não podem tudo, então
todo mundo vai ser um pouco infeliz à sua maneira, a gente faz uma socialização da infelicidade”.
Não se trata disso. Trata-se de dizer: talvez a maneira de pensar a realização de si a partir do
conceito de felicidade seja uma má maneira – e que impede a própria ideia de realização. Até
porque... há alguns que dirão: “mas eu nunca quis uma vida feliz, eu quis uma vida plena”, o que
é outra coisa, às vezes bastante diferente.

As redes sociais, hoje, funcionam também como um dos lugares de comparação de um indivíduo
com outro, como medida de felicidade? Qual o papel político na cultura das redes?

Eu não estudo redes sociais, embora eu tenha feito, mais ou menos dez anos atrás, um estudo
sobre o uso político das redes sociais com mais dois pesquisadores, Venício de Lima e Marcelo
Coutinho. Depois disso eu acompanho as redes como todos, quer dizer, não como um objeto de
estudo. Eu diria que, dentre os vários efeitos desse modelo de interação, um que me chama
muito a atenção é maneira com que as redes sociais permitiram a criação de bolhas de relação,
que dão a impressão às pessoas de que elas estão em uma esfera pública de larga escala, sendo
que muitas vezes estão em um espaço narcisicamente constituído. Acho que as pessoas vão
perceber isso aos poucos, o que vai gerar uma outra forma de engajamento. Mas a questão é: há
uma tendência muito forte de constituir relações a partir de proximidades, o que
completamente normal, mas o fato é que, por ser uma proximidade em larga escala, fica a
impressão de que se está ocupando uma esfera pública, um espaço público, com mobilização de
opinião e uma confrontação contínua. Acho que isso é muito sintomático que essas redes
tenham tido tanta força no Brasil. Um país em que a esfera pública é completamente degradada
– ela tem um modelo concentração, que é um modelo ruim, ela tem um modelo de oligopólio,
que é um modelo ruim.

O humanismo, como ele foi formulado, está acabando ou está se transformando?

Normalmente o humanismo aparece como um dos conceitos normativos mais importantes, quer
dizer, o respeito ao humano, ao indivíduo.... Eu diria o seguinte: o discurso humanista é bastante
problemático, porque ele parte do pressuposto de que o humano já se realizou. Uma das
questões mais decisivas pra nós é exatamente essa pergunta que muitas vezes é difícil de ser
formulada: a humanidade do homem realmente já ocorreu? Ou, na verdade, até hoje o que nós
chamamos humanidade tem traços muito claramente excludentes? Ela tem traços excludentes
no que diz respeito à estrutura da sua vida psíquica, à sua antropologia, à sua raça, ao seu
gênero e por aí vai. Muitas vezes é o inumano que possui a maior potencialidade de
transformações de integração. Inumano por quê? Porque perdeu um pouco a figura do humano,
porque de uma maneira ou de outra aparece como misturado à animalidade, mas uma
animalidade que nós degradamos pra afirmar a nossa humanidade.

Como assim?

Desde a Grécia isso é uma questão fundamental. Se pegarmos Sófocles e sua Tragédia Tebana,
todas as figuras são figuras do inumano, de saber reconhecer o inumano. Édipo, por exemplo, é
inumano. Por quê? Porque ele não tem lugar definido. Quem é ele? É impossível falar: “filho de
quem, pai de quem”. Polinices, de Antígona, é inumano. Por quê? Porque ele se bateu contra a
pólis, então foi morto e deixado sem sepultura como um animal, retornando à animalidade.
Uma questão fundamental que o Sófocles levanta é: expulsar o que é inumano é a melhor
maneira de destruir a nossa humanidade. Então é preciso integrar uma humanidade em
contínua transformação. Isso o discurso do humanismo tende a escamotear. E por isso eu diria:
não ser humanista não significa necessariamente não acreditar nas potencialidades da vida
comum, da vida incomum. Significa dizer: o humanismo é um discurso normativo de um certo
tipo de antropologia, contra a qual é necessário se bater.

Qual o papel do artista e da obra de arte hoje, nesse contexto em que você está pensando?
Tem um dos papéis mais fundamentais do ponto de vista das potencialidades de transformação
social. Não porque os artistas trazem a voz dos excluídos ou porque dão visibilidade àqueles que
não a têm. É mais do que isso: eles trazem um modo de falar, um modo de dizer, um modo de
descrever. Trazem uma forma que para nós é ainda incompreensível, e com isso modificam nossa
sensibilidade. Modificam a nossa capacidade de ser afetado, de sentir e não sentir certas coisas,
de perceber e de não perceber, de ver e de não ver. Toda verdadeira obra de arte é a instauração
de uma nova gramática. As verdadeiras obras de arte com força política são aquelas que trazem
esse tipo de transformação: Mallarmé e sua poesia; Morton Feldman e György Kurtág e sua
música; Beckett e seu teatro... é uma discussão política no sentido mais forte do termo: é uma
outra forma de partilha e de relação que nasce; é uma outra forma de síntese, de unidade. Por
isso não há nenhuma transformação de si e da vida social sem a capacidade de se deixar afetar
por obras de arte que são inumanas para nós. Porque elas não confirmam a nossa imagem do
que nós entendemos por humano, elas a modificam completamente. Quem fala como
Mallarmé? Quem ouve como Boulez ouvia, a não ser uma espécie de figura em mutação, em
transformação? A subjetividade em mutação, em transformação, tem cada vez mais dificuldade
de sobreviver. Do lado da reprodução cultural como a gente conhece, da indústria cultural, do
lado da instrumentalização contínua da experiência da arte, dessa desqualificação de dizer mas
qual é a função?, como se só aquilo que tem função pudesse existir. Essa é a experiência mais
frágil, a mais vulnerável e, no entanto, a mais importante para a nossa sociedade.

Bola nas costas, capital

E talvez a mesma compreensão anacrônica do contemporâneo, que “coloca em ação uma


relação especial entre os tempos”, nos possibilite não apenas ler a história de uma maneira
inédita; talvez – e tomando muitas liberdades – a escuridão do presente possa nos dizer das
trevas que envolvem o futuro às nossas costas. E vice-versa: certamente é possível vislumbrar
nas predições do futuro um pouco do nosso tempo, nesse todo contemporâneo heterogêneo
que nos define.

Nem sempre o que se vê é coisa boa. Com frequência, aliás. “Para alguns o contemporâneo será
uma época de perdedores e de perdas radicais, uma época do triunfo do capitalismo mais
perverso e de desdemocratização acelerada”, diz a escritora e professora da Unirio Laura Erber.
Fato é que, desde que os eventos do século 20 aceleram a perda da fé no tal progresso, as
ciências humanas escrevem uma história em que não faltam ruínas vindouras.

Na escola marxista, elas são abundantes. Em A Nova Razão do Mundo (2009), por exemplo, os
sociólogos franceses Pierre Dardot e Christian Laval defendem a ideia de que o neoliberalismo
obteve êxito em impor seus valores à própria alma do indivíduo, em transformar a economia
numa disciplina pessoal – um mundo em que o homem “se governa” da mesma maneira com
que é “governado”. Nessa racionalidade, o protagonista é o “sujeito empresarial”:

"O que está em jogo (...) é a construção de uma nova subjetividade, o que chamamos de
‘subjetivação contábil e financeira’, que nada mais é do que a forma mais bem-acabada da
subjetivação capitalista. Trata-se, na verdade, de produzir uma relação do sujeito individual com
ele mesmo que seja homóloga à relação do capital com ele mesmo ou, mais precisamente, uma
relação do sujeito com ele mesmo como um ‘capital humano’ que deve crescer indefinidamente,
isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais.”

Como em um episódio de Black Mirror mesclado com O Capital, esse “neossujeito” – nós –
abraça a concorrência, a competição, o desempenho e a austeridade como valores individuais,
de vida. Para os autores, a consequência disso é o desaparecimento dos limites entre a esfera
privada e a pública, corroendo os próprios fundamentos da democracia liberal. O futuro, nessa
perspectiva, é o da “pós-democracia”.

De olho na economia, o sociólogo alemão Wolfgang Streeck enxerga outro futuro possível. No
lugar da vitalidade ameaçadora apresentada por Dardot e Laval, Streeck vê fragilidade. Em Como
vai Acabar o Capitalismo? (2016), arrisca que estamos assistindo ao fim do sistema – sem que
exista necessariamente uma alternativa viável no horizonte.

Queda do crescimento, da igualdade social e da estabilidade financeira são as “três tendências


destrutivas” por ele detectadas.

“Nesse processo, as partes do todo vão se encaixar cada vez menos; atritos de todo tipo vão se
propagar; consequências inesperadas vão se disseminar, por razões cada vez mais difíceis de
serem determinadas. Incertezas vão proliferar; crises de todo tipo – de legitimidade, de
produtividade ou ambas – vão se suceder, enquanto diminuirão ainda mais a previsibilidade e a
governabilidade (como vem acontecendo há décadas). Por fim, a miríade de correções
provisórias concebidas para gerir crises no curto prazo vai entrar em colapso sob o peso dos
desastres diários produzidos por uma ordem social em profunda instabilidade e anomia.”

Fora do território marxista, uma leitura pessimista de outra ordem é a do historiador israelense
Yuval Noah Harari, autor de Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã (2015). O título deriva
da teoria de que estamos no limiar de uma transformação sem precedentes: com a fome, a
peste e a guerra minimamente controlados, o homo sapiens teria superado os flagelos históricos
da humanidade e estaria prestes a ingressar na era do homo deus.
“Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram demais do que de
menos; mais pessoas morrem de velhice do que doenças infecciosas; e mais pessoas cometem
suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos. No
início do século 21, o ser humano médio tem muito mais probabilidade de morrer
empanturrado no McDonald’s do que de seca, de Ebola, ou num ataque da Al-Qaeda.”

Nessa transição, operada por uma tecnologia capaz de processar quantidades gigantescas de
dados, a luta pela sobrevivência daria lugar à felicidade, à imortalidade e à divindade. Só isso.

Não há garantia, por óbvio, que essa agenda fantástica seja cumprida algum dia. Mas é
recomendável ter cuidado com o que se deseja: Noah Harari argumenta que o declínio do homo
sapiens já está sendo marcado pela ascensão de um dataísmo, espécie de nova religião da
informação que jogará por terra até o mais corriqueiro dos humanismos. Nela, inteligência se
sobreporia à consciência, e os seres humanos não passariam de algoritmos, vivendo vidas
(divinas, imortais, que sejam) que não passarão de processadoras de dados.

Como uma Medusa, o contemporâneo pode ser encarado, mas com certo método

O dataísmo, nova religião da informação, pode extinguir até o mais corriqueiro dos humanismos

Olgária Matos: dez filósofos para entender o mundo hoje

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por Olgária Matos

Filósofa, professora da Unifesp com livre-docência pela USP e autora de livros como Os Arcanos
do Inteiramente Outro e Discretas Esperanças.

Provisório, sem centro

Visões pessimistas do futuro não são raras – e isso claramente nos diz algo em relação à maneira
como encaramos nosso presente. Se isso é verdade, é preciso perguntar também se não foi
assim sempre. Isto é: se nossos antepassados, obviamente contemporâneos a seu tempo,
também não sentiam ansiedade em relação ao que viria, às vezes com muito mais razões para
temer o futuro do que nós.

Parece certo que sim, mas em que somos diferentes? Um bom lugar para começar a buscar
respostas é na produção cultural e, muito especialmente, na arte contemporânea. Nesse campo,
assistimos a uma narrativa preenchida, desde o início do século passado, de curtos-circuitos na
tradição – na ideia do sacro, do verdadeiro, do belo, do único. Somos tributários da aniquilação,
por meio da tecnologia, da “aura” da obra de arte, para usar o termo de – ele de novo – Walter
Benjamin, no ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1936):

“Na medida em que [a técnica] multiplica a reprodução, [ela] substitui a existência única da
obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao
encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois
processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a
renovação da humanidade.”

Distantes ainda estavam ainda a globalização, a internet, os smartphones –impensável, então, a


velocidade atual de propagação das imagens e das informações em um mundo conectado. O
diagnóstico de Benjamin há 80 anos se prolonga no nosso tempo, em que – entre a maravilha e
o susto – produção, circulação e consumo de arte mudaram radicalmente.
Trata-se de uma era em que provisório se transformou na principal característica da obra de arte,
na avaliação de Beatriz Resende, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e autora de Poéticas do Contemporâneo (2017).

“A condição de provisório, de não permanente, de uma obra de arte que por vezes já é criada
para se extinguir, como instalações, performances, obras intencionalmente perecíveis (...) é
propriedade que fascina, mas que também incomoda na produção artística chamada
contemporânea. (...) Sob um aspecto a maioria dos teóricos e críticos que investigam a arte
contemporânea parece estar de acordo: a arte contemporânea é de fato constituída por dúvida,
hesitação, incerteza, indecisão e pela necessidade de uma prolongada reflexão em busca de
respostas.”

Rejeitando em parte as concepções do texto de Agamben, e adotando a leitura mais estética


encontrada em um volume homônimo (Qu’est-ce que le Contemporain?) organizado pelo
francês Lionel Ruffel, Beatriz traça o perfil de um mundo marcado por “descentramentos”, em
que a noção de centro não faz mais sentido. Nesse nosso contemporâneo, são inegáveis a
democratização do acesso à cultura, e deve-se a ela a disseminação das manifestações culturais
nas periferias das cidades e do mundo. Do outro lado da moeda está o risco de tudo acabar
sendo parte de uma rede institucionalizada mundo afora, conectada a um sistema que tudo
abarca.

“A globalização incentivou a financeirização da vida em todos os seus aspectos, e não foi


diferente no campo artístico, estético ou criativo”, diz Laura Erber. “Os artistas passaram a ser
vistos como meros produtores de conteúdo de luxo ou entertainers, e são eles mesmos
ornamentos vendáveis de diversas maneiras. Incentivou também a prática do colecionismo
como especulação financeira no sentido estrito e percebeu no contexto artístico um forte aliado
para lavagem de dinheiro.”

“Muitos grupos produzem arte, mas ainda existe uma concepção elitista e colonizada
legitimando um olhar eurocêntrico e masculino”, aponta, por sua vez, Djamila Ribeiro, filósofa e
ativista. “Existem artistas brilhantes lutando para sobreviver por conta dessa concepção”.

Como podemos ser nesse cenário? É o caso de voltar ao Angelus Novus e seus “olhos
encarquilhados” em busca das reminiscências de um tempo em que artistas acalentavam sonhos
de progresso, projetavam um futuro otimista e, principalmente, viam a si mesmos como
partícipes do poder constituído. Tudo isso não muito antes daquele tempo que atemorizava
Walter Benjamin, olhos abertos para a escuridão.

Colaboraram Andrei Reina e Paula Carvalho


Visões pessimistas do futuro claramente dizem algo em relação à maneira com que encaramos
nosso presente

Somos tributários da aniquilação, por meio da tecnologia, da 'aura' da obra de arte

Carpe Diem

Georgette Fadel interpreta grandes textos sobre viver o presente

Almir de Freitas

De toda a tradição filosófica e poética que a Antiguidade nos legou, talvez nenhuma ideia seja
tão popular e prontamente identificável quanto a do carpe diem – o “aproveite o dia”, ou “colha
o dia”, que o poeta romano Horácio (65 – 8 a.C.) consagrou em uma de suas Odes, a 1,11. “Colha
o dia, confia o mínimo no amanhã. (...) Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento está
fugindo de nós”, diz o poeta, com primeiras, segundas e terceiras interpretações, à amada
Leuconoe.

Em todas elas, conclamando à alegria – ainda que com disciplina. Uma combinação que nos leva
a um passado ainda mais remoto, quando o grego Epicuro (341- 271 a.C.) construiu a base de
uma filosofia de valorização do presente, de uma vida que aliasse o prazer e as coisas simples –
uma felicidade que seria alcançada na perfeita estabilidade psíquica. Em paz.

O pacote lírico-filosófico atravessou os séculos, ressoou em poetas da Idade Média ao Oriente


próximo e fez a festa dos poetas-pastores do Arcadismo. Na poesia moderna, o carpe diem foi
abraçado por gigantes como Mário Faustino, Fernando Pessoa (por meio do heterônimo Ricardo
Reis) e Carlos Drummond de Andrade. Todos os poemas – além da ode do próprio Horácio –
interpretados com maestria, no vídeo abaixo, pela atriz Georgette Fadel.
Curioso é que o mesmo Horácio que recomendava “não confiar no amanhã”, previu na Ode 3,30
um futuro glorioso para a sua obra poética: “Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides, que nem a chuva voraz, nem o impetuoso
Áquilo, nem a inumerável série dos anos, nem a fuga dos tempos poderão destruir. Nem tudo de
mim morrerá, jovem para sempre crescerei, no louvor dos vindouros.”

Mesmo sem “brincar com os adivinhos da Babilônia”, Horácio não poderia estar mais certo.

A arte lê o presente

Foto: Ricardo Tosetto/Fundação Bienal de São Paulo

A política e as questões sociais do nosso tempo através das obras de dez artistas

Kiki Mazzucchelli

PSO - Play Significant Otherness, de Ad Minoliti (2016)

A fusão entre geometria e teoria queer é o ponto de partida do trabalho da argentina Ad


Minoliti, que se desdobra em pinturas em óleo ou acrílico, impressões digitais, peças de roupa,
GIFs e instalações. Combinando referências polifônicas, Minoliti transita entre os domínios da
história da arte, arquitetura, feminismo, decoração, animalismo, ficção científica, entre outros,
para criar uma espécie de “utopia trans-humana”, em que os corpos geométricos se situam além
das definições binárias de gênero. Em um artigo sobre a prática artística de Minoliti, a curadora
Carla Acevedo-Yates define sua pintura como “um espaço de resistência, no qual relações
neutras de gênero se manifestam em entidades geométricas antropomórficas que habitam os
tropos da pintura, do design e da arquitetura modernista, e, ao fazê-lo, ecoa inadvertidamente a
já conhecida noção de fracasso comumente atrelada às utopias modernistas”.

Outro aspecto fundamental de sua obra é pensar as possibilidades da pintura após o advento da
internet, que alterou profundamente os mecanismos de produção e distribuição de imagens.
PSO – Play Significant Otherness [siga o link para ver a animação] foi concebido especificamente
para a rede e encapsula alguns dos principais interesses da pesquisa da artista. Segundo Minoliti,
“PSO é um sistema biodigital baseado na geometria e no sexo”. Circunscritos por uma moldura,
dois personagens compostos de formas geométricas se movem sobre diferentes paisagens ao
fundo que, por sua vez, foram retiradas de antigos desenhos animados da Hanna Barbera. Cada
vez que se encontram, os personagens trocam algum elemento de seu corpo com o outro, num
processo de transformação contínuo. Inspirado pelas teorias cyber-feministas de Donna Haraway
e da evolução simbiótica de Lynn Margulis, PSO é, segundo a definição da artista, “uma
representação geométrica de uma forma de vida artificial não-darwiniana”.

Divisor Pirata, de Pia Camil (2017)

Galeria Sultana

Adaptação de Divisor (1968), de Lygia Pape, em que enorme tecido branco com vários cortes em
sua superfície deve ser vestido por dezenas de participantes em uma espécie de performance
coletiva. A obra da mexicana Pia Camil substituiu o tecido branco por uma coleção de camisetas
adquiridas em feiras ao ar livre no México, conhecidas como tianguis de pacas, onde a maioria
dos produtos são contrabandeados. Em sua maioria, as roupas são confeccionadas no México
para serem vendidas nos Estados Unidos e doadas para lojas de caridade como Salvation Army,
mas são compradas por vendedores mexicanos que as trazem de volta para o México
ilegalmente.

As roupas adquiridas por Camil foram tingidas de um tom de rosa tipicamente utilizado nas
barracas dos tianguis, ao passo que os slogans e ilustrações impressos nas camisetas expressam
valores e ideais caracteristicamente promovidos pela sociedade americana. No momento atual,
quando a fronteira entre México e Estados Unidos se tornou um dos principais alvos do governo
Trump, Divisor Pirata retoma a questão da relação entre indivíduo e coletividade levantada por
Pape, reposicionando-a dentro de uma discussão sobre imigração ilegal e influência cultural.

O Nome do Medo, de Rivane Neuenschwander (2015-2016)

O projeto O Nome do Medo foi realizado em 2015 no âmbito do programa educativo da


Whitechapel Gallery, em Londres, e uma versão expandida foi apresentada no MAR (Museu de
Arte do Rio), em associação com a EAV Parque Lage no ano passado. O trabalho original foi
desenvolvido em parceria com diferentes colaboradores em diálogo próximo com a artista
durante o período de aproximadamente um ano. A primeira fase do projeto consistiu numa série
de oficinas realizadas com alunos entre sete e nove anos de quatro escolas locais, que foram
estimulados pela equipe a listar e discutir seus medos. Num segundo momento, foi pedido às
crianças que realizassem um desenho de uma espécie de capa de super-herói protetora que
correspondesse ao medo relatado. Segundo Neuenschwander, a escolha das capas como
veículos de formalização dos medos coletados surgiu porque ela “não conseguia separar o medo
da ideia de proteção, especialmente ao lidar com crianças, já que uma criança sem medo está
inevitavelmente mais exposta ao perigo”, mas também porque “o medo não deveria tomar uma
dimensão paralisante, então precisamos de uma certa proteção ou entendimento para
podermos lidar com ele”. Os rascunhos produzidos pelos alunos foram subsequentemente
adaptados e transformados em vestimentas pela artista, que colaborou com uma equipe de
designers de moda e costureiras. A escolha dos materiais foi pautada por sua proximidade
conceitual com cada capa e o medo que ela representa e, nesse processo de interpretação,
algumas capas acabaram por combinar diferentes medos em uma única peça, como em “aranha/
fim do mundo” ou “abelhas/ filme de terror”. Segundo Neuenschwander, a motivação foi
“quebrar com a dimensão didática ao adicionar uma camada mais interessante por meio da
palavra escrita”.

O Nome do Medo é uma espécie de desdobramento da instalação I Wish Your Wish (2003), na
qual a artista mineira imprimiu os desejos coletados junto ao público em centenas de fitinhas do
Senhor do Bonfim pregadas nas paredes do espaço expositivo. A partir da percepção de que
grande parte desses desejos revelavam medo e não esperança – como em “desejo não morrer
sozinho” –, decidiu abordar diretamente os medos das crianças e seus conteúdos latentes, que
emergem na transposição da linguagem/ discurso ao objeto/ obra. Como coloca Sofia Victorino,
Diretora de Educação e Programas Públicos da Whitechapel Gallery, “(n)este processo de
tradução, Neuenschwander considera a subjetividade das crianças, bem como a sua própria, e a
relação entre o individual e o coletivo. Além disso, entrelaça o pessoal e o social, o consciente e
o inconsciente, o afeto e a repressão”.
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S, de Luiz Roque (2017)

Em grande parte de seus filmes, Luiz Roque utiliza tecnologias analógicas, como Super 8 e
16mm, para abordar questões de gênero por meio de narrativas abertas geralmente situadas em
um futuro ou passado fictícios. Um dos dispositivos recorrentes em sua obra é a apropriação de
elementos da ficção científica para criar cenários habitados por personagens interpretados por
atores trans ou travestis, nos quais imagina os desdobramentos da política de gênero no futuro
longínquo. S é seu trabalho mais recente, e foi comissionado pelo Masp para integrar a mostra
coletiva Avenida Paulista, para a qual o museu convidou diferentes artistas para produzir obras
que refletissem sobre o contexto do entorno de seu edifício. Roque conta que a obra foi
inspirada pelos escritos da teórica Jota Mombaça, “que escreve sobre ficção científica como uma
forma de reinventar a realidade violenta e discriminatória em que vivemos, propondo imaginar a
liberdade através da ficção”.

Assim como em seus filmes anteriores, a história se passa em um tempo indefinido e retrata
uma espécie de tribo de jovens gays, em sua maioria negros, que habitam os túneis
subterrâneos do metrô e se comunicam por meio de uma linguagem de sinais cujos movimentos
reproduzem a coreografia do break e do vogue. Por meio da sucessão de imagens
cuidadosamente construídas, o trabalho traça uma analogia entre aquilo que é aceitável
socialmente, e portanto pode estar exposto livremente no cotidiano da cidade, e o que deve ser
mantido oculto, longe dos “cidadãos de bem”. Em última instância, S é um reflexo dos tempos
políticos sombrios do Brasil atual, onde grupos LGBT são tomados como um dos principais alvos
das forças conservadoras em ascensão.

Strong and Stable my Arse, de Jeremy Deller (2017)

Desde a convocação das eleições-relâmpago em meados de abril, a premiê britânica Theresa


May vinha repetindo incessantemente o mantra de que o país estava “forte e estável” (strong
and stable) sob a liderança do partido conservador. A primeira-ministra havia declarado
previamente, em diversas ocasiões, que não convocaria eleições prematuras para garantir a
estabilidade do país durante as negociações do Brexit. No entanto, pesquisas de opinião pública
apontavam que no início de abril May possuía uma vantagem significativa sobre o candidato da
oposição, o trabalhista Jeremy Corbyn, como líder preferida da população. Perto das eleições,
enquanto a diferença percentual entre Tories e Labour vinha encolhendo, imagens de um cartaz
espalhado pelas ruas de Londres começaram a ser publicadas no Facebook e Twitter de diversos
usuários. Após muita especulação sobre quem estaria por trás dos posters, que exibem a
mensagem Strong and Stable my Arse (“forte e estável minha bunda”) contra um fundo branco,
foi revelado que se trata de um trabalho de Jeremy Deller. O artista, que venceu o Turner Prize
em 2001 e representou o Reino Unido na Bienal de Veneza em 2013, já realizou diversos
trabalhos que abordam a política, notadamente o projeto The Battle of Orgreave, no qual
reencenou um violento confronto entre a polícia e mineradores ocorrido na década de 1980
durante o governo Thatcher.

Estás Vendo Cosas, de Bárbara Wagner e Benjamin Burca (2016)

Apresentado pela primeira vez na 32a Bienal de São Paulo, Estás Vendo Coisas tem como foco o
universo do tecnobrega no Recife. O filme é protagonizado por músicos e indivíduos ativamente
envolvidos com a cena do brega, e foi filmado no interior de uma casa noturna, onde os
personagens ensaiam gestos e trechos de canções em meio ao equipamento de efeitos visuais
precários. Numa espécie de desconstrução dos signos que compõem a imagem de um artista de
sucesso, a câmera de Wagner e de Burca escrutina as coreografias estilizadas, a maneira de
vestir, o cenário, destrinchando o vocabulário de um espetáculo que, para muitos, se apresenta
como uma opção profissional.

Em seu trabalho individual com fotografia, Wagner geralmente se aproxima de grupos sociais
marginalizados para produzir imagens que privilegiam a subjetividade do retratado, evitando
julgamentos morais ou a exploração da miséria do outro. A série Brasília Teimosa (2005-7), por
exemplo, enfoca os frequentadores da praia homônima localizada no centro de Recife, tidos
como “farofeiros” pela classe média da cidade, enquanto Crentes e Pregadores (2014) investiga
o fenômeno do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil. Assim como nessas obras, em Estás
Vendo Coisas os artistas se aproximam de participantes de uma cena musical que é
normalmente desprezada pela elite cultural. Ao mesmo tempo, o filme discute a emergência do
desejo por se tornar um grande fenômeno de mídia; algo que se tornou possível na última
década graças às novas tecnologias digitais.

Quando é hoje?

A cura para a ilusão de contemporaneidade criada pelo pós-modernismo está em


reaprendermos que a arte depende de sua história tanto quanto de seu futuro – e não apenas
da captura do instante

Christian Dunker
Quando crianças meus filhos me importunavam com uma destas questões filosóficas que só eles
sabem fazer: já chegou amanhã? Obviamente a pergunta denunciava uma posição de
expectativa ansiosa quanto à chegada do Natal, do aniversário ou das férias. A mesma
ansiedade, só que em sentido inverso, nos assedia quando velhos. Quando será o amanhã no
qual a vida terminará, quanto tempo ainda tenho? Entre estes dois momentos, a vida tende a se
desenrolar em um presente mais distendido, com datas marcantes e acontecimentos decisivos,
mas no geral em estado de suspensão das perguntas decisivas sobre o tempo: quando é
amanhã, e quando será ontem?

A arte nos lembra e nos força este problema, mas não como uma conjectura, mas como uma
experiência. Afinal sabemos que vamos morrer, assim como sabemos que um dia houve infância,
mas vivemos como se não soubéssemos. E viveríamos só assim não fosse a arte e a tragédia.
Como dizia Hegel, “o relógio da história não marca o mesmo horário em todos os seus
quadrantes”. Hoje mesmo há pessoas que vivem na idade Média, outras na Renascença, outras
estão em maio de 1968 e ainda há aqueles que vivem a aurora de nosso modernismo.

A definição mesma de contemporâneo é histórica e incerta. Provavelmente será feita por alguém
daqui a meio século nos dando outro nome que não este. Ou talvez até nos satirizem, como
aquela geração ridícula que achava que podia estar à altura de seu tempo. Enquanto isso nos
debatemos para ver quem adivinha o que este sujeito em devir dirá. Adoto como solução
metodológica chamar de contemporâneo tudo aquilo que veio depois desta dupla torção
representada pelas vanguardas dos anos 1920-1930 (surrealismo, futurismo, cubismo,
expressionismo, construtivismo) e pelo seu retorno nas neovanguardas dos anos 1960-1970
(concretismo, minimalismo, pop art, neogeo, situacionismo).

Mas, voltando a Hegel, o contemporâneo cronológico pode incluir formas lógicas que são
anteriores e também posteriores a este, assim chamado, tempo histórico. Mas um fato
característico e reincidente nesta definição do que vem a ser hoje, instante no qual coincidimos
com o nosso próprio tempo, antes de começarmos a dizer coisas como “na minha época”, reduz-
se a duas perguntas fundamentais: como posso reconhecer o Outro? e onde está o Real ?

A primeira pergunta foi elaborada lentamente pelos que se interessaram em pensar a arte em
suas relações com as formas sociais. Seja como expressão, seja como contradição, seja ainda
como promessa de transformação, a arte evoluiu aqui como promessa política. O ponto de vista
a partir do qual ainda era possível pensar a totalidade. O ponto de vista a partir do qual era
possível sair de si mesmo e inventar um novo mundo.

A segunda questão evoluiu a partir do diagnóstico de que não há mais formas possíveis para
pensar a realidade, ou seja, antes de tudo precisamos de novas linguagens, novas maneiras de
dizer, para então, talvez criar modos de ser ainda não pensados. Se queremos fazer isso é preciso
recuar para as condições de possibilidade de um novo tempo. Antes de um novo mundo é
preciso uma gramática que o torne possível. Os dois projetos sempre fracassam, como fracassam
as intervenções ativas da arte e as neolinguagens. A liberdade, que todo fracasso cria, permitiu
esta coisa informe chamada pós-modernismo, a arte neoliberal por excelência.

O pós-modernismo introduziu um novo modelo de relação com o presente. Nele a história da


arte não é mais necessária para definir a experiência do olhar. A educação estética do homem,
como a pensou Friedrich Schiller, foi aposentada. Em vez da formação de um olhar, a
transmissão de uma mensagem. Em vez da localização de um ponto no tempo, uma espécie de
co-presença de todas as formas. A pesquisa Google de imagens, antecipada por Aby Warbung,
tornou possível uma experiência para nós ainda impensada, posto que não somos
contemporâneos de nós mesmos. A lógica das imagens em co-presença, sem antecedentes e
consequentes, assemelha-se a uma conversa na qual o seu fim acontece junto com o seu meio e
antes de seu começo. Não poderia ser mesmo diferente. A técnica sempre deu as cartas na
história da arte.

Mas se tudo tornou-se sincrônico, se ser contemporâneo é ser diferente de si mesmo e de seu
próprio tempo, se ser contemporâneo é ser Outro, o que é mesmo o Real? Vê-se assim que uma
pergunta leva a outra, necessariamente, como uma estrutura. A estrutura do contemporâneo.
Performances, body-art e instalações são as três vertentes desta investigação que tentam
responder à pergunta: quando é hoje? Com o ato real que diz: agora. Aqui a reflexão não é com
a história ou com a antropologia das formas negadas de alteridade, mas com a captura do
instante, com a semiologia e com a produção de acontecimentos. E quanto mais no
aproximamos da captura deste instante no qual algo acontece, mais imaginamos que ali está a
gênese para uma linguagem de um mundo por vir, de um outro mundo, que seja ao mesmo
tempo um mundo real.

A cura para esta ilusão de contemporaneidade é então reaprendermos que a arte depende de
sua história tanto quanto de seu futuro. Agora que o sistema internacional das artes está
reconhecendo sua dependência para com os sistemas de lavagem de dinheiro, talvez apareça
um novo espaço para a arte mais além de um sintoma do neoliberalismo. Mas quando isso
acontecer, o hoje já terá sido ontem, antes de ter virado amanhã.

Chão de Caça, de Cinthia Marcelle (2017)

A instalação Chão de Caça foi comissionada para ocupar todo o pavilhão do Brasil durante a 57a
Bienal de Veneza, numa decisão acertada do curador Jochen Volz de dedicar este espaço
expositivo de proporções modestas a uma única artista em meio de carreira.
Nas duas galerias do edifício, Cinthia Marcelle instalou um piso em desnível construído com
grades de ventilação soldadas, entre as quais inseriu milhares de pequenos seixos encontrados
no Giardini. O trabalho inclui ainda um vídeo, realizado em parceria com o cineasta Tiago Mata
Machado, mostrando uma única tomada aérea de um telhado cuja cobertura é gradualmente
desfeita por um grupo de homens vestindo uniformes coloridos, tipicamente utilizados por
presidiários. Outros elementos escultóricos complementam o espaço, como o conjunto de
hastes de madeira de onde pendem pedaços de lençol branco e que lembram as bandeiras
confeccionadas improvisadamente em situações de conflito para sinalizar um pedido de trégua.

Mais que um comentário literal sobre algum episódio político específico, Chão de Caça cria um
ambiente opressor habitado por imagens que sugerem ideias relativas a violência e
instabilidade, num reflexo da atual conjuntura política brasileira. O júri da Bienal, presidido este
ano por Manuel Borja-Villel, diretor do Museu Reina Sofía, em Madrid, concedeu menção
honrosa ao pavilhão brasileiro por criar “um espaço enigmático e instável, que não nos deixa
sentir em segurança”, evocando “as preocupações da sociedade brasileira contemporânea”.

Open Casket, de Dana Schultz (2016)

As pinturas de Schultz combinam imagens abstratas e figurativas que, em alguns casos, fazem
referências diretas a assuntos correntes. A artista já executou, por exemplo, um retrato do ex-
presidente ucraniano Viktor Yushchenko, que sobreviveu a uma tentativa de assassinato em
2004 (Poisoned Man, 2005). Apesar de sua obra não tratar explicitamente de temas políticos ou
sociais, no início deste ano uma de suas pinturas exibida na renomada Bienal do Whitney
Museum, em Nova York, se tornou o centro de um debate acirrado em torno da apropriação
cultural que envolveu profissionais do meio artístico de vários países.

Emmett Till, o personagem retratado neste trabalho, era um adolescente negro de 14 anos que
foi brutalmente assassinado após ser falsamente acusado de ter flertado com uma mulher
branca no Mississipi, em 1955. Seu corpo desfigurado foi encontrado três dias depois do crime,
tendo sido jogado num rio pelos assassinos, e Mamie Bradley, mãe de Till, decidiu exibi-lo em
um caixão aberto para que o mundo pudesse testemunhar a violência perpetrada pelo racismo.
Menos de duas semanas após o funeral, os assassinos foram a julgamento num tribunal
segregado, e o júri composto apenas por homens brancos os absolveu. A pintura de Schultz foi
baseada em uma famosa fotografia que mostra Till em seu caixão e, segundo a artista, a escolha
por essa imagem foi pautada pela recorrência dos crimes contra jovens afro-americanos nos dias
de hoje.

Durante a abertura da Bienal em março passado, o jovem artista afro-americano Parker Bright se
colocou em frente ao trabalho de Schultz vestindo uma camiseta com os dizeres “Black Death
Spectacle” (Espetáculo da morte dos negros) e, na tarde do mesmo dia, a artista britânica
Hannah Black postou uma carta endereçada aos curadores no Facebook, exigindo não apenas
que Open Casket fosse removida da exposição, mas que também fosse destruída. “Não é
aceitável que uma pessoa branca transforme o sofrimento negro em lucro e diversão”, dizia em
um dos trechos. A carta rapidamente viralizou nas redes sociais, suscitando uma série de reações
pró ou contra a posição de Black. A polêmica acabou atraindo a opinião de artistas célebres
como Coco Fusco (em defesa de Schultz) e Whoopi Goldberg (contra Schultz).

Em meio ao circo da mídia, o que estava em pauta, por um lado, era a indignação sentida por
artistas negros por um tema tão central em sua história ter sido apropriado por uma artista
branca e, por outro, o desconforto por parte daqueles que defendem que banir um trabalho de
arte é uma atitude eticamente repreensível. Os curadores da Bienal acabaram por organizar uma
reunião com Parker Bright, e incluíram uma legenda ao lado da obra contendo informações
sobre a controvérsia gerada por ela. Schultz, por sua vez, incluiu uma declaração em que
esclarece que a pintura não está a venda e nunca estará.

Naming the Money, de Lubaina Himid (2004)

Nascida no Zanzibar, a artista e professora de 62 anos foi uma das pioneiras do Black Arts
Movement na Grã-Bretanha. Apesar de ter passado os últimos 30 anos produzindo arte e
realizando curadorias com foco nas histórias e movimentos sociais marginalizados, seu trabalho
não havia recebido o reconhecimento devido até recentemente. As coisas começaram a mudar
em 2014, quando participou da Bienal de Gwangju e, no início deste ano, apresentou duas
exposições individuais em instituições renomadas – uma no Museu de Arte Moderna de Oxford
e outra no Spike Island, em Bristol. Mas a grande surpresa veio em maio, quando foi anunciada
sua nomeação para o prestigioso Turner Prize, promovido pela Tate, que a partir deste ano não
estabelece mais um limite de idade.

Naming the Money, que integrou a exposição no Spike Island, é uma instalação que reúne cem
figuras em escala, pintadas sobre compensado recortado e espalhadas pelo espaço expositivo,
que representam africanos que eram trazidos para a Europa como servos e recebiam novos
nomes e ocupações. Nas pinturas que retratam a aristocracia europeia desde o século 19, os
serviçais negros geralmente aparecem nas margens da imagem para ilustrar a riqueza de seus
proprietários.

Em Naming the Money, os serviçais são o foco do trabalho, e são retratados por Himid com
enorme atenção aos detalhes de sua individualidade. Segundo a artista, a instalação “tenta
trazer de volta todos os velhos debates que tenho em meu trabalho acerca da injustiça da
escravidão e a negligência em relação às Histórias Negras, ao mesmo tempo em que os relaciona
com novas conversas sobre pertencimento, integração e a luta para tornar visível e concreto o
reconhecimento da contribuição rica e complexa à cultura e à economia por aqueles que vieram
de outros lugares”. Ao traçar uma analogia entre a condição dos escravos e a atual situação dos
imigrantes e refugiados num momento político em que a extrema direita ganha força com um
discurso cada vez mais xenófobo, o trabalho de Himid devolve um sentido de humanidade aos
que são vistos como meras estatísticas.

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