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Roseli Figaro
Doutora em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo (USP)
Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da
Comunicação da Universidade de São Paulo (USP)
E-mail: figaro@uol.com.br
Cláudia Nonato
Resumo: A censura e o censor se apresentam hoje no Brasil
de diversas formas. Manifesta-se, sobretudo, como imposi-
ção econômica, cerceando temas, personalidades, expressões Doutora em Ciências da Comunicação pela
estético-artísticas; também manifesta-se como deliberação Universidade de São Paulo (USP)
jurídica, como no caso das biografias não autorizadas. Poucas E-mail: claudia.nonato@uol.com.br
vezes, no entanto, consideramos o apagamento das expressões
no mundo do trabalho como uma forma de censura, e, pode-
-se dizer, como das mais draconianas formas de domesticar a
expressão. Este artigo pretende analisar a autocensura como
prática na rotina produtiva dos jornalistas.
Palavras-chave: Censura, autocensura, mundo do trabalho,
jornalismo, jornalistas. Com a chegada da internet e das redes
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caso não tivesse vazado, jamais seria reve- “cláusula de consciência”, pela qual os pro-
lado pelo jornalista, nunca foi questionado prietários não podem pedir a um jornalis-
pela grande imprensa, e sugere que “a au- ta que defenda posições contrárias à sua
tocensura por ele exercida no episódio não consciência e nem demiti-lo por se recusar
a fazê-lo. Nossos grandes jornais e redes de
foi vista pelo conjunto dos jornalistas como
TV são empresas familiares, nas quais os
desvio de conduta e sim como norma”, ex- jornalistas em cargos executivos são enten-
plica Kucinski (2002). Para ele, que chamou didos como profissionais de confiança dos
o episódio de “síndrome da antena parabóli- proprietários, cuja lealdade é para com os
ca”, a mídia agiu como “aparelho ideológico donos do jornal e não para com o interesse
do Estado”,5 modelo utilizado em culturas público (Kucinski, 1998, p. 69).
autoritárias que funcionam em regime de
democracia formal, em que “a autocensura é Para Mattos (2012), a censura e a auto-
ingrediente essencial”. censura no jornalismo podem ser identifica-
das tanto na omissão quanto na manipulação
dos fatos, pois “o comprometimento político
Depois de tomada a decisão e econômico pode levar um veículo, ou pro-
de que um fato ‘não é fissional, a adotar certas práticas de mani-
pulação da informação para tirar proveitos
jornalístico’, não há
escusos delas”. Fato é que, por meio da ma-
a menor chance de nipulação das informações, a mídia promove
que o leitor tome distorções na realidade, filtrada pelos veícu-
conhecimento de los de comunicação. No ensaio “Significado
sua existência político da manipulação na grande impren-
sa” (2003), Perseu Abramo afirma que a ma-
nipulação da informação é uma das princi-
pais características do jornalismo no Brasil,
Esse exemplo, trazido da obra de Kucinski praticado hoje pela grande imprensa. Para
também nos propõe problematizar até onde ele, a realidade artificial criada pela imprensa
o profissional pode assumir a face do ethos da
acaba se transformando em realidade para a
empresa e incorporar a autocensura como re-
população. Essa distorção dos fatos ocorre,
gra de ação no fazer jornalístico e quando pode
segundo ele, de múltiplas e variadas formas,
e deve diferenciar-se desse ethos editorial.
mas “a gravidade do fenômeno decorre do
fato de que ela marca a essência do procedi-
A invenção da autocensura é uma particu-
laridade de regimes autoritários e, portan- mento geral do conjunto da produção coti-
to, um dos critérios de demarcação desses diana da Imprensa”.
regimes. A autocensura jornalística é tão Diante dessa análise, Abramo observou
originalmente nossa, latino-americana, quatro padrões de manipulação da impren-
que essa expressão não é usual dos léxicos sa e um específico para o telejornalismo: a
de comunicação e jornalismo das demo- ocultação, a fragmentação, a inversão e a
cracias liberais. É também uma particu-
indução. São itens que, a nosso entender,
laridade das relações de trabalho na im-
prensa brasileira, as quais ainda inexiste a podem ser considerados autocensura, tanto
do profissional, quanto da empresa, e que
estão presentes no cotidiano do jornalismo.
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Modelo proposto por Louis Althusser criticado por ser um
modelo extremado e formalístico. Para ele, Igreja, meios de A ocultação, segundo o autor, refere-se “à
comunicação e escolas são instrumentos necessários à repro- ausência e à presença dos fatos reais na pro-
dução das condições de produção do sistema capitalista, como
coadjuvantes dos aparelhos repressivos do Estado (Kucinski, dução da Imprensa”. Não significa omissão,
2002, p. 544). nem fruto do desconhecimento, é o silêncio
sobre o fato, que ocorre ainda no planeja- O terceiro padrão, da inversão, “opera o
mento da pauta, da edição. Pois, depois de reordenamento das partes, a troca de lugares
tomada a decisão de que um fato ‘não é jor- e de importância dessas partes, a substituição
nalístico’, não há a menor chance de que o de uma por outras e prossegue, assim, com a
leitor tome conhecimento de sua existência, destruição da realidade original e a criação
ou seja, “o fato real foi eliminado da realida- artificial de outra realidade” (Abramo, 2003).
de, ele não existe” (Abramo, 2003). Esse mé- Ocorre durante o processo jornalístico desde
todo de ocultação foi utilizado, por exemplo, o planejamento, mas principalmente duran-
durante a Ditadura Militar no país. Bernardo te a preparação e edição da matéria. O autor
Kucinski (2002) afirma que a prática da au- ainda observa que há várias formas de in-
tocensura foi largamente utilizada por gran- versão: da relevância dos aspectos, da forma
des jornais na época, principalmente duran- pelo conteúdo, da versão pelo fato, e da opi-
te o período de censura prévia.6 Os censores nião pela informação.
eram imprevisíveis, sem apresentar regras O quarto e último padrão, o da indução,
claras, e proprietários dos meios de comu- é “o resultado e ao mesmo tempo o impulso
nicação temiam que houvesse confiscos dos final da articulação combinada de outros pa-
jornais impressos, o que poderia gerar gran- drões de manipulação dos vários órgãos de
des prejuízos. Para não afetar a produção e comunicação com os quais ele tem contato”,
antecipando-se a represálias, jornalistas, edi- pois ultrapassa a fase de planejamento, pre-
tores e donos de jornais praticavam autocen- paração e edição da matéria e avança para a
sura, no controle antecipado e voluntário da impressão, distribuição, publicidade e recep-
informação. Este fato explica, segundo ele, o ção. Para o autor,
reduzido número de processos contra jorna-
listas durante o regime militar. A indução se manifesta pelo reordenamen-
to ou recontextualização dos fragmentos
O segundo padrão de manipulação ob-
da realidade, pelo subtexto - aquilo que é
servado por Abramo é a fragmentação, ca-
dito sem ser falado - da diagramação e da
racterizada pela “sobra” do material oculta- programação, das manchetes, notícias e
do pelo jornalista, e que seria manipulada comentários, sons e imagens, pela presen-
durante o processo de edição. Esse padrão ça/ausência de temas, segmentos do real,
implicaria ainda na “seleção de aspectos, ou de grupos da sociedade e de personagens
particularidades” e na “descontextualiza- (Abramo, 2003).
ção”. A seleção de aspectos é semelhante ao
padrão de ocultação: depois de separada, a Na atualidade, essas práticas continuam
notícia é fragmentada, decomposta, despoja- em relação aos desafetos dos donos da mídia
da de seus vínculos e adaptada aos interesses e passam à manual de conduta nas redações,
e à linha editorial da empresa. Para o autor, mesmo sem regras escritas. No fazer cotidia-
os critérios para essa seleção “não residem no dos jornalistas, as ausências, a fragmenta-
necessariamente na natureza ou nas carac- ção, a ocultação e a omissão são incorpora-
terísticas do fato decomposto, mas sim nas das como rotinas produtivas, procedimentos
decisões, na linha, no projeto do órgão de normativos assumidos como naturalização
imprensa, e que são transmitidos, impostos da autocensura e, algumas vezes, justificadas
ou adotados pelos jornalistas desse órgão”. A como “cultura” da profissão.
descontextualização ocorre em decorrência Por ser uma combinação de todos os
desse processo. outros padrões e manipulação, o padrão de
indução está fortemente ligado à autocensu-
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Período em que a censura era exercida por um censor enviado
ra. Ao destacar massivamente e diariamente
à redação (Kucinski, 2002). determinados assuntos em detrimento de
Referências