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Mitologia fluvial, civilização submersa1

Renato Sztutman2

À memória de Claude Lévi-Strauss

Este pequeno ensaio expõe o meu ponto de vista de etnólogo sobre a questão dos rios,
das margens e das cidades. Etnólogo que se dedica ao estudo de cosmologias de
populações indígenas da Amazônia, ainda que tenha passado tão pouco tempo entre
elas. Nesse sentido, não vou me pautar em uma experiência própria com populações
indígenas; devo, isso sim, passar rapidamente por materiais históricos sobre essas
populações para então me debruçar um pouco mais detidamente sobre a mitologia
colhida por outros etnólogos. Seguindo as pistas de autores como Claude Lévi-Strauss
e Eduardo Viveiros de Castro, temos nos mitos uma via de acesso privilegiada para
adentrar o pensamento dos povos indígenas, o que inclui uma reflexão sobre o que
significa para eles a civilização – tanto a deles como a nossa.

Aprendemos na escola que grandes civilizações nasceram às margens de grandes


rios: o Nilo, o Tigre, o Eufrates, o Ganges, entre outros. Diante disso, que dizer do
nosso grande rio, o Amazonas, e seus importantes afluentes, como o Negro e o
Tapajós? Aprendemos também que as civilizações que floresceram na Amazônia
ficaram à margem daquelas que tiveram seu apogeu com os Inca. Os Andes foram
reconhecidos como berço de grandes civilizações, tendo vivido certo processo de
urbanização, ao passo que o mundo amazônico foi associado à selvageria.

Na Apresentação de Saudades do Brasil, Lévi-Strauss volta ao século XVI, quando


das primeiras expedições espanholas, para divisar uma imagem diferente da

























































1
Agradeço a José Lira pela leitura cuidadosa.
2
Renato Sztutman é professor de antropologia da Universidade de São Paulo.


 1

Amazônia. “Quando, em 1541, uma expedição espanhola que se extraviara enviou
num barco cerca de 50 homens em busca de víveres, esse deslocamento enveredou
pelo rio desconhecido que viria a chamar-se Amazonas. Após algumas semanas de
navegação ingrata, separados de sua base, esses homens tiveram como único recurso
deixar-se levar pela correnteza. Atingiram enfim uma região na qual, num percurso de
3 mil quilômetros, ofereceram-se a seus olhos verdadeiras cidades. No dizer do
cronista da expedição, frei Gaspar de Carvajal, cada uma estendia-se por várias léguas
ao longo do rio e compreendia centenas de casas de uma brancura irradiante (essa
observação retorna como um leitmotiv e faz crer que não eram choupanas). Uma
população muito densa as habitava, formando, ao que parece, grandes núcleos
militares, alguns aliados, outros hostis, como o deixavam supor as fortificações
ornadas de esculturas monumentais que as defendiam e as fortalezas construídas nas
colinas. Estradas bem conservadas, margeadas de árvores frutíferas, atravessavam
campos cultivados. Elas iam muito longe, não se sabe até que outros centros
habitados”.3

Os relatos dos cronistas dos séculos XVI e do XVII – ainda que operem por
projeções algo fantasiosas – trazem uma imagem da civilização indígena amazônica
bastante diversa daquela que vemos hoje. Isso, para Lévi-Strauss, nada mais é do que o
testemunho de um imenso massacre que se estendeu séculos a fio, pondo a perder
todo um mundo. Baseado em estimativas recentes, Lévi-Strauss alega que a população
da bacia amazônica no início da Conquista era de entre 7 a 8 milhões de pessoas.
(Algo que contrasta fortemente com os atuais 600 mil índios no Brasil atual.) E,
diferentemente do que se imaginou, a história de ocupação na Amazônia é bastante
remota. Os dados evocados por Lévi-Strauss bastam para desmontar a hipótese de que
os vestígios de civilizações complexas na várzea amazônica seriam resultado da
difusão ou mesmo de degeneração de traços da cultura andina, dado que o ambiente
amazônico não seria propício para o desenvolvimento de civilizações por assim dizer
complexas.

Pesquisas recentes em etnohistória e arqueologia nos convidariam, desse modo, a


descentrarmos o nosso olhar de províncias como os Andes e o México – carregadas da

























































3
Saudades do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 11; grifos meus.


 2

imagem nem sempre apropriada do Império – e, enfim, vislumbrarmos a realidade
amazônica. Apesar de todo o avanço dessas pesquisas, permanecemos ainda sob a
dificuldade de conceitualizar a tal “complexidade sociopolítica”, as tais “cidades” do
passado amazônico. Em vista de todas as novas descobertas, tratadas com entusiasmo,
Lévi-Strauss desabafa: “Depois das certezas de outrora, somos agora obrigados a
confessar que nada sabemos”.4

Antes de perguntar como podemos reconstruir por meio da história e da


arqueologia o passado das civilizações amazônicas, talvez fosse interessante perguntar
o que, para os próprios povos amazônicos, significa a sua civilização. Eu gostaria,
nesse sentido, de adentrar o terreno da mitologia, terreno tão bem explorado pelo
próprio Lévi-Strauss, autor dos quatro volumes das Mitológicas, obra inteiramente
dedicada à análise dos mitos ameríndios.5 Aprendemos com Lévi-Strauss que o
objetivo principal dos mitos não é o de refazer o percurso de um passado menos ou
mais remoto, mas sim refletir sobre questões bastante gerais, como a passagem da
natureza para a cultura, o significado da vida social e da diversidade dos seres e dos
povos. O mito não é jamais um reflexo da organização social e da história de um povo
ou de um conjunto de povos, ele é, diferentemente, uma reflexão enviesada sobre tudo
isso.

Lévi-Strauss insiste no fato de que os mitos se transformam uns nos outros,


atravessando fronteiras culturais e étnicas. Não há um mito original por trás de todas
essas transformações, mas sim uma profusão de versões, todas elas devendo ser
tratadas com a mesma seriedade, inclusive quando passam a se contradizer, afinal a
contradição pode conduzir a problemas estruturais. E há mais: os mitos se pensam
através dos homens, não são resultado de autores individuais. E se eles pensam, eles o
fazem diferentemente da ciência e da filosofia modernas, uma vez que pensam
prioritariamente através de signos, pensam com as coisas, extraindo do concreto uma
lógica das qualidades sensíveis. E já que estamos falando de rios e de civilizações, é
preciso lembrar que os rios são parte central da experiência sensível dos povos

























































4
Idem; p. 294.
5
O cru e o cozido: Mitológicas I (São Paulo: Cosac Naify, [1964] 2004); Do mel às cinzas: Mitológicas II
(São Paulo: Cosac Naify, [1967] 2005); A origem dos modos à mesa: Mitológicas III (São Paulo: Cosac
Naify, [1968] 2006); L’homme nu: Mythologiques IV (Paris: Plon, 1971).


 3

amazônicos, o que nos permite compreender que eles figuram como imagens
profícuas na sua mitologia. (O meio líquido oferece, de fato, um substrato privilegiado
para pensar a coextensão ontológica de todos os seres do cosmos.) Os mitos pensam
com rios, e pensam assim inclusive o impossível – evocam, em certos casos, a figura
de “rios de mão dupla”, estes que instauram a simetria temporal entre as viagens rio-
acima e as viagens rio-abaixo. Simetria tão improvável quanto a abolição da vida
breve.6

Gostaria de me concentrar agora sobre uma mitologia particular, a mitologia dos


povos do alto rio Negro. Estes povos, em especial aqueles que falam línguas
tukanoano e arawak, concebem-se como “índios do rio”, e concebem a origem de sua
civilização a partir de uma profusão de metáforas fluviais. Poderíamos mesmo dizer
que, com eles, mergulhamos numa mitologia fluvial. Muitos estudiosos destes povos
aventaram hipóteses de que a hierarquia que atualmente funda o seu sistema de papéis
rituais especializados seria a sobrevivência de uma civilização bem mais complexa.
Fontes históricas revelam evidências da ocorrência de uma imensa rede política e
comercial, estendida da região de encontro entre o Amazonas e o Negro – centro do
domínio dos povos Manao (Arawak), ao que tudo indica fortemente hierarquizados –
até certas paragens do Solimões e do alto Negro. Já em meados do XVIII, essa rede
teria sido desmantelada pela ação de colonizadores e missionários, tendo muitos
desses povos se refugiado em regiões de terra firme. Faltam elementos, no entanto,
para esclarecer se os atuais sistemas do alto rio Negro teriam ou não ligações diretas
com as antigas civilizações da várzea.

A região do alto rio Negro abriga atualmente um sistema sócio-ritual regional,


composto por três conjuntos de povos: os povos Tukanoano, os povos Arawak e os
povos Maku. O conjunto Tukanoano, com o qual devo me ocupar, compõe-se de 17
etnias, cada qual falante de uma língua diversa, articuladas entre si por uma extensa
rede de trocas, que inclui casamentos exogâmicos (exolingüísticos), circuitos de trocas


























































6
Refiro-me aqui a um mito do povo Tamanac (M415), incluído em As origens dos modos à mesa:
Mitológicas III (op. cit.), que conta a história de um demiurgo que procurou transpor a simetria da
duração do dia e da noite para a duração das viagens rio-acima e rio-abaixo, fazendo o Orinoco correr
nos dois sentidos. Mas ele não teve sorte.




 4

cerimoniais (os assim chamados dabukuris), partilha de um sistema ritual – que tem
como foco o rito de iniciação masculina, o Jurupari – e de uma mitologia de origem.
Cada povo vê-se associado a um território específico, a privilégios rituais e a artefatos
especiais que devem ser exibidos e trocados nos dabukuris. Cada povo é concebido
como constituído por clãs de diferentes status, e isso ganha visibilidade nos rituais e
tem a ver com a mitologia. Toda essa hierarquia parece estar menos atrelada à idéia de
subordinação do que à de complementaridade, forjando um sistema orquestrado de
diferenças que não se confunde com modos de unificação política.

Há um mito que viaja por toda a região do alto rio Negro, e que se transforma
conforme narrado por um povo ou por outro, num momento ou noutro da
experiência dos narradores. Trata-se do mito da viagem da Cobra-canoa, esta que
parte de um espaço primordial – o Lago de Leite –, subindo por um rio subterrâneo
até chegar a uma região de cabeceiras. Este mito fala da origem do cosmos e das
diferenças entre humanos e animais, entre índios e brancos e entre os diferentes povos
rio-negrinos. A Cobra-canoa, figura do contínuo, veículo de um impressionante
cromatismo, contém em seu interior todas as possibilidades de realização dos seres e
das coisas. Através dela todas as diferenças vão se desdobrando até chegar ao mundo
no estado atual.

A cobra que sobe o rio para instaurar todas as diferenças é também uma canoa, e a
Cobra-canoa confunde-se com o rio, pois já não se sabe o que é conteúdo e o que é
continente, afinal, em muitas versões, o mito da Cobra-canoa é também o mito de
origem das teias fluviais, que se emprestam para pensar a relação entre os povos. Este
conjunto de versões pode ser visto como transformação de um mito que se espalha
por toda a América, o mito da viagem de canoa de Sol e Lua, muitas vezes associados a
um par de gêmeos demiurgos. Esse mito, fartamente examinado no terceiro volume
das Mitológicas, A origem dos modos à mesa,7 fala do estabelecimento dos intervalos
temporais, da alternância entre dia e noite e da origem das estações do ano. Fala,
como grande parte dos mitos, da passagem do estado contínuo para o estado
descontínuo, marca do estabelecimento da cultura, da civilização. Fala do


























































7
Op. cit.


 5

estabelecimento de periodicidades inscritas – analogamente – no cosmos e nos
corpos. A distância entre os astros inflete, pois, sobre a distância entre os humanos.

Voltemos aos povos rio-negrinos, que se pensam como originários do corpo da


Cobra-canoa que se despedaça e dá origem a casas de transformação, locais em que os
ancestrais dos humanos ganham a sua forma atual. A idéia de casa é bastante
importante, já que guarda uma analogia com o cosmos e com os corpos, como
evidenciou a antropóloga Christine Hugh-Jones.8 A maloca é uma representação do
universo, e esta representação ganha vida quando dos rituais de iniciação masculina: o
teto faz-se céu, as vigas, as montanhas; e por baixo do chão passa a correr o rio dos
mortos. (Quando um tukano morre, é feita uma cova no chão da maloca, sendo o
caixão uma canoa partida ao meio. Assim, o sepultamento é pensado como um futuro
nascimento, a alma devendo voltar para a sua casa de origem.) O rio dos mortos corre
no sentido oposto dos rios empíricos, ou seja, de leste a oeste. Diante desse excesso de
analogia, tudo se passa como se todos os fluxos fossem pensados como rios. Como
visualiza o antropólogo Stephen Hugh-Jones, “se os rios correm através da casa-
universo e o corpo é uma espécie de casa, segue-se que as tripas e os genitais humanos
são ‘rios’; e ainda que os vermes e parasitas são anacondas”.9 A vida seria, assim, um
mover-se na contracorrente, como a piracema: assim fez a Cobra-Canoa, que em
direção ao oeste foi bater no meio do universo, ali onde os homens irromperam.

A primeira versão do mito que eu gostaria de apresentar é aquela trazida por


Gerardo Reichel-Dolmatoff em seu belo livro sobre os Desana, Amazonian cosmos.10
O autor adverte que o mito da criação do universo costuma ser recitado em todas as
ocasiões quando um grupo se reúne para beber cerveja de mandioca e dançar. Este
mito pode ser contado em voz alta, com a ajuda de gestos e exclamações, os homens
podendo inclusive recitá-lo em uníssono. Obtido por este etnólogo de um único
informante, o mito é composto de uma seqüência de episódios apresentada de modo
pouco linear. Aqui, infelizmente, poderei parafrasear apenas alguns de seus

























































8
From the Milk River: spatial and temporal processes in North-West Amazonia. Cambridge: Cambridge
University Press, 1979.
9
www.socioambiental.org/pib/epi/uaupés

10
Amazonian cosmos: the sexual and religious symbolism of the Tukano indians. Chicago: University of
Chicago Press, 1971.


 6

fragmentos. Sol, herói primordial que põe a diferenciação entre os patamares do
cosmos, estabelece o grande Lago de Leite, espécie de pré-cosmos, em que tudo existe
de modo virtual, lugar da criação, para onde fluem todos os rios, um extremo jusante.
Segundo o antropólogo Geraldo Andrello, analisando versões mais recentes deste
mito, o Lago de Leite é antes de tudo um lugar, que se opõe às cabeceiras do rio
Uaupés, podendo ser identificado – conforme o contexto da narração – ao rio Negro,
ao Amazonas ou mesmo ao Oceano ou à Baía da Guanabara, de onde vêm os
brancos.11

No mito desana, o povoamento da terra teria sido obra de Pamuri-mahsë, filho do


Sol e protótipo de todos os xamãs (kumua) por possuir poderes de transformação.
Pamuri-mahsë teria empreendido uma viagem de canoa ao longo do rio subterrâneo,
Ahpikondá – também chamado pelos índios de “Paraíso”. Esta canoa assume forma
de um ser vivente, uma imensa Sucuri, Pamuri-Gahsíru. Pamuri, em desana, quer
dizer “fermentar” e mahsë, “gente”. Gahsíru, de sua parte, quer dizer “placenta”,
donde temos que a Cobra-canoa é antes de tudo uma “placenta que fermenta”, uma
“placenta primordial”, onde as gentes estão sendo gestadas. Reichel-Dolmatoff
ressalta, entre os Desana, todo o simbolismo sexual que sustenta as narrativas míticas
e a cosmologia.

Na viagem da Sucuri rio-acima surge inesperadamente a noite: um coletivo de


formigas saúvas escapa de dentro de um saco, e sobe aos céus. Mas a primeira noite
tem logo de ser domesticada por Pamuri-mahsë, de modo que possa alternar-se com a
luz do dia. Segue então a origem da humanidade, quando, na cachoeira de Ipanoré, já
no rio Uaupés, a cobra-canoa bate numa rocha dura, que a perfura. Os ancestrais dos
humanos se dispersam, uns rumam às cabeceiras, outros permanecem próximos do
curso do Uaupés. Pamuri-mahsë distribui entre eles objetos distintos: os Desana ficam
com o arco, os Tukano e os Pira-Tapuya com a rede de pescar, os Kuripako com o
ralador de mandioca, os Cubeo com as máscaras, os Maku com os cestos. Estaria
formado, assim, o sistema multiétnico e plurilingüístico rio-negrino.

























































11
Nas palavras de Andrello, “o ato de localizar geograficamente o Lago de Leite parece associado a
sucessivas transformações na forma de conceber o espaço, o que se relaciona diretamente às
transformações históricas. Em todos os casos, é o lugar de origem da humanidade”. Cidade do índio:
transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo: Ed. da UNESP / ISA / NuTI, 2006; p. 361.


 7

A “criação” seria aqui melhor descrita como transformação e separação –
separação entre humanos e animais, entre domínios do cosmos, cada qual atribuído a
um mestre ou dono distinto. Separação também dos humanos entre si, cada povo
passando a falar uma língua diferente, a ocupar um território particular, a deter
conhecimentos e objetos distintos. Segundo o etnólogo Aloísio Cabalzar, a mitologia
desses povos tem como tema central a separação entre humanos e peixes.12 Contam os
Tuyuka e os Tukano do rio Tiquié que no tempo que antecede a viagem da cobra-
canoa todos os seres eram gente-peixe, wai masã. É somente com a viagem da cobra-
canoa que os humanos ganhariam a sua forma atual, tornando-se “gente da
transformação”. Mas é preciso ter em mente que, segundo a cosmologia desses povos,
se os peixes não são atualmente vistos pelos humanos como gente, isso não significa
que eles não o sejam, afinal eles se vêem como tais, e vivem como tais por trás de seus
disfarces, de suas escamas. Por não terem se transformado e por não serem
reconhecidos pelos humanos como gente, os peixes constituem uma forte ameaça,
podendo causar danos – isto é, doenças – aos humanos. É por isso que os índios
pensam que, antes de comer peixe, base aliás da dieta destes povos, é preciso a
intervenção dos xamãs, os únicos capazes de negociar com os seres subaquáticos. A
idéia de que humanos e peixes compartilham a mesma “gentidade”, envia diretamente
para o tema do “perspectivismo” , tal como apresentado por Eduardo Viveiros de
Castro.13 Decorre daí que, embora peixes e humanos concebam-se como gente, eles
possuem corpos diferentes e travam entre si uma luta para impor sobre o outro a sua
perspectiva, para afirmar a sua “gentidade” às custas da dessubjetivação de outrem.
Os peixes, aliás, podem fazer com que os humanos voltem a ser peixes, pois o mundo
perspectivista é um mundo altamente transformacional, nenhuma posição sendo aí
suficientemente segura.

Cabalzar identifica na mitologia tuyuka e tukano uma distinção entre a “gente do


aparecimento” (bahuari masã) – os ancestrais dos humanos, habitantes de um tempo
em que as espécies não tinham existência autônoma podendo copular e casar-se entre

























































12
“Gente-peixe: os peixes na cosmologia dos povos Tukano do Tiquié”. In: Cabalzar, Aloísio (org.).
Peixe e gente no alto rio Tiquié: conhecimentos tukano e tuyuka, ictiologia e etnologia. São Paulo: ISA,
2005.
13
“Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: A inconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify: 2002.


 8

si – e a “gente da transformação” – os humanos propriamente ditos, os pamuri-masã.
Nesta versão, Yeba Oãku, o primeiro xamã do mundo, ainda “gente do
aparecimento”, faz surgir todos os humanos, todos os povos, inclusive os brancos.
Pássaros caíram no Lago de Leite e se transformaram em peixes, cujos corpos, de sua
parte, se transformaram em canoas, que são uma Sucuri, pumuri-pirõ, a “cobra da
transformação”. E ela vai subindo o rio e vai parando em casas de transformação,
onde os ancestrais passam a realizar cerimônias e obtêm bens e atributos culturais. A
canoa é então perfurada na cachoeira de Ipanoré, onde todos se dispersam já sob
forma humana. Vemos então a partilha: de um lado, os que se transformaram; de
outro, os que permaneceram peixes, pois não foram incluídos na viagem de canoa.

Segundo Cabalzar, wai-masã, “gente peixe”, é um conceito cujo campo semântico


vai além dos peixes como espécie, designando formas co-extensivas da animalidade e
da sobrenatureza. Wai está também na raiz de waikura, que significa “animal de
caça”. As cobras são também pensadas como hipóstases da “gente peixe”, ou mesmo
como canoas que carregam os peixes nos rios dos dias de hoje. A Sucuri, predador
aquático, é um ser que se transforma em outros predadores terrestres e aéreos, como
os jaguares e os gaviões reais. Segundo Cabalzar, a maior diferença entre wai masã e
pamuri masã é que os últimos estão mais fixados em sua posição de humanos, ao
passo que os demais estão mais afeitos a transformações. O conceito de masã, de sua
parte, é traduzido pelo autor como “gente” ou como “coletivo de pessoas”. De um
ponto de vista cosmológico, este conceito pode ser estendido aos animais e a outros
seres do cosmos. De um ponto de vista sociológico, assim como humanos e peixes são
diferentes tipos de gente, os vários povos humanos, que se diferenciaram na viagem de
canoa, também o são, já que possuem origens e atributos distintos.

A terceira e última versão que incluo aqui é a que se encontra no livro de Geraldo
Andrello, Cidade do índio,14 no qual é discutido o significado da civilização dos
brancos, tal como atribuído pelos índios Tukano e Tariano do povoado multiétnico de
Iauaretê, no rio Uaupés. O tom desta versão recai na origem dos brancos, que teriam
se separado dos índios em tempos remotos, mas que voltaram a viver com eles em


























































14
Op. cit.


 9

Iauaretê. Como vemos, os mitos incorporam, ou melhor, digerem a experiência
histórica, sem com isso redundar num testemunho objetivo dos fatos.

Infelizmente, só poderei aproveitar uma parte ínfima da riquíssima seqüência


reproduzida e analisada por Andrello, que é composta por três longos episódios, dois
dos quais são referidos como a primeira e a segunda viagem da Cobra-Canoa. Na
primeira viagem, quando a canoa topa com a rocha dura, os brancos são os últimos a
sair. Logo em seguida, se jogam precipitadamente num buraco, dentro do qual uma
água borbulhante faz com que a pele deles se torne clara. Os demais ancestrais, mais
cautelosos, encaminham-se a uma casa, onde ganham instrumentos, enfeites e
adornos, que serão a marca de sua humanidade. À cobra-canoa resta retornar ao Lago
de Leite, levando consigo os brancos. Andrello apresenta uma variante complementar
desta versão, na qual de volta ao Lago de Leite, ancestrais índios tomam para si os
arcos, deixando que os brancos tomem para si a espingarda, seguindo com a cobra
para o “outro lado”, o Oceano Atlântico. Segundo Andrello, o mito reflete aqui sobre
a condição dos brancos: o fato de terem sido os últimos a desembarcar da canoa faz
deles seres de posição hierárquica inferior. Mas eles não teriam respeitado essa
hierarquia, tendo se atirado precipitadamente no buraco de águas borbulhantes e
empreendido uma transformação brusca de ancestrais em humanos. Já os índios,
respeitosos que são da hierarquia e das diferenças, empreenderam uma transformação
paulatina, singularizando-se de acordo com a ordem estabelecida.

Se a primeira viagem da cobra-canoa tem como foco a separação entre índios e


brancos, a segunda disserta sobre a origem das diferenças entre os próprios índios e,
portanto, do sistema sócio-ritual rio-negrino. Esta segunda viagem já não se realiza ao
longo de um rio subterrâneo, mas sim na superfície dos rios, que cabe à própria
cobra-canoa estabelecer. Ela parte do Lago de Leite, onde os brancos foram deixados,
agora identificado à Baía da Guanabara. Contorna toda a costa atlântica até chegar ao
que hoje é a foz do Amazonas. Derruba uma árvore que se torna o grande rio, e cujos
galhos serão os seus afluentes. E assim vai criando todos os rios da Amazônia...
Conforme vai parando em seu percurso pelo Negro, vai deixando casas de
transformação – territórios de origem de cada povo, mas também cidades, como
Manaus, Barcelos, Santa Isabel, São Gabriel da Cachoeira, entre outras. É então que se


 10

dá a diferenciação das línguas e também a transformação dos povos de irmãos em
cunhados. Surgem também os cantos característicos de cada grupo, bem como a
obtenção dos instrumentos de transformação. Como resume Andrello, “agora são
humanos prontos, comem da mesma comida de que os Tukano se alimentam até hoje
e se reproduzem por meio de relações sexuais. Estão prontos para fazer a sua própria
história”.15

Os mitos aqui apresentados mereceriam uma exposição mais detalhada. Isso sem
falar na profusão sem fim de versões a que todos eles são dados. Meu objetivo aqui foi
tão somente aguçar nossa imaginação diante da rica reflexão que propõem todas essas
narrativas. Reflexão sobre a constituição de uma civilização que emerge do caldo
transformacional dos rios e que faz da orquestração das diferenças – entre os homens
eles-mesmos, mas também entre os homens e os demais seres do cosmos – um
horizonte inabalável. Talvez seja esta a marca maior da sua complexidade, esta que
apenas começamos a tatear.


























































15
Op. cit.; p. 389.



 11


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