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ARGUMENTAÇÃO

1. A argumentação

Este é o primeiro texto de uma série, escrita a pensar nos alunos de Filosofia do ensino
secundário, no pressuposto de que lhes poderá ser útil. Por razões que (nem só) eles
sabem, começo com o tema da argumentação e, neste primeiro texto, tentando
esclarecer o que é (e não é) a argumentação.
1. No romance Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway, [cuja ação
decorre na Espanha em guerra civil], um personagem diz que
“Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem porque, tirada a pele, tudo é igual
e também porque o urso bebe cerveja, gosta de música e sabe dançar” [Lisboa: Edição
"Livros do Brasil", p. 43].
Aqui está um pequeno texto argumentativo. Nele se apresentam razões [se são razões
aceitáveis ou não, isso é outra coisa...] com as quais se pretende mostrar a verdade ou a
sustentabilidade de uma posição/tese/conclusão. No exemplo anterior, a conclusão de
que o urso é irmão do homem — e as razões estão introduzidas por “porque”.
1. O seguinte extrato do mesmo romance, onde aparece um dos personagens
centrais do enredo
[Jordan, encarregado de fazer voar uma ponte no momento em que as tropas
republicanas atacarem Segóvia] não é argumentativo: nele não se defende qualquer tese
— é uma pura descrição:
“Agora era bem uma manhã dos fins de maio, céu límpido e alto. Um vento tépido
aquecia os ombros de Jordan. A neve derretia-se rapidamente enquanto almoçavam.
Vieram duas grandes sanduíches de carne e uma boa fatia de queijo de cabra para
cada um, e Robert Jordan tinha cortado com a navalha grossas fatias de cebola que
tinha posto de cada lado da carne e do queijo entre os pedaços de pão“. (p. 277)
2. À proposição que queremos defender chamamos conclusão. Às proposições que
apresentam as razões para essa conclusão chamamos premissas. Num diálogo com
Anselmo [um velho espanhol que conhece a zona onde Jordan vai atuar e por isso o
guia] sobre se é permitido matar pessoas [e comparando o ato de matar pessoas com a
caça de animais], Jordan defende que devemos matar os inimigos de guerra
(conclusão) porque, se eles sobrevivessem, “voltariam a escravizar-nos” (premissa).
Anselmo contra-argumenta, admitindo que em situação de guerra ele também mata,
embora sem prazer, mas “considerando isso um pecado”, isto é, segundo ele não se
deveria matar (conclusão): “porque da semente nasceria ainda mais ódio. [...] E o que os
nossos inimigos precisam é de aprender” e para isso precisam de estar vivos
(premissas). (p. 45)
3. Com base nos parágrafos anteriores, vamos explicitar as características de base
da argumentação:
 a argumentação é um processo onde intervêm várias pessoas (é um
fenómeno social): nos exemplos anteriores, Jordan e Anselmo. É a esta característica
que nos referimos, quando por vezes dizemos que toda a argumentação se desenvolve
em função de um auditório.
E quando, digamos, argumentamos sozinhos, connosco? nesses casos, é como se
estivéssemos divididos em dois interlocutores. É o que acontece com Jordan, num
momento em que ele, intimamente, se sente “cair na melancolia” e confronta esse
estado sombrio com um modo alegre de estar na vida: digamos, é um Jordan como se
fossem dois! No final conclui (cá vai o argumento — qual(s) a(s) premissa(s) e qual a
conclusão?):
“Todos os bons e firmes são alegres (…). É muito melhor ser alegre que é sinal de uma
coisa: de uma imortalidade terrestre“;
 com a argumentação pretendemos exercer influência sobre outra(s)
pessoa(s), de modo a conseguir a sua adesão a uma tese (isso mesmo! à conclusão).
Não se argumenta a favor de [ou contra] algo que é evidente ou quando não há qualquer
desacordo entre as várias pessoas. Para dar um exemplo extremo [e possivelmente
ridículo]: não há necessidade de mostrar que este texto está aqui escrito; mas será
necessário provar que é um texto bom [a menos que o leitor me poupe esse trabalho, por
concordar comigo ].
A argumentação supõe, por isso, a possibilidade de um acordo [de um acordo final: se
não admitíssemos a hipótese desse acordo, estaríamos a argumentar para quê? seria pura
perda de tempo... E de algum acordo inicial: ninguém consegue discutir com alguém
com quem não esteja minimamente de acordo nalguns pontos -- ou não é? Quando
Jordan chega a Espanha, encontra Pablo que não concorda com a destruição da ponte,
porque isso fará as pessoas do sítio virarem-se contra eles; mas ambos estão de acordo
quanto à causa republicana e na luta contra as tropas franquistas].
Mas supõe igualmente a divergência de pontos de vista dos vários intervenientes. Para a
perceber bem, basta aplicar esta ideia a situações exemplares de argumentação: os
debates eleitorais [bem... alguns debates acabam por ser pouco exemplares: às vezes
mais parecem conversa de bêbados...],
os debates parlamentares, os julgamentos em tribunal onde defesa e acusação se
confrontam, etc.;
 a argumentação, na medida em que exige elementos de prova da tese
defendida, é um processo que comporta elementos racionais. Uma tese argumentada
está no oposto de uma tese imposta pela força: um dos pressupostos fundamentais da
argumentação é, por isso, a democracia (num sentido geral do termo: a situação em que
a “argumentação” da força é substituída pela força da argumentação. A cena do pai que
impõe uma decisão ao filho acrescentando apenas “e acabou!”, não é propriamente o
melhor exemplo de situação argumentativa…).
Por comportar elementos racionais é que a argumentação está intimamente ligada ao
raciocínio e à lógica — como procurarei mostrar nos próximos textos.

2. Validade dos argumentos


Dado que a argumentação visa obter a adesão do “auditório” a uma tese, através da
justificação racional, um bom argumento deve ter, cumulativamente, 3 características:
1. ser válido, para que da verdade das premissas se possa “extrair” a verdade da
conclusão;
2. ter premissas verdadeiras, condição necessária para que a conclusão também o
seja;
3. ter premissas convincentes: a força do argumento está nas premissas, com as
quais pretendemos justificar a conclusão; por isso, as premissas devem ser mais
aceitáveis que a conclusão.
Neste texto procurarei esclarecer o conceito de validade de um argumento. Se não for
dito o contrário, aqui, validade é sinónimo de validade formal [mais abaixo, esclarecerei
a diferença entre validade formal e validade informal].

1. Vamos partir de um argumento famoso — o argumento do cornudo:


“Tu tens tudo o que não perdeste. Tu não perdeste cornos. Logo, tens cornos“.
Trata-se de um argumento válido, porque, se admitirmos que as premissas (as 2
primeiras proposições) são verdadeiras, temos de admitir que a conclusão (a terceira
proposição) também é verdadeira. O “problema” com este argumento está em que a 1ª
premissa [e até a segunda, mas mais subtilmente] é falsa; mas isso para aqui não conta:
quando queremos avaliar a validade de um argumento, supomos que as premissas são
verdadeiras, mesmo que efetivamente sejam falsas…

2. Há um poema de Fernando Pessoa que começa assim:


“A morte chega cedo, / Pois breve é toda vida“.
Tirando-lhes a carga poética, há algo de estranho nestes 2 versos, embora possamos
aceitá-los sem estranheza: é a declaração de que toda a vida é breve. Toda?!,
poderíamos perguntar ao poeta. Como é que ele chega a essa conclusão? Como é que
chegamos nós, todos os que, como ele, pensamos que toda a vida é breve? Baseados na
nossa experiência passada, construímos um argumento mais ou menos assim:
“Até hoje, nenhum dos seres vivos viveu durante muito tempo. Logo, nenhum ser vivo
vive durante muito tempo“.
Trata-se, mais uma vez, de um argumento válido: a premissa apoia, sustenta,
logicamente a conclusão. Aceitamos a verdade da conclusão porque aceitamos a
verdade da premissa.

3. É fácil de ver que o tipo de validade do segundo argumento é diferente do tipo


de validade do primeiro. No caso do argumento do cornudo, se as premissas forem
verdadeiras, a conclusão é necessariamente verdadeira. No caso do argumento sobre a
brevidade da vida, mesmo sabendo que a premissa é verdadeira, a conclusão é
só provavelmente (ou, se se preferir, muito provavelmente, mas não necessariamente)
verdadeira. Ao primeiro tipo de validade chamamos validade dedutiva; o segundo
argumento tem validade não dedutiva.

4. Justifica-se esclarecer melhor a relação entre, por um lado, a verdade/falsidade


das proposições que constituem os argumentos e, por outro, a validade dos argumentos.
(a) Se um argumento tiver premissas verdadeiras e conclusão falsa, esse argumento é
inválido.
Não há, portanto, hipótese de um argumento ser válido se tiver premissas verdadeiras e
conclusão falsa. Quer isso, então, dizer que, se um argumento tiver premissas falsas e
conclusão falsa, será inválido? Não, neste caso pode ser válido, e aqui está uma prova:
“Todos os brasileiros são europeus. Os habitantes de Pequim são brasileiros. Logo, os
habitantes de Pequim são europeus“.
As três proposições são falsas; no entanto, SE as premissas fossem verdadeiras, a
conclusão teria de ser verdadeira. É, pois, um argumento válido (com validade
dedutiva). Ou seja [e de acordo com o acima estabelecido em (a)],
(b) para analisar a validade de um argumento, independentemente da
verdade/falsidade efetiva das premissas, supomos que elas são verdadeiras e
perguntamos: nestas circunstâncias, a conclusão é necessariamente ou provavelmente
verdadeira? Se a resposta for afirmativa, o argumento é válido; caso contrário, o
argumento é inválido.
Eis um exemplo de um argumento com premissas verdadeiras e conclusão verdadeira,
mas inválido:
“Se os cariocas forem portugueses, são europeus. Os cariocas não são portugueses.
Logo, os cariocas não são europeus“.
A conclusão é verdadeira não por as premissas serem verdadeiras; é verdadeira por
acaso. É só pensar num outro argumento com a mesma forma, cuja conclusão é falsa…:
“Se os parisienses forem portugueses, são europeus. Os parisienses não são
portugueses. Logo, os parisienses não são europeus“.

5. Até aqui, sempre que falei em validade, era de validade formal que estava a
falar. No entanto, um argumento pode ser inválido quando consideramos a forma, mas
válido por razões que não têm que ver com a forma. Vejamos…

6. O argumento
“Ptolomeu diz que o Sol gira em torno da Terra. Logo, o Sol gira em torno da Terra“
não é válido: a premissa é verdadeira, mas a conclusão é falsa. A forma deste argumento
é
Fulano diz que P. Logo, P.
Portanto, todos os argumentos que tiverem esta forma têm forma inválida: são
formalmente inválidos. Por exemplo, o argumento seguinte, que tem essa forma, é
formalmente inválido:
“Os nutricionistas dizem que devemos comer mais peixe do que carne. Logo, devemos
comer mais peixe do que carne“.
No entanto, neste último caso, nós aceitamos a verdade da premissa e, por esse motivo,
a verdade da conclusão: comemos mais peixe porque os nutricionistas o dizem. Trata-
se, pois, de um argumento cuja conclusão é apoiada pela premissa: é válido. Mas é
válido não em função da forma, mas em função da análise do contexto do argumento:
neste caso, em função da competência científica dos nutricionistas. Tem, por isso,
validade informal (não formal)
É deste modo que nos comportamos muitas vezes perante quem argumenta [analisando
se as premissas são ou não as adequadas; se os dados de partida, as premissas, podem
realmente justificar a conclusão; se intervêm elementos do contexto que podem
perturbar a validade do argumento...]: se (ou)virmos alguém exprimir na televisão uma
opinião, não é seguro confiar nela; mas confiamos, se (ou)virmos um especialista na
matéria…

3. Verdade e plausibilidade
Argumento é válido quando a conclusão se segue das premissas. Dito de outro modo:
um argumento é válido quando, se as premissas forem (hipoteticamente) verdadeiras, a
conclusão for (hipoteticamente) verdadeira [necessariamente ou provavelmente].
Veio isto a propósito da pergunta; o que é um argumento bom? Para já, a resposta é: um
argumento bom tem de ser válido.
1. A validade de um argumento é, portanto, condição necessária a um bom
argumento. Mas não é condição suficiente. Para verificar que, para um argumento ser
bom, não basta ser válido, tomemos este exemplo:
“Se me sair o euromilhões, vou comprar o carro dos meus sonhos. Saiu-me o
euromilhões. Então vou comprar o carro dos meus sonhos“.
Se o objetivo deste argumento é provar (por)que vou comprar o carro, o argumento…
falha. Falha, embora seja válido: se a condição para eu comprar o carro é sair-me o
euromilhões e se me tivesse saído o euromilhões, então não restavam dúvidas acerca da
compra do carro. Só que a conclusão é falsa: eu, garanto, não vou comprar carro
nenhum. E a conclusão não é (necessariamente) verdadeira porque a segunda premissa
não é verdadeira: de facto, não me saiu euromilhões nenhum [atenção: só digo que a
conclusão não é necessariamente verdadeira em função da verdade das premissas. De
acordo com a definição de argumento válido, apresentada no último texto, a conclusão
até poderia ser verdadeira. Mas não em função das premissas: podia sê-lo por outra
razão qualquer].
2. Ou seja: para um argumento ser bom tem de ser válido e ter premissas
verdadeiras: se for válido e tiver premissas verdadeiras, a conclusão será verdadeira. A
um argumento com as duas características anteriores chamaremos sólido.
3. Para um argumento ser bom tem, pois, de ser sólido. Mas para um argumento ser
bom não basta ser sólido. E isto percebe-se analisando este argumento:
“O meu baú é um blogue. Logo, O meu baú é um blogue“.
Este é um argumento válido
[se a premissa for verdadeira, não há dúvida nenhuma de que a conclusão o será
também, necessariamente].
E a sua premissa é verdadeira [ou há alguma dúvida sobre o assunto? ].
E, apesar disso, percebemos facilmente que este não é um bom argumento: se o objetivo
deste argumento é justificar a verdade da conclusão com a premissa, é óbvio que não
precisamos deste argumento para nada.
Dito de outro modo: a força maior dum argumento encontra-se na(s) premissa(s): é a
partir dela(s) que se segue a conclusão. No exemplo anterior, uma vez que a conclusão
repete a premissa, a premissa não tem mais força do que a conclusão.
Tiremos, então, a “lição”: para que um argumento seja bom, é necessário que seja
sólido (isto é, que seja válido e tenha premissas verdadeiras) e tenha premissa(s) mais
plausível(s) que a conclusão.
4. Como se percebe do último parágrafo, verdade e plausibilidade são conceitos
diferentes: um argumento pode ter premissas verdadeiras ou falsas, mas, em qualquer
dos casos, a(s) premissa(s) pode(m) ser mais ou menos plausíveis do que a conclusão.
Uma proposição é verdadeira em si própria; a plausibilidade define-se na relação com
um sujeito.
“Acabo de saber que João, um jovem simpático cá do bairro, desapareceu. Quem me
deu a notícia garantiu que o João caiu a um poço. Aceitei essa possibilidade… há, de
facto, aqui um poço numa quinta — e era hábito do João andar por aí a saltaricar…
Entretanto, a minha vizinha apareceu, desmentindo: o João foi raptado por
extraterrestres. E até gritou o que nos grita com frequência: “Eu não vos digo? eles
andam aí!…”.
Deixando-nos de estórias… A proposição “João foi raptado por extraterrestres” é para
mim menos plausível do que esta: “João caiu a um poço”. No entanto, para a minha
vizinha, que acredita piamente em extraterrestres, a primeira é mais plausível que a
segunda. Independentemente da maior ou menor plausibilidade, a proposição “João foi
raptado por extraterrestres” será, em si, verdadeira ou falsa conforme João tenha sido ou
não raptado por extraterrestres
[repito: mesmo que isso me pareça pouco plausível e pareça muito plausível à minha
vizinha].
5. Assim sendo,
Todos os Homens são mortais.
D. Afonso Henriques é Homem.
Logo, D. Afonso Henriques é mortal.
não é um bom argumento. É válido, tem premissas (e conclusão) verdadeiras, mas a
conclusão é mais plausível do que a primeira premissa. Para aceitarmos a conclusão,
não precisamos das premissas: é mais fácil aceitarmos a conclusão (este é o Afonso
Henriques que viveu no século XII: já morreu…) do que a referida premissa (é bem
plausível que todos os Homens sejam mortais — mas aos atualmente vivos ainda resta
alguma esperança de que a mortalidade se lhes não aplique).
6. Sabemos agora quais as condições de um bom argumento. De um argumento que
seja válido, tenha premissas verdadeiras e tenha premissas mais plausíveis que a
conclusão, diremos que é cogente.
O “livro do professor” que acompanha o manual de Filosofia do 11º ano adotado na
Escola onde trabalho exemplifica este conceito com 2 exemplos contrastantes bem
esgalhados. Um argumento cogente:
“Se o leite estivesse estragado, teria mau cheiro; mas o leite não tem mau cheiro; logo
não está estragado.
Um outro não cogente:
“Se o leite está estragado, tem mau cheiro; o leite está estragado; logo, tem mau
cheiro”.
Ambos os argumentos são sólidos [faça o exercício: diga lá porquê]; a diferença está em
que sabemos mais diretamente — é mais plausível — que “O leite tem mau cheiro”
(premissa no 1º exemplo; conclusão, no 2º) do que “O leite está estragado” (conclusão
no 1º exemplo; premissa, no 2º).

Argumentos sólidos
Se a vida faz sentido, Deus existe.
A vida faz sentido.
Logo, Deus existe.

A questão que deixei em aberto foi esta: o argumento é válido, mas será bom? A
validade, recorde-se, acontece quando as premissas e conclusão de um argumento estão
de tal modo organizadas que é impossível ou improvável as premissas serem
verdadeiras e a conclusão falsa. A validade é uma condição necessária da boa
argumentação — mas não é suficiente. Isso torna-se evidente se considerarmos um
argumento menos abstrato:
Aristóteles e Platão eram alemães.
Logo, Aristóteles era alemão.
Este argumento é obviamente válido porque é obviamente impossível a premissa ser
verdadeira e a conclusão falsa. Mas o argumento é mau — até porque tem uma
conclusão falsa. Isto acontece porque a própria premissa é falsa. A validade só garante
que se partirmos de premissas verdadeiras, obtemos conclusões verdadeiras. Não
garante que obtemos conclusões verdadeiras se partirmos de premissas falsas.
Assim, há duas condições necessárias para que um argumento seja bom: a validade do
argumento em si e a verdade das premissas. Chama-se “argumento sólido” aos
argumentos que além de válidos têm premissas verdadeiras. São os argumentos sólidos
que nos interessam, e não apenas os argumentos válidos.
Mas isto levanta um problema: como garantir que as nossas premissas são verdadeiras?
E é aqui que se esconde geralmente a visão distorcida que muitas pessoas têm das
coisas. Muitas pessoas são como as crianças que pensam que a origem do leite é o
supermercado — desconhecem a verdadeira origem do leite. Acontece o mesmo com
algumas pessoas que pensam que as verdades caem das árvores, já prontas e acabadas,
bastando aos seres humanos a sua recolha mais ou menos automática. Quando
descobrem que temos de nos dar ao trabalho de tentar descobrir verdades, e que não há
mecanismos automáticos para isso, ficam aborrecidas.
Para argumentarmos corretamente, temos de usar argumentos sólidos e para isso temos
de ter premissas verdadeiras e para ter premissas verdadeiras temos de ir à descoberta
das coisas — e não há receitas automáticas para fazer isso. Fazemo-lo de diversas
maneiras e nenhuma delas é automática nem garante resultados — o risco de errar está
sempre presente. Por isso, para cada maneira de tentar pacientemente descobrir a
verdade, há mil maneiras de o impedir usando variações do conhecido Discurso
Paralisante: “Não vale a pena porque não há garantias”. A história das grandes
descobertas e dos grandes feitos da humanidade é a história do que se conseguiu saber e
fazer quando não havia garantias de se conseguir sabê-lo nem fazê-lo.

Para aborrecer ainda mais os que querem soluções tipo “fast-food”, quase todas as
maneiras de descobrir verdades obrigam a usar... argumentos. De modo que para
justificar uma premissa temos de usar outro argumento e por sua vez para justificar uma
premissa desse argumento temos de usar um terceiro. Só de pensar nisto faz tonturas,
mas a vida é mesmo assim. Não há soluções automáticas. Há apenas as nossas crenças
sobre as coisas, uma mais plausíveis do que outras, e as nossas justificações delas. Se
formos sérios e honestos, procuramos mesmo as justificações, com cuidado,
imparcialidade e objetividade. Se adotarmos o maravilhoso lema “vale tudo”, torna-se
tudo muito mais simples porque podemos dizer o que nos dá na telha. Mas também tem
a desvantagem de ser completamente aleatório, pelo que com a mesma aleatoriedade
podemos negar tranquilamente, e sem qualquer justificação, tudo o que essa pessoa
disser. Se o fizermos com um sorriso nos lábios temos ainda o bónus de a irritar
profundamente, e portanto não se pode dizer que a vida é sempre madrasta.

Em conclusão, conhecemos já duas das condições necessárias para que um argumento


seja cogente: ser válido e ter premissas verdadeiras. Mas ainda falta uma terceira
condição necessária para que um argumento seja cogente: é o que veremos noutro post.
Para espicaçar a sua curiosidade deixo-lhe este argumento maravilhoso, que é sólido (é
válido e tem premissa verdadeira), mas é idiota:
Sócrates não era engenheiro.
Logo, Sócrates não era engenheiro.

Validade dedutiva
É recorrente observar esta definição de validade dedutiva: o argumento dedutivo é
válido quando as premissas forem verdadeiras e a conclusão também o for. Só que esta
definição é incompleta ou mesmo errada. Senão vejamos o seguinte exemplo:
O Rolando Almeida é professor de física e as nuvens são cor-de-rosa
Logo, o Rolando Almeida é professor de física.
Como sabemos o Rolando Almeida é professor de filosofia e não de física e as nuvens
não são cor-de-rosa. A premissa é falsa e a conclusão também e ainda assim o
argumento é dedutivamente válido, apesar de não ser sólido.
Então como sabemos que o argumento é válido? Vamos imaginar um mundo possível
em que o Rolando tenha estudado física e ensine física. Nesse mundo possível também
é verdade que as nuvens até são cor-de-rosa. Ora, nesse mundo possível, a premissa é
verdadeira. Será que sendo a premissa verdadeira é possível que a conclusão seja falsa?
A resposta é obviamente não, pelo que o argumento, apesar de não ser um bom
argumento, tem uma forma lógica dedutivamente válida.

FRASES E PROPOSIÇÕES
Uma proposição é o pensamento que uma frase declarativa exprime literalmente.
Só as frases declarativas podem exprimir proposições. As frases interrogativas,
exclamativas, prescritivas e as promessas não exprimem proposições.

 Uma frase só exprime uma proposição quando o que ela afirma tem valor de
verdade.
 Uma frase tem valor de verdade quando é verdadeira ou falsa, ainda que nós
não saibamos se a frase é realmente verdadeira ou falsa.
 Há frases declarativas que não têm valor de verdade.
Segundo Quine, toda proposição é uma frase mas nem toda frase é uma proposição;
uma frase é uma proposição apenas quando admite um dos dois valores lógicos: Falso
(F) ou Verdadeiro (V). Exemplos:
1. Frases que não são proposições
Pare!
Quer uma xícara de café?
Eu não estou bem certo se esta cor me agrada

2. Frases que são proposições


A lua é o único satélite do planeta terra (V)
A cidade de Salvador é a capital do estado do Amazonas (F)
O número 712 é ímpar (F)
Raiz quadrada de dois é um número irracional (V)
Exemplos:
“O Sol vai ‘morrer’ no 4º milénio”
[sim: é declarativa e pode ser verdadeira ou falsa]
“Nem sempre matar é mal”
[sim: é declarativa e pode ser verdadeira ou falsa. Sabemos que nem todos concordam
com esta proposição; mas isso não impede que ela ou é verdadeira ou é falsa].
“Os números primos casam com os números pares às quartas-feiras”
[não: é uma frase declarativa, mas nem é verdadeira nem falsa, porque não tem sentido].
“Lisboa é a capital de Espanha”
[sim. Como se trata de uma afirmação falsa, poderíamos ser tentados a pensar que não
se trata de uma proposição; mas, o que exprime uma proposição é uma frase declarativa
que pode ser verdadeira ou falsa -- logo, as frases declarativas falsas também exprimem
proposições, como é o caso. Uma afirmação absurda -- que não tem sentido -- é
diferente de uma afirmação falsa].
“Em Marte há vida”.
[sim. Como se trata de uma afirmação cujo valor de verdade não podemos, por
enquanto, determinar (não sabemos se em Marte há vida ou não), poderíamos ser
tentados a pensar que não se trata de uma proposição; mas uma coisa é nós sabermos
qual o valor de verdade de uma afirmação - outra coisa é essa afirmação ter valor de
verdade, poder ser verdadeira ou falsa. E, no caso, pode: é verdadeira se houver vida em
Marte; é falsa, se não houver].

Classifique as seguintes proposições (coloque na forma canónica).


1. Não há prova de filosofia que não seja chata -
2. Não há quem não goste de boa comida -
3. Há alunos que não são estudiosos -
4. Ninguém de bom senso se deixa prejudicar -
5. Os cisnes não são negros -
6. Há pessoas com sorte -
7. Qualquer pessoa gosta de ir à praia -
8. Os portugueses são simpáticos -
9. Não há quem não goste de boa música -
10. Nem todos os alunos são cábulas -
11. As avós são ótimas cozinheiras -
12. Nenhum veneno é saudável -
14. Ninguém de bom senso gosta de violência -
15. Não há mentirosos honestos-
16. Quase todos os portugueses gostam de futebol -

A. Os seres humanos não podem alcançar tudo o que desejam.

B. Certos homens julgavam que o livre-arbítrio era uma ilusão. -Espinosa

Negar proposições

Vejamos os dois casos mais comuns de erro, o das proposições universais e das
condicionais.
A negação de uma universal afirmativa, é uma particular negativa. Assim, a negação de
“Todos os portistas gostam de futebol” não é “Nenhum portista gosta de futebol”, mas
“alguns portistas não gostam de futebol”. Recordo que negar uma proposição é alterar o
seu valor de verdade.
A negação de uma condicional como “Se os portistas ganham, então são campeões” não
é “Se os portistas não ganham não são campeões”, mas “os portistas ganham, mas não
são campeões”. A negação de «Se P, Q» é sempre «P, mas não Q».
Podem parecer pormenores simples para quem está habituado a raciocinar, mas não são
simples para estudantes de 15 anos que provavelmente nunca foram confrontados com a
questão.
1- As proposições universais podem igualmente ser refutadas com um contraexemplo,
"Este portista não gosta de futebol". Não há, como é óbvio, contraexemplos para as
proposições particulares.

2- Quanto à negação das condicionais, é muito comum os alunos questionarem por que
razão a proposição "Se os portistas não ganham não são campeões" não serve para negar
a frase dada. É evidente que podemos responder com a regra lógica da negação das
condicionais, mas, no meu entender, não basta. Penso que é importante referir que a
frase dada, "Se os portistas ganham, então são campeões", apenas nos indica o que
sucede se se verificar uma condição "Os portistas ganham", a proposição nada nos diz
acerca do facto de os portistas não ganharem, esta é uma outra condição que não está
prevista na antecedente da condicional dada. Assim, não faz sentido negar a condicional
dada "Se os portistas ganham, então são campeões", com a frase "Se os portistas não
ganham não são campeões", estaríamos a introduzir uma nova condição. Não sei se fui
claro.
Prefiro utilizar a palavra "e" em vez de "mas" na negação das condicionais, apesar de
ambas retratarem uma conjunção, penso que é mais simples para os alunos, ficaria
assim: "Os portistas ganham e não são campeões".
Em suma, saber negar proposições é importante para se saber o que se está a querer
dizer e para se saber se realmente se concorda ou não com o que alguém afirma.
A segunda precisão é que o que afirmas na segunda parte dessa frase é literalmente
falso: não é, em bom rigor, verdade que negar uma proposição seja inverter o seu valor
de verdade. Compreende-se o que queres dizer, mas acho que a forma como o dizes trai
o que tinhas em mente. Isto porque dás a entender que a negação de uma proposição é a
mesma proposição, só que com diferente valor de verdade, o que é bizarro. Ora, a
negação de uma proposição é sempre OUTRA proposição e não a mesma com outro
valor de verdade. A negação da proposição expressa pela frase "Deus existe" é outra
proposição diferente, desta vez expressa pela frase "Deus não existe". Mas aqui estão a
ser expressas DUAS proposições e não uma. Em suma, a negação de uma proposição é
sempre outra proposição diferente.
Seja como for, proposições do tipo A e do tipo E não são negações uma da outra,
mesmo que a verdade de uma implique a falsidade da outra, como se torna claro no
seguinte exemplo.
1) Todos os portugueses são milionários. (tipo A)
2) Nenhum português é milionário. (tipo E)
Ora, a verdade de 1 implica a falsidade de 2. Será, então que 2 é a negação de 1? A
resposta é: Não!
Porquê? Porque PODEM ser ambas falsas (neste caso até são realmente ambas falsas) e
a negação de uma dada proposição NÃO PODE ser outra proposição com o mesmo
valor de verdade.
Assim, também a proposição expressa pela frase "Nenhum portista gosta de futebol"
NÃO É a negação de "Todos os portistas gostam de futebol", apesar de a verdade desta
implicar a falsidade daquela.
Para negar um contraexemplo utilizamos a respetiva contraditória.
Vejamos o seguinte argumento:
Se o assassínio indiscriminado de inocentes for permissível, a vida não é sagrada.
Mas a vida é sagrada.
Logo, o assassínio indiscriminado de inocentes não é permissível.
Este é um argumento válido. Mas será sólido? Não sabemos, porque pelo menos a
segunda premissa é disputável. Imaginemos, contudo, que as premissas do argumento
são realmente verdadeiras, apesar de nós não o sabermos.
Será o argumento nesse caso bom? Não. O argumento não é bom porque não tem em
conta o estado cognitivo do auditório.
􀂄 O auditório são as pessoas com quem estamos a falar, ou para quem estamos a
escrever.
􀂄 O estado cognitivo de um auditório é o conjunto de conhecimentos e crenças ou
convicções que o auditório tem argumento não tem em conta o estado cognitivo do
auditório porque a sua conclusão é mais evidente e menos disputável, para qualquer
pessoa, do que as suas premissas. Mesmo partindo da hipótese de que as premissas do
argumento são verdadeiras, o argumento é mau porque as premissas não são mais
plausíveis, seja para quem for, do que a conclusão. Mesmo que sejamos religiosos e
aceitemos as duas premissas, é muitíssimo mais evidente que o assassínio
indiscriminado de inocentes não é permissível do que qualquer uma das premissas.
Diz-se, assim, que o argumento é fraco ou não é bom porque as suas premissas não são
mais evidentes ou mais plausíveis do que a sua conclusão.
􀂄 Um argumento bom ou forte é um argumento sólido cujas premissas são mais
plausíveis do que a sua conclusão.
􀂄 Um argumento mau ou fraco é um argumento que não é sólido ou cujas premissas
não são mais plausíveis do que a sua conclusão.
A força de um argumento válido é exatamente igual à plausibilidade da sua premissa
menos plausível. Argumentar bem implica descobrir bons argumentos a favor de uma
ideia baseados em premissas que quem é contra essa ideia está disposto a aceitar.
Alguns argumentos são maus ou bons para quaisquer pessoas, como o argumento
acima. Mas outros argumentos poderão ser bons para certas pessoas e maus para outras.
􀂄 A plausibilidade das proposições é relativa ao estado cognitivo dos auditórios.
Por exemplo:
Se o Papa defende que não devemos tomar a pílula, não devemos tomar a pílula.
O Papa defende que não devemos tomar a pílula.
Logo, não devemos tomar a pílula.
A segunda premissa é uma verdade estabelecida. Mas a primeira é disputável.
Contudo, para um católico este argumento é bom, desde que ele aceite a primeira
premissa e a ache mais plausível do que a conclusão. Mas para uma pessoa que não
partilhe as suas crenças religiosas, o argumento é fraco, pois essa pessoa não aceita a
primeira premissa (apesar de ser possível que essa premissa seja verdadeira, sem que ela
o saiba).
A solidez de um argumento é independente do estado cognitivo do auditório; nem a
validade nem a verdade dependem do que as pessoas pensam. Mas a força ou
plausibilidade de um argumento é relativa aos estados cognitivos das pessoas: depende
do que as pessoas pensam que é verdade, aceitável ou plausível.
A um argumento fraco chama-se também «inferência não informativa» ou «inferência
irrelevante». Assim, uma inferência como «Está a chover; logo, está a chover», apesar
de válida, não é informativa. E uma inferência que parte de proposições menos
plausíveis do que a conclusão é irrelevante.

Contra-exemplo
“Um caso particular que refuta uma generalização. Visto que se pode mostrar a
falsidade de uma generalização por meio de uma única excepção, argumentar por
contra-exemplos é um poderoso instrumento para as pôr em causa, e particularmente
eficaz contra as generalizações apressadas.

Por exemplo, se alguém fizesse uma generalização apressada «Todos os médicos


escrevem de maneira ilegível», então um único caso de um médico cuja escrita fosse
legível refutaria a generalização. Afirmações abrangentes como esta são um convite à
procura de contra-exemplos. Analogamente, se alguém declarasse «Nunca houve
qualquer mulher cientista digna de nota», então a menção de Marie Curie seria
suficiente para refutar a generalização, sem que fosse preciso mencionar outras
mulheres cientistas a quem se podia razoavelmente atribuir notoriedade.

Supondo que o contra-exemplo é genuíno, a pessoa cuja generalização foi tão


conclusivamente refutada nada pode fazer senão rever ou rejeitar a generalização. Uma
forma de revisão consiste simplesmente em (…) mudar o «todos» explícito ou implícito
para «alguns» ou «muitos» (…).”

Nigel Warburton, Pensar de A a Z, tradução de Vítor Guerreiro, Ed. Bizâncio, Lisboa, 2012, pág. 95

PETIÇÃO DE PRINCÍPIO:

“Essa falácia consiste {...} no uso da própria conclusão (mascarada) como uma
premissa do mesmo argumento. São os conhecidos raciocínios circulares {...}.
Embora argumentos que incorrem em petição de princípio sejam válidos ({...} uma
vez que a conclusão é uma das premissas), são constituídos por premissas que não
oferecem credibilidade à conclusão. (VELASCO, 2010, p. 126-127)”.

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