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S
e há unanimidade teológica é a de que o Inferno é um sítio insalubre, quente e
abafado, (embora ligeiramente mais fresco do que Beja em Agosto) e com um
enjoativo e omnipresente cheiro a enxofre.
É geralmente aceite como verdade científica que coisa que nasce torta, tarde ou
nunca se endireita. E nem mesmo o Inferno, apesar da sua mastodôntica importância,
escapa a esse fado.
Ora, sucede que o Inferno surgiu como solução de recurso para um problema não
acautelado:
Por puro devaneio de artista, a Criação veio acrescentada de Alma, matéria-prima
ainda insuficientemente testada ao tempo, que, apesar de ter proporcionado um brilho
inigualável à Obra, se veio a revelar um sarilho dos grandes devido à sua enorme
resistência à degradação, que a torna virtualmente imprestável para reciclagem.
Tal como os isótopos radioactivos, as almas perduram muito tempo para além da sua
vida útil. No caso vertente, uma verdadeira eternidade, conceito abstracto de difícil
apreensão, mas que, para benefício de explanação, podemos calcular ter uma
duração, média, 30 minutos superior à do Jornal da TVI, ou 2 minutos acima da
duração de um episódio da Floribella. Estamos a falar, por isso, de uma porrada de
tempo.
Tal-qualmente sucede para o urânio enriquecido (que não sabemos como nos
livrarmos dele), tem-se revelado insolúvel o problema logístico do destino a dar às
Almas que sucessivamente vão sendo desmobilizadas por abate ao efectivo dos
respectivos titulares. A política oficial tem sido a de “ir armazenando até ver”. Dessa
política infeliz resultou a construção do Inferno.
Como sempre sucede, o provisório foi-se tornando definitivo e, o que é pior, acabou
instrumentalizado ao serviço dos defensores do politicamente correcto, travestindo-se
de castigo supremo ao serviço da ortodoxia reinante. Nada de mais falacioso.
A propaganda oficial tem procurado fazer passar a ideia de que é falsa a ausência de
alternativas ao Inferno, apontando, em sustentação da sua tese, a existência do Céu e
do Purgatório, lugares marginalmente mais agradáveis, supostamente acessíveis
através de um complicado sistema de créditos baseado no mérito individual, que,
aliás, introduziria uma importante nota de Justiça retributiva - cá se fazem cá se
pagam – que sempre cai bem.
Está assim inviabilizada à nascença qualquer pretensão de entrar para o Céu, por
muito mérito que tenha o candidato.
Já o Purgatório, não é, nem nunca foi, uma alternativa. Mais não é do que uma
antecâmara do Inferno, separado deste por um simples reposteiro em damasco
vermelho. Surgiu por razões de afluência em massa e por necessidades estatísticas,
que impõem a catalogação e seriação prévia das almas que se apresentam em
catadupa aos portões do Inferno. Técnica que, aliás, é largamente usada nas portas
das discotecas da moda. Ou seja, há que gerir o ambiente, mas, mais hora menos
hora, lá acabaremos por entrar. Até porque as instruções da gerência são claras: nem
um cliente se pode perder.
Daí a extrema popularidade do conceito “Inferno Privativo”, abraçado por muitos como
projecto individual de vida. Geralmente, os mais ilustrados aplicam-se esforçadamente
na criação de um Inferno privativo, convencidos que daí resultarão os benefícios
geralmente associados ao adjectivo “privativo” quando usado em expressões como
“estacionamento privativo” ou “sala privativa”. Puro engano: não existe Inferno mais
miserável que esse.
Dita a experiência que nada pior para o sossego do que passar a eternidade sozinho
com a nossa própria consciência, que, aliás, foi criada precisamente para nos
infernizar a vida.
Além do mais, dado que vão todos lá parar, a frequência não é melhor nem pior do
que a de qualquer outro lugar. Simplesmente é a mesma, só que concentrada.
Na posse desta informação, mister é dela tirar alguma utilidade, que se pode resumir
na resposta à questão seguinte:
No Inferno não há muito o que fazer e, basicamente, conversa-se. É muito difícil matar
o tempo e rapidamente se esgotam as novidades (afinal estamos a falar da
eternidade). Daí que o povo local seja muito dado a grupinhos, cumplicidades e
corporativismos; é muito “nós e os outros”.
Para isso, nada melhor do que levar da vida boas histórias para contar.
São extremamente valorizadas e de aceitação generalizada, como moeda de troca, no
Inferno.