Você está na página 1de 5

Texto Neves e Pilo

São muito antigos os questionamentos quanto às origens das populações indígenas


das américas, partindo desde o período colonial. Por características como sua fisionomia,
muitos europeus afirmaram uma possível origem asiática desses povos, semelhantes
fisicamente às pessoas do extremo oriente. As propostas originais levavam em conta a
possibilidade de um povoamento oriundo do estreito de Bering, pela sua proximidade
com a Ásia e, pelo fato de ser uma região de clima frio, havia propostas como a de um
corredor de gelo que teria se formado, ou uma baixa dos oceanos, que haveria unido os
dois continentes e permitido o povoamento.

Devido às ideias correntes durante o século XIX, marcadas pelo criacionismo


fundamentalista nas ciências, por muitas décadas foram negadas as evidências científicas
que apontavam um povoamento muito antigo do continente. A ideia corrente era a de que
a humanidade haveria surgido somente após o cataclismo que dizimou a megafauna,
presente nos períodos anteriores, de forma que as evidências coletadas pelo naturalista
Peter Lund, as quais revelavam uma possível coexistência entre o ser humano e os grandes
animais, foram ignoradas. Tal mentalidade se fez presente por um longo período de
tempo, sendo que somente em meados do século XX, após grandes mudanças nas
metodologias de pesquisa, assim como novos achados, revelaram a coexistência de ambos
grupos.

Uma das hipóteses mais correntes no mundo acadêmico, ainda atualmente, é a


chamada “Clovis-first”. “First” pois a cultura lítica Clovis, oriunda América do Norte,
cujas pontas de flecha, datadas de até 11,4 mil anos, seria o marco das primeiras
ocupações humanas no continente. Os Homo sapiens teriam chegado, para os clovistas,
via um corredor de terra no estreito de Bering, formado pela baixa do nível dos oceanos,
e povoado o continente pelo seu interior. A partir dessa cultura, portanto, que teriam se
originado todas as outras culturas do continente. A teoria sobre povoamento mais aceita,
um dos fundamentos dessa corrente, é o modelo das “três migrações”, o qual argumenta
que o povoamento do continente teria se dado por três ondas migratórias diferentes. A
primeira teria originado todos indígenas da américa do sul e central, assim como a maior
parte dos norte-americanos, com exceção dos Na-Dene, oriundos de uma segunda
migração, assim como os esquimós e os aleutas, provenientes da terceira onda. O debate
quanto à hipótese é extenso, outras evidências, principalmente da sul-americanas,
apontam possíveis ocupações anteriores, que são, contudo, negadas ou ignoradas pela
academia americana.

A contrapartida à hipótese do “Clovis-first” seria, portanto, a dos pré-clovistas.


São eles, os que afirmam que haveria diferentes culturas e núcleos de povoamento
anteriores aos da cultura Clovis. São muitas as evidências apresentadas, e, em grande
parte, muitos dos pesquisadores pré-clovistas discordam entre si sobre datas, veracidade
de sítios e hipóteses quanto ao povoamento. Para muitos, a maior parte das evidências
aponta para uma ocupação não tão anterior à de Clovis, somente por algumas centenas ou
milhares de anos, enquanto outras falam em dezenas de milhares, por exemplo. É nesse
meio que se situa boa parte da pesquisa arqueológica sul-americana, e especialmente a
brasileira, uma vez que diversos sítios em solo brasileiro apontam evidências de
ocupações anteriores a 11 mil anos. Entre esses sítios, figuram o da Lapa Vermelha, de
Lagoa Santa, da Lapa do Boquete e o de Santa Elina, entre outros. Um notório sítio fora
do Brasil é o de Monte Verde, no sul do Chile, o qual apresenta talvez algumas das mais
fortes evidências sobre um povoamento pré-clovis, datado de 12,3 mil anos. Outro forte
argumento contra os clovistas parte da conclusão de que provavelmente o corredor livre
de gelo, que haveria possibilitado a ocupação do interior do continente, nunca existiu. A
costa do pacífico teria sido povoada pela navegação de cabotagem, e somente no futuro,
teria ocorrido o processo de interiorização da ocupação.

Apesar de fatos contundentes sobre a real possibilidade da existência de


ocupações pré-clovis, certamente há uma grande resistência por parte do mundo
acadêmico, especialmente o estadunidense, em reconhecer essas evidências. Isso pode ser
explicado, em parte, por uma visão colonial da academia, que nega, ou ignora, a pesquisa
produzida em países “periféricos”, nos quais não há tão forte incentivo e estrutura para a
pesquisa, o que, entretanto, não a descredita. Como explicado por Walter Neves e Piló,

“Não se demole um dogma científico com pouco dinheiro, pouca


competência e falta de vocação para a briga. Se o dogma tiver sido construído por
uma comunidade acadêmica financeiramente poderosa e arrogante, como a norte-
americana, essa máxima pode chegar a requintes de crueldade. Não há meio
termo! Ou se entre na briga para ganhar ou para ganhar (garantidos os meios para
tanto), ou é melhor nem entrar. É mais ou menos isso que explica a falta de êxito
dos arqueólogos sul-americanos em “emplacarem” suas ditas evidências pré-
clovis”.
Por essas razões, grande parte da pesquisa brasileira e latino-americana não é
considerada como factual pelo mundo acadêmico. Em muitos casos, parece haver um
grande esforço por parte de pesquisadores norte-americanos em encontrar falhas e
contradições que desproveem as evidências encontradas aqui, indo muito além do rigor
científico.

Foram também realizadas diferentes abordagens para o estudo das origens dos
nativos americanos, outras que as evidências de indústrias líticas e sítios. É o caso da
análise da diversidade dentária das populações americanas, comparada à de outros povos
do mundo, a fim de se estabelecer uma relação de origem. Conduzida por Christy Turner,
da Universidade do Arizona, a pesquisa revelou que o mesmo padrão observado na
dentição dos indígenas, o chamado “sinodonte”, é encontrado entre as populações do leste
e nordeste asiático. Partindo-se dessa análise, se comprovaria a antiga ideia das origens
asiáticas dessas populações, baseada nas suas características fenotípicas. Turner também
é a autora da teoria das três migrações, anteriormente abordada, teoria que vai de encontro
com as ideias clovistas e é bastante contestada atualmente. Além disso, estudos modernos
revelam que pode existir um grau muito maior de diversidade quanto a forma da dentição
nas populações ameríndias, diferentemente do analisado por Turner.

Já em outro campo da pesquisa, foram feitas também diversas pesquisas no ramo


da linguística para que, a partir das conclusões obtidas, se pudesse obter resultados quanto
ao parentesco e idade dos troncos linguísticos e, dessa forma, a origem e idade do
povoamento. Esse ramo da pesquisa, por si, apresenta múltiplas correntes e discordâncias,
de forma que as teorias elaboradas também não são plenamente conclusivas.
Originalmente se propunha uma divisão que concordava com a teoria das três migrações,
ou seja, três troncos linguísticos, definidos pelas ondas migratórias ao continente. Já a
pesquisadora Johana Nichols, dada a imensa diversidade linguística presente nas
américas, concluiu que a ocupação das américas seria muito antiga, em torno de 35 mil
anos, partindo da noção de que a diversidade aumentaria com o tempo. Entretanto, tal
hipótese se provou incorreta, uma vez que se observou que o fenômeno linguístico na
verdade evidenciaria o contrário, já que, após a ocupação de todo o território, a
diversidade de idiomas tende a diminuir, e não a aumentar, como proposto por Nichols.
Por esse motivo, o povoamento das américas seria relativamente recente, provando errada
a tese da diversidade e deixando inconclusivo o tema.
A terceira abordagem que foge do ramo arqueológico a ser utilizada foi a medida
da diversidade genética entre os povos das américas. O método consiste em se medir a
“distância biológica” entre as populações, para que se encontre seu parentesco e se estime
o tempo em que haveria ocorrido o distanciamento. Entretanto, as pesquisas modernas na
área são absolutamente inconclusivas, com diversas hipóteses tanto sobre o número de
ondas de ocupação, a forma e há quanto tempo tudo haveria ocorrido. Há também quem
afirme que por esse meio não se pode ter uma precisão sobre os dados obtidos, de forma
que as principais evidências e teorias sobre o tema ainda repousam na teoria “Clovis-
first” e nas que a desprovam, sendo principalmente o produto da arqueologia produzida
em solo brasileiro.

Texto 2 e 3

Há alguns sítios arqueológicos em território sul-americano que representam um


importante marco ao estudo da dispersão do homo sapiens pelo continente, além de serem
um forte contraponto à proposta “Clovis-first”. São eles os que apresentam menor
controvérsia quanto à sua datação, com maior número de análises e publicações na área,
assim como são os menos contestados pela comunidade científica. Tais sítios são os de
Monte Alegre, Pedra Furada e Santa Elina, no Brasil, assim como o de Monte Verde, no
Chile.

Localizada no município de Monte Alegre, no norte do Pará, está a caverna da


Pedra Pintada, que, cujo próprio nome já indica, é um sítio no qual estão presentes muitas
pinturas rupestres. A partir dos achados em pedra trabalhada, se considera a possibilidade
do uso de fogo na manufatura de ferramentas, assim como técnicas de percussão e pressão
na sua produção. As datações das evidências do sítio se encontram em um intervalo de
16 a 9 mil anos atrás, o que pode indicar também uma ocupação por um extenso período
no local. Apesar de muitos dos críticos argumentarem que as datações sejam errôneas,
com números mais recentes sendo mais realistas, esse certamente não é um sítio
relacionado de qualquer forma com a cultura Clovis, mas que pode ter coexistido com ela
ou mesmo a precedido.

Talvez o mais conhecido conjunto de sítios arqueológicos do país, a Serra da


Capivara, no Piauí, é a região aonde se encontra o sítio de Pedra Furada. Com um número
muito grande de artefatos recolhidos, dentre eles centenas de peças líticas, assim como
estruturas de fogão e sementes armazenadas, esse é um dos principais sítios de pesquisa
do Brasil. As datações na região chegam a 60 mil anos atrás, mas as mais confiáveis são
as que orbitam os 12 mil anos, período também que coincide e talvez precede o da cultura
Clovis. Também alvo de críticas, como todos os sítios, se encontram os erros de datação
e mesmo o questionamento sobre a ação antrópica no local, no qual se argumenta que
muito do encontrado pode ser produto de ações naturais, como intemperismo e incêndios
espontâneos na mata.

Outra região do país em que se encontram evidências é a região central do Mato


Grosso, no município de Jangada, a 80km de Cuiabá. Em publicações mais recentes,
comparado aos sítios anteriores, tais achados representam um marco importante, uma vez
se localizam no centro geográfico da América do Sul, representando uma clara
interiorização do processo de povoamento do continente. No local se encontram
fragmentos de pedra serrilhados e retocados, obra de ação antrópica, assim como osso de
preguiças-gigantes trabalhados, possivelmente convertidos em adornos, além de restos de
fogueira e mesmo pinturas rupestres. Neste local, as datações chegam a 27 mil anos atrás,
mas a maior parte se aproxima das idades encontradas pela Serra da Capivara, sendo,
também, locais que podem ter precedido a existência da cultura Clovis.

Por fim, um dos sítios mundialmente mais reconhecidos como evidências de


ocupação pré-Clovis, se encontra o sítio de Monte Verde, situado no sul do Chile. Aqui,
há poucos artefatos padronizados, não há uma clara presença de indústria lítica,
diferentemente da maior parte das áreas estudadas. Entretanto, são encontrados fogões,
madeiras, restos de mastodonte e folhas de plantas comestíveis e medicinais. Pelo que foi
encontrado, argumenta-se tratar de um assentamento residencial, o qual foi datada sua
existência em torno de 12.300 a 12.800 anos atrás. Com um estilo de vida bastante
diferente daquele observado em Clovis, o sítio propõe um modelo completamente
diferente do processo de ocupação das Américas, que pode ser comprovado com a
obtenção de novas fontes de pesquisa, novos sítios arqueológicos de datações tão antigas
e modos de organização semelhantes.

Você também pode gostar