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Renato Sztutman2
Este pequeno ensaio expõe o meu ponto de vista de etnólogo sobre a questão dos rios,
das margens e das cidades. Etnólogo que se dedica ao estudo de cosmologias de
populações indígenas da Amazônia, ainda que tenha passado tão pouco tempo entre
elas. Nesse sentido, não vou me pautar em uma experiência própria com populações
indígenas; devo, isso sim, passar rapidamente por materiais históricos sobre essas
populações para então me debruçar um pouco mais detidamente sobre a mitologia
colhida por outros etnólogos. Seguindo as pistas de autores como Claude Lévi-Strauss
e Eduardo Viveiros de Castro, temos nos mitos uma via de acesso privilegiada para
adentrar o pensamento dos povos indígenas, o que inclui uma reflexão sobre o que
significa para eles a civilização – tanto a deles como a nossa.
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Amazônia. “Quando, em 1541, uma expedição espanhola que se extraviara enviou
num barco cerca de 50 homens em busca de víveres, esse deslocamento enveredou
pelo rio desconhecido que viria a chamar-se Amazonas. Após algumas semanas de
navegação ingrata, separados de sua base, esses homens tiveram como único recurso
deixar-se levar pela correnteza. Atingiram enfim uma região na qual, num percurso de
3 mil quilômetros, ofereceram-se a seus olhos verdadeiras cidades. No dizer do
cronista da expedição, frei Gaspar de Carvajal, cada uma estendia-se por várias léguas
ao longo do rio e compreendia centenas de casas de uma brancura irradiante (essa
observação retorna como um leitmotiv e faz crer que não eram choupanas). Uma
população muito densa as habitava, formando, ao que parece, grandes núcleos
militares, alguns aliados, outros hostis, como o deixavam supor as fortificações
ornadas de esculturas monumentais que as defendiam e as fortalezas construídas nas
colinas. Estradas bem conservadas, margeadas de árvores frutíferas, atravessavam
campos cultivados. Elas iam muito longe, não se sabe até que outros centros
habitados”.3
Os relatos dos cronistas dos séculos XVI e do XVII – ainda que operem por
projeções algo fantasiosas – trazem uma imagem da civilização indígena amazônica
bastante diversa daquela que vemos hoje. Isso, para Lévi-Strauss, nada mais é do que o
testemunho de um imenso massacre que se estendeu séculos a fio, pondo a perder
todo um mundo. Baseado em estimativas recentes, Lévi-Strauss alega que a população
da bacia amazônica no início da Conquista era de entre 7 a 8 milhões de pessoas.
(Algo que contrasta fortemente com os atuais 600 mil índios no Brasil atual.) E,
diferentemente do que se imaginou, a história de ocupação na Amazônia é bastante
remota. Os dados evocados por Lévi-Strauss bastam para desmontar a hipótese de que
os vestígios de civilizações complexas na várzea amazônica seriam resultado da
difusão ou mesmo de degeneração de traços da cultura andina, dado que o ambiente
amazônico não seria propício para o desenvolvimento de civilizações por assim dizer
complexas.
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imagem nem sempre apropriada do Império – e, enfim, vislumbrarmos a realidade
amazônica. Apesar de todo o avanço dessas pesquisas, permanecemos ainda sob a
dificuldade de conceitualizar a tal “complexidade sociopolítica”, as tais “cidades” do
passado amazônico. Em vista de todas as novas descobertas, tratadas com entusiasmo,
Lévi-Strauss desabafa: “Depois das certezas de outrora, somos agora obrigados a
confessar que nada sabemos”.4
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amazônicos, o que nos permite compreender que eles figuram como imagens
profícuas na sua mitologia. (O meio líquido oferece, de fato, um substrato privilegiado
para pensar a coextensão ontológica de todos os seres do cosmos.) Os mitos pensam
com rios, e pensam assim inclusive o impossível – evocam, em certos casos, a figura
de “rios de mão dupla”, estes que instauram a simetria temporal entre as viagens rio-
acima e as viagens rio-abaixo. Simetria tão improvável quanto a abolição da vida
breve.6
6
Refiro-me aqui a um mito do povo Tamanac (M415), incluído em As origens dos modos à mesa:
Mitológicas III (op. cit.), que conta a história de um demiurgo que procurou transpor a simetria da
duração do dia e da noite para a duração das viagens rio-acima e rio-abaixo, fazendo o Orinoco correr
nos dois sentidos. Mas ele não teve sorte.
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cerimoniais (os assim chamados dabukuris), partilha de um sistema ritual – que tem
como foco o rito de iniciação masculina, o Jurupari – e de uma mitologia de origem.
Cada povo vê-se associado a um território específico, a privilégios rituais e a artefatos
especiais que devem ser exibidos e trocados nos dabukuris. Cada povo é concebido
como constituído por clãs de diferentes status, e isso ganha visibilidade nos rituais e
tem a ver com a mitologia. Toda essa hierarquia parece estar menos atrelada à idéia de
subordinação do que à de complementaridade, forjando um sistema orquestrado de
diferenças que não se confunde com modos de unificação política.
Há um mito que viaja por toda a região do alto rio Negro, e que se transforma
conforme narrado por um povo ou por outro, num momento ou noutro da
experiência dos narradores. Trata-se do mito da viagem da Cobra-canoa, esta que
parte de um espaço primordial – o Lago de Leite –, subindo por um rio subterrâneo
até chegar a uma região de cabeceiras. Este mito fala da origem do cosmos e das
diferenças entre humanos e animais, entre índios e brancos e entre os diferentes povos
rio-negrinos. A Cobra-canoa, figura do contínuo, veículo de um impressionante
cromatismo, contém em seu interior todas as possibilidades de realização dos seres e
das coisas. Através dela todas as diferenças vão se desdobrando até chegar ao mundo
no estado atual.
A cobra que sobe o rio para instaurar todas as diferenças é também uma canoa, e a
Cobra-canoa confunde-se com o rio, pois já não se sabe o que é conteúdo e o que é
continente, afinal, em muitas versões, o mito da Cobra-canoa é também o mito de
origem das teias fluviais, que se emprestam para pensar a relação entre os povos. Este
conjunto de versões pode ser visto como transformação de um mito que se espalha
por toda a América, o mito da viagem de canoa de Sol e Lua, muitas vezes associados a
um par de gêmeos demiurgos. Esse mito, fartamente examinado no terceiro volume
das Mitológicas, A origem dos modos à mesa,7 fala do estabelecimento dos intervalos
temporais, da alternância entre dia e noite e da origem das estações do ano. Fala,
como grande parte dos mitos, da passagem do estado contínuo para o estado
descontínuo, marca do estabelecimento da cultura, da civilização. Fala do
7
Op. cit.
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estabelecimento de periodicidades inscritas – analogamente – no cosmos e nos
corpos. A distância entre os astros inflete, pois, sobre a distância entre os humanos.
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fragmentos. Sol, herói primordial que põe a diferenciação entre os patamares do
cosmos, estabelece o grande Lago de Leite, espécie de pré-cosmos, em que tudo existe
de modo virtual, lugar da criação, para onde fluem todos os rios, um extremo jusante.
Segundo o antropólogo Geraldo Andrello, analisando versões mais recentes deste
mito, o Lago de Leite é antes de tudo um lugar, que se opõe às cabeceiras do rio
Uaupés, podendo ser identificado – conforme o contexto da narração – ao rio Negro,
ao Amazonas ou mesmo ao Oceano ou à Baía da Guanabara, de onde vêm os
brancos.11
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A “criação” seria aqui melhor descrita como transformação e separação –
separação entre humanos e animais, entre domínios do cosmos, cada qual atribuído a
um mestre ou dono distinto. Separação também dos humanos entre si, cada povo
passando a falar uma língua diferente, a ocupar um território particular, a deter
conhecimentos e objetos distintos. Segundo o etnólogo Aloísio Cabalzar, a mitologia
desses povos tem como tema central a separação entre humanos e peixes.12 Contam os
Tuyuka e os Tukano do rio Tiquié que no tempo que antecede a viagem da cobra-
canoa todos os seres eram gente-peixe, wai masã. É somente com a viagem da cobra-
canoa que os humanos ganhariam a sua forma atual, tornando-se “gente da
transformação”. Mas é preciso ter em mente que, segundo a cosmologia desses povos,
se os peixes não são atualmente vistos pelos humanos como gente, isso não significa
que eles não o sejam, afinal eles se vêem como tais, e vivem como tais por trás de seus
disfarces, de suas escamas. Por não terem se transformado e por não serem
reconhecidos pelos humanos como gente, os peixes constituem uma forte ameaça,
podendo causar danos – isto é, doenças – aos humanos. É por isso que os índios
pensam que, antes de comer peixe, base aliás da dieta destes povos, é preciso a
intervenção dos xamãs, os únicos capazes de negociar com os seres subaquáticos. A
idéia de que humanos e peixes compartilham a mesma “gentidade”, envia diretamente
para o tema do “perspectivismo” , tal como apresentado por Eduardo Viveiros de
Castro.13 Decorre daí que, embora peixes e humanos concebam-se como gente, eles
possuem corpos diferentes e travam entre si uma luta para impor sobre o outro a sua
perspectiva, para afirmar a sua “gentidade” às custas da dessubjetivação de outrem.
Os peixes, aliás, podem fazer com que os humanos voltem a ser peixes, pois o mundo
perspectivista é um mundo altamente transformacional, nenhuma posição sendo aí
suficientemente segura.
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si – e a “gente da transformação” – os humanos propriamente ditos, os pamuri-masã.
Nesta versão, Yeba Oãku, o primeiro xamã do mundo, ainda “gente do
aparecimento”, faz surgir todos os humanos, todos os povos, inclusive os brancos.
Pássaros caíram no Lago de Leite e se transformaram em peixes, cujos corpos, de sua
parte, se transformaram em canoas, que são uma Sucuri, pumuri-pirõ, a “cobra da
transformação”. E ela vai subindo o rio e vai parando em casas de transformação,
onde os ancestrais passam a realizar cerimônias e obtêm bens e atributos culturais. A
canoa é então perfurada na cachoeira de Ipanoré, onde todos se dispersam já sob
forma humana. Vemos então a partilha: de um lado, os que se transformaram; de
outro, os que permaneceram peixes, pois não foram incluídos na viagem de canoa.
A terceira e última versão que incluo aqui é a que se encontra no livro de Geraldo
Andrello, Cidade do índio,14 no qual é discutido o significado da civilização dos
brancos, tal como atribuído pelos índios Tukano e Tariano do povoado multiétnico de
Iauaretê, no rio Uaupés. O tom desta versão recai na origem dos brancos, que teriam
se separado dos índios em tempos remotos, mas que voltaram a viver com eles em
14
Op. cit.
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Iauaretê. Como vemos, os mitos incorporam, ou melhor, digerem a experiência
histórica, sem com isso redundar num testemunho objetivo dos fatos.
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dá a diferenciação das línguas e também a transformação dos povos de irmãos em
cunhados. Surgem também os cantos característicos de cada grupo, bem como a
obtenção dos instrumentos de transformação. Como resume Andrello, “agora são
humanos prontos, comem da mesma comida de que os Tukano se alimentam até hoje
e se reproduzem por meio de relações sexuais. Estão prontos para fazer a sua própria
história”.15
Os mitos aqui apresentados mereceriam uma exposição mais detalhada. Isso sem
falar na profusão sem fim de versões a que todos eles são dados. Meu objetivo aqui foi
tão somente aguçar nossa imaginação diante da rica reflexão que propõem todas essas
narrativas. Reflexão sobre a constituição de uma civilização que emerge do caldo
transformacional dos rios e que faz da orquestração das diferenças – entre os homens
eles-mesmos, mas também entre os homens e os demais seres do cosmos – um
horizonte inabalável. Talvez seja esta a marca maior da sua complexidade, esta que
apenas começamos a tatear.
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Op. cit.; p. 389.
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