Você está na página 1de 3

O Vietnã e a crise de legitimidade do governo dos Estados Unidos

Sabrina Sales e Johnny Daniel

O documentário “Hurts and minds”1 – corações e mentes - produzido na década


de 1970, por Peter Davis traz ao espectador muitas questões relacionadas à guerra do
Vietnã, abrindo espaço para questionarmos algumas de suas dimensões que estão para
além desse evento histórico e que marcam acentuadamente a história dos Estados Unidos,
como ideologia, cultura, política e economia, que se interrelacionam na trama e na
complexidade histórica.
Ao longo desse texto, abordaremos a questão ideológica na Guerra do Vietnã,
analisando a atuação dos Estados Unidos externamente, ou seja, o exercício do poder
sobre os demais países em um contexto de Guerra Fria e, internamente, com a sua própria
população e, por conseguinte, analisaremos as forças de resistência que se opuseram à
sua dominação e que culminaram na crise de legitimidade, fazendo pulular na sociedade
uma série de movimentos sociais.
De acordo com Gramsci o exercício do poder ocorre pela articulação de duas
forças: a sociedade política e a sociedade civil. À primeira, corresponde o comando direto;
à segunda, a direção pela formação e consenso, viabilizando, dessa forma, a legitimação
do poder. Contudo, a sociedade civil pode falhar em sua função de convencimento da
sociedade que, extensa, heterogênea e dispersa pode apresentar resistências à tentativa de
formação do consenso ou dominação passiva, levando o poder dominante, isto é, o
Estado, a atuar coercitivamente, através da imposição pela força2.
No início da película supracitada, o então presidente Truman aponta para uma
direção, dizendo que os Estados Unidos não limitariam sua democracia e os seus valores
somente às suas fronteiras, mas que os levariam para todo o mundo. Esse caminho foi
seguido dentro de um contexto de Guerra Fria, culminando nas intervenções norte
americanas na América Latina e na África – a exemplo do Congo. Nesse contexto,
importava mais a zona de influência de cada potência, independentemente das reais
vantagens econômicas de determinado país para a economia dos dominantes. Isto talvez
clareie as perguntas costumeiras a respeito do Vietnã, que buscam entender o porquê da
intervenção em um país majoritariamente rural e sem expressão.

1
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zdJcOWVLmmU
2
SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e Cultura: Gramsci. Curitiba- PR: Editora UFPR, 3ed., 2007,
p. 33.
De acordo com Purdy na campanha do Vietnã, os Estados Unidos inicialmente
lançaram um “programa de pacificação” visando ganhar “corações e mentes” da
população local. Porém, enfrentando resistências, passaram a adotar uma sistemática
destruição de aldeias e remoção de camponeses para reduzir o apoio local ao Viet Cong
e para manter a ordem3.
Internamente, a população estadunidense, confiante em seus valores e desfrutando
de um momento ímpar de crescimento proveniente da sua ascensão mundial após a
Segunda Grande Guerra, não apresentou grandes resistências ao novo conflito. Embora o
mundo estivesse exaurido pelas duas guerras mundiais, a luta contra o comunismo e a
proposta de levar a democracia, a prosperidade, a liberdade e a civilização – retomando
discursos da Marcha para Oeste – parecia válida. Ao longo do confronto, que contava
com a novidade do televisionamento e acompanhamento por parte da população que,
diariamente via seus horrores e seus soldados sendo mortos, essa certeza esvai-se na
medida em que o confronto é prolongado.
Enquanto soldados americanos morriam contra os resistentes vietnamitas, a
sociedade estadunidense se debatia em seus conflitos internos que contradiziam o
discurso da igualdade, liberdade e democracia pregados ao mundo. Trata-se da
segregação racial e das desigualdades sociais compartilhadas pelos negros, indígenas,
mulheres e operários. A negação desses valores a essas parcelas da população os levaram
a questionar a legitimidade do governo dos Estados Unidos em suas intervenções externas
- momento do qual faz parte da produção do documentário em apreço. A sociedade norte
americana começou a se organizar em torno de suas reivindicações, buscando seu
protagonismo na história e evidenciando as contradições do discurso político.
Os hippies, por exemplo, questionaram a necessidade constante da guerra que
mobilizava recursos financeiros, enquanto populações locais morriam de fome e não
tinham acesso aos bens de consumo tão propagados pelo American Way of Life. Tal
movimento notabilizou-se pelo lema Make love, not war. Simultaneamente, o movimento
negro ascendeu, principalmente no meio acadêmico, questionando a segregação racial
que ainda vigorava em muitos Estados do país, enquanto se pregava externamente a
liberdade e a igualdade. Junto a esses acontecimentos, estavam as mulheres que, como
fruto das guerras anteriores, passaram a participar da economia do país, mas não gozavam

3
PURDY, Sean. Rupturas do consenso: 1960-1980. In KARNAL, Leandro et al. História dos Estados
Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, ed. 3, 2015. p. 241.
de direitos civis e liberdades individuais. Junto a elas, se uniram trabalhadores
reivindicando melhores condições de vida e emprego.
Em suma e na esteira do pensamento de Edgar Morin, cada nação deve ser
considerada em sua história, não somente segundo seus nobres ideias, no caso dos Estados
Unidos, o progresso, a democracia, a liberdade, mas também, segundo o comportamento
de uma potência que, ao mesmo tempo em que os prega, também os negam a
determinados grupos, cerceando suas aspirações à emancipação.4 Essa negação, no
contexto da Guerra do Vietnã, passa a ser o estopim para que esses mesmos grupos
reivindiquem seu protagonismo na história e passem a questionar a legitimidade do
governo dos Estados Unidos em suas intervenções externas e em sua forma de
organização interna. Para Antônio Gramsci, a crise orgânica expressa-se politicamente na
incapacidade das classes dominantes em manter o consenso enquanto as classes
dominadas não estão suficientemente organizadas para conquistar exercer a hegemonia
Visto isso, podemos pensar o conflito do Vietnã como um grande divisor de águas
na história dos Estados Unidos, sobretudo, após o período em que se tornou uma grande
potência. O documentário, demonstra com falas de ex-soldados os dois momentos do
conflito, evidenciando primeiro uma sociedade próspera e exultante, certa da vitória que
teria de vir a todo custo para exaltar ainda mais uma nação destinada à grandeza e, em
seguida, demonstra uma crise e um momento de difícil aceitação de uma derrota – vivido
até hoje - e de contradições que, trazidas a público, serviram para colocar em cheque toda
a gama de valores que movimentou e ainda movimenta a sociedade em diversos períodos
históricos, principalmente nos anos que precederam à guerra.

4
MORIN, Edgar. Civilização e barbárie europeias. Rio de Janeiro: Beirtrand Brasil, 2009.

Você também pode gostar