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HISTÓRIA DA AMÉRICA I
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
EaD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
Dilma Roussef
MINISTRO DA EDUCAÇÃO
Fernando Haddad
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
HISTÓRIA DA AMÉRICA I
Eduneb
Salvador
2012
EaD
EaD UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE DO
DO ESTADO
ESTADO DA
DA BAHIA
BAHIA
© UNEB 2012
Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida ou gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros,
sem a prévia autorização, por escrito, da Coordenação UAB/UNEB.
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
Impresso no Brasil 2012
DIRETORA
Maria Nadja Nunes Bittencourt
COORDENADOR EDITORIAL
Ricardo Baroud
COORDENAÇÃO UAB/UNEB
COLABORADORES REVISORES
Maria Nadja Nunes Bittencourt
SUPERVISÃO DE MATERIAL DIDÁTICO
Andréa Santos Tanure
NORMALIZAÇÃO
Flávia Souza dos Santos
Susane Barros
Tatiane Nogueira Nunes
DIAGRAMAÇÃO
PROJETO GRÁFICO e CRIAÇÃO
Teodomiro Araújo
João Victor Souza Dourado
Carla Cristiani Honorato de Souza
CDD: 970
Estamos começando uma nova etapa de trabalho e para auxiliá-lo no desenvolvimento da sua aprendizagem
estruturamos este material didático que atenderá ao Curso de Licenciatura em História na modalidade de educação
à distância (EAD).
O componente curricular que agora lhe apresentamos foi preparado por profissionais habilitados, especialistas
da área, pesquisadores, docentes que tiveram a preocupação em alinhar conhecimento teórico-prático de maneira
contextualizada, fazendo uso de uma linguagem motivacional, capaz de aprofundar o conhecimento prévio dos
envolvidos com a disciplina em questão. Cabe salientar, porém, que esse não deve ser o único material a ser
utilizado na disciplina, além dele, o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), as atividades propostas pelo Professor
Formador e pelo Tutor, as atividades complementares, os horários destinados aos estudos individuais, tudo isso
somado compõe os estudos relacionados a EAD.
É importante também que vocês estejam sempre atentos as caixas de diálogos e ícones específicos que
aparecem durante todo o texto apresentando informações complementares ao conteúdo. A idéia é mediar junto
ao leitor, uma forma de dialogar questões para o aprofundamento dos assuntos, a fim de que o mesmo se torne
interlocutor ativo desse material.
São objetivos dos ícones em destaque:
Sua postura será essencial para o aproveitamento completo desta disciplina. Contamos com seu empenho e
entusiasmo para juntos desenvolvermos uma prática pedagógica significativa.
ÁREA DE AMBIENTAÇÃO
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Telefones: E-mail:
Residência:
Município/Pólo do curso EAD:
Apresentação da disciplina
Caro(a) aluno(a),
Bons estudos!
O Autor
Anotações
SUMÁRIO
REFERÊNCIAS ..........................................................................
Anotações
Do Povoamento
do Continente
às Primeiras
Civilizações
CAPÍTULO 1
EAD LICENCIATURA EM HISTÓRIA - HISTÓRIA DA AMÉRICA I
Anotações
paleolíticos com morfologia craniana distinta da mongo- morfológica com grupos australianos e africanos atuais”,
lóide, novas teses foram idealizadas por pesquisadores ao passo que os crânios dos ameríndios modernos
brasileiros e estrangeiros. “mostravam grande similaridade com os grupos asi-
Na década de 1970, um grupo de pesquisadores áticos” (NEVES; PILÓ, 2008, p. 153). Tais resultados
franco-brasileiro estudou os sítios de Lagoa Santa (MG) embasaram a formulação de um modelo denominado
pesquisados por Lund, encontrando fósseis humanos e “Modelo dos Dois Componentes Biológicos Principais”,
outros vestígios que indicaram uma ocupação superior no qual duas levas migratórias principais teriam povoado
a 10 mil anos atrás, na região. Um fóssil feminino bem o continente americano: a primeira, há cerca de 14 mil
conservado encontrado então foi estudado posteriormen- anos atrás, composta por indivíduos que portavam a
te, indicando uma datação de 11.500 anos. Tal fóssil foi morfologia geral semelhante à africana; a segunda, há
apelidado como Luzia (Figura 1), e é o fóssil humano cerca de 12 mil anos, composta por mongolóides.
mais antigo pesquisado na América. As teses de Neves e Pucciarelli, que defendem a
existência de uma população de morfologia geral na
América anterior à mongolóide, as quais se somariam
às levas posteriores menores de povos árticos (aleutas
e esquimós), estão sendo mais aceitas entre os estudio-
sos atualmente, mas estão longe de ser unanimidade,
pois defendem como rota única para o povoamento do
continente o Estreito de Bering.
Entre os pesquisadores que divergem das teses de
Neves e Pucciarelli temos Maria Conceição Beltrão e
Niède Guidon. A primeira, arqueóloga do Museu Na-
cional do Rio de Janeiro (UFRJ), a partir de pesquisas
desenvolvidas no interior da Bahia, postulou a presença
na América de hominídeos desde centenas de milhares
de anos. Para tanto, além do Estreito de Bering, Beltrão
defende a possibilidade de “uma ligação da África do
Sul com a América do Sul provocada por uma glaciação
que produziu ilhas entre a África e o Brasil” (TALENTO,
2009, p. 24-26). Tal rota teria sido utilizada tanto por
hominídeos primitivos, como o Homo Erectus, como
pelo Homo sapiens.
Já Niède Guidon, brasileira de descendência francesa
e doutora pela Sorbonne, pesquisa sítios arqueológicos
da Serra da Capivara (PI) desde a década de 1960. Entre
os sítios pesquisados, destaca-se o de Boqueirão da Per-
da Furada, onde foram encontrados indícios paleolíticos
com datações entre 18 mil e 58 mil anos atrás. Porém,
Guidon foi ainda mais radical ao defender a existência
Figura 01. Reconstituição da face de Luzia. Disponível em <http:// de vestígios de uma fogueira, datados pela técnica de
pt.wikipedia.org/wiki/Luzia_(f%C3%B3ssil)>. Acesso em: 30 de maio termoluminescência, que atingiriam por volta de 100 mil
de 2011.
anos, em Pedra Furada, mas poucos estudiosos creditam
tal antiguidade.
Walter Neves e Héctor Pucciarelli, na década de 1980, Para dar conta de tamanha antiguidade do homem
realizaram um estudo comparativo entre os crânios de na América, Guidon também defende a rota de migração
Lagoa Santa e de outras populações sapiens espalhadas marítima África-América do Sul, algo bastante atacado
pelo mundo. Os resultados obtidos apontaram que os por estudiosos como Walter Neves:
quinze crânios analisados mostravam “grande afinidade
Você pode explicar perfeitamente o povoamento da América Do Sudeste Asiático, grupos humanos partiriam para
sem recorrer a travessias oceânicas, porque, antes dos asiáti- a colonização da Indonésia e Oceania, por via marítima,
cos do tipo atual, que a gente chama de mongolóides, popu- rumo ao sul, enquanto outros tomariam a direção diversa,
lações parecidas com os australianos e africanos estavam
rumo ao Norte, subindo a costa leste da Ásia por terra
presentes na Ásia. (LE MONDE DIPLOMATIQUE. Disponível
ou navegação de cabotagem, alimentando-se da fauna
em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=186>,
marinha, rica fonte de nutrientes, atingindo a América via
acesso em 31.03.2010.)
Bering (por mar e/ou terra). No noroeste do continente
americano, os migrantes teriam descido a costa até atin-
Busco agora defender um modelo alternativo para girem um ponto onde o clima fosse mais ameno, entre
o povoamento da América que dê conta das datações o sul da Califórnia e o norte do México. Estimo que isto
remotas de Niède Guidon (até os 58 mil anos, pois os tenha se dado por volta de 70 mil anos atrás, no início
100 mil são muito criticados) sem lançar mão da migra- da última glaciação.
ção oceânica, já que não se conhecem vestígios de tal
Saliento que neste ponto afasto-me das teses de
migração. Paralelamente, busco conciliar as propostas
Oppenheimer, já que este ficou limitado pela sua con-
de Guidon às de Walter Neves e demais pesquisadores
cepção genética da difusão humana ao estudo das
que compartilham de suas teses.
populações atuais, sendo que os primeiros povoadores
Analisar o povoamento pré-histórico da América exige da América teriam sido praticamente exterminados pelos
alguma dose de imaginação, pois existem muitas lacu- mongolóides que chegaram posteriormente, entre 20 e
nas nos dados científicos. Sabe-se ainda muito pouco 10 mil anos atrás.
sobre tal processo, e é provável que nunca tenhamos
Os primeiros povoadores que atingiram o litoral
um completo quadro do mesmo. Contudo, há “pistas”
mexicano supostamente dividiram-se entre os que con-
disponíveis, utilizadas por vezes de formas distintas por
tinuaram a navegar pelo sul e outros, que interiorizaram
pesquisadores diferentes.
o povoamento, dispersando-se de forma mais lenta, em
Steven Oppenheimer, no documentário do Discovery todas as direções, povoando o restante do continente,
Channel A Origem do Homem (The Real Eve, DISCOVERY incluindo a região de Lagoa Santa, onde Luzia viveu há
COMMUNICATIONS, 2002), construiu um modelo geral milhares de anos atrás.
da difusão do homem da África para o restante do mundo
Os fósseis humanos até hoje encontrados apontam
baseado em estudos genéticos e arqueológicos. Segun-
que foram os paleoamericanos (de morfologia geral
do ele, há 80 mil anos atrás saiu da África a primeira leva
africana) os primeiros a ocupar boa parte do continente
populacional Homo sapiens que originou o povoamento
americano. Já a zona ártica da América, após a vinda dos
primitivo do restante do planeta, tendo como rota a tra-
paleoíndios (já de morfologia mongolóide), recebeu levas
vessia do Mar Vermelho, entre a Eritreia e o Iêmen. No
mais recentes (até 8.000 anos atrás) de mongolóides que
processo de migração, um grupo pequeno ficou isolado
se fixaram pela região, dando origem aos povos aleutas
na Península Arábica, gerando uma única linhagem de
e esquimós, isolados dos demais grupos americanos.
DNA mitocondrial (que só é passado da mãe para os
filhos). Tal linhagem seria a origem de grande parte das Trazendo do Velho Mundo novas técnicas e práticas
populações humanas atuais. culturais, as levas de migrantes mongolóides aparen-
temente levavam vantagem sobre os americanos de
Partindo da Península Arábica, Oppenheimer seguiu
morfologia geral, substituindo-os de forma violenta onde
os rastros do DNA mitocondrial até as populações atuais
quer que os encontrassem, pois seus hábitos alimentares
do Sudeste Asiático e da Austrália. Vestígios arqueoló-
permitiram a formação de grupos maiores.
gicos da presença humana na Malásia, datados de pelo
menos 74 mil anos, parecem confirmar as teses de Se em um primeiro momento paleoamericanos
Steven sobre a difusão do homem na região. Os cerca ocuparam grande parte do território brasileiro até 12
de 6.000 anos passados entre tal datação e a hipotética mil anos atrás, a colonização mongolóide a partir do
saída do grupo original da África (80 mil anos) seriam noroeste da América do Sul se espalhou rapidamente
teoricamente suficientes para os humanos percorrerem pelo litoral sul-americano (sambaquieiros), a partir de
os 10 mil quilômetros entre ambas as regiões. 10-9 mil anos, e de forma mais lenta pelo interior. Logo
os povos mongolóides amazônicos desenvolveram a
agricultura rudimentar e a cerâmica, originando novos Os modos de subsistência variavam bastante, incluin-
padrões demográficos e culturais, espalhando-se pelo do a pesca fluvial e marinha, a coleta de frutos do mar
restante do território em detrimento dos povos coletores- ou de vegetais em terra e a caça, especializada ou não.
-caçadores (de morfologia geral ou mesmo mongolóide). As opções dependiam dos recursos disponíveis em cada
Processos semelhantes também se deram no restante território ocupado.
da América do Sul e nas Américas Central e do Norte, O trato com determinadas plantas ao longo de milê-
exceto na região ártica. nios originou os primórdios da agricultura entre alguns
bandos nômades, que tendiam a se sedentarizar gradu-
almente, tornando-se primeiramente seminômades. Tal
VOCÊ SABIA? condição de maior disponibilidade de alimentos e menor
mobilidade espacial proporcionou avanços na organiza-
Você sabia que o Brasil possui inúmeros complexos arqueológicos, ção social e na cultura material. Os povos seminômades
formando um dos conjuntos mais ricos de vestígios arqueológicos viviam em comunidades maiores, formando tribos ou
das Américas? É surpreendente a quantidade de achados e as
aldeias (JUNQUEIRA, 2010a). Surgiram os caciques e
possibilidades de novas pesquisas em nosso País. Entre os principais
complexos arqueológicos está o da Serra da Capivara (Piauí),
xamãs, membros da comunidade que exerciam certo
transformado em Parque Nacional. O Parque, com suas instalações controle sobre os demais, advindo do prestígio e idade
e sítios arqueológicos, pode ser visitado presencialmente ou pela que tinham. O processo de sedentarização em curso
internet, através do endereço da Fundação Museu do Homem possibilitou o desenvolvimento da cerâmica (quase
Americano: <http://www.fumdham.org.br/>. Vale a visita!
sempre como subproduto da agricultura).
Porém, nem sempre foi a invenção da agricultura o
A evolução sociocultural do homem na principal motor para a sedentarização dos grupos hu-
América manos. A riqueza alimentar advinda da pesca e coleta de
mariscos proporcionou a sedentarização de grupos que
Os grupos nômades (classificados socialmente como demonstraram uma maior complexidade técnica, cultural
bandos) que migraram para a América, há milhares de e social, como os sambaquis das costas brasileira e
anos, estavam em um estágio tecnológico paleolítico, ou pacífica da América do Sul exemplificam. Entre os povos
seja, tinham uma cultura material rudimentar, constituída andinos litorâneos dedicados à pesca e coleta marinhas
por toscos instrumentos de pedra lascada, e organização e à agricultura do algodão havia os chinchorros, que por
social baseada no parentesco e solidariedade grupal. No volta de 5.000 a.C. começaram a mumificar corpos, o
período de transição entre o Pleistoceno e o Holoceno que evidencia sua complexidade sociocultural (MANN,
(ocorrido entre dez e oito mil anos atrás), o processo 2007, p. 192).
de adaptação a diferentes habitats em meio ao novo De qualquer forma, foi a agricultura que revolucionou
ambiente holocênico deu origem a indústrias líticas mais o modo de vida dos ameríndios, em geral. Ao longo de
aperfeiçoadas e diferenciadas entre si (Mesolítico ame- milênios, foi se concretizando na América a chamada
ricano). Podemos constatar, desde então, uma grande “Revolução Neolítica”, que englobou
diversidade cultural e material entre os povos ameríndios
que já se insinuava no Paleolítico. além do desenvolvimento da agricultura, um conjunto de in-
Por volta de seis mil a.C. concluiu-se o recuo das venções – como polimento da pedra, cerâmica, tecelagem
geleiras rumo aos pólos, iniciando-se uma fase mais – que transformaram lentamente o modo de vida dos povos.
quente que modificou definitivamente o meio-ambiente Este processo levou à gradual sedentarização, maior espe-
americano e proporcionou novas oportunidades de cialização do trabalho e, num estágio avançado, instituições
sustento aos grupos nômades, algumas (como a coleta políticas estatais e urbanização. (JUNQUEIRA, 2010a, p. 35).
na costa pacífica andina, na região amazônica e no Mé- O milho índio não pode reproduzir-se por si, pois os seus
xico meridional. Acredita-se que tais desenvolvimentos grãos são seguramente embrulhados pelo folhelho, de modo
agrícolas na América tenham ligação com a chegada e que os índios devem tê-lo desenvolvido a partir de outras es-
pécies. Porém, não existem espécies silvestres que se asse-
adaptação dos povos mongolóides nestas áreas, como
melhem ao milho índio. O seu parente genético mais próximo
conseqüência de um modo de se relacionar e explorar os
é uma gramínea montanhesa chamada teosinto, cuja aparên-
recursos botânicos distinto do vivenciado pelos grupos
cia é estritamente diferente [...]. Ninguém come o teosinto,
paleoamericanos (FUNARI; NOELLI, 2005, p. 71). pois a sua produção de grãos é pequena demais para valer a
Assim, os ameríndios aprenderam a domesticar plan- pena cultivá-lo. Ao criar o milho índio moderno a partir dessa
tas e manejar os recursos dos habitats que povoavam, planta tão pouco promissora, os índios realizaram um feito
estabelecendo-se em comunidades cada vez maiores, tão improvável que os arqueólogos e biólogos se pergunta-
que cresciam no ritmo da elevação da produtividade ram, durante décadas, como a proeza teria sido alcançada
agrícola, que era complementada pela pesca e/ou caça. (MANN, 2007, p. 20).
Sua atitude perante o meio-ambiente foi cada vez mais
transformadora, sendo que em muitos casos alteravam Os ameríndios criaram mais de cinqüenta varieda-
radicalmente a paisagem em que viviam, como na parte des do milho índio, só no México, no que talvez seja
da floresta antropogênica amazônica, na região do Beni o maior feito da humanidade no campo da engenharia
(atual Bolívia) e nos bosques plantados e savanas oriun- genética (MANN, 2007, p. 209). O milho era cultivado
das das queimadas no leste dos atuais EUA. na Mesoamérica em campos agrícolas chamados milpa,
“resultado da junção de diversos cultivos em um mesmo
campo, como frutas, verduras, legumes e cereais, entre
eles o milho” (JUNQUEIRA, 2010a, p. 40). Tal mistura
proporcionava uma boa fertilidade do solo, além de uma
dieta variada para os homens.
Nos Andes, os primórdios da agricultura remontam a
antiguidade semelhante à mesoamericana, sendo culti-
vados a cabaça, o algodão, a kinoa (quinoa), a vagem,
pimentas variadas, abóboras, amendoim, a batata, além
da coca e, posteriormente, o milho (vindo da Mesoamé-
rica). A batata teve papel semelhante ao do milho mais
ao norte, sendo o sustentáculo alimentício dos povos
andinos (há três mil variedades de batata nos Andes).
Na Amazônia, talvez a região onde mais cedo se
iniciasse a domesticação de vegetais, há quatro mil
Figura 02. Alguns dos cultivos pré-colombianos: tomate, mandioca (aipim), anos já eram trabalhadas pelo homem 140 espécies de
batata, milho e pimentas. Foto do autor, 2011.
plantas como tubérculos, feijões, amendoins, abóboras,
batatas, pimentas, pimentões e tantas outras espécies
Quanto aos cultivos (Figura 02), na Mesoamérica (grande parte delas árvores). Entretanto, se destacava
iniciou-se o processo de plantio de cabaças, abóbo- na subsistência da região a mandioca (como atualmen-
ras, pimentas e ameixas há quase 10 mil anos atrás. te, sendo cerca de 100 as variedades existentes), ao
Posteriormente, foram cultivados o painço (um cereal), que parece, domesticada no Peru ou Colômbia (10 mil
o tomate e variedades de vagens e feijões, além do a 8.400 anos atrás), disseminando-se pela Amazônia
algodão. Porém, o cultivo mais importante em termos brasileira posteriormente. Foi justamente na Amazônia
de produtividade, chegando a formar a base alimentar brasileira onde se descobriu a cerâmica mais antiga nas
agrícola na Mesoamérica, foi o milho. Mas o milho não Américas (cerca de 7600 anos).
foi apenas cultivado pelos mesoamericanos, e sim criado Além dos cultivos vegetais, os povos amazônicos
por eles há mais de seis mil anos, pois não existia, tal transformavam parte do pobre solo ferroso da floresta
como o conhecemos, na natureza: em terra preta (extremamente fértil), “composta por
carvão vegetal (extraído das matas derrubadas para Já a região ocupada pelas civilizações urbanas me-
o plantio), restos de comida, excrementos e cerâmica soamericanas englobava os atuais territórios do México,
quebrada”, encontrada em muitos sítios da região (JUN- Belize, El Salvador, Guatemala e Honduras, totalizando
QUEIRA, 2010a, p. 43). Isto aliada à criação de pomares algo próximo dos 900 mil quilômetros quadrados (LEÓN-
de árvores de castanha do Pará ou de cupuaçu, dentre -PORTILLA, 2004). Ambas as regiões apresentam eleva-
outros. da diversidade geográfica e ambiental, além de recursos
hídricos que favoreceram o desenvolvimento agrícola.
Além das áreas civilizacionais centrais da Mesoamé-
SAIBA MAIS rica e Zona Andina, zonas periféricas nos atuais EUA e
nas Américas do Sul e Central experimentaram um menor
A ocupação milenar e intensiva nas margens dos grandes rios desenvolvimento sociocultural quanto à complexidade
amazônicos, pelos indígenas, transformou partes do solo em terra política, cultural e urbanística.
preta, também chamada “terra preta de índio”, que possui altas taxas
de fertilidade em relação ao solo natural, pobre e ferroso, da floresta.
Com o passar do tempo, o progresso na domesti-
Acesse os endereços virtuais abaixo e conheça mais sobre o assunto: cação de plantas e animais e a consequente elevação
http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/story/2004/01/040106_ da produtividade deram origem à sedentarização e
terrapretaml.shtml a uma organização socioeconômica mais complexa
http://www.museu-goeldi.br/destaqueamazonia/tpa.htm (aparecimento de especializações funcionais, ligadas
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u14294.shtml
http://compolsoc.wordpress.com/2011/05/26/antigos-indios-da-
às atividades artesãs, religiosas ou guerreiras). Aldeias
amazonia-contribuiram-para-a-fertilidade-da-terra-preta-fapesp/ com centenas e ou mesmo milhares de pessoas desen-
volveram-se, onde a organização social ainda se dava
pelo parentesco, sendo que surgiram os clãs e linhagens
Esse tipo de intervenção ambiental consciente foi
que posteriormente se cristalizaram, hierarquizando-se a
experimentado em várias partes da América índia, como
partir da especialização funcional (agricultores, artesãos,
no caso das queimadas de coivara amazônicas ou na
guerreiros, sacerdotes e chefes políticos).
criação de pastagens e campos na América do Norte
(nos EUA, desenvolveu-se o Complexo Agrícola Oriental, Com o estabelecimento das chefias hereditárias
por volta do I milênio a.C.). estava aberto o caminho para a criação de instituições
políticas e uma maior divisão social e funcional. Linha-
Em relação à domesticação de animais, os ameríndios gens guerreiras e sacerdotais mesclavam-se com as
só domesticaram o peru e o cachorro, na Mesoamérica. linhagens dos chefes políticos, formando os rudimentos
A lhama, a alpaca, o porquinho da índia e o pato-almis- de uma corte e seus agregados (artesãos e serviçais).
carado, nos Andes, porque o continente americano era
O relativo monopólio da força por parte dos guer-
pobre em termos de grandes mamíferos domesticáveis.
reiros ligados ao chefe, aliado à justificativa religiosa
Tal estado de coisas, apesar de prejudicar os transportes
que os mitos das origens e os sacerdotes alimentavam,
nas civilizações ameríndias, não foi impedimento para
proporcionou a apropriação (via tributos) do excedente
o florescimento de sociedades complexas na América,
econômico, principalmente advindo da agricultura. Tal
sustentado pela agricultura.
excedente era canalizado para a construção e manu-
tenção de templos ou obras de irrigação, em nome da
As primeiras civilizações ameríndias coletividade. Este processo originou as instituições
estatais necessárias para a coordenação dos esforços
Das diversas regiões do continente americano que coletivos em prol da elevação da produtividade agrícola
experimentaram o florescimento da agricultura, duas e da satisfação das divindades cultuadas. Da mesma
delas foram os berços da civilização urbana: a Zona forma, abriu espaço para uma definitiva divisão social
Andina e a Mesoamérica. do trabalho (entre governantes e governados).
O núcleo cultural da Zona Andina pré-colombiana Certo é que este processo não se deu em todas as
abrangia partes dos atuais Peru e Bolívia (gradualmente culturas ameríndias, sendo que povos em estágio de
abrangendo porções do Equador, Chile e Argentina). À organização social rudimentar, sem divisão social, con-
época imperial Incaica, a área total da região superava tinuaram existindo mesmo após a conquista europeia
um milhão de quilômetros quadrados. no continente.
Nas sociedades que se desenvolveram institucional e campesina, porém em menor medida do que os grandes
materialmente rumo ao Estado e à urbanização, a religião comerciantes.
foi aspecto fundamental, legitimando o poder de chefes O desenvolvimento agrícola permitiu o crescimento
que se tornaram reis quando submetiam populações da complexidade sociocultural e política das sociedades
mais alargadas demográfica e espacialmente. Todas as em vias de urbanizar-se. Acreditava-se até pouco tempo
evidências apontam para a necessidade da constituição que sociedades da Mesoamérica haviam vivenciado
de Estados de cunho teocrático (em alguma medida) primeiramente este processo no continente americano.
como pré-condição para o surgimento das cidades. Porém, estudos realizados na década de 90 revelaram
A urbanização se desenvolveu ao redor de centros que os primeiros centros cerimoniais na América surgi-
cerimoniais, que agrupavam a elite política, militar e ram no Peru, em Norte Chico (na costa peruana), e não
sacerdotal que dominavam as camadas subalternas na Mesoamérica (JUNQUEIRA, 2010a).
dedicadas à produção alimentar ou artesanal. Os centros Pesquisadores peruanos e estadunidenses estimam
Olmecas (Mesoamérica) ou da região de Norte Chico que Norte Chico abrigasse (entre o IV e o II milênios
(costa andina) evidenciam tal importância da religião e a.C.) até 25 centros cerimoniais ou “cidades” . Segundo
do Estado para o surgimento da civilização urbana em Charles Mann, um destes centros, chamado Huaricanga,
terras americanas. possui uma das arquiteturas públicas mais antigas da
A principal fonte de riqueza nas civilizações pré- história humana (3.500 a.C. ou mais), dominada por
-colombianas era a agricultura, portanto a terra tinha seu grande templo, em forma de “U”: “na época de sua
importância central como meio de produção. Processos construção, o templo de Huaricanga estava entre os
históricos diversos nas múltiplas sociedades ameríndias maiores edifícios do mundo.” (MANN, 2007, p. 188).
transmutaram a originária propriedade comunal da terra Entre 3200 e 2500 a.C., sete outros centros da região
(levando ao fracionamento de lotes para cada família também ergueram edifícios públicos de grande escala,
camponesa, que detinha sua posse). demonstrando o vigor civilizador existente em Norte
Em vias gerais, num segundo momento, a ação Chico.
estatal cada vez mais institucionalizada contribuiu para No interior da região também floresceram centros
a distribuição desigual da posse da terra. Territórios cerimoniais que cultivavam o algodão empregado nas
conquistados ou novas terras abertas ao cultivo servi- redes de pesca marinhas, destacando-se Caral (Figura
ram como pagamento aos serviços prestados ao Estado 03), “com seus 60 hectares de terraplanagens, grandes
por guerreiros de destaque, funcionários burocráticos plataformas de templos, praças cerimoniais e edificações
ou sacerdotes. Paralelamente, as comunidades aldeãs de pedra residenciais” (JUNQUEIRA, 2010a, p. 55).
tinham que pagar tributos ao Estado em produtos ou
trabalho, recebendo lotes familiares. Ou pagavam os
impostos com a produção do seu lote ou eram obrigadas
a também trabalhar nas terras estatais, gerando o exce-
dente apropriado para a manutenção da máquina estatal.
Não obstante, não havia na América índia a noção de
propriedade privada da terra enquanto riqueza pessoal,
comerciável e hereditária. A propriedade da terra era do
Estado (ou seja, do soberano e/ou das divindades), sen-
do que a posse e usufruto eram destinados aos súditos
a partir do papel que exerciam.
Os grandes comerciantes, como os pochtecas mexi-
cas, viviam uma vida luxuosa e desfrutavam de prestígio
Figura 03. Foto do sítio de Caral. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/
social suficiente para enviar seus filhos ao colégio do wiki/Civiliza%C3%A7%C3%A3o_de_Caral>. Acesso em 02 de junho de
Calmecac, assim como os filhos da nobreza de Teno- 2011.
chtitlán (BERNAND; GRUZINSKI, 2001). Comunidades de
artesãos especializados nas altas sociedades ameríndias
também gozavam de um status superior ao da maioria
Não se sabe ainda, com segurança, como tais socie- gerou meia dúzia de centros cerimoniais no entorno do
dades surgiram e se desenvolveram (se formavam um lago, semelhantes ao estilo de Norte Chico, um deles,
único povo ou vários e quais as relações políticas entre Tiwanaku, dominou a região mil anos depois, formando
os centros). Acredita-se que a pesca marítima tenha um grande centro religioso e político.
sido o substrato inicial para as concentrações humanas Por volta da época de Cristo, surgiam pequenos Es-
litorâneas. Tal atividade exigia o algodão cultivado nos tados regionais que quebravam o localismo andino. No
centros do interior. Assim, havia intercâmbio entre os vale do Moche, litoral norte peruano, um Estado belicoso
centros litorâneos e interioranos, sem que se saiba ao dominou parte da costa e realizou obras de irrigação em
certo qual a relação entre eles, em termos de hegemonia grande escala. Os Moche difundiram suas sofisticadas
política e/ou comercial. Seja como for, podemos vislum- cerâmica e metalurgia, bem como construíram templos
brar que o governo na América foi ‘inventado’ em Norte e palácios da realeza guerreira em sua capital, Huaca del
Chico, dados os vestígios de urbanização encontrados. Sol, utilizando o adobe como matéria prima. O declínio do
A civilização desenvolvida na região deixou marcas poderio moche se deu por volta de 800 d.C. na região,
que influenciaram os povos andinos posteriores, como posteriormente dominada pelos Chimor. Já no sul da
o formato arquitetônico em “U” dos principais templos, costa, as culturas de Nazca e de Paracas floresceram,
o “Deus da Vara”, conhecido posteriormente como Wira- destacando-se pelos grandes glifos grafados no relevo
qocha (deus criador Incaico) e a cultura têxtil elaborada. e pelas técnicas de mumificação, respectivamente.
Outros locais deram origem a centros cerimoniais Nos planaltos do centro-sul da Cordilheira surgiram
na Zona Andina, como o de Chuquitanta (cerca de as primeiras cidades, de fato, da Zona Andina. No século
2500 a.C), na costa central peruana. Da mesma for- VIII d.C., Tiwanaku e Wari despontaram como centros
ma, grandes edifícios religiosos em pedra, como o das hegemônicos. A partir do lago Titicaca, Tiwanaku ex-
Mãos Cruzadas, em Kotosh (1500 a.C.) evidenciam o pandiu seus domínios em direção ao sul, influindo sobre
desenvolvimento sociocultural dos povos andinos fora todo o planalto boliviano (FRAVE, 1998, p. 10). Sua
de Norte Chico. imponente arquitetura de templos e palácios evidencia
No I milênio a.C., desenvolveu-se nos Andes uma a presença de forte organização estatal. As grandes
cultura conhecida como Chavín de Huantar. O estilo artís- e constantes obras públicas administradas pela elite
tico, religioso e arquitetônico de seus centros difundiu-se política-sacerdotal deixavam ocupadas as massas das
por extensa área, sem que tenha formado um “império” comunidades submetidas ao tributo, ao mesmo tempo
militar. Teria expandido sua influência por proselitismo em que mantinham o status de metrópole religiosa da
(CARDOSO, 1996; FRAVE, 1998). Nas representações época, nos Andes.
gravadas em pedra e na cerâmica, pintadas sobre cons- Já Wari, baseada no vale médio do Mantaro, foi o
truções ou impressas em lâminas de ouro destaca-se o núcleo urbano de um Estado centralizado que executou
culto ao jaguar (ou puma). a construção de imensos terraços, irrigados com as
O centro cerimonial de Huantar possuía um templo águas das geleiras dos cumes montanhosos andinos,
escavado na rocha, em formato de “U”, como os de cultivando neles a batata e o milho índio. Sua influência
Norte Chico. Os fiéis que adentravam seu interior en- se disseminou pela crista dos Andes, sendo fundados
cravado na rocha deviam vivenciar uma experiência doze centros administrativos no seu território. A singular
espiritual e energética profunda, sentindo-se no ventre arquitetura de Wari, com cinco quilômetros quadrados
da mãe Terra, tendo em vista as bases da religiosidade de edifícios separados por altos e maciços muros, foi
andina, “permeada por montes, grutas e pedras com reproduzida nos demais centros construídos por seu
significados espirituais (as wak’a), sendo a terra a própria povo (MANN, 2007). Tal estrutura urbanística evidencia
mãe dos povos, pachamama, a provedora da fertilidade o caráter militarista e hierarquizado da sociedade.
que sustenta o homem” (JUNQUEIRA, 2010a, p. 103). No fim do I milênio d.C., Tiwanaku e Wari declinaram,
No Altiplano andino, paralelamente ao desenvolvi- com as secas e enchentes que arruinaram sua agricultura
mento dos centros da costa peruana, o lago Titicaca e provocaram o colapso do poderio dos seus Estados
propiciou o florescimento de povos urbanos. No início do frente à pressão climática. Suas derrocadas abriram
primeiro milênio a.C., a junção entre pesca e agricultura um período de fragmentação política nos Andes, com
diversas cidades-Estado disputando entre si a influência No atual território brasileiro também se encontravam
em suas regiões. civilizações que se desenvolveram rumo aos primórdios
Tal impasse foi quebrado no século XIII, quando os da urbanização. No estado do Acre, que faz fronteira com
Chimor surgiram como o primeiro grande império nos a Bolívia junto ao departamento de Beni, uma rede de
Andes. Seus soberanos dispunham de um poder absoluto estruturas em formato de geoglifos abrigava povoados
e teocrático que conduziu grandes obras de irrigação nos ou centros cerimoniais. Os registros arqueológicos, ainda
vales de Moche e Chimaca. Estas obras proporcionaram pouco estudados, são diferentes dos da civilização do
à época o sustento de populações mais numerosas do Beni, portanto seriam oriundos de outro povo. Com
que as atuais na região (FRAVE, 1998). Chan-Chan, efeito, as pesquisas dos últimos anos parecem apontar
sua capital feita de adobe, foi o maior centro urbano da que inúmeros povos com graus variados de desenvolvi-
Zona Andina Central, pois sua população possivelmente mento civilizador habitavam a região amazônica, sendo
alcançou 80 mil habitantes (CARDOSO, 1996). A sofis- que seus restos estão cobertos pela densa vegetação
ticação da cultura chimor foi elevada na metalurgia, na tropical:
tecelagem e na cerâmica, instituindo a produção em série Do oeste, onde se encontram os vestígios do Beni e do Acre,
em suas atividades artesanais. O império erigido por sua passando pelos vales dos rios que cortam a floresta (como
civilização ocupou 1.200 km do litoral andino. Os Chi- o Tapajós, o Xingu e o Amazonas), até o delta em que está
mor construíram fortalezas e estabeleceram um estrito assentada a ilha de Marajó, a leste, pipocam evidências neste
sistema administrativo e tributário nas áreas dominadas sentido. (JUNQUEIRA, 2010a, p. 59)
que influenciou posteriormente os Incas, responsáveis
pela sua derrocada. As margens dos rios amazônicos abrigavam grandes
Em outras partes da América do Sul, povos se de- assentamentos indígenas que transformaram parte da
senvolviam paralelamente à evolução civilizatória andina, floresta tropical em floresta antropogênica até a chegada
também formando civilizações entre o III milênio a.C. europeia. Relatos coloniais, como o de Gaspar de Carva-
e a chegada europeia. Na atual Bolívia, departamento jal, dão conta da grandeza dos assentamentos indígenas,
de Beni, a paisagem de savana amazônica apresenta entre eles um que tinha moradias e hortas dispostas na
sinais claros de que no passado a região abrigou uma margem ao longo de 160 quilômetros, sendo que um
civilização que alterou o ambiente em uma área de 78 pouco afastadas do rio foram avistadas “cidades muito
mil quilômetros quadrados ao longo dos três mil anos grandes” (MANN, 2007, p. 303).
que precederam a conquista europeia. Esta civilização,
O substrato para o desenvolvimento de grandes
que atingiu até um milhão de pessoas:
aglomerações humanas foi a difusão da terra preta entre
povos amazônicos, dada a elevada fertilidade do solo
[...] criou um dos maiores, mais singulares e mais ecologica- preto cultivado. No I milênio d.C., desenvolveram-se
mente ricos ambientes artificiais do planeta [...] construiu grandes assentamentos às margens dos rios Xingu,
montes para fins de moradia e de cultivo, [...] caminhos Negro e Tapajós, em áreas de terra preta que poderiam
elevados e canais para fins de transporte e comunicações,
ter sustentado até 400 mil pessoas.
criou os currais de pesca, e promoveu queimadas nas sa-
vanas para mantê-las desmatadas, livres das árvores que as
Situada na foz do Amazonas, a ilha de Marajó foi
retomariam. Há mil anos, a sociedade deles estava em seu pesquisada por Anna Roosevelt nos anos 1980. Esta pes-
apogeu. Seus povoados e cidades eram espaçosos, formais quisadora estadunidense postulou que se desenvolveu
e guardados por fossos e paliçadas. (MANN, 2007, p. 12- em Marajó uma civilização que perdurou por mais de um
13). milênio, atingindo até 100 mil habitantes que ocuparam
milhares de quilômetros quadrados. Inúmeros platôs
Sabe-se pouco sobre as causas do declínio da foram construídos para o erguimento de assentamentos
civilização do Beni. A hipótese mais aceita é a de que o indígenas, alterando a paisagem pantanosa da ilha. Tal
impacto da chegada das epidemias europeias dizimou povo alcançou um grau de especialização funcional que
a população antes que europeus chegassem à região, pode ser constatado pela rica cerâmica produzida, parte
fazendo com que seu processo civilizador fosse ignorado dela destinada aos enterros – servindo como urnas fu-
até os estudos realizados a partir da segunda metade nerárias finamente decoradas (FUNARI; NOELLI, 2005).
do século XX.
As epidemias, guerras e escravidão advindas do con- Na virada do I milênio d.C., uma etapa mais ela-
tato com colonos portugueses provocaram verdadeiro borada de desenvolvimento cultural foi vivenciada por
genocídio indígena nos séculos XVI e XVII, fazendo com assentamentos espalhados pelo baixo Mississipi, onde
que as sociedades ameríndias amazônicas de grande centros cerimoniais permeados por montes de tamanhos
porte se dissolvessem, com seus sobreviventes em variados (alguns de enormes proporções) foram cons-
pequenos grupos refugiando-se nas selvas afastadas truídos. Entre estes centros, destacou-se o de Cahokia,
dos olhos europeus: que viveu seu apogeu entre 950 e 1250, quando possuía
uma área de doze quilômetros quadrados e abrigava
talvez 15 mil pessoas. Até o século XVIII, foi “a maior
[...] pelas grandes crueldades, que neste Estado tem executa-
do; das quais baste por prova, que em menos de quarenta
concentração humana ao norte do Río Grande” (MANN,
annos consumirão os Portuguezes mais de dous milhões de
2007, p. 270). A sociedade de Cahokia incluía campo-
índios, e mais de quatrocentas Povoações, tão populosas, neses, pescadores, comerciantes, artesãos, soldados,
como grandes Cidades, de que hoje se não vê, nem rasto sacerdotes e funcionários estatais que se moviam pelas
onde estiverão (VIEIRA, 1746, p. 39). ruas e canais construídos. O principal monte do centro,
denominado atualmente como “Monte do Monge”, tinha
Ao norte do continente, nos atuais territórios do Ca- enormes proporções: 280 metros de comprimento, 200
de largura e seis de altura (Figura 04). Foi cuidadosamen-
nadá e Estados Unidos, diversos povos experimentaram
te construído com camadas de areia e argila.
processos civilizadores, alguns iniciados há cinco mil
anos, época em surgiu uma tradição cultural que tinha
como característica a construção de montes de terra
espalhados aos milhares, ao longo de milênios, por
uma vasta área, desde o Canadá meridional até o Golfo
do México.
Após períodos de maior ou menor ocorrência, uma
nova fase teve início por volta de 800 a.C., quando um
assentamento agrícola sofisticado floresceu em Adena.
Neste sítio, os vários montes abrigavam tumbas onde
pessoas de destaque eram sepultadas juntamente com
“braceletes e contas de cobre, tábuas de pedra e cola-
res, tecidos e sovelas, e às vezes, tubos de pedra em
forma de animais surreais” (MANN, 2007, p. 273). Tais
vestígios permitem deduzir que havia hierarquização e
especialização funcional elaboradas, além da crença na
Figura 04. Foto atual do Monte do Monge. Disponível em: <http://
vida após a morte. Dezenas de povoados (com seus pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADtio_Hist%C3%B3rico_Estadual_dos_
montes) surgiram no vale do Ohio influenciados pelo Cahokia_Mounds. Acesso em 30 de maio de 2011.
estilo cultural de Adena, entre 800 e 100 a.C.
A posterior cultura indígena conhecida como hopewell A estratificação social atingiu um alto nível em
provavelmente esteve ligada à tradição cultural dos Cahokia, com o Estado baseado em sua influência
adena, pois construíram montes de terra semelhantes. religiosa apoderando-se dos excedentes camponeses
Espalhada pelo território atual dos EUA, a religiosidade via tributo. A base alimentar que proporcionou a ex-
hopewell atingiu elevada sofisticação, destacando-se pansão populacional necessária para a execução de
os impressionantes registros da “riqueza material e grandes obras públicas veio da adoção do milho índio
ritualística com que eram enterrados os indivíduos mais pelos povos da região. Os excedentes extraídos pelas
importantes daquelas sociedades sob os montes de elites, via tributo, sustentou sua riqueza, que pode ser
terra que serviam como tumbas” (JUNQUEIRA, 2010a, vislumbrada através dos sepultamentos nos montes do
p. 63). Há evidências de intercâmbios materiais entre os centro cerimonial cahokiano, com integrantes da elite
povoados hopewell, que vicejavam nos quatro primeiros enterrados com diversos objetos e centenas de jovens
séculos d.C. serviçais (MANN, 2007).
Cahokia declinou e foi abandonada nos séculos XIII e monumentos e montes, era circundado por diversos
XIV, provavelmente pela ocorrência de desastres naturais, povoados agrícolas tributários.
como as enchentes (que varreram o centro da povoação, Por volta de 900 a.C., San Lorenzo declinou num
a partir do manejo destrutivo das margens e cursos dos processo violento em que o sítio foi abandonado e os
rios visando à agricultura e ao desenvolvimento das obras monumentos destruídos, sem que se saiba exatamente
públicas) e um grande terremoto. Processos semelhan- as causas (revoltas internas ou ataques externos). Não
tes aparentemente se abateram sobre outros centros obstante, a cultura olmeca continuou se desenvolvendo
cerimoniais às margens do Mississipi, que declinaram em outros centros, como o de La Venta, ainda maior do
sob a pressão das intempéries climáticas, agravadas que San Lorenzo. À época do seu apogeu (entre 1.100 a
pelas alterações na paisagem provocadas pelo homem 600 a.C.), La Venta constituiu uma grande comunidade,
em sua expansão agrícola e urbana. com seu núcleo cerimonial (onde duas grandes pirâmi-
Após esta era de instabilidade, do Mississipi à costa des de terra dominavam a paisagem) assentado sobre
Leste os indígenas continuaram a plantar crescente- uma ilha pantanosa circundado por um anel residencial
mente o milho índio, porém não mais erigiram centros de povoados agrícolas tributários, somando quase 20 mil
cerimoniais, adaptando-se aos limites ambientais com pessoas. Além de La Venta, centros cerimoniais olmecas
práticas mais sustentáveis: como Trez Zapotes e Cerro de las Mesas declinaram na
segunda metade do I milênio a.C., época em que outros
Em poucos séculos, os índios da floresta oriental reconfigu-
povos mesoamericanos despontaram entre as civiliza-
raram grande parte da paisagem, transformando-a, de col- ções que experimentavam o proto-urbanismo.
cha de retalhos de terrenos de caça, numa mescla de terras
cultivadas e pomares. Uma parte suficiente da floresta foi
preservada para permitir a caça, mas a agricultura era uma
presença crescente. O resultado foi a criação de um novo
“equilíbrio da natureza” (MANN, 2007, p. 283).
a arquitetura monumental piramidal dos templos, o jogo Entre os povos que se desenvolveram rumo à urba-
ritual com bolas de borracha e o culto ao jaguar (bastante nização está o dos Zapotecas, habitantes do Vale Central
difundido na religiosidade pré-colombiana). A influência de Oaxaca (México). Um dos centros zapotecas, Monte
olmeca foi alimentada pelos intercâmbios comerciais e Albán, ocupava um terraço montanhoso nivelado de
por sua religiosidade, atingindo comunidades distantes 22 hectares, com seus templos, palácios, anfiteatros e
geograficamente. outras edificações, atingindo talvez setenta mil pessoas
Porém, mesmo que desfrutassem de uma hegemonia em seu apogeu. Monte Albán foi sede de um Estado
cultural inicial, os Olmecas não estiveram sozinhos na expansionista que dominou inúmeros outros povoados e
tarefa de criar a civilização na Mesoamérica, pois outros centros em uma área de 25 mil quilômetros quadrados.
povos organizados logo emergiram ao longo do I milênio O poderio zapoteca coexistiu com as demais entidades
a.C., incrementando as trocas mercantis e culturais, esta- políticas de destaque na Mesoamérica do I milênio d.C.,
belecendo a reciprocidade do processo. Como evidência como os centros Maias a leste, os centros cerimoniais da
da diversidade cultural mesoamenricana, uma dúzia de cultura totonaca (situados em Vera Cruz), e Teotihuacán
diferentes sistemas de registro escrito surgiu na região. ao norte (JUNQUEIRA, 2010a).
Figura 06. Mapa da Mesoamérica (adaptado). Disponível em: <http://www.famsi.org/spanish/maps/index.html>. Acesso em 30 de maio de 2011.
As sociedades que sustentavam estas diversas e posteriores. Por exemplo, a língua teotihuacana, o
cidades-Estado vivenciaram uma era de instabilidade nahuat, era uma forma arcaica do náhuatl, língua dos
entre os séculos VII e X que pôs fim ao mundo clássico toltecas e mexicas. Já no campo religioso, parte signi-
mesoamericano. No caso dos Zapotecas, sua ruína ficativa do panteão divino mesoamericano do período
ocorreu entre 800 e 950 d.C., nos embates frente aos pós-clássico foi consolidado em Teotihuacán: “Tlaloc e
Mixtecas, que dominaram a região de Oaxaca. Chalchiuhtlicue, Senhor e Senhora das Águas; Quetzal-
Dentre as cidades propriamente ditas surgidas na cóatl, a Serpente Emplumada; Xiuhtecuhtli, Senhor do
Mesoamérica até a ascensão mexica, a primazia coube Fogo; Xochipilli, Príncipe das Flores” (LÉON-PORTILLA,
a Teotihuacán, centro sem rival em grandiosidade à 2004, p. 30).
época na região, localizado no Vale do Planalto Central Oriundos das margens setentrionais dos domínios
mexicano. Urbanizada inicialmente por volta de 100 teotihuacanos, na segunda metade do século IX, os
d.C., Teotihuacán foi metrópole teocrática – a “Cidade Toltecas ocuparam o planalto central mexicano após o
dos Deuses” – e sede de um poderoso Estado. Em seu declínio de Teotihuacán e fundaram a Tula, sua capital,
apogeu (nos séculos V e VI, quando era a sexta maior ao norte das suas ruínas. Tiveram como personagem
cidade do mundo), abrigava entre 85 e 200 mil habitan- central de sua história um rei-sacerdote chamado Topilt-
tes. A monumentalidade dos seus principais templos, as zin Quetzalcóatl, que encarnava a divindade teotihuacana
pirâmides do Sol e da Lua, impressiona: 63 e 43m de da Serpente Emplumada. Sob seu reinado, os Toltecas
altura, respectivamente (Figura 07). desfrutavam de enorme influência por toda a Mesoamé-
rica, sendo Tula o centro de um império que dominava
diversas cidades tributárias e controlava importantes
rotas comerciais. Em fins do I milênio d.C., disputas
políticas forçaram a saída de Quetzalcóatl do trono de
Tula (e alimentaram lendas do seu retorno mítico):
SUGESTÃO DE ATIVIDADE
INDICAÇÃO DE LEITURA
AS ALTAS CULTURAS
PRÉ-COLOMBIANAS
CAPÍTULO 2
EaD
EaD UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE DO
DO ESTADO
ESTADO DA
DA BAHIA
BAHIA
Anotações
A civilização Maia
[..] as mensurações científicas, principalmente de pólem em jaguar e posteriormente Quetzalcóatl. Um vasto panteão
sedimentos lacustres, mostraram que os Maias de fato der- divino era cultuado e cada comunidade possuía seus
rubaram grande parte das floresta da região, usando a ma- protetores. A religiosidade também estava presente no
deira como combustível e a terra para a agricultura. A perda
sistema de três calendários interligados, que aliavam
de cobertura arbórea teria causado erosão e enchentes em
a contagem linear do tempo com a cíclica. O mais im-
grande escala. Com seus campos desaparecendo sob seus
portante em termos culturais era o tzolk’in, de caráter
pés e uma população crescente para alimentar, os cultiva-
dores Maias foram obrigados a explorar áreas cada vez
religioso, formado por seções de 13 “meses” de 20
maiores de terrenos marginais, cada vez com mais intensi-
dias, totalizando 260 dias em cada ciclo. Para fins “lai-
dade. Vacilante, o sistema ficou numa posição vulnerável ao cos”, os Maias possuíam o haab, semelhante ao nosso
primeiro bom empurrão, o qual veio na forma de uma seca de calendário, baseado no ciclo solar de 365 dias, com 18
um século, que acometeu Yucatán entre cerca de 800 e 900 “meses” de 20 dias cada e um “mês” de cinco dias.
d.C. A desintegração social veio logo em seguida (MANN, Os calendários se encontravam exatamente a cada 52
2007, p. 263). anos, formando o que hoje se chama de a Volta do Ca-
lendário, e cada um dos 18.980 dias deste período tinha
Envolvidos em guerras e disputas dinásticas, os uma identificação única. Para contabilizar a passagem
governantes Maias da zona central foram incapazes dos ciclos foi criada a Contagem Longa, que tem como
de dar respostas à altura dos desafios impostos pela ponto de partida o ano de 3114 a.C., segundo o atual
natureza, fazendo com que o ambiente artificial criado calendário ocidental (JUNQUEIRA, 2010a).
por seus povos entrasse em colapso, eclipsando seu Para desenvolver seus calendários, os Maias com-
poderio. As estelas que gravavam os feitos dinásticos binaram sofisticados conhecimentos matemáticos e
gradualmente deixaram de ser confeccionadas, sendo astronômicos, sendo um dos primeiros povos a conceber
a última de 909 d.C. o “zero” e um símbolo para denotá-lo (uma espécie de
No período pós-clássico, o eixo cultural Maia pas- concha virada para baixo).
sou a florescer mais ao norte de Yucatán, porém sem Na arquitetura, essencialmente religiosa, destacava-
o esplendor dos tempos clássicos, sofrendo crescente -se a pirâmide como construção preponderante, marca
influência dos povos militaristas do vale mexicano, como dos povos mesoamericanos. Os grandes edifícios pú-
dos Toltecas. Centros como Uxmal, Mayapán e Chichén- blicos eram construídos com pesados blocos de rocha
-Itzá formaram uma liga política e experimentaram forte transportados sobre toras, alguns vindos de muitos
crescimento urbano, muitas vezes sob influência da quilômetros de distância. Uma característica dos cen-
arquitetura tolteca. Foi nesta conjuntura de abandono tros Maias era a amplitude dos espaços abertos entre
dos antigos núcleos urbanos da zona central e expan- as construções, sem a existência de traçados de ruas
são dos situados ao norte de Yucatán que os espanhóis como nossas cidades atuais. Praças, mercados (tiangui)
encontraram a zona Maia, à época da conquista. e campos para a prática de esportes ritualísticos com a
A estrutura política básica do mundo Maia era as bola de borracha compunham a paisagem urbana Maia.
cidades-Estado, chefiadas por reis legitimados pela Redes de canais, aquedutos e reservatórios abasteciam
descendência de antepassados poderosos deificados. os centros e impulsionavam a agricultura.
Controlavam o poder em estreita ligação com a religião, Nas artes, a sofisticada cerâmica tinha papel de des-
que era o cerne da vida cultural Maia. A nobreza e os taque, principalmente a relativa à religião. Alto-relevos
sacerdotes habitavam os palácios e templos dos centros. decoravam as construções e estelas, que registravam
Formavam um estrato intermediário comerciantes, guer- cenas dinásticas, religiosas, belicosas, bem como as da-
reiros, artesãos e funcionários estatais, que viviam no tas e hieróglifos da escrita (parcialmente decifrada pelos
entorno do núcleo político-sacerdotal. Os camponeses, pesquisadores), formada por cerca de 1.000 diferentes
base da pirâmide social, residiam nas comunidades tri- glifos silábicos que reproduziam a língua falada, tal qual
butárias periféricas. Prisioneiros de guerra escravizados as línguas ocidentais.
completavam o quadro social dos centros Maias.
A religiosidade Maia foi influenciada pelas tradições
olmeca e de Teotihuacán, absorvendo deuses como o
Figura 09. Mapa de México-Tenochtitlán, de autoria de Hernán Cortez. Disponível em: <http://www.delange.org/TemMayor2/TemMayor2.htm>. Acesso
em 30 de maio de 2011.
A Civilização Mexica
SAIBA MAIS
Após a derrocada de Tula (século XII), abriu-se um
Os calendários Maias são a prova de que os povos mesoamericanos período de instabilidade pelas terras da Mesoamérica
atingiram elevado grau de conhecimentos matemáticos e astronômicos. pela pressão da migração de levas chichimecas (“bár-
Sobre a complexa junção entre os três calendários Maias e seus baros”) vindas do norte e constantes guerras entre as
significados, sugerimos a leitura da obra 1491, de Charles Mann
(indicada ao final do Capítulo). Porém, para iniciar sua pesquisa, acesse
diversas cidades-Estado. Foi neste estado de coisas que
o endereço abaixo e tome um primeiro contato com a genialidade dos os Mexicas (chamados equivocadamente de Astecas)
mesoamericanos: http://pt.wikipedia.org/wiki/Calend%C3%A1rio_Maia irromperam pelo Vale mexicano.
Dúvidas pairam sobre as origens dos Mexicas. alianças, confederações, relações tributárias, implican-
Aparentemente vieram da zona marginal setentrional da do povos numerosos, heterogêneos e imperfeitamente
Mesoamérica habitada pelos povos chichimecas, mas submetidos” (CARDOSO, 1996, p. 77).
tinham ligações com teotihuacanos e/ou Toltecas, pois O domínio tributário mexicano no início do século XVI
falavam como os últimos o náhuatl, originado a partir estendia-se por 38 “províncias”, com os funcionários
do nahuat de Teotihuacán. Textos mexicas afirmavam: mexicas – os calpixques – encarregados do registro
“Estamos retornando do norte, estamos voltando para e transporte dos tributos trabalhando em cada cidade.
o lugar onde vivíamos” (LEÓN-PORTILLA, 2004, p. 36). Ao todo, havia quase quinhentas cidades tributárias de
Inicialmente vivendo como vassalos (macehualtin – Tenochtitlán à época. Para descrever como seria um
plebeus) dos tlatoque (governantes) e pipiltin (nobres) desses centros, veja-se o relato de Hernan Cortés em
de Aztlan Chicomoztoc, os Mexicas migraram rumo 1519 sobre Iztacmastitán:
ao sul nos séculos XI e XII liderados pelo sacerdote
Huitzilopochtli, que foi deificado. Após contatos pací- Os domínios deste povoado se estendem por três ou qua-
ficos e belicosos com outros povos e passagens por tro léguas de casa ao lado de casa, planícies de um vale,
Coatepec e Tula, os Mexicas (contando cerca de 10 mil margeando um rio. Em um monte alto está a casa do senhor,
pessoas à época) conseguiram fixar-se apenas em ilhas com uma fortaleza que se equipara às melhores da Espanha,
pantanosas a oeste do lago Texcoco, onde, conforme a cercada de muros, barbaça e covas. Nas cercanias há uma
tradição, fundaram seu centro – Tenochtitlán – em 1325 população de cinco ou seis mil pessoas, que habita boas ca-
(SOUSTELLE, 1997). Dois séculos depois, o povoado sas, parecendo ser gente mais rica que a do vale abaixo. Aqui
iniciado com choupanas de bambu se transformou em também fui bem recebido e o senhor me disse que também
uma metrópole de centenas de milhares de pessoas, era vassalo de Montezuma (CORTEZ, 1986, p. 32).
“plenamente urbanizada, com canais, praças, merca-
dos, templos, pirâmides, palácios, lojas e residências, No campo cultural, os Mexicas sofreram influências
estendendo-se pelas margens circunvizinhas com as dos povos mesoamericanos com que entraram em con-
quais se comunicava por estradas e pontes” (JUNQUEI- tato, mesclando suas próprias tradições com as novas
RA, 2010a, p. 83-84). contribuições recebidas. O náhuatl, sua língua herdada
Após fundarem Tenochtitlán, os Mexicas iniciaram sua dos teotihuacanos, era um idioma rico e versátil, possuin-
dinastia em 1375, porém como vassalos do senhorio de do os Mexicas uma escrita pictográfica que demonstra o
Azcapotzalco até 1434. Neste ano, seu quarto soberano, valor estético da sua literatura. A religião é outro exemplo
Itzcoatl, auxiliado pelo hábil cihuacoatl Tlacaélel, aliou-se do cadinho cultural em que os Mexicas viviam, com seus
a Nezaualcoycotl (rei de Texcoco) para derrotar Azca- deuses tribais guerreiros e astrais convivendo com os
potzalco. Sabiamente, os dois soberanos vencedores deuses dos povos agrícolas:
tomaram como aliada uma cidade pertencente à tribo
de Azcapotzalco, Tlacopan, fundando a “Tríplice Aliança” [...] o grande Templo de Tenochtitlán era encimado por dois
(SOUSTELLE, 1997). santuários: o de Huitzilopochtli, vermelho e branco, e o de
Cedo Tenochtitlán emergiu como centro militar he- Tlaloc, azul e branco. Desse modo, a religião astral dos guer-
gemônico dentro da Aliança, subordinando as aliadas à reiros e a religião agrária dos povos sedentários fundiam-se
sua política belicosa. Sob sua liderança, uma série de por assim dizer, reconciliadas na síntese asteca (SOUSTELLE,
1997, p. 70).
conquistas subjugou centenas de cidades ao pagamento
de tributo. Porém, tal domínio tinha mais um cunho eco-
nômico-militar do que político, pois Tenochtitlán exigia o Completava o quadro de “conciliação religiosa” a
pagamento de tributos em produtos e serviço militares, adoção de Quetzalcóatl – a serpente emplumada de
ao passo que a maior parte das cidades conquistadas Teotihuacán – com nova roupagem astral (Vênus),
mantivesse governo próprio, desde que submisso à representando, ao lado de Xolotl (deus cão), a morte e
hegemonia mexica. Assim, devido à relativa autonomia a ressurreição.
política das cidades conquistadas e às revoltas diversas Os Mexicas possuíam calendários cíclicos nos
que ocorriam, o domínio mexica não pode ser descrito mesmos moldes dos Maias, porém adaptados à sua
como “império”, pois era: “na verdade um mosaico de
cosmogonia. Ao final dos ciclos de 52 anos realiza- Completavam o tecido social de Tenochtitlán as
vam a cerimônia do Grande Fogo, impedindo que seu categorias especializadas dos comerciantes pochtecas
mundo fosse destruído pelos deuses pela quinta vez. (ligados ao comércio exterior) e dos artesãos. Estes
Igualmente era exigido, para a sobrevivência do mundo grupos formavam corporações e organizações específi-
onde viviam, manter irrigadas as engrenagens do uni- cas, com seus próprios bairros na cidade, mas pagavam
verso, satisfazendo o Sol, a Terra e as divindades com impostos – somente a nobreza estava isenta.
o chalchíhuatl – fluido da energia vital, ou seja, sangue A estrutura fundiária era um espelho da sociedade
humano –, derivado de incontáveis sacrifícios em seus mexica. Existiam três formas gerais de propriedade de
templos e espaços sagrados. Prisioneiros de guerra terra: a comunal, pertencente ao calpulli (subdividida
tinham seu coração arrancado do peito e ofertado, ainda entre os lotes individuais e terras comuns); a dos nobres,
batendo, ao Sol. As exigências divinas faziam com que (alienável entre eles e transmissível por herança); e as
os Mexicas fizessem guerras e torneios para a captura pertencentes ao Estado (para manutenção da realeza,
de prisioneiros. dos templos e do governo civil e militar).
No campo das artes, destacam-se a escultura O Estado mexica era complexo e refletia (bem como
em pedra, os baixo-relevos, os mosaicos de pedra, a moldava) a estrutura social. O poderio da realeza era
cerâmica com decoração sofisticada e a metalurgia apoiado religiosamente, mas o governo não era teo-
(principalmente do ouro e da prata) que admirou os crático (SOUSTELLE, 1997). Sua legitimidade advinha
espanhóis. Porém, a metalurgia, como na maioria dos das narrativas “tradicionais”, das funções sociais que
povos pré-colombianos, era ornamental, não possuindo exercia e do fator coercitivo. As elites cortesã (pipiltin) e
aplicação prática – a agricultura, por exemplo, permane- funcional (tecuhlti) ocupavam os altos cargos (militares,
ceu em estado lítico (JUNQUEIRA, 2010a). judiciários, administrativos e sacerdotais) e integravam
Os Mexicas constituíram uma sociedade extremamen- o Grande Conselho que elegia os governantes:
te hierarquizada e complexa, comandada por um Estado
com aparato administrativo e judiciário desenvolvido. Entre os mexica, um conselho de anciãos do clã escolhia
Os quadros estatais eram formados no calmecac, e o o governante geral. Ou melhor, os governantes gerais - os
colégio superior era frequentado pela nobreza. A vida dos mexica dividiam a autoridade entre um [huey] tlatoani (literal-
diversos grupos sociais diferia amplamente entre si. O mente, “orador”), um comandante diplomático e militar que
ápice da pirâmide social era formado por uma nobreza controlava as relações com outros grupos, e um cihuacoatl
crescentemente hereditária (pipiltin), encabeçada pela (literalmente, “serpente fêmea”), que supervisionava os as-
família real (tlazo-pipiltin, ou “nobres ilustres”). suntos internos (MANN, 2007, p. 126).
A base plebeia era formada pelos camponeses
macehualtin, per tencentes aos seus calpulli: uma A escolha do huey tlatoani se dava entre os tlazo-
“comunidade residencial com direitos comuns sobre a -pipiltin, integrantes da família real, sendo eleitos, na
terra e uma organização interna de tipo administrativo, maior parte das vezes, um filho, irmão ou sobrinho do
judiciário, militar e fiscal” (CARDOSO, 1996, p. 77). Os huey tlatoani falecido. Os governantes comandavam
macehualtin cultivavam o lote de terra designado (pelo uma rede de administradores fiscais que trabalhavam
chefe do calpulli) e pagavam tributos, além da prestação tanto internamente como pelas diversas províncias (ou
de serviço militar (que poderia representar uma via de cidades-Estado subjugadas). O tributo sustentava o luxo
ascensão social, caso se destacassem nas guerras). Por da elite de Tenochtitlán e o funcionamento do Estado.
seus serviços prestados ao Estado na guerra, no culto A agricultura era a base da produção da riqueza,
ou na administração, uma minoria entre os macehualtin destacando-se o milho índio entre os cultivos. No lago
atingia o status de tecuhtli, ou dignitário, formando Texcoco cultivava-se sobre pequenas ilhas artificiais,
uma nobreza de serviço que detinha alguns privilégios. as chinampas, constituídas por estruturas de juncos,
Abaixo dos macehualtin estavam os tlatlacotin (“escra- árvores e pelo fértil lodo pantanoso onde, além do milho,
vos”), prisioneiros de guerra, condenados pela justiça plantava-se o feijão, o tomate e a pimenta. A alimentação
ou endividados. incluía ainda o peru e uma espécie de cão sem pêlo como
espécies domesticadas, bem como a caça e a pesca. A
SAIBA MAIS
A Civilização Inca
disputavam as benesses da máquina estatal, agravando era a célula produtiva, constituída pelos pais e filhos
o quadro belicoso: solteiros. O casamento marcava a entrada do casal na
vida adulta, formando uma nova família que recebia o
Como exigiam dos povos conquistados a prestação de
usufruto de um lote para cultivar, e a partir de então o
serviço militar, diversos chefes guerreiros incentivavam a homem estaria sujeito à prestação de trabalho (a mita).
realização de campanhas militares que lhes davam prestígio O território produtivo da comunidade (marka) era
e cargos dentro da hierarquia militar e social, o mesmo ocor- dividido entre a agricultura e o pastoreio. Nas terras
rendo com a nobreza de Cuzco. Assim, a guerra configurava- destinadas ao pastoreio, de usufruto coletivo, cada
se como indispensável para a coesão do império. (JUNQUE- família criava suas lhamas e alpacas (que proviam lã,
IRA, 2010a, p. 116) carne e leite). Já as terras agrícolas, onde se cultivava
principalmente tubérculos, eram partilhadas pelo chefe
No reinado de Wayna Kapaq, filho de T. Yupanki, as do ayllu, o kuraka, em lotes familiares a cada ciclo agrí-
consequências da rápida expansão imperial e da política cola, dependendo do número de famílias existentes. O
guerreira se fizeram sentir. As fronteiras haviam sido kuraka, considerado o protetor da comunidade, tinha seu
demasiadamente alargadas e um mosaico de povos, poder respaldado pela divindade tutelar do ayllu, a wak’a.
nelas contido, pressionava as estruturas administrativas Os membros de cada ayllu possuíam laços de solida-
e a diplomacia. Ao menor vacilo do soberano, como riedade entre si, auxiliando-se mutuamente na ocasião
as derrotas orientais de Yupanki nos limites da floresta da semeadura e da colheita (ayni). Viúvas, doentes ou
amazônica, rebeliões e intrigas palacianas colocavam idosos tinham seus campos cultivados por todos os
em xeque o poder do imperador e a unidade imperial homens, assim como os recém-casados tinham a casa
em formação. Bom exemplo foram as derrotas de construída pelo conjunto da comunidade. Os órfãos
Wayna Kapaq frente às ferozes etnias setentrionais, que ficavam sobre os cuidados do kuraka. Este recebia
ruíram a credibilidade do projeto expansionista imperial, a prestação de trabalho (mita) em rodízio de todos os
desencadeando insurreições autonomistas ao desnudar homens do ayllu no pastoreio ou no cultivo de seus
os limites do militarismo Incaico. campos e dos destinados à manutenção da wak’a. As-
Para tentar manter as frágeis fronteiras do norte, sim, o kuraka tinha ao seu dispor uma força de trabalho
Kapaq transferiu a sede do poder político para a região, contínua, utilizada também na tecelagem e no serviço
construindo Tumipampa, novo centro administrativo do doméstico em sua casa. Os mitaios eram sustentados
império. Tal medida desagradou à elite cuzquenha, que pelo kuraka, enquanto durasse o trabalho.
assistiu à transferência do núcleo de poder imperial para Os excedentes produtivos gerados pela mita garan-
longe de seu alcance, fomentando intrigas. tiam estoques à comunidade em caso de más colheitas
Kapaq faleceu por volta de 1528, vítima da epidemia (além do sustento dos incapazes), pois havia a tradição
de varíola que varreu os Andes mesmo antes da che- de reciprocidade em que o chefe redistribuía (de forma
gada espanhola, matando mais de 200 mil pessoas em assimétrica, é verdade) parte do que fosse gerado pelo
poucos anos. Além do imperador, morreram parte da trabalho coletivo. Famílias privilegiadas (kapa), mais pró-
corte e dos principais generais do império, bem como ximas do kuraka, eram beneficiadas na redistribuição, fo-
seu filho preferido para a sucessão, fazendo fervilhar mentando diferenciações sociais no seio comunitário. Os
uma disputa sucessória que envolvia dois outros filhos kapas tinham modos de vida distintos dos camponeses
de Kapaq: Ataw Wallpa e Waskarr. Ataw Wallpa tinha ao comuns (puriq) e dos papamikuqs – pobres “comedores
seu lado o poderoso exército situado ao redor de Quito. Já de batata”. Os waqchas, que não tinham mais condições
Waskarr dispunha do apoio das etnias do sul e dos Incas de se sustentar, ficavam dependentes do kuraka.
descontentes com a transferência da capital. Quando os Esse modelo produtivo e de sociabilidade era re-
espanhóis chegaram a Tumbes (1532), a guerra civil cor- produzido em termos regionais, com hierarquias entre
roía a ordem imperial, facilitando a conquista europeia. os kurakas que formavam confederações ou “reinos”,
O cerne da vida socioeconômica dos povos andinos sediados nos centros maiores. Havia o mesmo sentido de
era o ayllu, comunidade formada por famílias vinculadas prestações e reciprocidade entre os kuraka, com chefes
por parentesco, de tendências endogâmicas. A família e divindades regionais dos grandes centros explorando o
trabalho de diversas aldeias, inclusive fundando colônias partir dos registros nos quipus (cordas com nós) reali-
nos diversos ecossistemas dos Andes (MURRA, 2004), zados pelos tipukamayoqs. Assim, o Estado controlava
diversificando a produção alimentar. o contingente de trabalhadores destinados ao cultivo e
Essa estrutura piramidal hierárquica entre os ayllus e pastoreio em suas terras, bem como às obras públicas
kurakas foi adotada pelo império Inca (a maior estrutura e ao serviço militar.
política do mundo pré-colombiano, que controlava cerca Desde Pachakuti toda a terra era propriedade do
de um milhão de quilômetros quadrados em seu apogeu), Estado, obrigando a população a trabalhar para pagar
sendo a expressão máxima desta forma tradicional de pela utilização do solo. Em contrapartida, havia ao nível
poder: imperial a reciprocidade vislumbrada localmente nos
ayllus, com a redistribuição desigual dos excedentes em
O império Inca era somente uma espécie de enorme confed-
favor da etnia Incaica, inserida na máquina do Estado.
eração de confederações, organizando em escala nunca vista Contudo, no início do século XVI a burocracia começou
nos Andes tais operações e exigindo trabalho nas terras do a receber elementos de outras etnias, assim como a
Inca e do Sol, espécies de super-kuraka e super-waka, mas própria etnia Inca foi-se diluindo em meio às populações
fiéis ao padrão usual. (CARDOSO, 1996, p. 101) próximas. Chefes regionais ganharam cargos a partir de
Wayna Kapaq (FRAVE, 1998).
Não obstante, as mutações sociopolíticas difundidas A ação transformadora do Estado frente às práticas
pela constituição do Estado Incaico não podem ser des- tradicionais se deu também pela expansão da servidão
prezadas. A começar pelo seu centro político: o impera- nos Andes. Os mitmaq eram colonos transferidos aos
dor. O Inca (termo se refere mais precisamente ao impe- milhares para regiões distantes do império como punição
rador e seus parentes do que ao povo de Cuzco como contra rebeliões, tendo que conviver em meio a povos
um todo), quando assumia o trono, se apresentava como locais hostis. Recebiam novas terras e pastagens, porém
“órfão e pobre”, ou seja, um waqcha, renegando seus carregavam pesadas obrigações para com o Estado.
pais, a fim de formar seu próprio domínio e linhagem. Outra categoria servil era a dos yana (ou “dependentes
Deste modo, cada reinado formava uma nova linhagem perpétuos”), servos ligados exclusivamente ao imperador
imperial (panaka) que recebia a herança do soberano e ou a pessoas por ele presenteadas para servi-los. Havia
cultivava sua memória, conservando sua múmia. Assim, ainda uma terceira categoria com status específico: a
em 1533 os espanhóis encontraram em Cuzco as onze aqlla. Era formada por moças muito jovens, encerradas
linhagens dos imperadores que governaram o império nos monastérios do Sol (onde eram educadas) e, após a
(FRAVE, 1998). puberdade, algumas serviam como esposas acessórias
A sucessão real gerava disputas entre as panakas que do imperador ou eram dadas a outros pelo mesmo. A
apoiavam seus pretendentes ao trono: filhos, irmãos e maioria, contudo, continuava vivendo nos monastérios,
sobrinhos do imperador, todos lutavam para alcançar servindo ao culto solar, além trabalhar na fiação e te-
a franja escarlate – maskapaicha, o emblema imperial. celagem da lã resultante dos rebanhos do Sol. Aqlla,
Vencida a disputa o felizardo tornava-se Inca – “Filho do mitmaq e yana formavam uma força de trabalho a serviço
Deus Sol”. A deificação do imperador, iniciada com Way- permanente do Estado, contribuindo para a estratificação
na Kapaq, legitimava seu poder supremo e teocrático, da sociedade Incaica:
fundindo em sua figura os poderes de kuraka e wak’a.
Para governar, o imperador tinha o auxílio de um A ordem social que o Estado tendia a desenvolver manifes-
conselho formado por quatro membros – os apu – cada tava claramente seu caráter estratificado ao redor de Cuzco,
um responsável por uma das quatro seções do império onde a etnia Inca se erigia em classe ociosa, graças aos nu-
merosos dependentes que satisfaziam suas necessidades.
(Tawantinsuyu ou “quatro terras”). Subordinados aos
[...] Era apenas questão de tempo a transformação de um
apu, os governadores provinciais – tukriquq – residiam
Império tradicional em um grande Estado moderno (FRAVE,
nos centros principais de cada província em contato
1998, p. 50).
com as chefias locais. Um sistema censitário decimal
contabilizava os homens de cada província sujeitos à
prestação da mita em proveito do Estado/imperador, a No campo religioso, como era comum entre os povos
andinos, os Incas tinham por costume adorar grutas ou
montanhas, santuários das wak’a. Quando dominavam Nas artes e técnicas, os Incas sintetizaram as contri-
novos povos, os Incas respeitavam suas divindades, buições dos povos andinos predecessores na cerâmica,
mas também impunham o culto ao deus Sol – Inti – num pintura, escultura, metalurgia e tecelagem. A tecnologia
esforço de característica andina se baseava nas fibras em lugar
integrar a infinidade de diferentes grupos existentes na parte dos metais e madeiras para seus engenhos, como nos
ocidental da América do Sul - alguns tão ricos quanto os barcos tecidos com junco e nas pontes suspensas entre
próprios inka, alguns pobres e desorganizados, todos falando os despenhadeiros das Cordilheiras. A tecelagem tam-
línguas diferentes - numa mesma estrutura burocrática sob bém proporcionava os registros contábeis dos quipus,
controle direto do imperador. A unidade não seria meramente que alguns pesquisadores defendem serem registros
política: os inka queriam amalgamar as religiões, a economia escritos, e não só matemáticos.
e as artes da região (MANN, 2007, p. 70).
Anotações
ENCONTRO
ENTRE MUNDOS:
A CONQUISTA DA
AMÉRICA
CAPÍTULO 3
EaD
EaD UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE DO
DO ESTADO
ESTADO DA
DA BAHIA
BAHIA
Anotações
Até o início do século XVI, sociedades complexas em contextualização das personagens envolvidas em meio
ambas as margens do oceano Atlântico se ignoravam ao ambiente geral europeu, que problematiza a “excep-
mutuamente. A empreitada de Cristóvão Colombo, em cionalidade” das mesmas. Caso interessante é o de
1492, reconectou para sempre mundos separados há Colombo, que pode ser vislumbrado com um dos muitos
dezenas de milhares de anos. A expansão ultramarina navegadores e estudiosos de astronomia, cartografia
europeia, na qual as viagens de Colombo se enquadram, e navegação, que a serviço dos empórios comerciais
fomentou os intercâmbios intercontinentais que em sua italianos, dos potentados ibéricos, flamengos, franceses
fase atual recebem o nome de globalização (GRUZINSKI, ou ingleses, expandiram os horizontes do conhecimento
1999). Este processo histórico decisivo foi fruto da teórico e prático sobre rotas marítimas e novas terras.
conjuntura vivenciada pelos europeus da Renascença. Italianos, hispânicos e portugueses, somados aos nave-
gadores oriundos das terras mais ao norte, trafegavam
A Europa da Expansão Ultramarina (navegavam, em verdade) entre as fluidas fronteiras dos
futuros Estados europeus. O que leva a duas reflexões
A era dos “descobrimentos” teve suas origens em contraditórias e interligadas: a expansão como um pro-
um longo processo de expansão da atividade mercantil cesso europeu, e não somente Português e Espanhol,
na Europa (iniciado com as Cruzadas), somente inter- e a necessidade da existência prévia de um Estado de
rompido pelo período de crise do século XIV, devido às contornos nacionais para a concretização dos impulsos
guerras, rebeliões camponesas e à peste. Não obstante, expansionistas.
tal crise compensou seus efeitos negativos imediatos A dependência frente aos entrepostos italianos para o
sobre a vida socioeconômica com a aceleração do pro- fornecimento das especiarias impelia os ibéricos a bus-
cesso de declínio das relações servis e ascensão das car rotas alternativas para o acesso direto ao comércio
práticas capitalistas, bem como da configuração dos do Oriente. Para tanto, foi necessário um processo de
estados nacionais inglês e francês em vias de formação. centralização política que culminou com a formação de
Logo o renascimento urbano e comercial retomou sua seus Estados nacionais, pois a expansão marítima era
trajetória ascendente. um projeto complexo e caro demais que exigia uma
Desde a Baixa Idade Média se configuravam os coordenação de esforços que somente o Estado podia
circuitos comerciais que interligavam os entrepostos efetivar.
do Mediterrâneo oriental (com seus produtos vindos Não é por acaso que o pioneiro das navegações,
de diversas partes da África e Ásia) às cidades da pe- Portugal, foi o primeiro Estado nacional moderno, con-
nínsula itálica, como Gênova, Florença e Veneza. Tais solidado a partir da Revolução de Avis (1383-1385).
pólos mercantis, por sua vez, estavam em crescente Monarquia, nobreza e burguesia se envolveram no
conexão com os núcleos urbanos ibéricos (Barcelona, projeto expansionista lusitano.
Valência, Sevilha, Madri, Bilbao, Lisboa e Porto), ingle- A partir da conquista de Ceuta (1415), no extremo
ses (destacando-se Londres e Bristol), franceses (Paris, noroeste da África, os portugueses seguiram em direção
Marselha), flamengos (como Antuérpia) e germânicos ao sul da costa, estabelecendo feitorias e intercâmbios
(cidades da Liga Hanseática), exercendo a função de com os reinos africanos. Processo que culminou com
grandes intermediários no fornecimento das especiarias a famosa Viagem de Vasco da Gama à Índia, em 1497-
orientais. 1499 (SARAIVA, 1999). Portugal, demasiado ocupado
A agitada vida econômica urbana fomentava a difu- com seu projeto de expansão africana e asiática pelo sul,
são, ao longo do século XV, do pensamento humanista pouca atenção deu às ideias de navegação pelo oeste
e do renascimento artístico e cultural vinculados aos daquele navegador genovês. Não obstante, Colombo
escritos da antiguidade Greco-Romana. Pessoas (com navegou sob bandeira portuguesa na África e ilhas
suas ideias) e mercadorias circulavam pelas trilhas ter- atlânticas, incorporando os conhecimentos náuticos
restres ou a bordo das embarcações entre os núcleos lusitanos. Foi tentar a sorte na Espanha em meio ao
urbanos europeus. ambiente conturbado da Reconquista.
Uma das questões mais interessantes da historio- Em 1469, casaram-se Isabel de Castela e Fernando
grafia revisionista das “descobertas” e conquistas é a de Aragão, um dos muitos matrimônios envolvidos na
diplomacia entre os reinos ibéricos. Porém, este teve de Santa Fé, situado frente às defesas muçulmanas. O
consequências decisivas para a história moderna da desgaste do cerco que esfomeava os habitantes de Gra-
península. Foi um golpe político de Isabel na luta pela nada levou o rei Boabdil a negociar a rendição da cidade
sucessão ao trono do seu meio-irmão, Henrique IV, pois em troca da liberdade do seu povo. Na noite de 1º de
a aliança com o príncipe Fernando, que trouxe consigo janeiro de 1492 as portas granadinas foram abertas aos
o apoio das forças de Aragão, a fortalecia no embate católicos, que assumiram o controle na manhã seguin-
frente à sua sobrinha bastarda, Juana, conhecida como a te. Logo começou a distribuição de terras e privilégios
Beltraneja. O conflito dinástico dividiu a nobreza em fac- aos conquistadores, o repartimiento, segundo o grau
ções hostis, carregando também os hidalgos provinciais hierárquico de cada um. Vastas porções de terras e
para a luta, formando as banderías – milícias baseadas vilas tomadas aos mouros possibilitavam a cobrança de
nas redes de lealdade e patronato que vicejavam pela tributos sob a encomienda pelos beneficiados, reduzindo
Espanha (BERNAND; GRUZINSKI, 2001). à servidão os granadinos (BERNAND; GRUZINSKI, 2001).
Com o apoio da maioria dos grandes senhores, Isabel Encerrado o perigo militar representado pela pre-
assumiu o trono de Castela após a morte de Henrique IV, sença do reino dos Násridas na península, sucedeu-se
em 1474, não sem antes enfrentar portugueses, france- o projeto de reforço da unidade hispânica sob o cimento
ses e opositores hispânicos. A vitória colocou o casal em do catolicismo, levando ao incremento da intolerância
condições de empreender o projeto de unificação política contra judeus e mouros. Em abril de 1492, os Reis
espanhola, mesmo com a permanência dos particula- Católicos assinaram o decreto de expulsão dos judeus
rismos e intrigas e do estágio primário de montagem do dos territórios espanhóis, exceto caso aceitassem se
aparato estatal. Souberam Isabel e Fernando explorar os converter ao catolicismo. Dezenas de milhares emigra-
ressentimentos internos contra a ingerência estrangeira ram, deixando para trás a perseguição católica e o risco
política e econômica, incentivando a efervescência de de cair nas malhas do tribunal da Inquisição, criado em
um sentimento proto-nacionalista. 1480 e responsável pela queima de milhares de hereges
Em 1481 começou a luta dos Reis Católicos (como e infiéis a cada ano nas fogueiras.
eram chamados Isabel e Fernando) contra os domínios Os judeus que se converteram se transformaram
mouros da península Ibérica, sob uma mentalidade de em cristãos-novos (ou conversos), constantes alvos
cruzada que dissolveu as dissidências dentro da hidal- da desconfiança católica. Em 1502 os alvos foram os
guia hispânica. Até as banderías andaluzas e da Estrema- muçulmanos, instados a se converter à fé cristã ou cair
dura, antes resistentes, submetem-se à autoridade real na escravidão. Os batizados tornaram-se mouriscos.
empregando-se na luta contra o reino de Granada. Mais Foi neste ambiente de intolerância que conquistadores,
de uma década de conflito proporcionou oportunidades missionários e colonos atravessaram o Atlântico em
de ascensão social em meio aos saques e recompensas direção às terras americanas.
aos vitoriosos. No acampamento de Santa Fé, em fins de 1491, Cris-
Diversas práticas e instituições vivenciadas na Re- tóvão Colombo tentou mais uma vez convencer a rainha
conquista (assim como na conquista das ilhas Caná- Isabel da viabilidade da sua aventura marítima pelo oeste
rias) forjaram o modo como os espanhóis atuaram na atlântico, sem sucesso. Foi necessária a intervenção de
conquista da América. A começar pela violência contra Luis de Santangel, financiador do Estado castelhano, para
os mouros vencidos. A queda de Málaga em 1487, que Isabel aceitasse os planos do navegador genovês.
após renhida resistência, foi seguida por um castigo A queda iminente de Granada mudou as perspectivas
exemplar, com desertores, renegados e judeus sendo reais. Concluída a Reconquista da península Ibérica
queimados vivos. Os mouros que defendiam a cidade fazia-se necessário vislumbrar os próximos passos
foram reduzidos à escravidão. Um terço dos cativos foi para a continuidade da expansão do poder espanhol. E a
dividido entre os cavaleiros e hidalgos segundo seus fronteira agora era o oceano, onde os rivais portugueses
méritos na conquista. já detinham a supremacia das navegações.
A perda de Málaga prenunciava o fim do reinado dos No mesmo mês que expulsaram os judeus da Espa-
Násridas, cercados em Granada desde abril de 1491, nha, os reis assinaram com Colombo as Capitulaciones
quando os Reis Católicos chegaram ao acampamento de Santa Fé. Por elas, concediam ao genovês “os títulos e
cargos de almirante, vice-rei, governador e capitão-geral [...] porque nos demonstraram grande amizade, pois percebi
de todas as terras e ilhas que descobrisse ou por outros que eram pessoas que melhor se entregariam e converte-
fossem descobertas cumprindo suas determinações” riam à nossa fé pelo amor e não pela força, dei a algumas
delas uns gorros coloridos e umas miçangas que puseram
(AQUINO, 2000, p. 90). Teria Colombo ainda participação
no pescoço, além de outras coisas de pouco valor, o que lhes
nos lucros provenientes das riquezas encontradas e do
causou grande prazer e ficaram tão nossos amigos que era
comércio que fosse realizado. Não imaginavam os Reis
uma maravilha. (COLOMBO, 1998, p. 46)
Católicos as consequências de tamanhos poderes e
direitos dados ao navegador estrangeiro, que posterior-
A narrativa do genovês aos Reis transparecia a in-
mente foram vistos como entraves ao domínio e ganhos
tenção de conversão dos nativos ao catolicismo, algo
da Coroa nas terras por ele encontradas.
que agradava aos monarcas, mobilizados há décadas
Do porto de Palos partiram, em três de agosto de pela mentalidade cruzadista de expansão da fé cristã.
1492, três caravelas sob comando de Colombo: Santa Não se pode perder de vista que a expansão marítima
Maria, Pinta e Niña. Em sua rota de navegação, a expe- se deu num contexto de transição entre o medieval e a
dição passou pelas Canárias, conjunto de ilhas atlânticas modernidade, portanto a evangelização era, ao lado da
a oeste do Saara que Fernando e Isabel colocaram sob obtenção de riquezas, um dos objetivos envolvidos no
seu domínio entre 1479 e 1483 (BERNAND; GRUZINSKI, processo de expansão e conquista:
2001). De lá prosseguiu rumo a oeste a expedição,
acreditando Colombo que em poucos dias alcançariam
os domínios orientais do Grande Can, soberano de uma Pode-se dizer, simplificando até a caricatura, que os conquis-
tadores espanhóis pertencem, historicamente, à época de
rica e exuberante China, como afirmavam os textos de
transição entre uma Idade Média dominada pela religião e a
Marco Polo. Em vez disto, na aurora de 12 de outubro
época moderna, que coloca os bens materiais no topo de sua
de 1492 chegavam os europeus à ilha de Guanahani,
escala de valores. Também na prática, a conquista terá estes
nas Bahamas. dois aspectos essenciais: os cristãos vêm ao Novo Mundo
imbuídos de religião, e levam, em troca, ouro e riquezas (TO-
1492: Colombo e os índios DOROV, 1999, p. 50).
Ao desembarcar na praia da ilha que batizou como Apressou-se o Almirante a buscar as riquezas orien-
San Salvador, Colombo começou as formalidades para tais, e os Taínos deram esperanças de acesso a fontes
tomar posse da nova terra encontrada, conforme as de ouro:
prerrogativas dadas aos Reis Católicos:
E eu estava atento, me esforçando para saber se havia ouro,
Colombo desce à terra numa barca decorada com o e vi que alguns traziam um pedacinho pendurado num furo
estandarte real, acompanhado por dois de seus capitães, e que têm no nariz e, por sinais, consegui entender que indo
pelo escrivão real, munido de seu tinteiro. Sob os olhares dos para o sul ou contornando a ilha naquela direção, encontraria
índios, provavelmente perplexos, e sem se preocupar com um rei que tinha grandes taças disso e em vasta quantidade.
eles Colombo faz redigir um ato. ‘Ele lhes pediu que dessem (COLOMBO, 1998, p. 48)
fé e testemunho de que ele, diante de todos, tomava posse da
dita ilha – como de fato tomou – em nome do Rei e da Rainha,
Expansão da fé e obtenção de riqueza, dois objetivos
seus senhores (TODOROV, 1999, p. 33-34).
complementares que o genovês vai constantemente
acalentar em seus relatos, buscando a estima e as
Os estranhos homens brancos, barbados, magros e benesses dos católicos soberanos em relação à sua
imundos que vieram do mar foram bem recebidos pelos empreitada e futuras expedições. Na falta de resultados
Taínos, chamados de índios por Colombo por este acre- mais espetaculares (não encontrou as ricas civilizações
ditar que havia chegado ao litoral das Índias, no Extremo orientais), as poucas pepitas de ouro conseguidas nas
Oriente. Causaram boa impressão no Almirante: trocas de quinquilharias europeias com os indígenas e
a potencial incorporação das populações encontradas
ao rebanho católico, justificavam as viagens.
Figura 13. Mapa com as quatro viagens de Colombo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:The_Four_Voyages_of_Columbus_1492-1503_-_
Project_Gutenberg_etext_18571.jpg>. Acesso em 30 de maio de 2011.
Em seu retorno à Hispaniola, o Almirante tomou pé ânimos, em 1499 o Vice-Rei organizou a primeira dis-
da difícil situação da empresa colonizadora, da qual ele tribuição (repartimiento) de índios entre os espanhóis,
era o responsável como Vice-Rei. Os espanhóis, agora que passaram a explorar individualmente comunidades
tendo entre seu contingente elementos da baixa e média nativas. A Coroa interveio no conflito, enviando Francisco
nobreza, não intentavam trabalhar, somente explorar o de Bobadilha para substituir Colombo. Preso e enviado
trabalho indígena. Enquanto a violência sexual contra à Espanha, o genovês teve que se defender das acusa-
as índias disseminou a sífilis entre os espanhóis, os ções contra seu governo. Mesmo perdoado pelos Reis
indígenas são dizimados pela varíola e outras doenças Católicos, teve suas prerrogativas de governo revogadas,
trazidas do Velho Mundo, para as quais não tinham imu- restando-o apenas o título de Almirante. As intrigas na
nidade eficiente. Os trabalhos forçados na agricultura ou Corte contra o estrangeiro e seus poderes nas Índias
mineração e o choque cultural também contribuíram para Ocidentais jogaram contra ele.
o extermínio dos Arawak de Hispaniola, que passaram a O principal articulador do afastamento de Colombo foi
resistir aos abusos espanhóis. Juan Rodríguez de Fonseca, protegido da rainha Isabel
A situação econômica e a inquietação dos opositores e Bispo de Burgos. Fonseca, que já tinha organizado os
de Colombo contra o favorecimento deste aos seus preparativos da segunda expedição à América, passou
parentes e amigos se agravavam dia após dia. O ouro a comandar (juntamente com Lope de Conchillos) os
arrancado dos Arawak, ou mesmo dos rios com seu negócios das Índias a partir de um conselho informal
trabalho, era pouco e não compensava os gastos pesa- que subsidiava o Conselho Real nos negócios coloniais
dos da montagem do empreendimento colonizador. Para até 1524, quando morreu, simultaneamente à criação
compensar o baixo retorno metálico, Colombo montou do Conselho das Índias.
a estratégia de tráfico dos indígenas hostis, chegando Em sua última viagem à América (1502-1504), Co-
a enviar um carregamento de centenas de indígenas à lombo velejou próximo aos litorais do Panamá, Honduras
Espanha, em 1495, o que desagradou aos monarcas, e ilhas antilhanas, retornando em seguida à Espanha,
que preferiam possuir súditos a escravos. Os insucessos quando soube do falecimento de sua protetora, a rainha
de Colombo levaram a Coroa a conceder licenças para Isabel. Abatido e com a saúde enfraquecida, Cristóvão
descobrir e comerciar com as novas terras aos que as Colombo faleceu em 1506, em Valladolid, despojado
solicitassem, quebrando os monopólios colombianos das suas glórias e sem a consciência de que abriu o
fixados em 1492. caminho para a incorporação de um vasto continente à
A conjuntura desfavorável levou o Almirante de volta órbita europeia.
à Espanha (1496) para reivindicar a manutenção de suas A persistente obsessão com o Oriente fechou os
prerrogativas, o que conseguiu momentaneamente com olhos colombianos para a novidade que representava
dificuldades – seu prestígio estava abalado na Corte. o continente americano, algo não seguido por outros
Logo o ouro antilhano remetido a metrópole gradual- navegadores. Almejando tomar parte das riquezas do
mente se reduziu (cessando completamente na segunda Oriente, tal qual Portugal após a viagem de Vasco da
década do século XVI), e a falta de substitutos rentáveis Gama, os Reis Católicos outorgaram inúmeras licenças
levou ao ocaso da era colombiana da colonização. a navegadores de origens variadas. Empenhados em
A demora no preparo da sua terceira expedição (cerca atingir o Oriente pelo Oeste, estes navegadores se viram
de dois anos), que contou apenas com oito navios, de- diante de um novo continente, cada vez mais conhecido.
monstra o desprestígio colombiano. Finalmente, partiu da Entre ele estavam “Alonso de Ojeda, Pedro Alonso Nino,
Espanha em maio de 1498, visando mais uma vez atingir Vicente Yáñes Pinzón, Diego de Lepe” (AQUINO, 2000,
o Oriente asiático. Esbarrou nas costas venezuelanas, p. 94) e Américo Vespúcio. Integrando diversas expedi-
ainda que Colombo não soubesse avaliar corretamente ções que percorreram as costas americanas (também
tal feito. sob bandeira portuguesa), o florentino Vespúcio tinha
Ao aportar em Hispaniola, encontrou o Almirante um plena consciência de se tratar de um Novo Mundo
ambiente pior do que havia deixado. Um conflito armado que se desdobrava a cada légua percorrida de litoral,
explodiu entre seus partidários e a facção de opositores e difundiu a partir de Florença seus relatos, contidos
liderada pelo hidalgo Francisco Roldán. Para acalmar os na obra Mundos Novus. A propaganda de seus feitos
marítimos deu resultados, e Américo Vespúcio entrou
para a História ao ter seu nome associado ao continente chegaram em levas sucessivas, reproduzindo as rivali-
descoberto – a América. dades peninsulares (BERNAND; GRUZINSKI, 2001). Ter
Já o caminho para o Oriente pelo oeste foi conhecido um conhecido em um importante cargo na metrópole ou
a partir da primeira expedição que deu a volta ao mun- colônia abria possibilidades de ação e os particularismos
do, comandada inicialmente pelo português Fernão de (a começar pelo próprio Colombo) tiveram solo fértil na
Magalhães sob bandeira espanhola. A América do Sul América.
foi contornada e a expedição alcançou o Pacífico (1519- Cada qual tentava as vias que estivessem ao seu
1522), um marco da navegação mundial. alcance para um enriquecimento rápido, seja lá onde
A partir da queda de Colombo a máquina admi- for, já que eram oriundos de camadas intermediárias
nistrativa foi controlada em Sevilha por Rodríguez de ou mesmo pobres, jovens, “em sua maioria, homens
Fonseca e seu grupo, e funcionários ligados às redes sós, solteiros ou casados que deixaram mulher, amante
de patronato foram enviados para organizar a vida co- e filhos na Espanha” (BERNAND; GRUZINSKI, 2001, p.
lonial em Hispanhola e seu entorno, incluindo as costas 294). Mattew Restall, referindo-se aos conquistadores
continentais dos atuais Panamá e Colômbia. Nicolás de das terras continentais, complementa o perfil do espa-
Ovando, feito governador das “Ilhas e da Terra Firme do nhol engajado na era de conquista hispânica da América:
Mar Oceano”, chega em 1502 à cidade de São Domingos
(fundada pelo irmão de Colombo, Bartolomé, em 1496 Se fôssemos esboçar tal personagem [...] veríamos um jo-
e primeira cidade europeia na América – atual Trujillo). vem já saindo da casa dos vinte anos, semi-analfabeto, orig-
Logo procedeu ao desenvolvimento do sistema de enco- inário do sudoeste da Espanha, treinado num ofício ou profis-
mienda, adaptando esta instituição hispânica à realidade são específicos, em busca oportunidades através de redes de
insular e às pressões dos muitos espanhóis em busca patrocínio baseadas em elos familiares e relacionados à sua
de enriquecimento. cidade natal. (RESTALL, 2006, p. 90)
de braços indígenas para trabalhar. Um século depois, as capitulaciones concedidas pelas autoridades com
estas brechas foram ocupadas por colonos de outros anuência Real. As capitulaciones eram contratos entre
Estados europeus em expansão, como Inglaterra, França a Coroa e um ou vários particulares que estabeleciam
e os Países Baixos. direitos e deveres. Os investidos com uma capitulação
Sem perspectivas de enriquecimento por conta do se tornavam adelantados e geralmente tinham o direito
declínio antilhano, e sendo boa parte dos espanhóis de explorar as riquezas, terras e populações encontradas
excluída da distribuição de encomiendas e cargos, a (além de prerrogativas administrativas e judiciais), desde
população móvel e desprestigiada das ilhas tentava a que a Coroa recebesse por tudo o quinto Real (20% das
sorte grande nas fronteiras continentais em processo rendas, como imposto).
de expansão. A vida do círculo dirigente (elite colonial) De posse de uma capitulação (ou mesmo antes de
na América era distinta da maioria dos imigrantes. En- adquiri-la, como era frequente, já que muitos recebiam a
quanto os privilegiados recebiam as benesses político- confirmação das prerrogativas a posteriori), os capitães
-econômicas, geralmente fixando-se enquanto durassem e seu séquito rumavam para ilhas ou terras continentais
suas prerrogativas, o restante tinha que buscar seu lugar inexploradas, visando adquirir metais preciosos e talvez
ao sol. Entre uns e outros, agentes comerciais desfru- posteriormente encomiendas e outras benesses esta-
tavam de lucros que chegavam a 200% em Hispaniola, tais. Desta feita, os primórdios da conquista continental
sendo os grupos mercantis os que mais se beneficiavam americana tiveram um caráter privado (semelhante ao
financeiramente do processo de conquista. das Capitanias Hereditárias na América Portuguesa).
Irradiados a partir de Hispaniola, inúmeros aventurei-
ros partiram para explorar as possíveis riquezas sobre
as quais corriam boatos a todo instante. Grupos de
conhecidos (algumas dezenas ou centenas), chefiados
por um capitão, formavam companhias de exploração
em que cada um, a partir das suas posses, contribuía
para o empreendimento (juntamente com prováveis
patronos investidores), recebendo em caso de sucesso
lucros proporcionais ao investimento:
A partir de 1508 expedições saídas de Hispaniola par- Nos contatos com os nativos, entre escambos e es-
tem para diferentes direções. Companhias de conquis- caramuças, tratava Cortez de garantir a legalidade dos
tadores atingem a Jamaica, Porto Rico e a Terra Firme. seus atos, e a primeira forma de fazê-lo era ler diante
Em 1511, Diego Velázquez foi enviado pelo governador dos índios o requerimiento, que os exortava a se subme-
Diego Colombo (filho de Cristóvão, que sucedeu Ovando terem ao domínio da Coroa espanhola e aceitarem a fé
em 1509) para submeter Cuba ao domínio espanhol. cristã, sob pena de redução à escravidão ou extermínio
Tratou Velázquez, figura bem relacionada entre o círculo pelas armas. Diante da resposta indiferente ou hostil dos
de Rodríguez de Fonseca, de estabelecer um domínio nativos, que nada entendiam da língua espanhola, os
atroz sobre os Caraíbas de Cuba, divididos entre os espanhóis abriam fogo, massacrando o maior número
conquistadores de modo que nem todos fossem con- possível de indígenas.
templados. Um dos felizardos foi um jovem letrado (que Outro expediente legalista que visava a legitimar as
estudou Direito em Salamanca) chamado Hernán Cortez, ações dos conquistadores consistia na fundação de “ci-
que logo assumiu o cargo de secretário do governador. O dades”, mesmo que não fosse para habitá-las. Com este
ouro e os indígenas de Cuba se esgotaram mais rápido ato formal, os conquistadores constituíam um cabildo
do que em Hispaniola, fomentando o desejo por novas (ou conselho municipal), que a partir de então adquiria
empreitadas alhures. “estatura suficiente para formular determinados tipos de
O governador Velázquez, mesmo submetido for- resoluções, outorgar leis e tomar outras decisões com
malmente ao governo estabelecido em São Domingos, validade jurídica” (RESTALL, 2006, p. 51). O exemplo da
desfrutava de ampla margem de ação devido às suas fundação de Vera Cruz pela expedição de Cortez (abril
relações na metrópole, liberdade que lhe permitiu coor- de 1519) é notório. Buscando livrar-se dos laços que
denar expedições de saque e reconhecimento nas costas o submetiam a Velázquez, Cortez é nomeado alcalde,
continentais próximas a Cuba, que funcionou então justicia mayor e capitán-general pelo cabildo, cargo
como mais um trampolim para as conquistas. Em 1517 que formalizava sua liderança independentemente das
e 1518, Velázquez organizou expedições (que financiou determinações anteriores do governador de Cuba. Com
parcialmente em troca de parte dos possíveis lucros) de a “fundação” de Vera Cruz, os expedicionários passaram
reconhecimento ao litoral continental, que não trouxeram a se corresponder diretamente com as autoridades me-
retornos além da descoberta dos centros cerimoniais tropolitanas, em busca da confirmação dos seus atos e
indígenas da costa de Yucatán e golfo do México. prerrogativas de adelantado ao seu capitão (que foram
No ano seguinte, mais uma vez o governador de Cuba concedidas posteriormente).
coordenou uma expedição em direção ao continente, Após uma série de embates contra os indígenas, por
agora chefiada pelo seu apadrinhado Hernán Cortez, intermédio de dois intérpretes (o náufrago Jerônimo de
que hipotecou todos os bens que possui para garantir Aguilar e a índia Malinche – ou Marina) os espanhóis
a liderança do empreendimento. Entre os integrantes conseguem selar alianças com as chefias de Cempoal
da companhia de Cortez, que contou com uma frota de e Tlaxcala, que enxergaram em Cortez um aliado contra
11 navios e 508 homens, além de 17 cavalos e 10 ca- a hegemonia de Tenochtitlán. Em meio a combates
nhões, estava Bernal Díaz del Castillo, veterano das duas sangrentos contra dezenas de milhares de inimigos,
expedições anteriores e posterior cronista da expedição as centenas de invasores e alguns milhares de aliados
vitoriosa (BERNAND; GRUZINSKI, 2001). mesoamericanos penetraram no coração do México,
Antes que Velázquez desautorizasse a expedição (pois atingindo a capital mexica em fins de 1519.
sua relação com Cortez estava conturbada há tempos), Encurtando a explanação sobre um denso processo,
a frota zarpou de Cuba em fevereiro de 1519 rumo a os espanhóis foram bem recebidos por Montezuma
Yucatán. A expedição de Cortez é emblemática por conter (Montecuhzoma II), feito prisioneiro por Cortez; em meio
todos os processos envolvidos nas conquistas: particu- à saída do capitão ao litoral para rechaçar a expedição
larismos e intrigas, atos legalistas, violência desmedida contra ele enviada por Velázquez, os espanhóis mantidos
contra os índios, sequestros de chefes nativos, saques, em Tenochtitlán envolvem-se em um massacre de nobres
“manipulação” da política nativa e epidemias entre os mexicas, ficando sitiados; Cortez retorna e Montezuma
indígenas. é assassinado (pelos espanhóis ou pelos próprios na-
tivos, revoltados pela submissão do soberano ante os
invasores – as fontes divergem); após evacuar Tenochti- estabelecida na região, sendo que ambos recorreram
tlán com pesadas baixas (Noche Triste), os espanhóis aos saques e à escravização dos nativos, que morreram
preparam a campanha do cerco à capital, que contou aos milhões. Novas expedições foram organizadas por
com o apoio de reforços hispânicos e mais de 100 mil Pedrarias rumo ao norte (Nicarágua e Costa Rica), ao
nativos aliados; durante 93 dias México-Tenochtitlán é passo que Balboa, feito adelantado do Mar do Sul (Pací-
sitiada, uma epidemia de varíola devasta a população e fico), explorou sem sucesso a costa oeste do istmo. Em
a resistência mexica capitula em 13 de agosto de 1521. 1519, acusado de insubordinação, Balboa foi condenado
Após a queda do poderio mexica, Cortez tornou-se e decapitado juntamente com quatro integrantes do seu
senhor do México, investido com uma capitulação pelo séquito (BERNAND; GRUZINSKI, 2001).
monarca Carlos V (que sucedeu Fernando em 1516). Ex- Na década de 1520, os boatos alimentados pelos
pedições secundárias foram enviadas aos quatro cantos nativos sobre a existência de ricos povos do “Biru”
da Mesoamérica, atingido ao oeste o litoral pacífico (onde (ou Peru, para os espanhóis) animavam os colonos do
fundam Acapulco) e os territórios Maias ao sul, sempre Panamá. O exemplo de Cortez e suas glórias também
escoltadas por contingentes nativos. Na Zona Maia, as povoava o pensamento daqueles que sonhavam com
levas de espanhóis vindos do México encontraram-se reinos de ouro e muitos habitantes para explorar. Mesmo
com aquelas vindas do outro núcleo de irradiação da colonos já enriquecidos, como Francisco Pizarro e Diego
conquista no continente, o istmo do Panamá e litoral de Almagro, esperavam mais das Índias do que haviam
da atual Colômbia. Cortez governou o México até ser conseguido até então. Ambos, juntamente com o padre
substituído pelo Vice-Rei Antonio de Mendoza (1535), Hernando de Luque, formaram uma sociedade que or-
mantendo-se como figura de destaque e rico encomen- ganizou (1526) a companhia que teve como destino as
dero (23 mil servos nativos). costas da América do Sul, após uma primeira experiência
de Pizarro na região.
Em 1509, partiram de Hispaniola como adelantados
Diego de Nicuesa e Alonso de Hojeda, respectivamente Entre 1524 e 1528, Pizarro e Almagro chefiaram ex-
para Verágua e golfo de Ubará (terras do Darién), onde pedições que avançavam a ‘duras penas’ pelas costas
os espanhóis sofreram com a fome, intrigas e ataques rumo ao sul, tendo problemas relacionados ao abaste-
nativos. Francisco Pizarro integrou a expedição de Ho- cimento e à hostilidade nativa (Almagro chegou a perder
jeda, ganhando uma experiência que seria importante um olho neste período, atingido por uma flecha). A fome
posteriormente. e o isolamento tanto quanto as flechas solapavam os
Um hidalgo pobre de Estremadura, Vasco Nuñes de expedicionários, cada dia em menor número. As aspi-
Balboa, se juntou à expedição de Hojeda após a volta rações pessoais e as discordâncias referentes ao anda-
deste (doente e mortalmente ferido) à Hispaniola, logo mento das empreitadas indispuseram os “compadres”
assumindo na prática o comando da expedição. Sob sua e fomentaram intrigas. Mesmo assim, Pizarro consegue
liderança foi fundada Santa Maria la Antigua de Darién, atingir Tumbes, denso povoado da costa submetido ao
povoação europeia mais antiga em terras continentais domínio Inca, onde foram recebidos por integrantes da
(1509-1510). Balboa estabeleceu relações (em meio às elite cuzquenha.
pilhagens) com os chefes indígenas locais e governou O achado animou os espíritos e em seu retorno ao
como verdadeiro caudillo as terras do istmo (já que Panamá Pizarro parte para a Espanha (1528) em busca
manobrou para que Nicuesa também perecesse por de uma capitulação para seguir adiante, no que é bem
ataque nativo), atingindo em 1513 a sua margem oeste, sucedido (mas não garantiu os mesmos privilégios a
descortinando o oceano Pacífico aos olhos europeus. Almagro, a quem foram destinadas receitas quase oito
Sua hegemonia começou a ruir em 1514, já que vezes menores que ao “mui amigo” Pizarro, sendo que
Fernando enviou Pedrarias Dávila, fidalgo ilustre, como Luque, por sua vez, foi nomeado Bispo de Tumbes).
capitão-general e governador da Castilla del Oro, nova Mais uma vez encurtando a explanação sobre um
denominação das terras do istmo em referência às denso processo, a seguir estão sumariados os principais
informações sobre ricos reinos indígenas próximos. A episódios do enredo da conquista do império Inca. Em
partir de então a rivalidade entre Pedrarias (que fundou maio de 1532, a nova expedição, agora maior (pouco
como capital a cidade do Panamá, em 1519) e Balboa menos de 200 espanhóis e um número igual ou maior
contaminou a atmosfera da comunidade espanhola de índios e negros) e melhor equipada, chefiada pelo
adelantado Pizarro, atingiu Tumbes, arrasada pelas epi- de todos os lados: Almagro “el Mozo” (1542), vice-rei
demias e pela guerra civil desencadeada após a morte Basco Nuñez de Vela (1546), Gonzalo Pizarro (irmão de
de Wayna Kapaq. Francisco, 1548) e muitos outros caem sucessivamente
A expedição continuou seguindo a costa, encontrando diante dos próprios compatriotas.
outras povoações e parando na foz do Chira, próximo Mesmo com o clima conflituoso nos Andes, o Peru
de onde fundaram San Miguel. Informados sobre a passou a funcionar como mais um trampolim para novas
localização do recém feito imperador Ataw Wallpa em expedições de conquista, sempre em busca da sorte
Cajamarca, 168 homens (64 dos quais a cavalo) partiram grande, como as de Benalcázar no Equador e Colômbia
ao encontro do Inca, coletando apoios entre as chefias (1533-1536), as de Almagro – o pai – e posteriormente
rebeladas. Em novembro chegaram os invasores a Ca- Pedro de Valdívia no Chile (respectivamente em 1535-
jamarca, travando conversações iniciais com o Inca. No 1537 e 1540-1553) e Orellana na Bacia Amazônica
dia seguinte, os espanhóis armaram uma emboscada (1541-1542). Saído do Peru, Hernando de Soto, feito
na praça de Cajamarca, preenchida pelas forças Incai- adelantado da Flórida em 1539, perece em sua expedição
cas, conseguindo derrubar o imperador da sua liteira e de conquista.
aprisioná-lo: dois mil mortos indígenas jaziam no chão Na região do rio da Prata, o estuário foi explorado por
após a luta, mas nenhum europeu. Pizarro ordenou o João de Solis em 1515. Duas décadas depois, Pedro de
pagamento de um imenso resgate de ouro e prata pela Mendoza fundou Buenos Aires (1536), cujo povoado-
vida de Ataw Wallpa, no que foi atendido enquanto os -fortaleza foi destruído pelos índios guaranis logo em
espanhóis faziam entradas de saque e destruição pelos seguida. No ano seguinte, Juán Salazar de Espinosa
Andes. fundou Asunción del Paraguay. Em 1540, o adelantado
Em meio aos sucessos espanhóis, Waskarr, o rival Alvar Núñes Cabeça de Vaca adentrou os rios platinos,
do Inca preso, caiu em mãos das forças do irmão, sendo personagem de uma verdadeira epopeia com mui-
sendo assassinado. Mesmo após o vultoso pagamento tas reviravoltas, culminando com sua prisão em 1545,
do resgate, Ataw Wallpa foi executado pelos invasores em meio às conspirações de opositores espanhóis.
devido à influência dos aliados nativos de Pizarro (agosto Foi remetido ao Velho Mundo, julgado e condenado
de 1533). A anarquia se abateu sobre o império, que injustamente (CABEÇA DE VACA, 2009). Para garantir a
ruiu diante das emancipações dos kuraka e das revoltas presença espanhola no estuário do Prata, Juan de Garay
dos servos contra seus senhores Incas. Em novembro fundou Buenos Aires pela segunda vez, em 1580, núcleo
de 1533, os espanhóis ocuparam Cuzco, recebidos por que se conservou mesmo diante das privações sofridas
Manko Inca, o novo imperador. Este se rebelou, sitiando por seus habitantes.
Cuzco após três anos, até a chegada dos reforços de
Almagro vindos do Chile. Neste meio tempo, Pizarro Rápido balanço da conquista espanhola
fundou cidades (entre elas Lima, em 1535) e exerceu ao
extremo suas prerrogativas de governador, favorecendo Como alguns milhares de europeus conseguiram
seus parentes e aliados da Estremadura, em detrimento conquistar, em tão pouco tempo, um conjunto de socie-
do grupo de Almagro (feito adelantado do Chile). A dades indígenas que agrupavam dezenas de milhões de
situação descambou para a guerra civil, com as duas habitantes espalhados por um imenso território, muitas
forças se enfrentando em diversas escaramuças, até o vezes maior que a Espanha? Esta pergunta, frequente
embate final (Las Salinas, abril de 1538), do qual Almagro entre os estudiosos do tema, teve diversas respostas ao
saiu derrotado. Preso, julgado como traidor, Almagro longo dos séculos, muitas vezes discordantes.
foi decapitado. A vingança não tardou: o filho mestiço Com efeito, o desafio enfrentado pelos conquista-
(e homônimo) de Almagro organizou o assassinato de dores, principalmente nas áreas das complexas socie-
Francisco Pizarro, em junho de 1541, proclamando-se dades mesoamericanas e andinas, não era pequeno:
governador. estimativas (que variam bastante) apontaram para uma
Para por fim à luta espanhola em solo andino e população total da América, à época da conquista, da
restabelecer a ordem, a Coroa enviou um governador ordem de 40 a 112 milhões de habitantes (CHAUNU,
e depois vice-reis que enfrentaram a resistência dos 1969; MANN, 2007).
conquistadores já estabelecidos, e baixas ocorreram
A perplexidade diante de tal feito (juntamente com ou a descoberta de ricas fontes de metais preciosos,
vieses ideológicos) engendrou explicações que beiram mesmo que tais coisas não tivessem bases reais.
à fantasia: os índios eram inferiores biológica e cultu- Parcelas das populações nativas interpretaram de
ralmente e aceitaram o domínio dos invasores porque modo diverso a chegada dos invasores. Para os tlaxcal-
acreditavam que eram deuses; já os conquistadores tecas, inicialmente a guerra de conquista que culminou
espanhóis eram homens extraordinários e soldados bem com a derrota de Tenochtitlán foi vista como obra sua,
treinados, dirigidos por um Estado forte e organizado, dentro de uma lógica de expansão do seu domínio frente
e sua tecnologia sempre superior permitiu um domínio aos povos rivais da Mesoamérica que continuou com as
rápido e absoluto sobre os nativos. A este respeito, o sucessivas expedições espanholas das quais eram os
título de uma obra do historiador estadunidense Mat- mais numerosos integrantes. Soma-se a isto o fato de
thew Restall é bem sugestivo: Sete mitos da conquista que as elites nativas conservassem parte do seu domí-
espanhola (2006). Entre as análises de Restall (que nio mesmo com a presença hispânica, sendo inclusive
igualmente, por seu radicalismo, acabam construindo realizados muitos casamentos de princesas índias com
contra-mitos) talvez a mais interessante seja sobre “o espanhóis.
mito da conclusão” da conquista. Outros pontos que demonstram a incompletude da
Esta visão da conquista como um processo finalizado conquista: as inúmeras rebeliões indígenas das primeiras
em datas precisas (1524, no caso do México, 1533, no décadas do contato com os europeus, fazendo com que
caso do império Inca) possui variadas origens. A primeira expedições sucessivas tivessem que ser realizadas para
delas é a natureza das fontes: decretos reais e relatos garantir a hegemonia espanhola em certas áreas (os
dos conquistadores passavam a ideia da submissão dos Incas resistiram até 1572, por exemplo); a permanência
povos nativos frente aos hispânicos. A começar pelas das línguas nativas durante boa parte da era colonial
ações narradas por Colombo desde sua primeira viagem, (com os próprios espanhóis e seus descendentes
quando tomava “posse” de uma ilha após a outra, em comunicando-se por elas); e os amplos espaços espa-
nome dos Reis Católicos, atos simbólicos sugestivos, lhados pela América não ocupados pelos europeus nos
mas sem resultados práticos imediatos (o próprio forte primeiros séculos da colonização (ou mesmo após esta),
de Navidad, única iniciativa de ocupação em 1492, logo como a maior parte da América do Norte e das regiões
foi destruído pelos nativos). patagônica e amazônica, na América do Sul.
No mesmo sentido, a rainha Isabel afirmava, em Os conquistadores espanhóis não foram seres extra-
1501, que todos os habitantes das Índias Ocidentais ordinários, invencíveis, que pela sua inteligência inventiva
(mesmo a maioria ainda desconhecida dos europeus) acima da média acertavam sempre em seus atos. Boa
eram seus “súditos e vassalos”, bastando que fossem parte das manobras “geniais” colocadas em prática na
encontrados para que começassem a “pagar-nos nossos conquista da América já havia sido testada anteriormente
tributos e direitos” (RESTALL, 2006, p. 134). Ou seja, a nas guerras da Reconquista Ibérica, na invasão e sub-
conquista da América índia estava supostamente con- missão das ilhas Canárias e nas expedições contra os
cluída mesmo antes de começar! mouros no norte da África. Assim, os conquistadores
As crônicas e relatos dos conquistadores, por sua no continente americano reproduziram procedimentos
natureza, reforçavam a extensão imaginária do domínio comuns à época, que pareceram sempre dar certo
espanhol mesmo nas situações mais adversas. Os do- aos olhos dos incautos leitores dos seus relatos pelo
cumentos dirigidos à Coroa visavam enaltecer os feitos simples fato de que se não funcionassem, não haveria
do conquistador de plantão, comprovando seus serviços relato algum. Ou seja, a “invencibilidade” dos espanhóis
prestados (daí sua denominação, probanza de mérito, ou foi propalada pelo caráter teleológico dos seus relatos e
prova de mérito, cujos exemplos clássicos são as cartas pela própria sobrevivência dos seus autores, já que dos
de Cortez dirigidas a Carlos V). Para conseguir cargos, mortos em solo americano não temos muitas fontes
direitos e prestígio os conquistadores alardeavam e acerca dos seus fracassos – e não foram poucas as
superestimavam seus méritos, reduzindo ou omitindo figuras do Velho Mundo derrotadas no Novo...
a contribuição de terceiros, principalmente no caso de Para finalizar, o resultado da conquista se deve menos
se tratar de indígenas e/ou negros. Tinham que mostrar aos méritos espanhóis do que se supõe. Um universo
serviço, como a submissão de uma grande população
imenso de indígenas lutou (por suas próprias razões) ocidente europeu estava interessado pelas riquezas do
ao lado dos hispânicos, bem como diversos africanos Oriente asiático e das terras americanas.
(escravos ou não) participaram das expedições. Uns e Ao longo dos séculos XIV e XV, duas guerras contribu-
outros formaram um contingente muitas vezes “invisível” íram para o processo de centralização política na Inglater-
que foi deixado de fora das crônicas europeias, mesmo ra: a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e a Guerra das
sendo decisivo para as vitórias dos invasores brancos. Duas Rosas (1455-1485). O enfraquecimento da nobreza
Ao lado dos diversos agentes epidemiológicos que in- após tantos anos de conflito favoreceu a ascensão da
festaram a América (dizimando suas populações) e da dinastia Tudor (1485-1603), responsável pela afirmação
tecnologia trazida do Velho Mundo (principalmente o aço do poder central da monarquia (KARNAL, 2001).
e os cavalos), a atuação desses esquecidos da história Os ventos da Reforma Protestante que vinham do
ajuda a responder à pergunta formulada anteriormente. continente atingiram as ilhas britânicas, e o rompimento
de Henrique VIII com a Igreja Católica originou a Igreja
Anglicana, submetida direta e unicamente à Coroa. Tal
SAIBA MAIS processo concentrou poderes nas mãos da realeza,
com a submissão da estrutura eclesiástica aos ditames
A Conquista incompleta estatais.
“Os acontecimentos de Itzamkanac [execução de Cuautémoc e nobres
mexicas pelos espanhóis], que se deram quatro anos depois de 1521, Desde fins do século XV, iniciativas de grupos co-
a data tradicionalmente atribuída à Conquista do México, ilustram até merciais ingleses inseridos nos circuitos comerciais
que ponto a Conquista constituiu um processo muito mais complexo europeus, e desejosos de entrar no lucrativo jogo das
e prolongado do que sugere o mito da conclusão. Cortés continuava especiarias orientais, foram vistas com bons olhos pela
se dedicando a longas expedições de exploração e conquista. Embora
a razão oficial de sua viagem a Honduras fosse punir Cristóbal de
monarquia, fomentando o que Marc Ferro chamou de
Olid, um capitão seu que se rebelara, visava também à exploração da “‘nacionalização’ das forças econômicas” na Inglaterra
região entre o México e Honduras. Com efeito, a expedição assinalou a (FERRO, 1996, p. 66). Objetivava-se incrementar a eco-
primeira vez que europeus e africanos pisaram em Itzamkanac. Quatro nomia (comercial e manufatureira) através de expedições
anos após a queda de Tenochtitlán, a maior parte da Mesoamérica orientais, não fundando colônias.
continuava ainda intocada diretamente pelos pés do Velho Mundo, o
que também valia para os Andes quatro anos depois da execução de O veneziano Giovanni Gaboto (o ‘Colombo’ dos
Atahualpa.” ingleses), financiado pelos comerciantes de Bristol,
In: RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de comandou cinco navios da Marinha inglesa na tentativa
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 255.
de descobrir uma rota para o Oriente pelo Noroeste da
América, em 1497, obviamente sem sucesso, pois se
Ingleses e franceses em mar e terra deparou com as calotas polares árticas. Realizou nova
empreitada no ano seguinte, tendo encontrado em suas
Enquanto os ibéricos se destacavam como pioneiros viagens de cabotagem pelas costas da América do Norte
da expansão ultramarina europeia, devido à configuração rios e baías que posteriormente serviram como portas
inicial dos seus Estados nacionais nos séculos XIV e XV, de entrada da colonização inglesa.
outros povos mais ao norte da Europa se interessavam Alguns navegadores de origens variadas singraram
pelos seus sucessos, mas não dispunham de condições as águas do Atlântico sob bandeira inglesa ao longo do
objetivas para rivalizar com portugueses e espanhóis. século XVI, realizando trocas com nativos da América,
Paralelamente às conquistas hispânicas e lusitanas contrabando nas possessões ibéricas e corsarismo.
em solo americano, ingleses e franceses aceleravam a Entretanto, somente em fins do mesmo século, no rei-
centralização política que originou seus próprios Estados nado de Elizabeth I (1558-1603), os ingleses deram um
nacionais, visando, entre tantas outras coisas, reverter impulso “à construção naval e ao comércio marítimo,
seu atraso quanto ao estabelecimento de colônias. envolvendo também a atividade corsária” (AQUINO,
Somente no século XVII as monarquias inglesa e 2000, p. 123). Os principais alvos da cobiça dos corsá-
francesa lograram dirigir esforços colonialistas mais rios eram os comboios espanhóis do sistema de frotas
consistentes, o que não impediu que iniciativas neste de galões, que traziam as riquezas da América rumo à
sentido fossem tomadas anteriormente, já que todo o península Ibérica.
SUGESTÃO DE ATIVIDADE
INDICAÇÃO DE LEITURA
Anotações
COLONIALISMO NA
AMÉRICA
CAPÍTULO 4
EaD
EaD UNIVERSIDADE
UNIVERSIDADE DO
DO ESTADO
ESTADO DA
DA BAHIA
BAHIA
Anotações
e conselhos administrativos, substituindo os vice-reis de portos ‘únicos’ (Sevilha depois Cádiz, na Espanha;
caso necessário. As audiencias eram compostas por Havana, Cartagena, Vera Cruz e Porto Belo, na América)
“ouvidores nomeados pelo rei, com funções vitalícias” e restrições ao desenvolvimento de manufaturas nas
(AQUINO, 2000, p. 120). Estes órgãos vendiam cargos colônias, garantindo assim a complementaridade do
em repartições administrativas (coisa comum na Europa sistema: manufaturas da Europa para a América e gê-
da época), o que alimentava a corrupção e desvios de neros primários na direção contrária. Este esquema era
conduta, já que os compradores buscavam o retorno so- amplamente favorável à metrópole. Por exemplo, durante
bre o investimento e, claro, obter lucros sobre o mesmo a segunda metade do século XVI, o valor das exportações
(fazendo florescer o patrimonialismo em solo americano, coloniais foi quatro vezes superior ao das importações
tal qual na península Ibérica). metropolitanas (GALEANO, 2001). A sangria de capitais
No plano das municipalidades, a instância de governo gerados na América em direção à Espanha era alargada
local era o cabildo, conselho legislativo (subordinado à pela cobrança dos impostos também sobre as atividades
respectiva audiência) responsável por administrar as desenvolvidas no interior das colônias.
cidades (junto aos funcionários competentes), além Apesar da rigidez formal do sistema, a realidade dos
de funcionar como tribunais de primeira instância. Os dois lados do Atlântico se incumbia de abrir-lhe brechas
cabildos eram compostos pelos regedores, integrantes que minavam seu poder de alcance. Na América, os co-
da elite criolla local que reproduziam seu domínio através lonos de regiões periféricas da colonização, desprovidas
da escolha de seus sucessores. das riquezas metálicas, não possuíam recursos para
Em relação à América, a máquina estatal montada arcar com os altos preços dos manufaturados europeus
na Espanha e nas colônias, e que tinha uma infinidade vendidos por dentro dos quadros do sistema, recorrendo,
de cargos, teve por finalidades reger a vida dos súditos assim, ao contrabando (praticado principalmente por
americanos e garantir a drenagem das riquezas coloniais ingleses, portugueses e franceses). Somava-se a isto
em benefício da Coroa (que encarnava o Estado como a incapacidade espanhola em suprir adequadamente as
um todo), dos círculos da nobreza, do clero e dos gran- demandas dos colonos, obrigando a Coroa a conceder
des grupos mercantis e financeiros. Assim, cabia ao a estrangeiros – geralmente ingleses – permissões
Estado espanhol, por conta da rivalidade entre os poderes (asientos) de comércio por períodos determinados. Tal
absolutistas europeus, reger seus negócios coloniais prática se deu principalmente ao longo do século XVIII,
visando resguardar para si (ao menos em tese, pois na desnudando a situação crônica da Espanha, dois séculos
prática a coisa era bem diferente) os frutos econômicos após a conquista da América.
decorrentes dos mesmos, sob a ótica do mercantilismo, Não obstante, a riqueza extraída das colônias ame-
política econômica dos Estados modernos europeus. Tal ricanas alimentou durante muito tempo os luxos da
conjuntura fomentou a estruturação do sistema colonial, Corte (em crescente expansão), as guerras da Coroa em
que dava sentido à existência econômica da colonização: solo europeu e o enriquecimento dos grupos mercantis
sediados em Sevilha e Cádiz (e por meio deles, vastos
Nos Tempos Modernos [...], tal movimento se processa
setores da burguesia europeia). As descobertas das
travejado por um sistema específico de relações, assumindo minas de ouro e prata no México e no Peru, em meados
assim a forma mercantilista de colonização, e esta dimen- do século XVI, inundaram a Europa com os cobiçados
são torna-se para logo essencial no conjunto da expansão metais, causando uma revolução nos preços e a acele-
colonizadora européia. Noutras palavras, é o sistema colonial ração da circulação monetária (triplicando as reservas
do mercantilismo que dá sentido à colonização européia no de prata do continente). Inicialmente o ouro prevalecia,
período que medeia entre os Descobrimentos Marítimos e a mas cedo a prata suplantou em muito sua importância,
Revolução Industrial. (NOVAIS, 1998, p. 14) pois nas principais minas americanas (Potosí, na atual
Bolívia; Zacatecas e Guanajuato, no México) extraía-se
O sistema foi montado para assegurar o exclusivismo grandes quantidades do precioso metal prateado. Um
espanhol sobre o comércio colonial (através dos mo- século após a descoberta destas ricas minas, a prata
nopólios) e fomentar a economia interna da metrópole representava 99% do valor das exportações americanas
(que fornecia manufaturas às colônias). Para tanto foram em direção à Espanha. A riqueza que saía dos veios de
instituídas as frotas de galeões (duas por ano), o sistema prata de Potosí era tamanha que Carlos V outorgou um
escudo à dita Vila que continha a inscrição “Sou o rico com uma encomienda. Porém, este sistema excluía a
Potosí, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas maioria dos espanhóis do acesso à mão de obra nativa,
e sou a inveja dos reis” (GALEANO, 2001, p. 33). ocasionando uma concentração de riqueza em mãos dos
A enxurrada de prata que grassava pela metrópole encomenderos. Com o crescente número de espanhóis
teve efeitos negativos em longo prazo. A inflação causa- chegados à América (que se juntavam aos descendentes
da pelo crescimento acelerado da circulação monetária dos primeiros conquistadores) e a redução da popula-
afetou drasticamente as manufaturas espanholas, já que ção nativa por conta das epidemias, guerras e trabalho
estas ficaram muito caras em relação às produzidas em forçado, o quadro se agravou.
outros pontos da Europa, notadamente na Inglaterra. A partir das Novas Leis, a Coroa tomou para si um
Deste modo, os comerciantes espanhóis compravam número cada vez maior de comunidades, pela anulação
no estrangeiro as manufaturas com destino à América, de encomiendas anteriormente concedidas ou pelo fim
fazendo da Espanha mera intermediária entre suas colô- da perpetuidade das mesmas (porém ocorreram pos-
nias e os centros produtores situados mais ao norte da tergações abrangendo duas, três e até quatro gerações,
Europa. Mesmo a tradicional produção de lã nas terras mesmo que residuais). De posse das comunidades, o
de Castela estava arruinada no início do século XVII. Estado nomeava corregidores de índios, funcionários
Os crescentes gastos da Coroa com a manutenção da responsáveis por contabilizar o contingente de inte-
Corte, da onerosa máquina burocrática e eclesiástica e grantes que cada comunidade (a título de pagamento de
das forças militares aumentaram as dívidas do Estado tributos) deveria disponibilizar temporariamente (em um
espanhol, enriquecendo os seus credores espalhados sistema rotativo entre os homens adultos). O corregidor
pela Europa. Tal conjuntura econômica contribuiu para então procedia ao repartimiento dos indígenas enviados
a acumulação primitiva de capitais nas zonas mais pelas comunidades aos espanhóis que os solicitassem,
dinâmicas do nascente capitalismo, ao passo que na que os empregavam temporariamente nas atividades que
península ibérica predominava o atraso e os desperdícios lhes conviessem, em troca do pagamento de um salário.
da sociedade de Corte. Ao final do período de trabalho (cerca de três meses), os
Na América, o peso da produção das riquezas que índios repartidos voltavam às suas comunidades, sendo
alimentavam a Europa recaía sobre as costas dos ín- substituídos por outros, submetidos ao mesmo sistema
dios, mão de obra dos empreendimentos mineradores (VAINFAS, 1984; LOCKHART; SCHWARTZ, 2010).
e agrícolas. Os nativos sofreram primeiramente com a Com o passar do tempo, uma série de fatores cor-
escravidão nas Antilhas e na terra firme, até que suces- roboraram para que a encomienda e o repartimiento
sivas leis (1512, 1542) coibissem sua escravização (ao perdessem importância como sistema tributário e relação
menos formalmente). de produção. O declínio demográfico das populações
Paralelamente ao declínio da escravidão nativa, ou- indígenas (que só voltaram a crescer próximo do fim do
tros meios de exploração da mão de obra indígena se século XVII) e o crescimento do contingente de mestiços
desenvolveram de formas variadas em cada zona colo- no seio da sociedade colonial (resultado da combinação
nial, prevalecendo a encomienda até meados do século dos elementos europeu, índio e negro), que não eram
XVI. Nas Antilhas, enquanto havia índios para trabalhar, submetidos à tributação servil, minaram as bases do
os governadores distribuíam (repartimiento) em enco- sistema.
miendas comunidades submetidas aos encomenderos Contribuiu também o fato de que os índios submetidos
que exploravam sua força de trabalho na agricultura e ao trabalho temporário longe de suas comunidades se
mineração de aluvião. viam em meio aos espanhóis e mestiços nas cidades
No continente, a Coroa disciplinou pelas Leyes Nuevas (onde trabalhavam nas residências como serviçais ou
(1542) o repartimiento, tentando evitar a repetição das nas oficinas manufatureiras – os obrajes), fazendas
nefastas consequências da servidão nas Antilhas pelo (haciendas) e minas, absorvendo em pequenas doses
uso indiscriminado das comunidades pelos encomen- elementos da cultura ocidental europeia (para o que
deros. Até então, no México ou no Peru as comunida- muito contribuiu a catequese missionária). Com os
des repartidas de forma vitalícia (ou perpétua) entre parcos salários recebidos pelo trabalho, adquiriam
os conquistadores eram monopólio dos beneficiados alguns poucos produtos vindos do Velho Mundo, mas
que pesavam no conjunto para modificar os hábitos e
valores de vida. Coisa semelhante ocorria no seio das Os agentes mineradores que exploravam de tal
próprias comunidades, já que os caciques, por vezes, forma o trabalho dos indígenas recebiam os filões de
funcionavam como agentes intermediários de firmas mineração através de concessões perpétuas da Coroa,
comerciais, revendendo seus produtos para os demais pois o subsolo, assim como as terras da superfície, era
membros do pueblo (povoado) ao qual pertenciam. A patrimônio régio. Tais concessionários eram inicialmente
continuidade deste processo levou um número razoável de origem social variada:
de índios a abandonar suas comunidades de origem,
mesclando-se à população não-índia. Incluindo desde o próprio rei e altos funcionários espanhóis
Nas minas dos Andes – Potosí à frente – o reparti- até modestas companhias formadas por colonos humildes
miento (que se mesclou à tradicional instituição andina e índios. A exploração mineira, dispersa no início, tornou-se
da mita, levando inclusive seu nome) tendeu a reter os cada vez mais concentrada a partir de fins do século XVI, à
mitayos por um tempo superior aos três meses, pois a medida que se foram esgotando os minérios na superfície:
carência de mão de obra era crônica, devido às altas a necessidade de se aprofundar as escavações exigia, com
taxas de mortalidade: efeito, investimentos inacessíveis ao pequeno explorador.
(VAINFAS, 1984, p. 54)
anil, cacau e algodão), compensando parcialmente a Contudo, a religiosidade colonial escapou à padronização
queda na produção de prata neste período (que mesmo da Igreja e seus agentes:
assim continuava a ser importante, pois representou ao
menos 75% do valor global das exportações coloniais O bem enraizado sincretismo religioso dos baianos de hoje,
hispânicas no século XVIII). para os quais os santos católicos se confundem com os
Nas Antilhas, litoral norte da América do Sul, istmo do orixás africanos é um exemplo. Além deste, a profusão de
Panamá e áreas do México e Equador, a falta de braços santidades “americanizadas”, como a Virgem de Guadalupe
indígenas para o trabalho na lavoura agroexportadora (de feições indígenas), padroeira do México, e a Nossa Sen-
levou ao incremento da escravidão africana. Porém, na hora Aparecida (representada por uma Virgem Maria negra),
América espanhola o contingente de escravos vindos padroeira do Brasil, também servem de exemplos. (JUNQUE-
da África foi bastante inferior ao que receberam as pos- IRA, 2010a, p. 155)
os colonos de Jamestown conseguiram permissão, em Após a crise de meados do século XVII, os Stuarts
1619, “para enviar delegados à Casa dos Burgueses, restabelecidos no trono criaram duas novas colônias no
formando o primeiro corpo legislativo no Novo Mundo, Sul, a Carolina do Norte e a Carolina do Sul:
a Assembleia da Virgínia” (JUNQUEIRA, 2010b, p. 14).
Jamestown foi arrasada pelos indígenas em 1622, [...] doadas a dois proprietários: John Coleton e William
perdendo um quarto de sua população no massacre Berkeley (1663). Povoadas por grupos deslocados de outras
(FERRO, 1996). Os prejuízos com o ataque e perda colônias, de huguenotes franceses e imigrantes da Escócia,
de safras afogaram a Cia. de Londres em dívidas (não Suíça e Alemanha, as duas colônias basearam sua economia
obstante sucessos individuais de colonos no cultivo no cultivo do índigo e do arroz, produzidos por escravos ne-
do tabaco), obrigando a Coroa a assumir a direção do gros em grandes propriedades. (AQUINO, 2000, pp. 129-30)
empreendimento, convertendo a Virgínia em colônia real
(1624). Para tanto, o rei enviou à colônia um governador, Os escravos africanos vieram a complementar a
mas sua tutela não invalidou os privilégios de autogover- servidão branca ao longo do século XVII, a partir da
no da Assembleia, pouco interferindo a metrópole em chegada do primeiro carregamento à Virgínia, em 1619.
seus assuntos internos. Em fins deste século os negros escravizados já eram
Buscando acelerar a ocupação dos espaços colo- maioria nas colônias do Sul, empregados nas plantações
niais, o Estado passou a conceder territórios a figuras monoculturas que alimentavam os mercados europeus.
destacadas da Corte, responsáveis por fundar colônias. A Geórgia, última colônia fundada na região sul
Foi deste modo que surgiu Maryland (1634), a partir do (1732), se juntou às demais quanto à agricultura escra-
estabelecimento de colonos católicos, dedicados ao vagista, mas foi povoada inicialmente por condenados
plantio do tabaco – o mais importante produto colonial à prisão por dívidas, trazidos pelo proprietário James
inglês no comércio com o Velho Mundo. Oglethorpe. A Coroa assumiu em 1752 a direção da
A imigração inglesa para a América, em meio à Geórgia, feita colônia real, dedicada ao plantio do arroz
conturbada conjuntura da Inglaterra no século XVII, teve em grandes latifúndios.
diversos estímulos. Com o processo dos cercamentos Como era de se esperar pela forma como foram povo-
(enclouseres), a situação do campo inglês ficou desfa- adas, a estrutura social das colônias do Sul foi marcada
vorável aos camponeses pobres sem terras, que deixa- pela escravidão e pelo latifúndio, com a polarização
ram o meio rural em direção às cidades, abarrotando social entre uma aristocracia fundiária ávida por terras
os centros ingleses. Tal abundância de mão de obra foi e uma massa de escravos negros e servos brancos. O
aproveitada nas colônias, sempre carentes de braços esgotamento dos solos pelo cultivo do tabaco estimulou
para desenvolver os vastos espaços americanos, em a abertura de novas fronteiras agrícolas, reservadas aos
benefício das companhias, da Coroa e dos beneficiados latifundiários por conta dos altos preços das terras e
com doações territoriais no Novo Mundo. dos impostos, inibindo o acesso (ou a permanência) de
Os pobres ingleses, para custear sua vinda à América, pequenos proprietários às mesmas, limitando assim a
assinavam um contrato de servidão (indentured servant), emergência de setores sociais intermediários.
que durava de três a cinco anos, situação generalizada Paralelamente ao desenvolvimento dos latifúndios
nas Treze Colônias, abrangendo cerca de 70% dos escravagistas do Sul, a colonização ao Norte desen-
imigrantes (AQUINO, 2000). Nas palavras de Pierre volveu-se de modo distinto. Fugindo das perseguições
Chaunu, a servidão branca era “de facto uma forma de religiosas na metrópole, levas de imigrantes católicos,
escravatura, cujas modalidades práticas, senão as suas quakers, huguenotes e puritanos imigraram para a Amé-
bases jurídicas, não diferem fundamentalmente da escra- rica, estabelecendo-se na região da Nova Inglaterra. Em
vatura [dos negros africanos trazidos para a América]” 1620, imigrantes puritanos chegaram à costa do que
(CHAUNU, 1969, p. 117). Juntavam-se na América aos seria Massachusetts, a bordo do Mayflower. Parte deles,
pobres imigrantes voluntários os condenados pela jus- antes do desembarque, firmou um importante pacto (The
tiça, mulheres e crianças raptadas e renegados de toda Mayflower Compact) sociopolítico:
sorte além dos indivíduos perseguidos pelas disputas
religiosas inglesas.
Essa primeira “constituição” norte-americana foi um acordo Essa versão mítica do nascimento dos EUA é funda-
de autogoverno, inspirado por ideias puritanas radicais sobre mental para a compreensão da mentalidade do seu povo
o governo da Igreja. Quarenta e um homens, todos adultos, e está (com maior ou menor grau de aceitação) presente
assinaram-no a bordo do navio antes de desembarcarem em na sua historiografia. Daniel Boorstin, por exemplo, ar-
Cape Cod. De acordo com seus termos, os colonos forma- rematou certa vez:
vam um “corpo político civil”, que governaria a todos segun-
do a vontade da maioria e prometia “toda a devida submissão
e obediência” a “leis justas e iguais” na colônia. (SELLERS; Nunca antes uma terra prometida fora tão pouco promis-
MAY; MCMILLEN, 1990, p. 25) sora. Porém, no espaço de século e meio – mesmo antes
da revolução americana – este cenário que os tolhia trans-
formara-se numa das partes mais civilizadas do mundo.
Os integrantes deste grupo ficaram conhecidos como Haviam nascido os contornos gerais de uma civilização nova.
os ‘Pais Peregrinos’ (Pilgrim Fathers), considerados o (BOORSTIN, 1997, p. 8)
embrião da cultura política dos Estados Unidos. Funda-
ram New Plymouth, povoado absorvido posteriormente
A partir da sua Igreja Congregacionista, os puritanos
por Massachusetts, ligada à Cia. da Baía de Massachu-
submetidos à Cia. da Baía de Massachusetts estabele-
setts (dirigida por uma ‘burguesia puritana’). Uma década
ceram em Boston (principal centro da Nova Inglaterra)
depois, a Companhia trouxe para Massachusetts mais
uma comunidade política baseada em preceitos religio-
uma leva de puritanos, liderados por John Winthrop e
sos, forjando “a união entre Igreja e Estado, cabendo
também tidos como ‘Pais Peregrinos’ pelos estaduniden-
o governo a elementos da Igreja Congregacionista. O
ses. Ao longo da viagem, Winthrop fazia pregações sobre
predomínio da oligarquia puritana resultou na intolerância
o destino que os esperava: “Nós seremos como uma
religiosa” (AQUINO, 2000, p. 131).
cidade no alto da colina, e os olhos de todos se voltarão
para nós [...] a nossa história será contada e dela será
passada palavra pelo mundo” (BOORSTIN, 1997, p. 15).
Na preparação para o desembarque, Winthrop também
firmou um pacto com os seus (The Arbela Compact),
declarando:
ticularidades religiosas, as colônias do Norte possuíam A colonização inglesa na América, realizada através
certa homogeneidade. O clima temperado inviabilizou a do impulso das companhias privadas e dos proprietários
formação das monoculturas para exportação iguais às de doações (responsáveis pela viabilização e defesa dos
do Sul. Assim, na estrutura fundiária na Nova Inglaterra estabelecimentos), conformou um processo de coloni-
predominavam as pequenas propriedades, cultivada zação distinto daquele vislumbrado na América ibérica.
pelas famílias proprietárias e servos brancos (quando Segundo Leandro Karnal, o “Estado e a Igreja oficial,
possível), conformando uma sociedade menos desigual na verdade, não acompanharam os colonos ingleses”
do que no Sul. (KARNAL, 2001, p. 27), algo bem diferente das expe-
O cultivo de gêneros inicialmfente destinados à sub- riências colonizadoras espanhola e portuguesa, onde
sistência (trigo, aveia e milho), a pecuária (gado, porcos e instituições estatais (ligadas às metrópoles) e a Igreja
ovelhas), a pesca, o comércio de peles e uma crescente Católica fizeram-se presentes.
indústria naval eram as bases econômicas das colônias As Treze Colônias, em termos político-administrativos,
do Norte. O florescimento das cidades foi o erreno para possuíam suas próprias autoridades e autonomia entre si
a prosperidade das manufaturas e do comércio (não e em relação à metrópole, podendo ser enquadradas em
obstante as proibições e restrições metropolitanas). O três modelos administrativos: a) colônias de companhias
Norte fornecia gêneros de subsistência e manufaturas ao de comércio – Virgínia e Massachusetts; b) colônias de
Sul, bem como integrava um circuito comercial conecta- proprietários concedidas pela Coroa – Maryland, New
do às Antilhas, à África e à Inglaterra, sendo o controle Hampshire, Nova Jérsei, Carolina do Norte, Carolina do
metropolitano constantemente burlado – o contrabando Sul, Pensilvânia, Nova Iorque e Geórgia; e c) colônias
atingia mais de 80% do comércio das Treze Colônias. reais, onde a Coroa assumiu a direção da colonização
Entre os espaços designados à Cia. de Londres e à com o passar do tempo – a Virgínia foi a primeira delas,
Cia. de Plymouth um terceiro grupo de colônias floresceu que se tornou maioria no século XVIII, exceto Maryland,
(as ‘colônias do Centro’). Outros europeus ocuparam Deleware, Pensilvânia, Connecticut e Rhode Island
este vazio territorial, principalmente os holandeses. A (JUNQUEIRA, 2010b).
Companhia das Índias Ocidentais fundou na área uma Em cada colônia, a administração ficava a cargo de
série de povoações, entre 1624 e 1633, sobressaindo- um governador, em tese representante dos interesses
-se Nova Amsterdã (berço da Nova Iorque inglesa). Aos metropolitanos, que possuía amplos poderes (nas colô-
holandeses se juntaram Suecos, finlandeses e alemães, nias das companhias, este era eleito pelos colonos e não
no vale de Delaware (CHAUNU, 1969). tinha direito de vetar as leis da assembléia). Um conselho
Após a restauração dos Stuart, os ingleses experi- (ou câmara alta), composto por membros nomeados ou
mentaram um novo impulso colonizador, tendo a região eleitos dentre os colonos mais influentes, funcionava
central como alvo principal. Entre idas e vindas os in- como órgão assessor do governador. Completavam as
gleses finalmente conseguem estabelecer o controle da instâncias de governo coloniais as assembleias eleitas
região, expulsando os holandeses na década de 1660. No pelos homens livres (geralmente de forma censitária)
bojo do processo, outras colônias foram fundadas, como responsáveis por elaborar leis e fixar impostos (AQUINO,
Deleware (1664, ligada a New York até 1701), habitada 2000).
originalmente por suecos, após um momento de domi-
nação holandesa. New Jersei surgiu no mesmo ano da SAIBA MAIS
conquista de Delaware, como propriedade de Lord John
Berkley e Sir George Carteret. Da mesma forma nasceu Os imigrantes puritanos vindos da Inglaterra para Massachusetts,
tidos como Pais Peregrinos, é peça chave para a compreensão da
a Pensilvânia? doada por Carlos II a Willian Penn, líder cultura dos EUA. A importância da religião (protestante) na sociedade
dos quakers (1681). Milhares de imigrantes europeus e na política e o senso de autogoverno comunitário são algumas das
de origens variadas (principalmente alemães), atraídos contribuições que os Pais Peregrinos legaram à nação estadunidense.
pela liberdade religiosa e pela facilidade na aquisição de Para aprofundar seu conhecimento acerca dos puritanos e seus pactos
terras, ocuparam a região central, que com o tempo se político-religiosos, leia a interessante matéria de Liliane Crété, “As
raízes puritanas”, publicada na revista História Viva, (n. 17, março de
assemelhou gradualmente à Nova Inglaterra em termos 2005) e disponível no endereço eletrônico <http://www2.uol.com.br/
socioeconômicos. historiaviva/reportagens/as_raizes_puritanas_imprimir.html>.
Na América do Sul, esta Companhia atacou Salva- 2010b). Francees e ingleses evoluíram da fase inicial
dor (1624), capital lusitana colonial, e posteriormente de pirataria e corsarismo (dos flibusteiros baseados em
dominou parte do Nordeste, baseada em Pernambuco ilhas espanholas abandonadas) para uma etapa de pro-
(1630-54). Os holandeses foram grandes financiadores dução colonial com a utilização de escravos africanos.
da indústria açucareira portuguesa no litoral nordestino, O sucesso dos franceses em São Domingos pode ser
da qual eram os principais refinadores na Europa. A percebido pelo levantamento da sua atividade econômica
luta contra a Espanha os obrigou a tomar diretamente a feito por Moreau de Saint-Méry, em 1789:
posse das áreas produtivas, sob pena de perderem os
investimentos realizados. Já na América do Norte, os [...] 793 engenhos de açúcar, 3150 plantações de anil, 789
holandeses ocuparam espaços entre os territórios das de algodão, 3117 de café, 182 destilarias de cachaça e out-
companhias de Londres e Plymouth, tendo como prin- ras aguardentes de cana, 36 fábricas de tejolos e telhas, 6
cipal fruto desse período a fundação do núcleo original fábricas de curtumes, 370 fornas de cal, 29 olarias e 50
da cidade de Nova Iorque. plantações de cacau, independentemente de um sem número
O rápido e efêmero sucesso colonial holandês se de outros estabelecimentos conhecidos [...] (in: CHAUNU,
deveu ao seu modelo de gestão empresarial, baseado 1969, p. 143)
no financiamento da produção e comércio de gêneros
exportáveis para a Europa. Porém, no momento em que No norte da América do Sul, o território que hoje
foram obrigados a custear a implantação de aparatos compreende as Guianas Britânicas, o Suriname e Guiana
coloniais e sua defesa (frente aos colonos brasílicos Francesa (ainda pertencente à França) teve o mesmo
no Nordeste português e dos ingleses na América do destino das Antilhas: foi abandonado pelos espanhóis,
Norte), bem como a concorrência do comércio inglês incapazes de efetivar o povoamento da região, e ocupado
em expansão, os holandeses perderam seu ímpeto (leia- por holandeses, ingleses e franceses.
-se lucros) e foram forçados a recuar para pequenos
enclaves ao redor do mundo, terminando assim a fase Crise do colonialismo na América
áurea do seu colonialismo, restando na América apenas
algumas ilhas caribenhas e as Guianas. Ao longo dos séculos XVI e XIX, embarcações singra-
vam as águas do oceano Atlântico levando pessoas, ide-
A colonização das Antilhas ais e mercadorias de uma margem a outra, conectando
as Américas ao Velho Mundo. Enquanto as colônias na
Na região das Antilhas e Caribe, franceses, ingleses, América fomentavam a acumulação primitiva de capi-
holandeses e dinamarqueses aproveitaram-se do aban- tais nos pólos dinâmicos do capitalismo na Europa, as
dono espanhol após o genocídio da época da conquista metrópoles europeias formulavam o ideário sociopolítico
(séculos XV e XVI) para preencher o vazio nas ilhas des- que alimentava, aqui e ali, sonhos emancipacionistas em
povoadas. Ao longo do século XVII, a Inglaterra colonizou solo americano.
as ilhas de Nevis, São Cristóvão, Montserrat, Barbados
e Jamaica; a França ocupou a parte de ocidental de São Profundas transformações, que estavam sendo gesta-
Domingos (atual Haiti) e outras ilhas menores; a Holanda das há tempos, eclodiram com suas forças renovadoras
dominou as ilhas de Aruba, Curaçao, Santo Eustáquio, na segunda metade do século XVIII. No plano econômico,
Margarida e Bonária; e a Dinamarca, após a fundação a transição do capitalismo mercantil para o industrial
da Companhia Dinamarquesa das Índias Ocidentais, pressionou as estruturas mercantilistas ibéricas, mate-
em 1671, conquistou as Ilhas Virgens, mantida sob seu rializadas no Pacto Colonial que embasava as relações
domínio até 1917 (CHAUNU, 1969). entre as metrópoles e suas colônias:
No universo de ilhas da região Cuba, Porto Rico, São
Domingos e Jamaica se sobressaíram como centros
Na busca pela ampliação dos mercados, os ingleses impõe
produtores de gêneros coloniais. Nelas, a produção do
ao mundo o livre comércio e o abandono dos princípios
açúcar se destacava, beneficiada pelo eclipse do Nor- mercantilistas, ao mesmo tempo que tratam de proteger seu
deste açucareiro da América portuguesa (JUNQUEIRA, próprio mercado e o de suas colônias com tarifas protecioni-
stas. Em suas relações com a América portuguesa e espan- constante fluxo contrabandista inglês que alimentou a
hola, abrem brechas cada vez maiores no sistema colonial, região platina a partir da Colônia de Sacramento (fundada
por meio de acordos comerciais, contrabando e aliança com pelos portugueses em 1680 nas margens do Prata, frente
os comerciantes locais. (FAUSTO, 2000, p. 108)
a Buenos Aires) ao longo de um século ilustra o quadro
de decadência espanhola. Para solucionar a conjuntura
A conformação do imperialismo inglês, ao longo do de crise econômica, os hispânicos buscaram realizar
século XVIII, gerou tensões com seus colonos america- reformas que revertessem seu atraso em relação aos
nos, acostumados a desfrutar de um elevado grau de ingleses.
autonomia política e relativa liberdade econômica. As A ascensão dos Bourbons ao trono espanhol (1700),
contradições entre o liberalismo inglês ‘da porta para após a crise sucessória, levou a uma aparente estabi-
fora’ e as iniciativas de fortalecimento das amarras lidade. Novas bases para a política colonialista foram
colonialistas na América do Norte não passaram des- lançadas, buscando uma “nacionalização” da economia
percebidas nas Treze Colônias. metropolitana e colonial. Urgia retomar o controle do
De modo geral, o incremento das forças produtivas na sistema, afastando os estrangeiros do comércio direto
América colonial (principalmente nas colônias inglesas) com as colônias na América, bem como das casas
confrontava os interesses metropolitanos aos dos colo- comerciais em Cádiz que funcionavam como ‘testas de
nos, desejosos de comerciar sua produção livremente, ferro’ de companhias inglesas e francesas. Porém, a
sem as amarras impostas pelo sistema mercantilista. economia espanhola era incapaz de fornecer os artigos
Atentos aos princípios de representação política que em- manufaturados necessários aos colonos, dado o atraso
basaram a Revolução Gloriosa (1688-9) na metrópole, os neste campo. Não obstante, pretendeu-se substituir as
colonos da Nova Inglaterra resistiram contra as medidas importações de manufaturas pela produção interna “de-
da Coroa que afetavam seus negócios sem que fossem senvolvendo a autonomia econômica via maximização
consultados, causando fissuras nos elos entre as duas do pacto colonial” (STEIN, 1976, p. 70).
partes que desembocaram nas lutas pela independência Entretanto, séculos de manutenção de um estado de
das Treze Colônias. coisas que favorecia alguns setores mercantis metro-
Já no âmbito do colonialismo hispânico, politanos (verdadeiras guildas comerciais), ligados aos
grandes empórios europeus, engessaram de tal sorte as
[...] o antagonismo criollos versus peninsulares levou os estruturas socioeconômicas espanholas que os impulsos
primeiros a uma lenta tomada de consciência quanto ao iniciais das reformas bourbônicas foram bloqueados.
novo papel que almejavam desempenhar. Queriam dirigir Somente com a subida de Carlos III (1759) ao trono,
seus próprios destinos, sem interferência de além-mar. Tin- as resistências começaram a dissipar-se. As medidas
ham como justificativa ideológica o pensamento iluminista, tomadas pela Coroa e seus novos agentes administrati-
que sacudiu o Antigo Regime na Europa e embasava suas vos feriram os privilégios estabelecidos e reformularam
reivindicações referentes à liberdade comercial e autonomia instituições metropolitanas tradicionais.
administrativa. (JUNQUEIRA, 2010b, p. 54)
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