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Análise do documentário: A divisão de Mato Grosso

Sabrina Sales Araújo


O documentário “Divisão de Mato Grosso” deixa nítida em seu início a perspectiva secular
da causa divisionista e a expõe através de atos sucessivos e relações de causa e efeito começando
pela “Tresloucada República Transatlântica”, passando pelas consequências do pós Guerra do
Paraguai que, ao trazer muitos imigrantes e migrantes- sobretudo gaúchos- e contribuir para a
promoção do desenvolvimento na parte sul de Mato Grosso, formou os primeiros coronéis com
ideais divisionistas, pois não faziam parte da história ligada a Mato Grosso, vendo inclusive com
maus olhos o monopólio e poderio da Mate Laranjeira como símbolo do poderio do norte sob o sul;
eles objetivavam também mais controle sobre os cargos públicos.

Em seguida, traz a mudança do eixo econômico para o sul consolidado agora com a Ferrovia
Noroeste Brasil (NOB), responsável pelo rompimento da dependência do transporte fluvial,
expansão para o interior do país com a formação de novas cidades aos arredores das estações e a
consequente expansão econômica protagonizada pela Vila de Campo Grande que sobressaiu-se com
relação a Corumbá, atraindo cada vez mais gente para o sul. Além disso, de acordo com Valmir
Corrêa, a ferrovia também promoveu a dispersão da população que vivia até então sob o poder dos
coronéis.

Momento importante dessa narrativa é o apoio do sul dado à “Revolução” de 1932 à São
Paulo em detrimento do norte que apoiou Vargas, visto aqui como primeira tentativa divisionista,
haja vista que havia um interventor no norte e um governo instaurado no sul de Mato Grosso, ou o
formado “Estado de Maracajú”. Nesse período também, tem destaque o surgimento da Liga Sul-
Mato-grossense e seus manifestos em prol de autonomia, quando nascem novas ideias de uma nova
elite que reivindica de maneira evidente1, a divisão. Para Queiróz, trata-se já, nesse momento, da
tentativa de criar uma identidade sul mato-grossense.

A respeito da constituinte estadual de 1947 Fragelli expõe a “ideia espontânea” que teve
quando foi para Cuiabá, de propor a mudança da capital por maioria de votos. De acordo com a sua
fala, isso seria uma forma de forçar a divisão e que a ideia foi aceita pelos demais deputados
presentes por que queriam de fato a divisão, pois nenhum deputado do sul era a favor da mudança
da capital.

Algumas falas de Valmir Corrêa a respeito do poder dos coronéis e a ligação dos do sul com
os do norte que buscavam dividir para interferir a causa divisionista, a fala a respeito da NOB ter
promovido a saída da população do poderio dos coronéis, bem como a de Fragelli sobre a “ideia
1
Fala de Valmir Corrêa no documentário “Divisão de Mato Grosso”.
espontânea”, transformando a mudança da capital em proposta de divisão, surgem soltas, frouxas e
desconexas à tentativa de articular diferentes momentos históricos de forma a construir uma
racionalidade – construída a posteriori – à essa crônica da divisão.2

Partindo do pressuposto do continuísmo da ”causa” e do “movimento” construído por essas


figuras participantes direta e indiretamente do poder político em Mato Grosso ainda uno e, em
seguida, dividido; e se apropriando de boa parte dessa cronologia apresentada no documentário, a
principal questão a qual Bittar 3, Queiróz4 e Araújo5 se dedicam é a identificação do porquê a
proposta divisionista teve momentos de arrefecimento, no decorrer da suposta “trajetória secular” 6,
bem como o porquê de não ter sido levada em consideração no momento da divisão que foi fruto de
um ato autoritário de Geisel.

Exemplo disso, é a discussão em torno da diminuição ou marginalização da causa


divisionista após a derrota em 1932. Para Araújo, isso ocorreu por que assim como em outros
momentos de acirramento da questão, internamente o tema era evitado nas disputas políticas por
receio da perda de eleitorado e assim continuou até o período da efetiva divisão. Bittar aponta que
houve a partir da instauração da ditadura em 1937, um destaque para divisionistas no sul e para o
jornal Correio do Estado que sustentaram a bandeira separatista, mesmo que historicamente nenhum
partido a tenha empenhado, tendo em vista as possíveis perdas eleitorais decorrentes da tomada de
posição quanto à questão.

Queiróz, de maneira mais incisiva e compartilhando a visão de Bittar(1999), se apropria


também da explicação de Valmir Corrêa (professor consultado no documentário), para mostrar que,
entre 1930 e 1977, houve uma marginalização da questão divisionista, pois a derrota em 1932, fez
com que os coronéis sulistas - dependentes da política do norte -passassem a não querer mais a
tomada do poder, mas sim a separação para viabilizar o seu poder de mando. Esse ponto coincide
bastante com a proposta espontânea acima citada de Fragelli.

Essa tentativa de explicação desses momentos ocorre por que esses autores se apropriam da
explicação argumentativa criada no período pós divisão -pelos personagens entrevistados em seus
textos e também no documentário-, para legitimar a divisão feita de forma autoritária, como o

2
A crônica secular da divisão é a proposta narrativa do documentário.
3
BITTAR, Marisa. Sonho e realidade: vinte e um anos da divisão de Mato Grosso. Multitemas – Periódico
das comunidades departamentais da UCDB, Campo Grande, n. 15, p. 93-124, out. 1999.
4
QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Mato Grosso/Mato Grosso do Sul: divisionismo e identidades (um breve
ensaio). Revista Diálogos, Maringá: UEM, v. 10, n.2, p. 149-184, 2006.
5
ARAÚJO, Vinícius de Carvalho. Divisão de opiniões: a saga do divisionismo sulista em Mato Grosso. In:
RODRIGUES, Cândido; JOANONI NETO, Vitale (Orgs). Nova história do Mato Grosso contemporâneo.
Cuiabá: EdUFMT, 2018. p. 169-196.
6
BITTAR, out. 1999. Op.cit p. 115.
atendimento de uma luta antiga do sul de Mato Grosso. Talvez, se buscassem compreender os
embates em torno da memória sobre a divisão, esses historiadores não estariam preocupados em
explicar os momentos de “baixa” ou “marginalização” da questão e contribuiriam mais buscando
entender os motivos e interesses por trás da construção dessa narrativa como forma das elites
políticas se colocarem como pertencentes a esse processo, criando, para isso, uma identidade sul
mato-grossense7.

O documentário, assim como os autores também explicam a divisão através dos seus
distintos interesses, sobretudo geoestratégicos, políticos – promoção de equilíbrio de
representatividade entre sul e norte e, principalmente, pela divisão representar no sul um apoio
explícito à ditatura – e econômicos, tendo como perspectiva os estudos e a estratégia
desenvolvimentista dos governos ditatoriais no período.

As falas do documentário a respeito do período pós divisão, demonstram a frustração em


relação ao sul e a culpabilização tanto dos primeiros governadores por ineficiência, quanto do
governo federal por não possuir diretrizes explícitas para as ações a serem tomadas. Com relação ao
norte, as falas dos ex governadores de Mato Grosso dividido, reconhecem parcialmente o sucesso
promovido pela ajuda do governo federal, mas buscam ressaltar principalmente às buscas de
alternativas e ações realizadas quando o governo federal faltava com as suas responsabilidades em
decorrência do quadro econômico do país na década de 1980. Assim, eles procuram relegar o maior
desenvolvimento do norte aos empresários mato-grossenses e migrantes de outras partes do país que
investiram principalmente na produção agrícola.

Por fim, a fala do artista plástico Humberto Espíndola sobre a sua ‘antevisão’ do futuro dos
dois Estados, marca aparentemente uma tentativa de finalizar a narrativa e a saga divisionista de
forma conciliadora, afinal, ambos colheram bons frutos da separação e cresceram economicamente,
baseados nas mesmas atividades econômicas - agricultura e agropecuária - e contribuem hoje de
maneira muito significativa para a economia brasileira. Esse fechamento traz, por sua vez, uma
contradição com um dos motivos trazidos no documentário e nos textos, sobretudo o de Araújo
(2018), de que houve um peso geográfico - no sentido de potencialidades de exploração distintas-,
que foi determinante na decisão de Geisel.

7
Para Durval Jr (208), como historiadores que se debruçam sobre as questões regionais, é necessário
refletir sobre o que é a região e o que a forma/ constrói, bem como as disputas discursivas de diversos
grupos presentes nesse processo, para não incorrermos no erro de reproduzir um discurso em
detrimento do outro. O papel do historiador, como produtor também de um discurso que entra nessa
disputa é o de analisar ela própria e os interesses por trás de cada discurso produzido.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. de. O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de
região. Fronteiras, Dourados: UFGD, v. 10, n. 17, p. 55-67, jan./jun. 2008.

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