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UFRGS – Departamento de História

História Indígena na América


Afonso Corrêa Cavagnoli Soares – 302623
Professor: Eduardo Neumann
2019/02
Resenha: Guillaume Boccara - "Mundos nuevos en las fronteras del nuevo mundo"

O texto “Mundos nuevos em las fronteras del nuevo mundo” procura abordar
alguns conceitos do campo da História Indígena, particularmente no que tange ao
encontro ou “encontrão” das culturas indígenas e europeias, e em decorrência disso as
dinâmicas identitárias dos povos: suas continuidades, mudanças e ressignificações. Há
um interessse especial para os espaços de fronteiras do mundo colonial, visto que nele se
observam relações dialéticas entre as diferentes culturas por meio de trocas comerciais ou
culturais, assim como conflitos. São questionados também alguns dos paradigmas
considerados dados no passado quanto ao estudo da história das comunidades indígenas,
como as noções de aculturação, barbárie, selvageria e resistência, assim como são
apresentados quatro exemplos de etnias, as quais se desenvolveram posteriormente à
chegada dos europeus, cuja história é marcada pela ressignificação, modificação e
mestiçagem. O texto é de Guillaume Boccara, pesquisador, antropólogo, etnólogo, o qual
desenvolveu trabalhos sobre a história dos Mapuche, processos de etnogênese,
etnodesenvolvimento e os movimentos indígenas.

O paradigma estabelecido ao longo de décadas de disciplina da antropologia e


história, no âmbito do estudo do papel dos indígenas no mundo colonial, esteve associado
à imagem de uma situação dicotômica: de um lado a resistência incondicional e do outro
o genocídio e a aculturação passiva. Essa é uma dicotomia questionada por Boccara,
entendida como falsa, visto que não leva em conta a dinâmica dialética das relações
sociais, a influência do meio, modificado pela presença europeia, e o papel e problemática
da mestiçagem, não somente étnica, mas também cultural. É uma característica da cultura
a dinamicidade, o fato de que circula, e muda e é mudada a partir do contato com a
diferença, no entanto isso não implica na perda de identidade, na perda da cultura ou
aculturação, como tradicionalmente foi observada a situação de indígenas que
incorporaram em suas vidas práticas e hábitos dos colonizadores. A adoção de
determinados aspectos não implica necessariamente também a incorporação de um modo
de vida do outro, visto que práticas, costumes e objetos podem ser ressignificados pelas
culturas as quais são adotados, e por consequência são incorporados à cosmovisão da
população em questão. Essa visão binária da atitude indígena parte de uma concepção
discriminatória, referente à categoria do suposto “primitivismo” do indígena, “selvagem”,
“bárbaro”, “gentio” o qual, de encontro à civilização ocidental passaria então a realizar
uma resistência dos seus modos de vida, inalterados, ou “puros” – ideia do índio-fóssil –
ou estaria fadado ao desaparecimento, ao genocídio, frente à expansão do domínio
europeu no continente.

Um estudo de caso, de sociedade, apresentado por Boccara é o dos Miskitus, etnia


da costa ocidental da América Central, a qual se desenvolve a partir de um processo de
etnogênese, do encontro dos habitantes nativos da região com africanos trazidos ao
continente e da relação com a presença e cultura inglesa. Os Miskitus, enquanto etnia
indígena, transformaram seus modos de vida, voltaram-se à navegação e o aspecto
marítimo de um modo geral, e agiram como intermediários do contato com ingleses,
assim como opositores ao interesse espanhol, e ainda hoje existem como povo minoritário
na Nicarágua, reivindicando direitos e ancestralidade. Esse é um dos exemplos
apresentados, dentre tantos existentes, que põem em cheque as categorias de
resistência/aculturação.

Um ponto frisado pelo autor é o da relevância das taxonomias, ou seja, do


nome atribuído a uma determinada etnia, visto que pra além de um nome específico, há
uma carga de significado presente nas nomenclaturas, de tal forma que ao se observar a
mudança de nome na identificação de uma determinada sociedade, por exemplo, se trata
do indicativo de que há uma reconfiguração identitária ocorrendo; é o caso dos
reche/mapuche por exemplo. A nomenclatura passa a ter uma importância para a
afirmação das identidades indígenas, servindo de contraponto à invisibilização e à
desvalorização histórica das populações, por isso a necessidade do uso dos nomes e
classificações utilizados pelas próprias populações, em seu idioma, e não a partir de
características atribuídas pela colonização.

Uma problemática digna de destaque levantada pelo autor no trabalho é a de que


podemos, enquanto ocidentais, estarmos presos na ordem de nosso próprio discurso e
simbolismo, o que Boccara afirma positivamente como sendo o caso. Essa problemática
evoca a dificuldade observada pelos historiadores, antropólogos e etnólogos em de fato
possibilitar que haja o protagonismo indígena na história, enquanto disciplina, uma das
premissas do campo da etnohistória, De fato, os referenciais teóricos da história e da
antropologia traçam suas origens a concepções absolutamente eurocêntricas, brancas e
masculinas, e os referenciais em questão tem sido repensados e reelaborados a partir de
demandas sociais contemporâneas. Nesse quesito é a voz dos movimentos e das pessoas
indígenas que precisa de fato conduzir esse processo a fim de que haja verdadeiramente
o protagonismo deles e a precisão da análise histórica a partir das categorias de
pensamento e da própria temporalidade a partir da visão de cada povo indígena. Isso
também depende da relevância e do papel das disciplinas de história indígena e
etnohistória encontrado pelas populações originárias, do seu interesse a respeito do uso
das disciplinas.

A análise das fronteiras para Boccara se inicia a partir das representações


estabelecidas sobre as fronteiras no paradigma colonial, as quais refletem a dicotomia
apresentada anteriormente: civilização/barbárie. Nessa concepção a fronteira
representaria a divisão entre os dois mundos, de um lado o conhecido, civilizado, branco
europeu e do outro o mundo indígena, entendido como o “além” bárbaro e pagão. A ideia
de fronteira no mundo colonial do continente americano, no entanto, pode representar
concepções equivocadas, já que o conceito de nação/limite/fronteira é uma visão
eurocentrada, que parte de concepções políticas, sociais e culturais do mundo ocidental,
e que pode não traduzir de forma adequada o modo pelo qual as sociedades indígenas
compreendiam o espaço.

Os espaços de fronteira, definidos aqui como regiões que marcam o limite entre o
mundo colonial e o mundo indígena, não consistem em linhas arbitrárias ou limites físicos
que separam dois ambientes radicalmente diferentes, mas sim em espaços dotados de
características próprias. Nesses espaços se desenvolve o contato entre as diferentes
sociedades, portanto a dinâmica de intercâmbio, desigual, entre ocidentais e indígenas,
em que por um lado pode haver o esforço de domínio e supremacia por parte da
colonização, mas também a reivindicação e a reinvenção por parte dos habitantes locais.
Tais espaços são profundamente diversos, se encontram por todo o continente, mas as
relações desenvolvidas neles devem ser observadas a fim de se compreender o
“encontrão” entre as civilizações. O autor aborda casos como o dos Jumanos, povo do
atual estado do Texas, o qual moldou sua identidade em referência à questão comercial,
desenvolvendo seu modo de vida operando nessas fronteiras entre dois mundos e
mediando as relações. Como se pode observar, espaços fronteiriços refletem e
manifestam as relações do mundo colonial e da atuação indígena, é neles que se
desenvolvem os “novos mundos” propostos por Boccara, aonde se faz presente o diálogo
e o conflito entre as culturas, e as formações de identidades e significados em decorrência
disso.

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