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1 INTRODUÇÃO
A humilhação do filho de Deus, compreendendo desde a sua encarnação até
a sua morte na cruz, revela o plano de Deus para salvar a humanidade. Os judeus
não compreenderam o mistério da encarnação de Jesus, o filho de Deus, e por isso
não o receberam (João 1.11). Os próprios discípulos não compreenderam esse
mistério, motivo pelo qual discordaram de Jesus, quando ele disse que partiria para
o caminho da humilhação e morte.

Ainda hoje muita dúvida paira sobre a necessidade de tanto sofrimento.


Nesse sentido, o objetivo principal desse trabalho de monografia é procurar
esclarecer as peculiaridades da humilhação do servo do Senhor. Um segundo
objetivo é levar os leitores a uma reflexão sobre as implicações da humilhação de
Jesus Cristo na vida dos seus discípulos.

Para esse propósito será tomado como base a profecia de Isaías, o


evangelho de Marcos, e a carta do apóstolo Paulo aos Filipenses. Nos próximos
capítulos serão expostas algumas caracerísticas do Servo Sofredor na visão do
profeta Isaías, do evangelista Marcos e do apóstolo Paulo.

Este trabalho de pesquisa parte principalmente da consulta bibliográfica e


artigos publicados e procura fazer um ponto de inflexão com a prosperidade tão
buscada hoje. Como então separar a teologia da glória extensamente propagada, da
teologia da cruz1? Esse é o problema de pesquisa.

A justificativa se faz valer na importância da humilhação de Cristo, uma vez que o


tema é extremamente atual, pois assim como Cristo se humilhou, seus seguidores
também devem se humilhar tendo convicção de que também serão exaltados.

O primeiro capítulo apresenta o Servo do Senhor na visão do profeta Isaías como


descrito por ele no capítulo 52.13 ao 53.12. O segundo, vai apresentar o
entendimento do evangelista Marcos, e o terceiro e último capítulo vai trazer a
compreensão do apóstolo Paulo, a partir da sua carta aos Filipenses. A seguir, o
pensamento de Isaías.

1
Momenclatura adotada por Martinho Lutero.
7

2 O SERVO SEGUNDO ISAÍAS 52.13 – 53.12

Eis que o meu servo procederá com prudência; será exaltado, e elevado, e
mui sublime. Como pasmaram muitos à vista dele, pois o seu parecer estava
tão desfigurado, mais do que o de outro qualquer, e a sua figura mais do que
a dos outros filhos dos homens. Assim borrifará muitas nações, e os reis
fecharão as suas bocas por causa dele; porque aquilo que não lhes foi
anunciado verão, e aquilo que eles não ouviram entenderão. Quem deu
crédito à nossa pregação? E a quem se manifestou o braço do SENHOR?
Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma terra seca;
não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa
aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado, e o mais rejeitado
entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como
um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos
dele caso algum. Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas
enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por
aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas
transgressões, e moído por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos
traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos
nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu
caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos. Ele foi
oprimido e afligido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado ao
matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele
não abriu a sua boca. Da opressão e do juízo foi tirado; e quem contará o
tempo da sua vida? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; pela
transgressão do meu povo ele foi atingido. E puseram a sua sepultura com os
ímpios, e com o rico na sua morte; ainda que nunca cometeu injustiça, nem
houve engano na sua boca. Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o
enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua
posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará
na sua mão. Ele verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará satisfeito; com
o seu conhecimento o meu servo, o justo, justificará a muitos; porque as
iniqüidades deles levará sobre si. Por isso lhe darei a parte de muitos, e com
os poderosos repartirá ele o despojo; porquanto derramou a sua alma na
morte, e foi contado com os transgressores; mas ele levou sobre si o pecado
de muitos, e intercedeu pelos transgressores. (ISAÍAS, 52.13-23.12).2

Quem é o Servo de IAVÉ? Esta pergunta não é recente. É o que se pode


inferir pelo Novo Testamento. O evangelista Filipe, quando perguntado pelo eunuco
da rainha de Candace da Etiópia, a quem se referia o profeta em Isaías 53,
responde de forma contundente que é Jesus (Atos 8. 26-40).

Fora do texto bíblico há interpretações diversas sobre o significado da


expressão. A seguir serão apresentadas as mais importantes.

A interpretação mitológica: Vinculada a teólogos escandinavos como Nyberg


e Engnell, que sugerem que há a presença de fortes elementos mitológicos nos
cânticos.
A interpretação autobiográfica: Nesta compreensão, o autor refere-se a si
mesmo. Então, o Servo seria Isaías.
2
ACF – Almeida Corrigida Fiel
8

A interpretação Individual: Os traços pessoais delineados nas Canções do


Servo levam os comentaristas a identificar o servo como uma figura histórica. O
autor refere-se a um indivíduo ou episódio histórico.

A Interpretação Coletiva ou corporativa: os poemas referem-se a um grupo ou


nação e o Servo é identificado com a comunidade de Israel (o remanescente). Por
detrás desta compreensão está o conceito de personalidade corporativa vigente
entre os povos do antigo Oriente Próximo, incluindo Israel. Osvalt (2011) comenta
que, com o surgimento da alta crítica, começou-se a pensar no Servo como uma
personificação da nação. Esse ponto de vista esteve em alta no século XIX e tem
adeptos ainda hoje. J. Ridderbos (1986) aponta que o verso 8 diz que o Servo sofre
por causa do povo de Deus, logo não pode estar referindo a Israel.

A Interpretação mista: Combina as interpretações individual e a coletiva.


Entende-se que uma interpretação puramente individual ou coletiva não esgota o
assunto. Portanto, funde-se a compreensão: O Servo é um personagem que, por
sua vez, encarna a comunidade de Israel.

Interpretação Messiânica: Esta interpretação aponta para o Cristo, o


descendente de Davi, o Messias esperado de Israel. (SILVA FILHO, 2014, p. 24-25).

2.1 UM LIBERTADOR PARA ISRAEL

Que tipo de libertador o povo de Israel poderia esperar, após tantas


promessas feitas por IAVÉ? Talvez pudesse causar surpresa que Deus tenha
querido agir através do Servo, cujo modus operandi mostrados anteriormente em Is
42.1-9; 49.1-6; 50.4-9, tomam em Is 52.13 - 53.12, um contorno mais claro, com
detalhes mais vivos, especialmente no que diz respeito ao seu sofrimento vicário e
seu triunfo incontestável. Estas descrições do Servo pressupõe as três descrição
prévias (capítulos 42,49,50). Ela não pode ser entendida sem as que a precedem. O
que se ve nessas passagens citadas, é que os sofrimentos do Servo estão ainda
envoltos em brumas, ou seja, não estão bem claras, como observa Osvalt (2011, p.
458): “[…] As consequencias mundiais de sua obra após aparente fracasso, a falta
de compreensão, a disposição de enfrentar o sofrimento imerecido, o sucesso
infalível, tudo isso está presente em forma embrionária nas primeiras descrições.”
9

A divisão tradicional do capitulo 53, que data do início do século XIII, é


claramente fruto de um equívoco, pois o capítulo começa em 52.13, onde a Canção
do Servo do Senhor é introduzida, a qual, desde este ponto até o final do capítulo
53, é o assunto da Canção. Osvalt (2011, p. 458-459) diz:

O poema fornece evidência da criteriosa construção literária. Contém cinco


estrofes de três versos cada uma (52.13-15; 53.1-3, 4-6, 7-9, 10-12). A
primeira e a última estrofes contêm a recomendação do Servo na voz de
Deus, enquanto as três do meio falam da humilhação e sofrimento do Servo,
a primeira e a segunda das quais estão na voz de “nós”, os que causamos
seu sofrimento. O pensamento central do poema se focaliza em dois grandes
contrastes: o contraste entre a exaltação do Servo, e sua humilhação e
sofrimento, e o contraste entre o que o povo pensava do Servo e qual era
realmente a situação […].

Nesse trabalho, será adotada a divisão feita por Osvalt. A seguir, uma análise
das cinco estrofes que tem início em Is 52.13-15:

Eis que o meu servo procederá com prudência; será exaltado, e elevado, e
mui sublime. Como pasmaram muitos à vista dele, pois o seu parecer estava
tão desfigurado, mais do que o de outro qualquer, e a sua figura mais do que
a dos outros filhos dos homens. Assim borrifará muitas nações, e os reis
fecharão as suas bocas por causa dele; porque aquilo que não lhes foi
anunciado verão, e aquilo que eles não ouviram entenderão. (ISAÍAS, 52.13-
15).

Osvalt comenta sobre a admiração das pessoas ao se deparar com o Servo:

As nações se sentirão tão surpresas ante a grandeza do fim como ficaram


ante a pequenez do começo [...] a excessiva grandeza do servo leva os reis
da terra a fecharem suas bocas [...] sua grandeza é tão pequena que nada
tem a dizer em sua presença e nada mais podem fazer senão cair a seus
pés... assim, o que jamais ouviram antes é que alguém que assumira uma
posição tão humilde pudesse no fim assentar-se no próprio trono de Deus.
(OSVALT, 2011, p. 463).

Por isso os pagãos recebem com fé as boas novas que já haviam sido
ouvidas antes. Israel tem que se lamentar por não ter acreditado nas notícias que
havia ouvido há muito tempo, não apenas com referência à pessoa e obra do Servo
de Deus, mas em relação à sua origem humilde e fim glorioso.

A verdade é que as pessoas que ouviram falar desse libertador estavam


perplexas: Quem poderia imaginar que um libertador pudesse colocar-se num plano
tão humilde assim? Quem poderia crer que a libertação viesse de alguém tão
desfigurado, fraco e sofrido?

Quem deu crédito à nossa pregação? E a quem se manifestou o braço do


SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma
terra seca; não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não
10

havia boa aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado, e o


mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos
trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era
desprezado, e não fizemos dele caso algum. (ISAÍAS, 53.1-3).

John Oswalt diz: “A pessoa que está sendo descrita aqui [53.1] como ‘o braço
do Senhor’ e como o Servo é o mesmo Servo descrito em 42.1-9, 49.1-6; e 50.4-9.”
(OSWALT, 2011, p. 458). A expressão “o braço de IAVÉ” que também aparece em
40.10; 48.14; 51.5; 52.10 mostra claramente como Deus resolveu resgatar seu povo
de maneira que este não poderia fazer isso por si só. Mas quando Deus estende seu
braço savador a reação a ele é de espanto. A questão central aqui é que a notícia
que está sendo dada a respeito da salvação provém do braço de Iavé.

O caráter surpreendente desse verso é que o braço salvador de YAHWEH


seja mostrado não como quem esmaga um inimigo, mas, em um primeiro momento,
esmaga o próprio Servo do Senhor, que é moído e esmagado pelos pecados do seu
povo.

O verso 2 traz o Servo como alguém sem nenhum atrativo que pudesse atrair
aqueles a quem veio libertar. O braço do Senhor descrito no verso 1 começa a se
manisfestar na vida do Servo em princípio de forma imperceptível prosseguindo de
forma crescente no decorrer da sua vida. Silva Filho (2014, p. 34) lembra:

No entanto, o que se espera dos libertadores, dos heróis de guerra, dos


salvadores? Que eles sejam fortes, enérgicos, e que atraiam as pessoas a si
e as envolvam no seu projeto libertador. Este Servo de maneira alguma se
encaixa nesse perfil. Exteriormente, seu projeto libertador parece repelir as
pessoas, afastá-las de si. Ele poderia ser referido como uma árvore frondosa,
de madeira de lei; mas, é referido como um renovo, isto é, como um frágil
broto recém-nascido, cuja sobrevivência é bastante duvidosa.

Osvalt complementa:

Inevitavelmente, o cristão imagina Jesus Cristo: um recém-nascido no


estábulo de uma cidade. Isso abalaria o Império Romano? Um homem
calmamente chegando ao grande pregador do dia e pedindo que fosse
batizado. É esse o advento do homem que seria proclamado como o
Salvador do mundo? Não, não é esse em quem pensamos ser o braço do
Senhor. Estivemos esperando um major engalanado a liderar nossa parada
triunfal. Nossos olhos se sentem cheios e satisfeitos com o esplendor
superficial. Este homem, diz Isaías, não terá nada disso. Como resultado,
nossa vista passeia pela multidão em busca dele, e nem assim o divisamos.
Seu esplendor não está na superfície, e os que não se dispõem a olhar para
além da superfície jamais o verão, muito menos lhe prestarão atenção.
(OSVALT, 2011p. 466).
11

O verso 3 parece indicar que ele foi visto pelas pessoas mas, o que elas
viram? Beleza alguma. Essa palavra pode ser traduzida também por “forma,
aparência, dignidade”. É usada para descrever a beleza de Raquel (Gn 29.17) e a
de José (Gn 39.6). Também caracteriza a Davi (1 Sm 17.42). Pode caracterizar o
próprio Deus (Sl 96.6, 145.5). Isso indica que o Servo abriu mão da sua beleza e
esplendor divinos para vir ao encontro da humanidade pecadora a fim de resgatá-la.
Aquilo que agrada o olhar, a vista das pessoas, não foi visto no servo.

A repulsa das pessoas quando se depararam com ele aparece na expressão


“era desprezado”. Era a figura de um perdedor. E as pessoas pensavam: como um
perdedor poderia ajudar outros perdedores?

Além de não ser atrativo, ele ainda tinha seus próprios problemas, Ele estava
ferido, maltratado, era um homem de dores. Ele encarna o sofrimento e a reação
das pessoas é imediata: elas escondem o rosto. Talvez até por questões
cerimoniais. Osvalt comenta:

E assim, a revelação do braço do Senhor que libertará o povo do Senhor se


depara com choque, perplexidade, desprazer, afastamento e repulsa. Alguém
assim dificilmente poderá nos libertar da mais persuasiva de todas as
escravidões humanas: o pecado e todas as suas consequências. (OSVALT,
2011, p. 468).

2.2 O SOFRIMENTO DO SERVO

O sofrimento do Servo de IAVÉ precisa ser entendido no contexto oriental,


onde se acreditava que o sofrimento sempre era em consequência de um pecado
que a pessoa cometeu. No entanto, o Servo está sofrendo por culpa alheia, em
virtude dos pecados do seu povo.

Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas


dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e
oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por
causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele,
e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados
como ovelhas; cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair
sobre ele a iniqüidade de nós todos. (ISAÍAS, 53.4-6).

A primeira estrofe mostra que ele não foi reconhecido devido ao seu parecer.
Parecia que os efeitos do pecado estavam sobre ele. Ele estava bastane
desfigurado por causa dos seus sofrimentos. A partir do verso quatro pode-se
entender que seus sofrimentos foram por causa dos pecados do seu povo. Na
12

verdade não havia nada de errado com ele, o propósito era providenciar a cura. Não
havia nada errado com ele, mas tudo estava errado com seu povo.

Normalmente, os seres humanos gostam de abrandar as suas deformidades


e desvios de conduta, faz de tudo para atenuar esses equívocos. Se esquiva de
curvar-se ao governo do Criador, e insiste em criar códigos morais que justifiquem a
sua conduta. Deus não aceita nada disso como justificativa. Osvalt (2011, p. 472)
diz: “ao menos que alguém se ponha em nosso lugar, nos porão frente a frente com
as espadas de nossa própria fabricação e executarão as torturas de nossa própria
invenção.”

Nesse sentido, até que o castigo seja removido todas as boas intenções do
mundo não podem restaurar a harmonia quebrada. Osvalt complementa: “No Servo,
ele achou a forma de gratificar seu amor e satisfazer a sua justiça” (OSVALT, 2011,
p. 473).

Se pelas suas pisaduras fomos sarados, então seu sacrifício é substitutivo.


Ele mesmo não merece todos esses sofrimentos, mas sofre para produzir benefícios
para outros. Isaías é enviado por Deus com uma pregação dura de justiça e juízo,
esse é ministério do profeta. O Servo é enviado por IAVÉ para trazer a cura e levar
sobre si as mazelas do seu povo, essa é a obra de Deus.

O “todos nós”, abre e fecha a passagem indicando que as consequências do


pecado atingiu a todos sem excepção. Osvalt comenta:

As ovelhas são notoriamente ingênuas e ao mesmo tempo inconscientes de


suas circunstâncias. Suas mentes estão na próxima moita de relva, e em
nada mais. Além disso, quando estão amedrontadas tem a tendência de
arremessar-se em qualquer direção. Como resultado dessas tendências, as
ovelhas são propensas a perder-se. Nós também, como elas, amiúde nos
sentimos impotentes ante as conseqüências, especialmente as de caráter
eterno. Então, o que tem acontecido? As conseqüências recaíram sobre o
Servo. Isso não é acidental; o texto diz explicitamente que Deus fez isso
acontecer. Que grande mistério. (OSVALT, 2011, p. 474).

É notável o profeta comparar o povo de Deus com ovelhas. Diferente do


mundo onde o importante é ser o leão, o mais forte.

Ele foi oprimido e afligido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi
levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores,
assim ele não abriu a sua boca. Da opressão e do juízo foi tirado; e quem
contará o tempo da sua vida? Porquanto foi cortado da terra dos viventes;
pela transgressão do meu povo ele foi atingido. E puseram a sua sepultura
13

com os ímpios, e com o rico na sua morte; ainda que nunca cometeu
injustiça, nem houve engano na sua boca. (isaías, 53.7-9).

O Servo é também comparado com uma ovelha, mas diferente do seu povo,
que a passagem anterior se refere como ovelhas, a característica emprestada do
animal aqui é outra. Enquanto se aplica ao povo de Deus a facilidade que as ovelhas
têm em se extraviar, ao Servo se aplica a obediência que esse animal singular
apresenta. A metáfora da ovelha ainda faz com que o Servo se identifique com o seu
povo, se fazendo como um deles.

A profecia toma contornos sombrios ainda mantendo a metáfora da ovelha


que caminha para o matadouro. Ele não só foi desprezado, não só foi ferido, mas ele
foi morto pelos pecados do seu povo. Sua vida foi ceifada precocemente ainda que
ele nunca tenha praticado a injustiça. Osvalt (2011, p. 476) comenta: “Esta estrofe
enfatiza três elementos: A submissão do Servo, sua inocência e a injustiça do que
lhe foi feita. [...] não apenas nada fez que seja digno da morte que lhe vem ao
encontro; ele realmente está recebendo o tratamento que outro merecia.”

Ser tirado da opressão e do juízo pode ter o sentido de que Deus o arrebatou
para si, mas não há consenso entre os comentadores sobre a passagem. Parte do
seus sofrimentos foi ter sido deixado sem decendentes. Silva Filho (2014, p. 58) diz:

[…] o Servo foi deixado sem filhos numa cultura segundo a qual morrer sem
filhos era ter vivido uma existência inútil. Do ponto de vista meramente
humano, era perceptível que este homem estava sendo castigado de todas
as formas possíveis e imagináveis.

Apesar de terem designado a sua sepultura com os perversos, ele foi


colocado em um sepulcro onde ninguém nunca havia sido enterrado. Os homens o
mataram com requintes de crueldade mas Deus lhe deu um funeral glorioso. Silva
complementa: “O evangelista Mateus relata que José de Arimatéia cedeu sua
sepultura no jardim e, assim, vemos a profecia e o cumprimento no relato das
Escrituras: Seu corpo morto, de fato, repousou na sepultura de um homem rico.”
(SILVA FILHO, 2014, p. 60).

Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma


se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus
dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. Ele verá o fruto do
trabalho da sua alma, e ficará satisfeito; com o seu conhecimento o meu
servo, o justo, justificará a muitos; porque as iniqüidades deles levará sobre
si. Por isso lhe darei a parte de muitos, e com os poderosos repartirá ele o
despojo; porquanto derramou a sua alma na morte, e foi contado com os
14

transgressores; mas ele levou sobre si o pecado de muitos, e intercedeu


pelos transgressores. (Is, 53.10-12).

Essa última parte mostra o resultado do trabalho do Servo de IAVÉ, e


responde a pergunta: qual o significado do sofrimento injusto e cruel deste homem?
Por que ele sofre tanto? A complexidade dos propósitos de Deus parece ter aqui o
seu clímax, afinal, foi o próprio Deus que causou nele todos os sofrimentos. Embora
tenham sido os homens quem infligiram tão grande sofrimento ao Servo, eles
estavam simplesmente cumprindo a vontade de Deus.

A profecia toma agora contornos escatológicos apontando para o resultado


prático da sua obra. E vai mostrar que todo aquele sofrimento, que culmina com a
sua morte não foi em vão, que havia um propósito maior sendo cumprido. Silva Filho
(2014, p. 60) comenta:

Quais são os resultados do trabalho do Servo? Para ele, o texto traz


referências de felicidade e alegria contrastantes com o que foi dito a respeito
dele até aqui. Dele, foi dito que é desprezível e que não teria descendência;
aqui se fala dele como alguém favorecido por Deus e que ele verá a sua
descendência. Também é dito que viverá uma vida longa. Também é dito que
cumprirá os propósitos de Deus para a sua vida.

Muito longe de ser maldito de Deus, o Servo será o meio pelo qual as
promessas de reconciliação se tornam reais na vida do povo de Deus. Ainda que
tenha sido reputado como maldito por essa geração, após a ressurreição ele verá
cumprido em si mesmo todos os propósitos de Deus. Como salienta Westermann
(1969 apud OSVALT, 2011, p. 490): “É somente do outro lado da morte do Servo
que seu livramento e o nosso podem concretizar-se.”

Com o seu conhecimento ele justificará a muitos, ou seja, ele tanto conhece
aquele que o enviou como também conhece aqueles que justifica. Silva diz:

Ele conhece a Deus, com o qual ele está unido em amor; ele conhece os
conselhos do seu amor e os desejos da sua graça, pelo desejo do qual
deixou-se moer, ser traspassado e ferido, até chegar às câmaras da morte.
Por causa do conhecimento completo que ele tem do Pai, ele é capaz de
tornar justos todos os que se apegam a ele em fé verdadeira. (SILVA FILHO,
2014, p. 64).

O Servo, ao tomar o lugar dos seus escolhidos e se entregar por eles os


justifica. Nesse sentido, cada ser humano salvo é declarado justo por ele, que
conquistou essa autoridade com seu sofrimento e morte vicária. Silva Filho (2014, p.
65) complementa:
15

A razão pela qual as pessoas são tornadas justas é que o Servo está
carregando as iniqüidades deles. Ele carrega as iniquidades do povo e, por
isso, ele leva sobre si o castigo que o povo deveria levar e, assim, torna
justos todos aqueles que recebem, pela fé, o sacrifício que ele ofereceu.
Porque a justificação tem sua raiz no perdão dos pecados, como uma dádiva
imerecida da graça, sem obras.

E todos os poderosos que lhe fizeram oposição no decorrer da história lhe


serão dados como despojos. Esse termo pressupõe guerra e pressupõe vitória. No
contexto do livro, os exércitos vencedores exibiam como troféus os despojos dos
vencidos. E ele os dividirá com aqueles que ele conquistou com seu sacrifício.

Ele mantém firme ao seu lado aqueles a quem justifica intercedendo por eles
junto a Deus. Ele é o advogado dos pecadores que confiam em sua justiça junto do
Pai. Interceder por nós faz parte do seu Ofício Sacerdotal, segundo o qual, ele não
apenas ofereceu-se por nós, como Cordeiro sem defeito, mas que intercede por nós
junto ao Pai.

No próximo capítulo, será demonstrado como o evangelista Marcos enxergou


a humilhação do Filho de Deus na composição do seu evangelho.
16

3 MARCOS, O EVANGELHO DO SERVO DO SENHOR

A autoria do segundo Evangelho é comumente atribuída a João Marcos,


sobrinho de Barnabé, aquele mesmo que foi o pivô do desentendimento entre
Barnabé e Paulo, no início da segunda viagem missionária. É também geralmente
aceito pelos eruditos que esse Marcos foi auxiliar do apóstolo Pedro. Segundo
Irineu, que escreve por volta do ano 200 d. C., o Evangelho de Marcos foi escrito em
Roma depois da partida de Pedro e Paulo (IRINEU DE LIÃO, 2014).

Os comentadores geralmente concordam que o evangelho de Mateus foi


escrito direcionado aosjudeus, pelo própria quantidade de citações da Bíblia
Hebraica, mas principalmente, por apresentar Jesus de Nazaré como o Messias
prometido pelos profetas do Antigo Testamento. Que Lucas escreveu direcionado
aos gentios. Que João apresenta Jesus como o Filho eterno de Deus e aponta seus
escritos direto aos corações de todos os homens, e que Marcos, é o Evangelho do
“Servo de Jeová, O poderoso e enérgico Trabalhador” (BOYER, 1964, p. 11).

Enquanto Mateus está recheado dos discursos de Jesus, dos seus ensinos,
Marcos está repleto de sua ação. É comum no evangelho de Marcos as expressões
“e logo”, “imediatamente”: “Logo, ao sair da águas, viu os céus rasgarem-se”
(Marcos 1.10), “E logo o Espírito o impeliu para o deserto” (Mc 1:12), “E, deixando
logo suas redes […]” (Mc 1:18), “E logo, no sábado, indo ele à sinagoga, ali
ensinava” (Mc 1:21). Boyer reitera: “É uma narrativa de contínua ação, de incansável
execução, de gloriosa realização, de vitorioso cumprimento (BOYER, 1964, p. 11).

3.1 O SERVO DO SENHOR SE PREPARA PARA SERVIR

Marcos não diz nada a respeito do nascimento, da infância ou qualquer outra


informação sobre a vida de Jesus antes do seu batismo. Ele inicia com a frase
“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus 3”. Para Marcos, e também
para os demais evangelistas, o Evangelho de Jesus tem seu início com o Seu
batismo por João Batista, ou seja, o seu ministério só começa após ele se submeter
a um batismo de arrependimento, pelos pecados do seu povo, uma vez que ele
próprio nunca tivesse cometido pecado.

3
98,4% dos manuscritos gregos conhecidos trazem corretamente “o Filho de Deus” (Silva, 2018, p.
53).
17

Esse fato surpreende ao próprio João, que em princípio argumenta que ele é
que deveria ser batizado por Jesus e não o contrário. Jesus inicia no batismo o
serviço para o qual fora designado pelo Pai, e que só terminaria na cruz. E mostra
que veio como Servo. Nas palavras de Battaglia, Uricchio e Lancellotti (1978, p. 25):
“Jesus, que no batismo desce ao nível dos pecadores e ao mesmo tempo se
apresenta repleto do Espírito Santo e como Filho de Deus, inicia sua missão de
Servo de Deus, profeta e vítima”. E ainda Boyer destaca que, no batismo, Deus
prepara seu Servo, Jesus, para servir. (BOYER, 1978).

Depois de passar pela provação de Satanás no deserto, e ser aprovado, o


Servo inicia seu ministério de servir às pessoas enfermas, atormentadas e perdidas,
no poder do Espírito Santo. O evangelista dá ênfase ao seu ministério na Galiléia,
uma terra desprezada, onde vive um povo desacreditado, a sua terra, onde fora
criado. Boyer (1978, p. 23), assim define: “Passara-se o tempo da preparação de
Jesus para seu ministério; devia iniciar sua obra.”

Logo após a prisão de João Batista, Jesus chama seus primeiros discípulos e
os convida a abandonar tudo para seguí-lo. Chegando a Cafarnaum, ele e seus
discípulos vão, no dia de sábado, para a sinagoga e ele ensinava. A oposição à obra
de Jesus tem início no mundo espiritual. Os demônios são os primeiros a confrontá-
lo. Mas ele “[…] andou fazendo o bem, e curando a todos os oprimidos do diabo” (At
10.384). Em seguida, ele cura a sogra de Pedro e retira-se para um diálogo com o
Pai. A dependência de Jesus do Pai é marcada pela oração.

Na sequência do Evangelho de Marcos, Jesus segue curando um leproso (Mc


1.41), e o paralítico levado por quatro homens (Mc 2.11). No dia de sábado ele cura
o homem da mão mirrada (Mc 3.5), e, escolhe seus doze apóstolos (Mc 3.13-19).

No decorrer desses acontecimentos, Jesus começa a ter embates com os


religiosos. Os motivos são fornecidos pelo próprio Jesus: seus discípulos não
jejuavam, ele perdoou os pecados do paralítico, e ele realizou pelo menos três 5
curas no sábado dizendo que ele era o Senhor do sábado, despertando a ira dos
fariseus. Segundo Battaglia, Uricchio e Lancellotti (1978, p. 34): “Tudo se desenrola

4
Todas as citações são da Bíblia Almeida Corrigida e Fiel (ACF).
5
A cura do endemoniado em Cafarnaum (Marcos 1.21-28), a cura da sogra de Pedro (Marcos 1.29-
31), a cura do homem da mão ressequida (Marcos 3.1-6).
18

em uma atmosfera de desconfiança, ou melhor, de hostilidade por parte dos


dirigentes judeus locais em face de Jesus, desconfiança e hostilidade que culminam
com um conluio entre fariseus e herodianos contra o mestre”.

3.1.1 O Servo e o Reino de Deus

No Evangelho de Marcos, assim como nos outros evangelhos sinóticos, Jesus


fala do Reino de Deus através do uso de parábolas. Em Marcos encontram-se sete
parábolas que são comuns a Mateus e a Lucas: a candeia debaixo do alqueire 6;
remendo novo em vestido velho7; vinho novo em odres velhos8; o semeador9; o grão
de mostarda10; a parábola da vinha11; e a da figueira12.

Marcos registra duas parábolas que não são citadas nem por Mateus nem por
Lucas: a semente que cresce secretamente (Mc 4.26-29), e a parábola dos servos
vigilantes (Mc 13.34-35).

O Reino de Deus é um assunto importante no evangelho de Marcos. Jesus


insiste que as curas, milagres e exorcismos realizados por ele sinalizam a chegada
do Reino de Deus.

3.1.2 O Servo vence os demônios

Depois de seu primeiro confronto com Satanás no deserto, de acordo com o


relato de Marcos, Jesus enfrenta as multidões, não só multidões de homens mas
também multidões de demônios. Segundo Lima (2016, p. 34):

Já nas primeiras páginas do Evangelho de Marcos, tão logo Jesus venceu


seu primeiro teste contra Satanás (Mc 1.12-13), ele anunciou que o tempo
estava cumprido e o reino próximo (Mc 1.14-15, então, precisou enfrentar o
atrevimento dos inimigos espirituais.

Logo depois que chamou seus primeiros quatro discípulos junto ao Mar da
Galiléia, Jesus se dirigiu junto com eles para Cafarnaum, uma pequena cidade de
pescadores que ficava próxima ao Lago de Genezaré (Mc 1.16-21). Chegando ali,
ele se foi à sinagoga e lá pregou a sua doutrina, ensinando de tal forma que, a

6
Mateus 5.15; Marcos 4.21, Lucas 8.16.
7
Mateus 9.16; Marcos 2.21; Lucas 5.36.
8
Mateus 9.17; Marcos 2.22; Lucas 5.37-38.
9
Mateus 13.1-23; Marcos 4.1-9; Lucas 8.4-15.
10
Mateus 13.31-32; Marcos 4.30-34; Lucas 13.18-20.
11
Mateus 21.33-46; Marcos 12.1-12; Lucas 20.9-19.
12
Mateus 24.32-35; Marcos 13.28-31; Lucas 21.29-33.
19

superioridade da sua autoridade sobre os escribas ficou evidente a todos (Mc 1.22).
Então, um espírito malígno se dirigiu imediatamente à sinagoga possuindo um
homem, e ele vai justamente procurar questionar a autoridade de Jesus.

A aparição do espírito imundo não causou estranheza nas pessoas, que


pareciam estar bem acostumadas com o fenômeno naquela época. O que realmente
surpreendeu foi o fato de Jesus ter também autoridade sobre eles. As mentes
modernas têm uma certa dificuldade em lidar com o relato desses fenômenos, mas,
não se chega a um bom entendimento da mensagem do Novo Testamento sem a
compreensão desses textos. Leandro Lima comenta sobre esses fatos:

Na sequência do Evangelho de Marcos, os confrontos de Cristo com essas


criaturas malignas continuam (Mc 1.32-34, 39; 3.11-12). Transparece,
portanto, mais uma vez que o Novo Testamento pinta um mundo dominado
por forças malignas hostis a Deus, liderada pelo “maioral do demônios” que é
reconhecido por Jesus como sendo Satanás (Mc 3.22-23). Esses demônios
impõem doenças sobre os homens, escravizam-nos, cegam-nos, roubam a
palavra semeada, e exigem certos direitos sobre as pessoas (Mc 4.15, Lc
13.16, 22.31). Portanto, a vinda de Cristo a este mundo se configurou antes
de tudo como uma atitude de confronto com esses poderes malignos. (LIMA,
2016, p. 37).

No capítulo 3 de Marcos Jesus tem o seu caráter, seu equilíbrio emocional e a


fonte da sua autoridade questionados pelos seus familiares (Mc 3.21), e pelos
escribas que desceram de Jerusalém (Mc 3.22). Ambos os grupos estavam sendo
usados como instrumentos de Satanás, agindo como acusadores, tratando de
denegrir o caráter de Jesus e de sua missão.

Depois desses fatos, Jesus reúne seus discípulos e vai para a terra dos
gadarenos, criadores de porcos, portanto, não eram judeus e sim gentios. No
primeiro enfrentamento o demônio foi até Jesus, agora, ele vai até onde está o
homem possesso. Espera-se que esse confronto seja ainda mais hostil, afinal, Jesus
invade o território alheio. A descrição do homem feita por Marcos, sempre
econômico com as palavras, é bem interessante:

E, saindo ele do barco, lhe saiu logo ao seu encontro, dos sepulcros, um
homem com espírito imundo; O qual tinha a sua morada nos sepulcros, e
nem ainda com cadeias o podia alguém prender; Porque, tendo sido muitas
vezes preso com grilhões e cadeias, as cadeias foram por ele feitas em
pedaços, e os grilhões em migalhas, e ninguém o podia amansar. E andava
sempre, de dia e de noite, clamando pelos montes, e pelos sepulcros, e
ferindo-se com pedras. (Mc 5.2-5).
20

O homem morava nos sepulcros, local impuro para os judeus. Era um


demônio violento, que oferecia risco às pessoas e ao próprio possesso. Esperava-se
que ele fosse atacar Jesus e seus discípulos, mas, o que ele faz é prostrar-se aos
pés de Jesus, reconhecendo sua autoridade, perante os seus discípulos. Jesus tinha
claramente o intuito de mostrar aos seus seguidores que a sua autoridade emanava
unicamente de Deus. Boyer destaca:

O amor é a maior força no céu, na terra e no inferno. Foi o amor que levou
Deus a dar seu unigênito Filho. Era o amor que impelia seu Filho, o grande
Servo, a falar as palavras de graça, operar os milagres de misericórdia e dar
sua vida em resgate de muitos. Na libertação do endemoniado gadareno
encontra-se um exemplo penetrante do poder divino que opera por amor.
(BOYER, 1978, p. 64).

3.1.3 O Servo vence a doença

Marcos continua o relato diretamente com o retorno de Jesus à Cafarnaum.


Na chegada, ele é procurado pelo chefe da sinagoga e acompanhado por uma
grande multidão. A filha de Jairo está terrivelmente doente e este implora que Jesus
a cure. Mas, há no meio do caminho uma mulher. Muito desprezada por ser mulher,
imunda cerimonialmente e, muito fraca pela constante perda de sangue. Ela toca
nas vestes de Jesus, uma temeridade para ela. Um gesto de desespero, mas
também de confiança. Ela é curada imediatamente.

Jesus está transbordando do Espírito Santo e percebe que ela recebeu da


sua virtude. Ele interrompe a sua caminhada de socorro e inicia um diálogo, que
para os seus discípulos parecia ilógico. Além do mais, havia alguém muito doente
precisando da sua presença, será que ele não se importava? Boyer comenta: “[…]
em caso algum o Mestre não ficou perturbado ou se esqueceu da necessidade do
aflito. Jesus podia ir logo para atender à filhinha de Jairo e socorrer a mulher depois,
mas quis demorar” (BOYER, 1978, p. 74).

3.1.4 O Servo vence a morte

Devido à demora de Jesus a menina morreu, assim como no caso de Lázaro.


Jesus acabara de encarar a doença, agora era a morte, para a qual até então
parecia não haver solução. Como essa notícia magoou o coração de Jairo. A
multidão, que se alegrou com a cura da mulher, agora se entristece com a morte da
menina. O que parecia ofuscar o milagre realizado por Jesus ao vencer a doença.
21

Orlando Boyer complementa: “Como a demora em chegar à casa de Jairo cooperou


para o bem! O chefe recebeu um testemunho maior; em vez de presenciar apenas a
cura da doença da sua filha, viu-a ressucitada da morte!” (BOYER, 1978, p. 74).

No Antigo Testamento há pelo menos três relatos de pessoas que voltaram


da morte: o filho da viúva de Sarepta (1 Rs 17.17-24), o filho da sunamita (2 Rs 4.18-
37), e um homem que fora lançado na sepultura de Eliseu (2 Rs 13.20-21). No
ministério de Jesus foram igualmente três que voltaram à vida: o filho da viúva de
Naim (Lc 7.11-17), a filha de Jairo (Mc 5.35-43), e Lázaro ( Jo 11.1-44).

Enquanto alguns zombavam, o Servo trabalhava. Não foi a incredulidade da


sua própria família, nem a oposição dos líderes religiosos, nem a guerra travada
contra Satanás e seus demônios, nem a zombaria das multidões que impediram
Jesus de cumprir a missão confiada a ele pelo Pai.

3.1.5 O Servo é rejeitado em Nazaré

Depois de todos esses acontecimentos, e com a sua fama alcançando


praticamente todos os lugares, Jesus retorna à cidade onde fora criado. E, como de
costume, foi no sábado à sinagoga. Nos outros lugares onde passava, as multidões
afluiam até onde Jesus estava e ele os ensinava. Mas, em Nazaré ele teve que
esperar o sábado para pregar. Apesar de reconhecerem a sua sabedoria não o
quiseram aceitar como profeta. Ele mais uma vez foi desprezado. Não fizeram dele
caso algum.

Jesus afirma que: “Não há profeta sem honra senão na sua pátria, entre os
seus parentes e na sua casa.” (Mc 6.4). Nas palavras de Boyer (1978, p. 80):

Jamais houve na terra , lugar tão privilegiado como Nazaré. Durante trinta
anos o Filho de Deus residia lá. E quando, no meio de seu ministério público,
voltou a Nazaré, “muitos, ouvindo-o, admiravam-se”. “Nunca homem algum
falou assim como este homem”. Contudo, se escandalizavam dEle.

3.1.6 O exemplo de humildade do Servo se estende aos seus discípulos

Até o capítulo 9 de Marcos Jesus dá várias indicações aos seus discípulos de


quem é, e o que veio fazer. A partir de então ele começa a prepará-los para a sua
partida: “E, tendo partido dali, caminharam pela Galiléia, e não queria que alguém o
soubesse; Porque ensinava seus discípulos […]” (Mc 9.30-31ª).
22

Assim que chegaram à Cafarnaum Jesus quis saber o que eles estavam
conversando pelo caminho. Eles se envergonharam e ficaram em silêncio porque
estavam discutindo qual deles era o maior. A ideia era qual deles seria o maior no
Reino de Deus, uma posição que João e Tiago reivindicaram (Mc 10.35-37). Boyer
assim analisa a disputa por posições no Reino de Deus: “Seja quem for, que
pretenda ocupar tais posições, são intrusos, são embusteiros. Em vez de apontar
qualquer discípulo para estes lugares de honra, Ele os previniu a não aspirá-los.”
(BOYER, 1978, p. 128).

Jesus, a que pese ter dado, na presença de seus discípulos, provas


irrefutáveis de que Ele era o unigênito Filho de Deus, declarou a eles por três vezes,
no Evangelho de Marcos13, que ele seria entregue nas mãos das autoridades civis e
religiosas. E que elas o humilhariam, e que o matariam.

Mas os discípulos continuavam com a ideia que Jesus iria restaurar o reino a
Israel antes de partir, e queriam lugares de destaque nesse novo reino. Eles ainda
não haviam conseguido diferenciar o reino de Israel do Reino de Deus, e que, no
Reino de Deus os valores terrenos são completamente invertidos, o exemplo é o
próprio Jesus.

Parecia que todos os esforços de Jesus em ensinar aos discípulos haviam


sido em vão. Era de desanimar qualquer um no final de três anos de ensino intenso
não ver os resultados. Isso mostra que a escolha de Jesus por eles não foi por
merecimento, mas unicamente pela graça de Deus.

3.1.7 O Servo do Senhor veio para servir e não para ser servido

Mas Jesus, chamando-os a si, disse-lhes: Sabeis que os que julgam ser
príncipes dos gentios, deles se assenhoreiam, e os seus grandes usam de
autoridade sobre eles; Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que
entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal; E qualquer que dentre vós
quiser ser o primeiro, será servo de todos. Porque o Filho do homem também
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de
muitos. (Mc 10.42-45).

Esses versos são centrais no Evangelho de Marcos, o Evangelho do Servo do


Senhor, e condensa o ensino de Jesus contido no Evangelho de Marcos. Jesus não
usa o título de Filho de Deus, mas o de Filho do Homem, enfatizando sua condição
humana. Ele que, sendo Deus acima de todos, se submeteu a ser cuidado por uma
13
Marcos 8.31, 9.30-32 e 10.32-34.
23

mãe humana, a depender de uma mulher para se alimentar, para se manter limpo,
para sobreviver.

A servidão de Jesus à vontade do Pai é estendida a todos os seus discípulos.


Boyer sintetiza: “O princípio da grandeza é ser pequeno. O desenvolvimento da
grandeza é ser cada vez menor. E a perfeição da grandeza é ser nada.” (BOYER,
1978, p. 153).

A humanidade não tinha nada para oferecer a Jesus. Ele que podia ordenar a
todos os anjos e eles o obedeceriam, que podia invocar as forças da natureza para
lhe servir, mas ele não veio para ser servido. Foi para isso que ele se cingiu com a
toalha, para servir.

Uma das tragédias do Evangelho, é que, enquanto Jesus se humilhou até a


morte, e morte de cruz, muitos dos que se dizem seus discípulos ainda procuram
glória para si mesmos.

3.1.8 O Servo dá a sua vida em resgate de muitos

O capítulo 14 do Evangelho de Marcos narra o início dos sofrimentos do


Servo. Agora, no capítulo 15, esses sofrimentos se intensificam. Jesus é entregue a
Pilatos, o governador romano da Judeia. O Rei dos reis chega na presença de
Pilatos amarrado. Quanta humilhação! Nas palavras de Boyer:

Note-se o contraste entre o verdadeiro Rei e o governador romano: Um


estava amarrado e abandonado por todos os Seus amigos; o outro, revestido
de todo poder exterior. A impotência armada de uma falsa soberania, julgava-
se habilitada a exercer autoridade sobre a onipotência revestida de fraqueza.
(BOYER, 1978, p. 199).

Jesus é o mesmo Deus que deu forças a Sansão para quebrar cadeias, o
mesmo que esfacelou as hordas de faraó. O mesmo Deus que colocou em fuga
exércitos inimigos de Israel em várias oportunidades. Foi Ele quem disse a Pedro
em Mateus 26:53 que bastava que Ele rogasse ao Pai e Lhe seriam enviadas mais
de doze legiões de anjos para socorrê-lo.

Pilatos entregou Jesus para ser crucificado, não sem antes mandar açoitá-lo.
Um castigo terrível por si só. Orlando Boyer assim o descreve:

Os judeus davam quarenta açoites menos um (2 Co 11.24, Dt 25.3), Jesus,


porém, foi açoitado pelos romanos, os quais, tinham o costume de açoitar o
réu até cansarem. A vítima, em pé e as mãos atadas num pau baixo, recebia
24

os açoites nas costas nuas. Para aumentar ainda mais o sofrimento, as tiras
de couro do açoite eram, geralmente, chumbadas. O sentenciado, muitas
vezes, não suportava esse castigo, morrendo antes de chegar à cruz.
(BOYER, 1978, p. 200).

Os soldados não sabiam de fato de quem se tratava, para eles era só


diversão. Eles o coroaram com uma coroa de espinhos, repartiram suas vestes e o
agrediam verbal e fisicamente. E todo o destacamento se reuniu para ridicularizá-lo.
Mas todo esse castigo foi pelas transgressões do seu povo.

Jesus foi conduzido para o Gólgota, o local da execução. Ele carregou a cruz,
mas o esgotamento físico era tamanho que ele caiu várias vezes pelo caminho.
Então, Ele foi crucificado. A cruz, para Boyer, “era a forma de execução mais cruel e
horrenda , combinando o opróbrio público ao sofrimento indizível, unindo o escárnio
das multidões à morte, à míngua, e ligando o desprezo dos homens à maldição de
Deus” (BOYER, 1978, p. 203).

O Servo foi desonrado pelos seus, perseguido pelos líderes religiosos,


ignorado pelos poderosos, traído, negado e abandonado pelos seus discípulos,
ferido por Deus e entregue aos gentios para ser morto. Tudo isso ele suportou em
obediência ao Pai, que tanto amou sua criação.

O evangelista Marcos descreve, com poucas e sucintas palavras, como o


Filho de Deus se fez Servo de Deus, se fazendo servo dos homens, socorrendo-os
em suas tristezas, angústias mais profundas, nas suas enfermidades físicas e
espirituais, indo para isso até as últimas consequências, que culminaram com o seu
sofrimento intenso e morte de cruz.
25

4 A HUMILHAÇÃO DE CRISTO

A carta do apóstolo Paulo aos Filipenses, é conhecida como a carta da


alegria. Ele, por várias vezes, repete que está alegre com a igreja de Filipos e
incentiva os irmãos a se alegrarem sempre. Importante lembrar que Paulo estava
preso em Roma quando escreveu essa carta.

Um dos motivos da alegria de Paulo era o amor demonstrrado por aquela


igreja pela obra do evangelho, e especialmente, por ele. Haja visto que era já a
terceira vez que os irmãos de Filipos lhe socorriam com seus bens, mostrando que
essa era uma prática comum entre aqueles cristãos.

O apóstolo louva a boa vontade de todos mas, fala a respeito das motivações
que, muitas vezes, estão por detrás das ações aparentemente louváveis. Alguns
estavam, inclusive, pregando a Cristo por inveja, ou simplesmente por rivalidade. Ele
faz um alerta, prevenindo os irmãos que Cristo conhece tudo, inclusive as
motivações do coração.

4.1 UM CHAMADO À HUMILDADE

Filipos era uma colônia romana, e seus cidadãos se caracterizavam por


buscarem sempre as honrarias públicas, e, consequentemente, a igreja sofria esse
tipo de influência negativa. Ao presentear Paulo, suprindo suas necessidades,
poderia ocorrer aos irmãos de mais posses, pensar em reconhecimento público por
parte da igreja.

Possivelmente pensando nisso, o apóstolo, a partir do capítulo 2, tira o foco


da sua pessoa, de seu ministério frutífero, das suas aflições, daquilo que alguém
possa aproveitar dele próprio, e volta os olhos e ouvidos dos irmãos de filipos para a
pessoa e obra de Cristo. Samuel Escobar aponta:

O proprio autor afirma que sua vida gira em torno da lealdade a Cristo, que
seu anelo é crescer em semelhança de Cristo e participar tanto das vitórias
como dos sofrimentos de Cristo. Ao mesmo tempo, sua descrição dos
destinatários se baseia em que estes têm uma relação particular e pessoal
com Cristo a qual o autor pode apelar quando lhes pede que vivam conforme
a certos valores fundamentais. Toda esta cristologia da vida mesma e da
prática se relaciona com uma visão de Cristo que alcança sua máxima
expressão no belo hino Cristológico (2:6–11), uma das passagens bíblicas
mais completas e também mais ricas em conteúdo com respeito à pessoa de
Jesus Cristo. (ESCOBAR, apud PENNINGS, 2010, p. 20).
26

Ao fazer isso, Paulo dirige toda a atenção da igreja para o tema mais
abordado em suas cartas: a graça de Deus. E mui sabiamente, ainda que incentive
os irmãos a imitá-lo, ele mostra que o modelo perfeito, ao qual ele próprio está
imitando, e que é a razão da sua conduta ilibada, é Cristo. Conforme afirma: “De
sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus”. (Fl
2.5).

O sentimento, a motivação que move Paulo, e que ele espera que mova
também os filipenses, é o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, e que o
levou a ser obediente a Deus, impondo a si mesmo pesadas restrições e se
submetendo às injustiças humanas.

O fato de Jesus ter sido crucificado, em si, não é o que o diferencia de tantos
outros, afinal, muitos outros também o foram. Ainda hoje, pessoas se submetem a
castigos físicos pesadíssimos, oferendo inclusive a própria vida, em favor das mais
diversas religiões. Nem mesmo o fato de ter sido condenado injustamente pode ser
diferencial, uma vez que esse é um acontecimento comum na história humana.
Pensando nisso, o que de fato, diferencia Jesus Cristo do restante dos mártires? A
motivação.

A motivação de Jesus era e é o amor. Não como um sentimento que pode ser
experimentado pelos seres humanos, mas é o amor que se traduz em graça. Larson
(Apud MARTIN, 1985, p. 104), comenta: “Paulo chegou ao ponto em que pode
introduzir o grande exemplo para tal tipo de vida (de humildade) em sua exortação.
É Cristo mesmo, e Sua renúncia espontânea do poder e da glória celestiais, que Ele
possuía antes da encarnação […]”.

Jesus percorre o caminho inverso ao do primeiro casal no Éden. Enquanto lá


eles buscavam ser como Deus, Ele, sendo Deus, escolheu ser como o homem que
havia criado. Moule (apud MARTIN, 1967, p. 110), detalha: “Ao invés de imaginar
que igualdade com Deus significa obter, Jesus, ao contrário, deu - deu até tornar-se
vazio, antes a si mesmo se esvaziou.” Como o apóstolo relata: “Que, sendo em
forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,” (Fl 2.6).

Estava ao alcance de Jesus reinvindicar essa posição por direito, uma vez
que ele já desfrutava dela antes da encarnação. Quem, embora tenha o selo da
27

imagem divina, não usou a igualdade com Deus como ganho para ser explorado; Ele
entregou sua posição, e assumiu o papel de servo. Aceitando um disfarce humano,
e aparecendo na terra como o homem; Ele se humilhou, em uma obediência que
chegou a ponto de morrer. (MARTIN, 1967).

Jesus nunca deixou de ser Deus e de ter todos os seus atributos à sua
disposição. A despeito de alguns teólogos do século XIX, que advogaram uma ideia
inesperada da encarnação chamada “teoria da kenosis”, que sustenta que Cristo abriu
mão de alguns de seus atributos divinos enquanto esteve neste mundo como homem.

Segundo essa teoria, Cristo “esvaziou-se” de alguns de seus atributos divinos


como onisciência e onipotência enquanto esteve sobre a terra como homem.
Isso foi visto como uma autolimitação voluntária da parte de Cristo, que ele
assumiu a fim de realizar a obra de redenção. (GRUDEM, 2005, p. 261).

O apóstolo segue mostrando a maneira pela qual Jesus Cristo se humilhou.


Ele não poderia ser humilhado, portanto, teve que humilhar-se a si mesmo. Aqui
está mais uma diferença entre Cristo e os demais mártires das religiões. E Paulo
detalha: “Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens;” (Fl 2.7).

A humilhação do Filho consiste em seu esvaziamento divino por ocasião de


Sua encarnação. Assumir a forma de servo e tornar-se semelhante aos homens
certamente é a essência desse esvaziamento. Um outro ponto que ainda não foi
totalmente considerado, é o fato de Jesus ter se submetido aos cuidados de uma
mãe humana enquanto era um bebê. Ele ficou, nesse período, completamente
dependente, mesmo que indiretamente, dos cuidados de uma mulher, uma criatura
Sua, obra das Suas mãos. Nas palavras de Calvino:

A humildade qual ele os havia exortado em palavras, ele agora os recomenda


por exemplo de Cristo. Mas há duas partes. Na primeira nos convida a imitar
a Cristo porque isso é a regra de vida; na segunda nos anima a segui-lo
porque é o caminho pelo qual alcançamos glória verdadeira. (CALVINO,
2010, p. 49).

A palavra ἐκένωσεν (ekeinōsen) vem de κενόω (kenoō) que significa ser


esvaziado (literalmente), perder força, insubstancial, transformar-se em nada (Ro
4:14; 1Co 1:17; 9:15; 2Co 9:3) ou despojar-se de sua posição (Fp. 2:7).
(SWANSOM, 1997). O conceito de“kenosis” tem produzido muito debate entre
teólogos através dos séculos. Livros inteiros têm sido escritos com respeito ao tema,
e a pergunta a ser respondida é: do que Cristo se despojou? Pennings assim define:
28

Teólogos liberais insistem que Cristo se despojou de sua deidade, insistindo


que quando nasceu em Belém deixou de ser Deus. Mas quando lemos os
evangelhos sabemos que isso não pode ser correto. Cristo, o homem,
sempre era perfeitamente santo, justo, misericordioso, e fiel. O mais sensato
seria explicar que, quando se fez homem, Cristo não perdeu suas
caracteristicas ou essência, e sim que foi lhe concedido qualidades. Melhor
dito, é que estas qualidades foram manifestadas, porque a verdade e que ele
sempre teve essas qualidades. Por isso afirmamos que Cristo e 100% Deus e
100% homem. Disso trata os versiculos 7 e 8. Ali vemos quatro coisas que
Cristo exteriorizou quando “se despojou” de sua natureza divina durante sua
peregrinacão na terra: Tomou forma de servo, se fez semelhante aos
homens, se identificou com a condicão de homem, se submeteu à obediência
até a morte de cruz. (PENNINGS, 2010, p. 61).

Não se trata de uma troca de pessoa mas sim de uma troca de estado.
Mesmo em Sua humanidade Cristo manteve a Sua deidade. Calvino comenta:

Cristo, de fato, não podia desassociar-se da deidade; mas a escondeu por um


tempo definido, para que não fosse visível sob a debilidade da carne. Por isso
Ele deixou de lado sua glória da vista do homem, não por torná-la menor, e
sim por escondê-la. Assim, então, Cristo como uma pessoa, possuia duas
naturezas. Paulo disse corretamente que ele que era Filho de Deus, na
realidade igual a Deus, entretanto deixou de lado sua glória quando se
manifestou na carne, em forma de servo. (CALVINO, 2010, p. 51).

Strong corrobora: “O logos se desvestiu, ao tornar-se homem, não da sua


substância de Deus, mas da “forma de Deus”. (STRONG, 2003, p. 364). O Filho
simplesmente renunciou a exercer o poder divino separado e independente do Pai.

As traduções para a língua portuguesa, às vezes, decepcionam. A NTLH,


reduz Cristo meramente a um homem no processo de esvaziamento quando traduz:
“Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo,
tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser
humano.” (AZEVEDO, 2016, p. 1860). [grifo do autor].

Paulo ainda afirma: “E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,


sendo obediente até à morte, e morte de cruz”. (Fl 2.8).

É aqui que Paulo quer chegar. Sendo Jesus quem ele era, não só abriu mão
de reivindicar uma posição que era Sua por direito, mas sendo encontrado em
posição inferior àquela, ainda se submeteu à humilhação imposta pelos seres
criados por Ele mesmo. Tudo isso em obediência à vontade de Deus.

E esse é o ponto da vida de Jesus em que Ele pode ser imitado, é nesse
quesito que Paulo é um imitador de Jesus e nos orienta a também sê-lo. Paulo inicia
29

a passagem chamando os filipenses para serem imitadores de Jesus em humildade


e obediência a Deus.

A palavra “humilhar-se” no grego, é o verbo εταπεινωσεν (etapeinōsen), forma


do verbo principal ταπεινόω (tapeinoō). Segundo James Strong, a palavra significa
deprimir; com o sentido de humilhar (em condição ou coração): sujeitar-se, inclinar-
se humildemente. É o mesmo verbo usado por Paulo em Fl 4:12 quando fala de
viver humildemente. (STRONG, 2002).

O ensino de paulo contradizia frontalmente aquilo que os filipenses estavam


acostumados a ouvir. Para os gregos, a humildade era uma atitude negativa. Mas
Paulo dá uma conotação positiva da humildade, dando como exemplo o próprio
Cristo. Nas palavras de Pennings: “Não vamos entender este ensinamento sem
levar em conta a história de redenção. Oferecendo um exemplo pessoal de si
mesmo, Cristo nos ensina que o ser humano pode gozar da exaltação somente se
ele se humilhar” (PENNINGS, 2010, p. 54).

E ele complementa: “Em sua humilhação, Ele se fez homem na encarnação,


quando nasceu como [um] bebê em Belém, e se submeteu morrer de uma morte
escandalosa e mais vergonhosa que podia haver: a crucificação.” (PENNINGS,
2010, p. 54).
A cruz é o limite máximo da obediência e auto entrega de Jesus. Cícero
sustenta que: “Só a camada mais baixa da sociedade — a classe dos escravos —
morria por crucifixão.”14 Nesse sentido, Jesus consentiu em terminar a Sua vida
nessa terra em um patíbulo romano, completamente desmoralizado perante os
gentios, e, para os judeus, sob a condenação de Deus.

14
Pro Rabírio 5.10
30

5 CONCLUSÃO
Aquilo que foi profetizado por Isaías, se cumpriu, segundo o Evangelho de
Marcos, como também os demais Evangelhos o confirmam. O Deus que criou todas
as coisas pelo poder da Sua palavra, planejou, desde a eternidade passada, o
nascimento virginal, a vida marcada pelo temor e obediência à palavra de Deus, e a
morte vergonhosa na cruz.
Pode-se pensar que a vinda do Filho de Deus a este mundo foi como um
remendo para corrigir algo que deu errado. Como se Deus tivesse se enganado a
respeito do ser humano. Mas não é o que as Escrituras demonstram. Elas afirmam
que o plano Eterno de Deus, realizado por ocasião da encarnação da Segunda
Pessoa da Trindade, foi traçado desde toda a eternidade, quando ainda não havia
mundo.
O que surpreendeu, e ainda surpreende, foi a maneira que Deus escolheu
para fazer cumprir seus propósitos: através do sacrifício do Seu único Filho. E mais,
tudo isso com a anuência dEle, quando tomou a forma de Servo.
Isaías talvez seja a pessoa que contemplou o Seu sofrimento de forma mais
reveladora. Ele viu desde o desprezo de estranhos até o abandono dos seus. Desde
a incompreensão até a traição. E Ele seguiu fielmente o Seu plano até o fim, que
ainda está por se cumprir na sua totalidade, na eternidade futura.
Desde o início da história do relacionamento de Deus com seu povo, muitos
quiseram ver a Sua glória. O povo que hoje segue os passos de Jesus aguardam
para ver a Sua glória. Mas, o que é realmente necessário, é olhar para sua cruz.
Somente através da cruz pode-se ver o plano de Deus em ação; somente através da
cruz pode-se compreender o comprimento, a largura e a profundidade do amor de
Deus revelado em Cristo Jesus. É somente pela cruz, através da cruz, e com a cruz,
que se poderá contemplar também a Sua glória, que há de ser revelada no tempo
oportuno.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAS

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