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CAMILA GOMES DA SILVA

ESTUDO DE UM CASO SOBRE A TRANSFERÊNCIA ERÓTICA NO SETTING


PSICANALÍTICO

SÃO PAULO
2015
SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE- SES -SP COORDENADORIA DE
RECURSOS HUMANOS-CRH GRUPO DE DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS
HUMANOS-GDRH CENTRO DE FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS PARA
O SUS “Dr. Antonio Guilherme de Souza” SECRETARIA DE ESTADO DA GESTÃO
PÚBLICA FUNDAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO – FUNDAP

PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL – PAP

CAMILA GOMES DA SILVA

ESTUDO DE UM CASO SOBRE A TRANSFERÊNCIA ERÓTICA NO SETTING


PSICANALÍTICO

Monografia apresentada ao Programa de


Aprimoramento Profissional - SES-SP,
elaborada no Instituto de Assistência Médica ao Servidor
Público Estadual – Hospital do Servidor Público Estadual Francisco
Morato de Oliveira.
Área: Psicologia

SÃO PAULO

2015
AGRADECIMENTOS

A Deus por me conceder o ingresso nesta grande escola que se chama vida, oferecendo-
me oportunidades únicas de crescimento.
À minha família, base do meu viver. Sem eles, certamente, eu não estaria aqui. Obrigada
por compartilharem comigo o entusiasmo de iniciar uma importante página da minha vida e por
me incentivarem em todos os momentos.
Aos meus amigos e colegas, pela paciência em minha ausência, pelo apoio e carinho.
Às colegas aprimorandas, pela experiência valiosa e singular que tive com cada uma,
sobretudo, com àquelas onde vi nascer laços de amizade, os quais quero levar para sempre
comigo.
Às preceptoras, Kátia Wanderley, Luciana Venturini, Mariangela Bento e Maria Tereza
Viscarri, por compartilharem seu saber, propiciando um ano de muito aprendizado e
crescimento.
Por fim, agradeço, especialmente, à Maria Tereza Viscarri, que foi minha orientadora
nesse trabalho. Obrigada pela paciência, pela orientação e, principalmente, por acreditar no meu
trabalho.
O ator oferece seu corpo-alma para dar vida a um personagem e durante esse tempo sente,
pensa e age de acordo com ele. As pessoas que estão assistindo se encarregam de dar sentido
ao que se vê. O ator não precisa sair do palco e se sentar na plateia para entender sua
personagem, nem como ela se relaciona com as outras.
O analista, porém, tem de fazer algo nessa linha. Renuncia a ser uma “pessoa real” (suspende
seus juízos de valor, suas opiniões pessoais, seus desejos e necessidades) e oferece a matéria
viva de seu corpo-alma para encarnar temporariamente o objeto primário de seu paciente.
Mas, além disso, de tempos em tempos tem de se afastar um pouco para observar a si mesmo:
o que está sentindo e como está agindo – mais propriamente, quem ele está sendo –, para daí
reconhecer sua imaginação metapsicológica, que objeto é esse. Tem de estar no palco e na
“plateia” alternadamente. (Marion Minerbo)
SILVA, C. G. Estudo de um caso sobre a transferência erótica no setting psicanalítico.
Monografia – Aprimoramento em Psicologia Hospitalar, Instituto de Assistência Médica do
Servidor Público Estadual – Hospital do Servidor Público Estadual Francisco Morato de
Oliveira, São Paulo, 2015.

Resumo

A transferência erótica foi um conceito elaborado por Freud, S. (1856-1939) para designar o
processo no qual o paciente, inconscientemente, repete seus protótipos infantis, direcionando
ao analista afetos amorosos e eróticos que, outrora, foram vivenciados com os objetos
primários, mas que sofreram a ação do recalque ou da repressão por despertarem angústia. A
gênese dos afetos encontra-se no complexo de Édipo, no qual afetos ambivalentes são
direcionados às figuras parentais. Trata-se, portanto, da atualização de desejos inconscientes,
no qual o paciente atua ao invés de recordar. Entretanto, ao passo que, esse se torna um caminho
de acesso ao inconsciente, ergue-se um obstáculo que ameaça o tratamento, uma vez que o
paciente se desvia de si, investindo sua libido no analista, a fim de não entrar em contato com
seus conflitos inconscientes. Concomitantemente, o analista pode reagir, de modo também
inconsciente, à transferência do paciente, materializando aquilo que Freud denominou de
contratransferência, o que torna a análise ainda mais complexa. Foi ao se deparar com a
transferência erótica na prática clínica e com as dificuldades por ela erguidas, que esse trabalho
surgiu, a fim de resgatar a teoria freudiana para identificar e compreender esse fenômeno,
visando o prosseguimento e êxito do tratamento. Este estudo torna-se relevante não apenas para
os profissionais da área da Psicologia, mas também para as demais áreas da saúde, visto que a
transferência ocorre em diversos contextos e não apenas no setting analítico, embora seja esse
o campo de atuação mencionado e estudado. Para ilustrar a teoria, será apresentado o caso que
se tornou motivo desse trabalho. Por se tratar de um processo psicoterápico com referencial
psicanalítico, o método consiste na observação clínica e escuta, caracterizando uma pesquisa
qualitativa. Por fim, confirmamos as teorias propostas por Freud e constatamos a importância
de resgatar a teoria, sobretudo, quando o tratamento psicoterápico é ameaçado por questões
subjetivas do paciente ou do analista, a fim de não se desviar do real objetivo da análise: o
paciente.

Palavras chave: Transferência Erótica; Contratransferência; Psicanálise; Freud, S.


Abstract

The erotic transference was a concept elaborated by Freud, S. (1856-1939) to explain the
process in which the patient, unconsciously, repeat his infantile prototypes, pointing to the
annalist romantic and erotic affections that were experienced before with the primary subjects,
but suffered from settlement and repression, because they caused anguish. The affection genesis
is found in Oedipus complex, in which ambivalent emotions are targeted to parental figures.
Therefore, it is the refresh of unconsciously desires which the patient acts, instead of remember
them. In the meantime, while it becomes an access path to the unconscious, an obstacle emerges
in, threatening the processing, because the patient avoids himself, directing his libido to the
annalist, in order to not deal with his unconscious conflicts. In parallel, the analyst may react,
also unconsciously, to patient’s transfer, materializing what Freud called countertransference,
which makes analysis even more complex. It was when faced with the erotic transference in
clinical practice and the difficulties raised by it, that this work came in order to rescue the
Freudian theory to identify and understand this phenomenon, aiming at the continuation and
success of the treatment. This study becomes relevant not only for professionals in the area of
psychology, but also for other areas of health, as the transfer happens in different contexts and
not just in the analytic setting, however, it was the mentioned playing field and studied . To
illustrate the theory, the case which became reason for this work will be presented. Because it
is a psychotherapeutic process with psychoanalysis, the method consists of clinical observation
and listening, featuring a qualitative research. Finally, we confirm the theories proposed by
Freud and found the importance of rescuing the theory, especially when the psychotherapeutic
treatment is threatened by subjective questions of the patient or the analyst, in order not to
deviate from the real purpose of the analysis: the patient.

Keywords: Erotic Transference; Countertransference; Psychoanalysis; Freud, S.

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 7

2 COMPLEXO DE ÉDIPO ................................................................................................... 10

3 TRANSFERÊNCIA ............................................................................................................. 13

3.1 Contratransferência............................................................................................................. 19

3.2 Transferência erótica .......................................................................................................... 20

4 METÓDO ............................................................................................................................. 24

7 DESCRIÇÃO E DISCUSSÃO DO CASO ........................................................................ 25

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 31

ANEXO .................................................................................................................................... 32
7

1 INTRODUÇÃO

Desde os seus primórdios até a contemporaneidade, a Psicanálise, termo criado por


Sigmund Freud em 1896, tem como objetivo tornar consciente o inconsciente. Segundo Oscar
Miguelez (2000), sucederam-se várias técnicas: hipnose, sugestão, método catártico até chegar
à associação livre, que se transformou em sinônimo de Psicanálise. A associação livre deu lugar
à fala do paciente, de modo que, este pode expressar aquilo que lhe vêm à mente, dando vazão
assim aos seus sentimentos, pensamentos e emoções. O terapeuta, por sua vez, mantém-se em
uma posição passiva no sentido de oferecer uma escuta diferenciada capaz de compreender o
que surge, de forma subjacente, nas entrelinhas. No entanto, este assume também uma posição
ativa, pois através da atenção flutuante, deve se manter inteiramente atento ao paciente,
compreendendo aquilo que se manifesta através do seu discurso, gestos e atitudes, e assim
devolvendo sua “leitura” ao paciente através de interpretações.
Entretanto, a tarefa de desvendar o inconsciente nunca foi algo fácil. Pelo contrário,
forças psíquicas inconscientes se opõem ao trabalho da análise. Freud (1914) em seu texto
“Recordar, repetir e elaborar”, afirma que é do arsenal do passado que doente retira as armas
com que se defende do prosseguimento da terapia, as quais o terapeuta tem de arrancar peça
por peça. Essas forças se manifestam não somente com os mecanismos de defesa, aqueles que
habitualmente o sujeito utiliza para lidar com a angústia, mas também com o surgimento da
transferência.
Em Psicanálise, a transferência é o fenômeno que consiste na repetição de protótipos
infantis e atualização de desejos inconscientes sobre determinadas relações objetais, incluindo
a relação analista-paciente.
Essa repetição ocorre em todos os contextos de relações interpessoais do sujeito e não
somente na análise. Sendo assim, a transferência não é provocada por esta última, mas sim se
constitui como um meio propício para que ela ocorra. O indivíduo não recorda aquilo que um
dia foi reprimido, mas o atua. “Ele não reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete,
naturalmente sem saber que o faz”. (FREUD, 1914, p.149).
Essa atuação resulta em uma atualização dos conflitos reprimidos que anseiam por uma
resolução. Não obstante, ao passo que, este se torna um dos caminhos para a cura, ergue-se uma
barreira que se opõe ao processo analítico. Surgem, então, resistências antagônicas que, de um
lado, viabilizam a cura, porém, de outro, lutam contra ela.
Freud classifica a transferência em positiva e negativa, sendo elas respectivamente
relacionadas a afetos amorosos e hostis que são direcionados à figura do analista. A gênese
8

desses afetos se encontra nas relações primárias do sujeito com as figuras parentais e a
ambivalência entre eles tem como principal origem o complexo de Édipo – momento pelo qual
o indivíduo vivencia uma relação triangular com as figuras parentais, ora dirigindo os afetos
positivos à figura do sexo oposto e rivalizando contra a figura do mesmo sexo, ora, na sua forma
invertida, comportando-se de forma amorosa com o progenitor do mesmo sexo e rivalizando
com o sexo oposto.
Se, no decorrer do atendimento do paciente, há uma acentuação dos afetos amorosos e
estes se voltam para um erotismo, surge a transferência erótica, objeto de estudo deste trabalho.
Este tipo de mecanismo é, de um lado, positivo devido aos afetos amorosos e eróticos. Contudo,
caracteriza-se também como negativo, uma vez que, inviabiliza a associação livre do paciente
e a atenção flutuante do terapeuta, tirando esse último de seu papel e exercendo, portanto, uma
forte resistência ao tratamento. O analisando, inconscientemente, dirige ao analista seus
impulsos sexuais e eróticos, e este, por sua vez, precisa maneja-los e interpretá-los.
Em 1915, no texto “Observações sobre o amor de transferência”, Freud alerta que o
analista deve reconhecer que a paixão do paciente é induzida pela situação analítica e não pode
ser atribuída aos seus encantos. Contudo, é necessário lembrar que o terapeuta também possui
um inconsciente e este, apesar de ser emprestado para compreender o mundo interior de um
outro alguém, mantêm-se ativo. Por esta razão, há possibilidade de que o analista também
transfira e reviva seus protótipos infantis. Não é em vão que, para o pai da Psicanálise, é
fundamental que o analista se mantenha constantemente em análise, compreendendo a si
mesmo antes de se propor a tratar o outro. No entanto, é mais comum que haja a
contratransferência que se refere à reação do analista frente a transferência do paciente.
Notamos, portanto, que tornar consciente o inconsciente não se resume apenas nas
interpretações por parte do terapeuta. É um processo complexo permeado por barreiras que se
levantam como oposição ao tratamento e que devem ser compreendidas e manejadas. Não
obstante, ainda que surjam espinhos, é possível apreciar as rosas que os acompanham e que
fazem do processo psicanalítico algo encantador para aqueles que se propõem a analisar ou
serem analisados.
Este trabalho tem como objetivo identificar e compreender a transferência erótica,
relacionando a teoria freudiana com a prática clínica a partir da ilustração de um caso clínico.
Contudo, esse estudo torna-se relevante não apenas para a área da Psicologia, mas também para
as demais áreas da saúde, posto que a transferência ocorre em diversos contextos e não apenas
no setting analítico, embora seja esse o campo de atuação mencionado e estudado. Todavia,
9

convém sublinhar que as a razões pelas quais a transferência ocorre, bem como suas
consequências, podem ser diferentes dependendo do ambiente no qual ela se manifesta.
No tratamento psicoterápico, a transferência erótica é uma das formas de resistência ao
tratamento, pois tem como objetivo impossibilitar a expressão do reprimido e sua elaboração,
já que o terapeuta passa a ser alvo de sedução de forma concreta e ativa. O terapeuta, portanto,
pode sentir dificuldades no manejo desse tipo de transferência, sentindo-se constrangido e
incomodado, o que inviabiliza seu raciocínio clínico sobre o caso e, por conseguinte, o
seguimento do processo terapêutico.
10

2 COMPLEXO DE ÉDIPO

‘E onde o senhor supõe que o neurótico experimentou o protótipo do seu amor


transferencial? ’ Em sua infância: em geral, em sua relação com um dos seus
pais. O senhor deve lembrar-se da importância que tivemos que atribuir a esses
primeiros laços emocionais. (FREUD, 1926, p. 143).

O complexo de Édipo se tornou um conceito fundamental na Psicanálise, assim como o


os fenômenos de transferência e contratransferência – o quais serão explicitados ao longo desse
estudo –, uma vez que desempenha um papel crucial na estruturação de personalidade e na
orientação do desejo humano.
Considerando que, a transferência consiste na repetição de protótipos infantis, é
oportuno dedicarmos um capítulo sobre o complexo de Édipo a fim de compreender a origem
dos afetos ambivalentes e de caráter erótico que são dirigidos ao analista, pois como ressalta
Miguelez (2012, p. 77), “O conteúdo dessa repetição é uma parte da vida sexual infantil, regida
pelo complexo de Édipo, que agora reaparece no campo transferencial”.
Segundo Laplanche e Pontalis (2001), o complexo de Édipo compreende um “conjunto
organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais”. (p. 77), cujo
apogeu é vivido entre os três e cinco anos de idade, na fase, nomeada por Freud, como fálica.
Creio que aqui é importante esclarecer que esses sentimentos se voltam para aqueles que
assumem a função materna ou paterna e se constituem assim como objetos primários da criança,
não se tratando necessariamente dos pais biológicos e podendo ainda ser representados por
instituições, como ocorre no caso de crianças abrigadas.
Ainda de acordo com esses autores, a expressão “complexo de Édipo” somente aparece
em 1910. Entretanto, sua descoberta “preparada há muito pela análise dos seus pacientes,
concretiza-se para Freud no decorrer da sua auto-análise, que o leva a reconhecer em si o amor
pela mãe e, em relação ao pai, um ciúme em conflito com a afeição que lhe dedica”. (p. 77).
De acordo com Miguelez (2012), na “Carta 69”, datada de 1895, Freud apresenta uma
suspeita de que existam desejos incestuosos na criança, o que caracteriza uma sexualidade
infantil. No entanto, é em 1897, no texto “Manuscrito N”, que Freud faz a primeira referência
a proibição do incesto, tema aprofundado por ele depois em “Totem e Tabu” (1913), cuja
herança se dá na cultura e no social.
A autora complementa que em “Interpretação dos sonhos”, no capítulo “Os sonhos sobre
a morte de pessoas queridas”, publicado em 1900, Freud se refere “aos sonhos em que, no
conteúdo manifesto, é representado a morte de um ser amado, em especial pais e irmãos”. (p.
11

35). Para ela, é possível concluir com esse texto que os desejos são universais e são encontrados
tanto em sujeitos neuróticos, quanto naqueles ditos “normais”. Assim como, chama a atenção
o caráter sexual e “natural” dos desejos incestuosos – assim pensado nesta época – visto que,
desde muito cedo, a criança sente-se atraída pelo sexo oposto. Todavia, vinte anos mais tarde,
a partir de diversas alterações em “Três ensaios para uma teoria sexual”, cuja publicação inicial
ocorre em 1905, Freud reformula sua teoria, pois percebe que a mãe é o primeiro objeto sexual,
tanto para a menina, quanto para o menino, sendo o seio materno a primeira fonte de satisfação
e prazer, constituindo-se, portanto, como o primeiro objeto de desejo para a criança.
Ainda na fase inicial de elaboração deste conceito, Freud, nesse texto, fala sobre a
disposição inata da bissexualidade inerente a todos os seres humanos, visto que as escolhas
objetais se formam a partir das disposições inatas da pulsão sexual em conjunto com as
vivências experimentadas por cada indivíduo. Instaura-se, então, em tenra idade, a sexualidade
infantil que, conforme foi citado antes, tem seu ápice no complexo de Édipo. O destino desses
desejos é o recalcamento, o que coincide com o período de latência e estruturação do superego.
Estes desejos são recalcados ou reprimidos, porque à medida que se tornam fonte de
prazer, despertam também desprazer, devido à barreira ao incesto e aquilo que Freud
denominou como “diques”. Conforme Miguelez (2012), foi assim que Freud nomeou “uma
ampla gama de sentimentos capazes de transformar as satisfações sexuais infantis em
experiências desagradáveis e fontes de desprazer. Trata-se da vergonha, do asco, da compaixão,
da estética e dos sentimentos morais”. (p. 46). Quase vinte anos mais tarde, esses sentimentos
e a barreira ao incesto corresponderão ao superego.
Seguindo a cronologia apresentada por Miguelez (2012), observamos que em um
primeiro momento se desenha aquilo que podemos chamar de complexo de Édipo simples ou o
primeiro modelo, definido como puramente positivo ou heterossexual. Contudo, o conceito
assume uma nova caracterização a partir de 1923, em “O Ego e o Id”, posto que é nesse texto
que Freud aborda a possibilidade de um complexo de Édipo composto, ou seja, ao mesmo
tempo positivo (heterossexual) e negativo (homossexual) para ambos os sexos, bem como, a
possibilidade de uma estruturação perversa e não apenas neurótica como antes era mencionado.
Para Freud (1923), “dois fatores respondem a essa complexidade: a natureza triangular da
situação edípica e a bissexualidade constitucional do indivíduo”. (p. 28).
Laplanche e Pontalis (2001), esclarecem que sob a forma dita positiva, o complexo se
apresenta da seguinte maneira: desejo sexual pela pessoa do sexo oposto e desejo de morte do
rival. Em compensação, na forma negativa, apresenta-se de modo inverso, ou seja, amor pelo
progenitor do mesmo sexo e sentimentos hostis ao progenitor do sexo oposto.
12

Simplificadamente, o caso se configura da forma seguinte para o menino.


Bastante cedo, ele desenvolve um investimento objetal na mãe, que tem seu
ponto de partida no seio materno e constitui o protótipo de uma escolha objetal
por ‘apoio’; do pai o menino se apodera por identificação. As duas relações
coexistem por algum tempo, até que, com a intensificação dos desejos sexuais
pela mãe e a percepção de que o pai é um obstáculo a esses desejos, tem
origem o complexo de Édipo. A identificação com o pai assume uma
tonalidade hostil, muda para o desejo de eliminá-lo, a fim de substituí-lo junto
à mãe. (FREUD, 1923, p. 28).

Os autores citados acima elucidam que entre a forma positiva e negativa, verifica-se
toda uma série de casos mistos em que essas duas formas, coexistem de forma dialética, o que
implica naquilo que Freud denominou como composto, ou ainda, como completo.
Dessa forma, no caso do menino, o complexo ocorre do seguinte modo: inicialmente, o
menino tem como objeto de desejo o seio materno, o qual mais tarde se estenderá para toda a
figura materna, a partir da integração das pulsões e objetos internos e externos. Por volta dos 3
anos de idade, esse desejo será intensificado, de tal forma que o menino dirigirá seus impulsos
libidinais a ela, com a finalidade de conquistá-la para si. Trata-se, deste modo, de uma relação
dual, constituída por mãe e filho. No entanto, a figura paterna marca a presença de um terceiro,
configurando uma relação triangular, ou edípica, pode-se assim dizer. O pai – ou aquele que
assume essa função – é ao mesmo tempo amado e odiado, tornando-se um rival que ameaça a
concretização dos desejos. Quando o menino adquire percepção sobre a diferença anatômica
entre menino e menina, acredita, inconscientemente, que a menina foi castrada e passa a temer
a castração por parte do pai, como punição por seus desejos incestuosos. Instala-se, então, o
complexo de castração, que é designado como causa geral do abandono do complexo de Édipo
nos meninos, segundo Miguelez (2012). O pai representa a lei, a moral e o interdito ao incesto.
A renúncia da mãe e introjeção do pai marcam o declínio do complexo de Édipo, no qual o
superego é seu herdeiro. Portanto, o superego – consciência moral – constitui-se por
interiorização das exigências e das interdições parentais, assim como descreve Laplanche e
Pontalis (2001). Porém, Miguelez (2012) ressalta que o superego não é apenas herdeiro do
complexo de Édipo, mas também se constitui como importante formação reativa contra ele.
Durante um período, como já referido, Freud acreditava que o complexo de Édipo se
desenvolvia de maneira semelhante na menina e no menino. Entretanto, com o decorrer do
tempo e aperfeiçoamento de suas teorias, Freud conclui que o complexo na menina não é
análogo ao do menino. Se no menino, o complexo de castração é a causa geral do abandono do
complexo de Édipo. Na menina, é o complexo de castração que a introduz no complexo de
13

Édipo, uma vez que ao perceber as diferenças entre os órgãos genitais masculino e feminino, a
menina acredita ter sido castrada.
Outra diferença importante entre a maneira como a menina vivencia o complexo de
Édipo se dá pela troca de objeto de amor. Como falamos anteriormente, em ambos os casos, o
primeiro objeto de amor é a mãe. O menino permanece com esta escolha. Não obstante, a
menina migra seu desejo para o pai, já que, segundo suas fantasias, ele pode lhe conceder aquilo
que foi destituído dela: o pênis ou, em outras palavras, o falo, símbolo de poder que, em virtude
de sua ausência, provoca na menina um sentimento de inferioridade e de inveja. Laplanche e
Pontalis (2001) acrescentam que a menina sente a ausência de pênis como “um dano sofrido
que ela procura negar, compensar ou reparar”. (p. 73).
Além disso, na menina há uma mudança na zona erógena, o que não ocorre com o
menino, cuja zona erógena é o pênis. Em um primeiro momento, a zona erógena da menina é o
clitóris, o que na sua fantasia é um pênis que ainda não cresceu. Contudo, com o declínio do
complexo de Édipo e a aceitação da castração, a vagina se tornará também uma zona erógena,
órgão capaz de receber o pênis.
As possibilidades de desfecho no complexo de Édipo são variadas e o modo com o qual
o indivíduo irá transpor essa fase, contribuirá para a base de sua estrutura de personalidade, que
será firmada na fase da puberdade, marcada pela reedição do complexo. Por isso, o que foi
apresentado aqui, é uma breve leitura sob o ponto de vista de uma passagem considerada ideal,
a fim de que o caso clínico apresentado neste trabalho seja melhor compreendido.
Enfim, o complexo de Édipo é um momento fundamental na vivência do ser humano,
posto que representa o interdito ao incesto, promove a inserção na cultura e a introjeção das
normas e valores que nortearão a vida do indivíduo enquanto um ser para si e para a sociedade.
Ademais, desempenha um papel fundamental na estruturação da personalidade, seja ela:
neurótica, psicótica ou perversa, bem como na orientação do desejo humano e suas escolhas
objetais durante toda a vida.

3 TRANSFERÊNCIA

Em 1915, Freud inicia seu texto “Observações sobre o amor de transferência” falando
aos iniciantes da Psicanálise sobre as dificuldades que eles poderiam encontrar ao interpretar
as associações do paciente e cuidar do reprimido. Todavia, Freud disse que as dificuldades
únicas e realmente sérias estão no uso da transferência. Ora, se aquele que fundou a psicanálise
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reconhece isto, não é novidade que nós, psicólogos, encontremos também dificuldades em
reconhecer e manejar a transferência.
Nem sempre a transferência se expressa de forma explícita. Quanto maior a
profundidade do conteúdo inconsciente, mais sutil ela tende a se apresentar. Contudo, ela se
tornou um dos pilares da psicanálise, pois revela ao analista, de forma atuante e em tonalidades
diversas, os conflitos inconscientes do paciente.
De acordo com Laplanche e Pontalis (2001), a transferência “designa em Psicanálise o
processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro
de um certo tipo de relação estabelecida e, eminentemente, no quadro da relação analítica”. (p.
514).
Segundo Marion Minerbo (2012), Freud apresenta várias teorias sobre a transferência e
a primeira menção do termo surge em seu texto “A psicoterapia da histeria” datado de 1895.
Entretanto, ainda não se tratava de um conceito, mas sim um fenômeno.
Em 1895, Freud já tinha abandonado a hipnose e “recorria a sugestão, auxiliada pela
imposição das mãos sobre a testa ou pela pressão na cabeça do paciente estendido no divã”.
(LAGACHE, 2012, p. 6), a fim de possibilitar o método catártico, no qual o paciente evocava
e até revivia os acontecimentos traumáticos. No entanto, foram os fracassos dessas técnicas que
o levaram a questionar a relação médico-paciente, porque nem todo paciente era sugestionável
ou hipnotizável. Lagache (2012) assegura que “se todos os pacientes tivessem sido
hipnotizáveis, não teria havido a Psicanálise, e nesse sentido, pode-se sustentar que a
Psicanálise nasceu da resistência e dos efeitos negativos da transferência”. (p. 7).

Tudo ia bem até que, por algum motivo, a paciente parava de falar. Freud
percebeu que havia um obstáculo que não era de natureza interna, mas externa.
Tratava-se de perturbações relacionadas à pessoa do médico. A paciente podia
estar magoada com ele, ou ter medo de se apaixonar e perder sua autonomia.
Ou podiam ter aflorado representações penosas que a paciente transferia para
a pessoa do médico. (MINERBO, 2012, p. 19-20)

Minerbo (2012) relata que em “Interpretações dos sonhos” publicado em 1900 por
Freud, o termo aparece com o sentido de mecanismo, similar ao deslocamento, no qual
transfere-se a carga afetiva de uma representação à outra. A carga afetiva que era originalmente
recalcada ligava-se ao analista, aparecendo de forma disfarçada, assim como no sonho.
Lagache (1990) acrescenta que “em certos casos, com exceção do objeto, a transferência
é idêntica à experiência original; em outros, uma influência moderada, a sublimação,
modificou-lhe a finalidade e o modo de expressão” (p. 11).
15

A partir do Caso Dora, em 1905, a transferência deixa de ser apenas um mecanismo e


se torna um conceito e teoria, assumindo um papel fundamental da prática da Psicanálise.
Roudinesco e Plon (1998) afirmam que “foi por ocasião da análise de Dora que Freud teve
realmente sua primeira experiência, negativa, com a materialidade da transferência” (p. 767).
Freud, então, comprovou que o analista desempenha um papel na transferência do analisando,
pois, ao se recusar a ser objeto de amor de sua paciente, fez com que ela abandonasse o
tratamento. É com esse término inesperado que Freud percebe a transferência negativa que
despertara na paciente e que segundo o mesmo, não conseguiu manejar a tempo. Além disso,
ele constata um outro fenômeno, denominado por ele como contratransferência, do qual
trataremos com mais profundidade em um outro capítulo.
O caso foi publicado no texto “Fragmento da análise de um caso de histeria” em 1905,
no qual Freud apresenta uma definição sobre a transferência:

Que são transferências? São reedições, recriações das moções e fantasias que
a análise desperta à medida que avança. O característico de todo gênero é a
substituição de uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Para dizer de outro
modo: toda uma série de vivências psíquicas anteriores não é revivida como
algo passado, mas como vínculo atual com a pessoa do médico. (p. 101, apud
MINERBO, 2012, p. 25)

Trata-se, portanto, de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento


de atualidade, bem como na atualização de conflitos inconscientes que anseiam por resolução
e se apresentam em forma de ação, ao invés de lembranças expressas pela fala do paciente.
Contudo, este movimento é inconsciente, sendo assim, é algo que pode acontecer no cotidiano,
no campo relacional e não apenas no setting terapêutico.
Freud, em 1912, nos elucida que a transferência e suas características não devem ser
atribuídas a Psicanálise, mas a neurose – um tipo de estrutura de personalidade – sendo que esta
determina o funcionamento psíquico do sujeito e modo com o qual ele se relaciona consigo
mesmo e com o mundo. Sendo assim, não é a análise que provoca a transferência, ela se
constitui somente como um meio propicio para que ela ocorra.
Conforme Minerbo (2012), com a transferência é recriada “entre dois adultos – e com
carga de verdade emocional do passado –, uma cena completa, na qual estão presentes a criança-
no-adulto e seus objetos primários” (p. 30-31). O analista oferece sua escuta não ao adulto que
está ali, mas também e, principalmente, à criança que vive nele. E ele, por sua vez, torna-se a
atualização de objetos primários da vida do paciente. Passado e presente, então, são
16

sobrepostos, o que implica para a autora em uma desconstrução de categorias temporais que
antes eram definidas.
Segundo explicações e exemplos de Freud, Lagache (1990) descreve que o mecanismo
de transferência supõe: “a) no passado, o recalcamento de um desejo; b) no presente e na relação
com o médico, o despertar do mesmo afeto que, originalmente, forçou ao paciente esse desejo
clandestino” (p. 9).
Em 1912, Freud publica um texto sobre a transferência, o qual intitula como “A
dinâmica da transferência”. Segundo o autor, “todo ser humano, pela ação conjunta de sua
disposição inata e de influências experimentadas na infância, adquire um certo modo
característico de conduzir sua vida amorosa” (p. 101), o que resulta para o autor num clichê (ou
vários), que é repetido no curso da vida. E aqui, cabe ressaltar que não se trata de vida amorosa
no sentido romântico, mas sim a um campo mais amplo e geral dos relacionamentos afetivos
do sujeito.
A partir de suas observações, Freud nos explica que apenas uma parte dos impulsos
libidinais que determinam a vida amorosa são dirigidos para a realidade, ficando à disposição
da personalidade consciente e constituindo-se como porção desta. A outra parte pode se
expandir na fantasia ou permanecer toda inconsciente. Para o autor:

Aquele cuja necessidade de amor não é completamente satisfeita pela


realidade se voltará para toda pessoa nova com expectativas libidinais, e é bem
provável que as duas porções de libido, tanto a capaz de consciência quanto a
inconsciente, tenham participação nessa atitude. É perfeitamente normal e
compreensível, portanto, que o investimento libidinal de uma pessoa em parte
insatisfeita, mantido esperançosamente em prontidão também se volte para a
pessoa do médico. (FREUD, 1912, p. 101).

A partir da explicação de Freud, podemos perceber que a transferência com o analista é


constituída não só por expectativas inconscientes, mas também conscientes, assim como em
qualquer relação interpessoal, visto que há pontos de interlocução entre o inconsciente e a
consciência.
É neste mesmo texto publicado em 1912 que Freud elucida um outro aspecto importante
da transferência. Se de um lado, ela se torna uma alavanca para o sucesso da análise, posto que
revela aspectos inconscientes do sujeito. Do outro, ela pode ser o meio mais poderoso de
resistência. Entende-se por resistência, “o conjunto de reações de um analisando cujas
manifestações, no contexto do tratamento, criam obstáculos ao desenrolar da análise”.
(ROUDINESCO E PLON, 1998, p. 659). Sendo assim, o analista é colocado diante de um
17

antagonismo, pois, ao passo que, forças psíquicas visam a cura, outras se opõem a ela. Segundo
Freud, a intensidade e duração da transferência são efeitos e expressão da resistência.
O autor ainda nos apresenta a razão pela qual a transferência se torna um meio de
resistência:

Pois é claro que a confissão de todo desejo proibido é especialmente


dificultada, quando deve ser feita à própria pessoa à qual ele diz respeito [...]
é precisamente isso o que pretende alcançar o analisando, quando faz coincidir
o objeto de seus impulsos afetivos com o médico. (1912, p. 105).

Portanto, no momento em que a criança-no-adulto enxerga, inconscientemente, no


analista o objeto primário que lhe causa desejo, ele se torna incapaz de lembrar o conteúdo, pois
isso lhe causaria sentimentos e sensações desagradáveis, ameaçando o equilíbrio do aparelho
psíquico. Foi por esta razão que os conteúdos originários foram recalcados ou reprimidos para
o inconsciente, visto que se tornaram fonte de angústia.
Em “A dinâmica da transferência” publicado em 1912, Freud classifica a transferência
em positiva e negativa, de acordo com a qualidade dos afetos que são direcionados ao analista.
A primeira, corresponde a afetos amigáveis e ternos, os quais auxiliam no vínculo entre analista-
analisando, contribuindo para o andamento e progresso do tratamento analítico. Em
contrapartida, a segunda consiste na expressão de afetos hostis, que tendem a se tornar um
obstáculo, uma vez que o analista passa a ser alvo da agressividade do paciente. São afetos
ambivalentes que, normalmente, se apresentam juntos, variando enquanto ao grau e duração.
Há, ainda, a transferência erótica que consiste na expressão de afetos amorosos e eróticos. Nos
deteremos a ela em um outro capítulo.
Freud, então, acrescenta à sua teoria, que a transferência só se torna resistência quando
esta é hostil ou erótica, pois estas ameaçam a continuidade do tratamento. Em alguns casos, é
possível encontrar uma ambivalência de sentimentos, que se acompanhados de afetos positivos,
tendem a amenizar a intensidade e duração da resistência.
A partir de “Recordar, repetir e elaborar” (1914), a transferência se torna o eixo do
trabalho psicanalítico. Neste texto, Freud reitera que o analisando atua, ao invés, de recordar, a
fim de que o conteúdo possa ser elaborado e acrescenta que a transferência é somente uma
parcela de repetição do passado. Para o autor, quanto maior a resistência, mais o recordar será
substituído pelo atuar (repetir).
Ainda em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud introduz um outro conceito chamado de
neurose de transferência que, segundo, Laplanche e Pontalis (2001) consiste em uma “neurose
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artificial em que tendem a organizar-se as manifestações de transferência [...] é uma nova edição
da neurose infantil. Sua elucidação leva à descoberta da neurose infantil” (p. 309), estrutura que
precede os sintomas e causa sofrimento. Minerbo (2012) esclarece que “Já não são as
transferências positivas ou negativas que se depositam sobre o analista, mas um modo de ser –
a própria neurose – que se reproduz na análise”. (p. 51).
O analisando repete todo o passado esquecido, tudo aquilo que foi reprimido ou
recalcado. Encontram-se sobrepostos, passado e presente, criança e adulto, portanto, sua
doença, de acordo com Freud (1914), não deve ser tratada como um assunto histórico, mas
também como algo atual. Do mesmo modo, o paciente vivencia seus sintomas de forma real e
atual e o papel terapêutico do analista, então, é reconduzi-lo ao passado, sabendo que é “do
arsenal do passado que o doente retira as armas com que se defende do prosseguimento da
terapia” (FREUD, 1914), as quais o analista tem que identificar e arrancar uma por uma.
O papel do terapeuta consiste, portanto, em identificar e compreender o tipo de
transferência que o analisando estabelece com ele, bem como, maneja-la, interpretando-a ao
paciente. Mais do que isso: “O analista se esvazia de sua ‘pessoa real’ (de seus juízos de valor,
opiniões pessoais, desejos, necessidades e até das dores relacionadas as circunstâncias presentes
de sua vida) e disponibiliza apenas a ‘matéria viva de seu psiquismo’. (MINERBO, 2012, p.
13).
A fim de compreender o que se passa com o analisando, o analista “empresta” seu
psiquismo. Enquanto o paciente se entrega à associação livre, falando aquilo que lhe vem à
mente, o terapeuta, entrega-se à atenção flutuante, não priorizando qualquer elemento do
discurso do paciente, o que implica em um funcionamento o mais livre possível de sua atividade
inconsciente.
É, então, a partir de uma leitura do discurso, gestos e atitude do paciente, que o analista
é capaz de identificar a transferência e entender as razões pelas quais ela se manifesta. Cabe, ao
terapeuta, saber o momento certo de intervir, devolvendo a sua leitura em forma de
interpretação ao paciente e trazendo, então, à tona aquilo que até então era desconhecido.
Segundo Freud (1915), “é preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência
agora conhecida, para que a elabore, para que a supere, prosseguindo o trabalho apesar dela,
conforme a regra fundamental da análise”. (p. 154).
Freud completa que o analista deve esperar e deixar as coisas seguirem um curso que
não pode ser evitado, tampouco, acelerado e finaliza dizendo: “Na prática, essa elaboração das
resistências pode se tornar uma tarefa penosa para o analisando e uma prova penosa de paciência
19

para o médico. Mas é a parte do trabalho que tem o maior efeito modificador sobre o paciente”.
(p. 155).

3.1 Contratransferência

Se de um lado, o paciente transfere ao terapeuta seus protótipos infantis. Do outro, o


terapeuta pode reagir, de modo também inconsciente, a essa transferência. Este fenômeno foi
nomeado por Freud de contratransferência. Segundo Plon e Roudinesco (1998), o termo aparece
pela primeira vez em uma carta de Freud a Carl Gustav Jung, datada de 7 de junho de 1909.
Entretanto, Minerbo (2012) acrescenta que esse termo foi introduzido oficialmente por Freud
em “As perspectivas futuras da terapia analítica”, texto publicado em 1910.
De acordo com a mesma autora, esse fenômeno é entendido como a resposta do analista
frente aos “estímulos que provêm do paciente, resultado da influência inconsciente do
analisando sobre os sentimentos inconscientes do analista”. (p.44). No entanto, Minerbo (2012)
esclarece que “a contratransferência tem a ver com todas as coisas que o analista faz, e não só
com o que ele sente”. (p. 27). Sendo assim, podemos compreender que se trata de “um conjunto
de reações inconscientes do analista à pessoa do analisando” (p. 102), tal como descreve
Laplanche e Pontalis (2001).
Minerbo (2012), afirma que a contratransferência incide sobre os pontos cegos do
analista e assim, como a transferência, pode se transformar em um obstáculo à análise. Desse
modo, a autora declara que se impõe ao analista duas tarefas: reconhecer e manejar a
contratransferência, além da transferência por parte do paciente, como já discutimos
anteriormente.
Além disso, podemos nos deparar com um outro obstáculo, uma vez que além de
“contratransferir” – o que é mais comum –, o analista pode também transferir seus protótipos
infantis ao analisando, colocando-o no lugar de um objeto primário, o que torna a análise ainda
mais complexa. Lagache (1990), disse que o analista faz de seu inconsciente um órgão receptor
do inconsciente do paciente. Apesar disto, o analista não é destituído de seu inconsciente,
apenas o “empresta” com a finalidade de compreender o psiquismo do analisando. Sendo assim,
seu inconsciente mantém-se ativo e submete-se também a relação com o outro. Todavia, Plon
e Roudinesco (1998), reiteram que “o analista – e isso devia ser uma regra, segundo Freud –
nunca deve dar ao analisando nada que tenha saído do seu próprio inconsciente”. (p. 133).
Por esta razão, em 1912, Freud recomenda que os futuros analistas realizem também
uma análise pessoal. Segundo ele, “nenhum analista vai além do que os seus próprios
20

complexos e resistências internas lhe permitem”. (1910, apud Laplanche e Pontalis, 2001, p.
102).
Constatamos, portanto, que se a transferência tem algo a dizer sobre o paciente, a
contratransferência – ou transferência, como vimos–, também pode revelar aspectos
importantes sobre o analista. Não obstante, o que se refere ao analista deve ser identificado e
trabalhado em análise pessoal, de maneira que ao assumir este papel, o terapeuta mantenha-se
o mais neutro possível, a fim de não se desviar do seu objetivo: o paciente.

3.2 Transferência erótica

Na situação analítica, parece inevitável, que o analisando transfira à figura do analista


expectativas, sejam elas consciente ou inconscientes. “O neurótico põe-se a trabalhar porque
tem fé no analista e neste crê porque adquire uma atitude emocional especial para com a figura
do analista”. (FREUD, 1926, p. 141). Entretanto, a qualidade dos afetos, duração e intensidade
da transferência variam de paciente para paciente, de acordo com sua singularidade.
Em um capítulo anterior, falamos de maneira sucinta, mas clara sobre como Freud
classificou a transferência. Neste capítulo, nos aprofundaremos naquela que se tornou o tema
principal deste trabalho, uma vez que sua manifestação exige maior compreensão e manejo por
parte do terapeuta.
A transferência erótica consiste no direcionamento de afetos amorosos e eróticos à
figura do terapeuta. De um lado, caracteriza-se como positiva, em virtude dos afetos amorosos.
Do outro, porém, qualifica-se também como negativa, pois torna-se um obstáculo que ameaça
a continuidade do tratamento. Não se trata, portanto, de um outro “tipo” de transferência, mas
sim de um fenômeno que transita entre aquilo que Freud identifica como positivo ou negativo.

[...] uma transferência está presente no paciente desde o começo do tratamento


e, por algum tempo, é o mais poderoso móvel de seu progresso [...] Se, porém,
se transforma em resistência, devemos voltar-lhe a atenção e reconhecemos
que ela modifica sua relação para com o tratamento sob suas condições
diferentes e contrárias: primeira, se na forma de inclinação amorosa ela se
torna tão intensa e revela sinais de sua origem em uma necessidade sexual [...]
e, segundo, se consiste em impulsos hostis em vez de afetuosos. (FREUD,
1916, p. 134)

Desse modo, ocorre uma intensificação dos afetos amorosos, os quais se inclinam para
uma vertente mais erótica e sexual. “Tal sentimento pode ser classificado como transferência
positiva se permanecer em nível moderado; converte-se em resistência se ficar excessivamente
21

intenso ou cair na hostilidade”. (LAGACHE, 1990, p. 25). Não obstante, esse modo peculiar de
transferência pode se apresentar de maneira clara ou sutil. Suas nuances são diversas, mas seu
objetivo é sempre o mesmo.
O terapeuta, neste caso, é tirado do seu lugar de profissional e torna-se o objeto de paixão
do paciente. Sendo assim, há uma mudança de cenário. O setting, antes caracterizado como o
encontro do paciente com ele mesmo, reveste-se de um clima de sedução, no qual o paciente,
inconscientemente, desvia o foco de si para o terapeuta, deixando de mostrar os sintomas ou
não lhes dando atenção. Por vezes, pode até dizer que está curado.

Constatamos, pois, que o paciente, que deveria não desejar outra coisa senão
encontrar uma saída para seus penosos conflitos, desenvolve especial interesse
pela pessoa do médico. Tudo o que se relaciona ao médico parece mais
importante para ele, do que seus próprios assuntos, e parece desviá-lo de sua
própria doença. (FREUD, 1916, p. 132).

Todavia, em “Observações sobre o amor transferencial” publicado em 1915, Freud


orienta que o analista deve “reconhecer que a paixão do paciente é induzida pela situação
analítica e não pode ser atribuída aos encantos da sua pessoa, e que, portanto, não há motivo
para ele ter orgulho de tal ‘conquista’, como seria chamado fora da análise” (p. 161).
Por se tratar de uma transferência, a paixão pelo terapeuta consiste em novas edições de
velhos traços e repete ações infantis, cuja gênese é encontrada nas relações primárias do sujeito,
sobretudo, no complexo de Édipo, o qual as figuras parentais tornam-se alvo de desejo da
criança. Remonta-se, então, a cena edípica e é conferido ao terapeuta a representação materna
ou paterna. A libido – energia psíquica – é desinvestida dos sintomas e depositada no analista.
“Suspeitamos que toda a presteza com que esses sentimentos se manifestam deriva de algum
outro lugar, que eles estavam preparados no paciente e, com a oportunidade ensejada pelo
tratamento analítico, são transferidos para a pessoa do médico”. (FREUD, 1916, p. 133-134).
É verdade, porém, que não existe paixão que não repita os modelos infantis. No entanto,
a finalidade do amor transferencial para com o terapeuta é distanciar-se dos conteúdos
recalcados e reprimidos – os quais se aproximam da consciência – de maneira que eles não
sejam revelados. Sendo assim, a transferência erótica apresenta-se como um poderoso meio de
resistência, assim como esclarece Freud (1916), “Esta é uma situação perigosa para o
tratamento. Inequivocamente, estamos nos defrontando com uma formidável resistência” (p.
132).
Freud (1915, p. 162) explica que “a resistência tem enorme participação no surgimento
dessa impetuosa solicitação de amor”. Entretanto, ele ressalta que não é a resistência que cria
22

esse amor, ela depara-se com ele, serve-se dele e se intensifica. Apesar disto, a transferência
erótica, assim como as outras, revela, o que o ego tenta ocultar.

À medida que as facetas puramente sensuais e hostis do seu amor tentam


revelar-se, a oposição do paciente a elas é despertada. Ele luta contra elas e
tenta reprimi-las perante nossos próprios olhos. O paciente está repetindo com
o analista, sob a forma de apaixonar-se, experiências mentais pelas quais já
passou antes; ele transferiu para o analista atitudes mentais que estavam
prontas nele e intimamente associadas com sua neurose. Ele também está
repetindo diante dos nossos olhos suas antigas ações defensivas; ele gostaria
mais de repetir em sua relação com o analista toda a história daquele período
esquecido de sua vida. Assim, o que ele nos está mostrando é o núcleo da
história íntima de sua vida: ele o está reproduzindo de forma tangível, como
se ele realmente estivesse acontecendo, em vez de recordar-se dele. (FREUD,
1926, p. 142).

Compreendemos, dessa forma, que a transferência erótica nada tem a ver com o
terapeuta. Pelo contrário, ela torna explícito, ainda que sutilmente, o inconsciente do paciente,
o qual não tem noção das razões pelas quais se enamora do analista. Ao reconhecer isto, o
analista terá mais condições de voltar para o lugar do qual o paciente o retirou e se distanciar
dos investimentos amorosos e eróticos os quais são dirigidos para si e que acabam por
constranger e incomodar, dificultando a atenção flutuante e, por conseguinte, a condução da
sessão.
Cabe, então, ao terapeuta manejar a transferência e interpretá-la, no momento adequado,
ao paciente, trazendo à luz aquilo que até então estava oculto. Minerbo (2012) relata que o
analista tem que ser, ao mesmo tempo, objeto e intérprete da situação na qual está implicado.
Entretanto, reconhecer, manejar e interpretar a transferência erótica não são tarefas fáceis. É
um terreno fértil, mas difícil de caminhar, que demanda cautela, porque qualquer deslize pode
intensificar a resistência.
Freud (1915), aconselha que nunca se deve aceitar ou corresponder a paixão do paciente,
tampouco recusá-la. O terapeuta deve, assim, seguir aquilo que ele chama de regra de
abstinência, cuja definição será apresentada a seguir:

Regra da prática analítica segundo o qual o tratamento deve ser seguido de tal
modo que o paciente encontre o menos possível de satisfações substitutivas
para os seus sintomas. Implica para o analista o preceito de se recusar a
satisfazer os pedidos do paciente e a preencher efetivamente os papéis que este
tende a lhe impor. (LAPLANCHE E PONTALIS, 2001, p. 3).
23

Freud (1926) considera uma estultice tentar fugir das dificuldades que a transferência
erótica apresenta, fugindo ou negligenciando-a. Segundo ele, seria como se alguém invocasse
espíritos e fugisse, assim que eles aparecerem, o que resultaria em um ato de covardia. Todavia,
ceder e atender os desejos do paciente, não é só proibido moralmente, como totalmente ineficaz.
“O neurótico não pode ser curado por lhe ser permitido reproduzir estereótipos incorretos e
inconscientes que nele estão à mão”. (FREUD, 1926, p. 142). A cura, na Psicanálise – e cabe
aqui, destacar que esse termo se distingue da medicina, por exemplo – resulta da transposição
do conflito inconsciente para a consciência e na elaboração deste, de modo que, haja uma
ampliação da consciência do sujeito e, por consequência, uma melhora na sua qualidade de
vida. Não se trata, portanto, na extinção dos conflitos psíquicos, mesmo porque isto equivale
ao morrer, mas sim na busca de um equilíbrio que permita ao sujeito viver bem consigo mesmo
e com o meio que o cerca.
Para Freud (1916), supera-se a transferência, mostrando ao paciente que “seus
sentimentos não se originam da situação atual e não se aplicam à pessoa do médico, mas sim
que eles estão repetindo algo que lhe aconteceu anteriormente. Desse modo, obrigamo-lo a
transformar a repetição em lembrança”. (p. 135).

A única saída possível da situação de transferência é remontá-la ao passado


do paciente, como ele realmente a experimentou ou como ele a imaginou
através da atividade realizadora de desejos de sua imaginação. E isto exige do
analista muita habilidade, calma e abnegação própria. (FREUD, 1926, p. 143).
24

4 METÓDO

Conforme descrito por Roudinesco e Plon (1998, p. 603), a Psicanálise é “um método
particular de psicoterapia [...] pautado na exploração do inconsciente com a ajuda da associação
livre, por parte do paciente, e da interpretação, por parte do psicanalista. Trata-se, seguindo a
definição destes autores, de um método terapêutico, uma organização clínica e uma técnica
psicanalítica.
Laplanche e Pontalis (2001, p. 384) acrescentam que a Psicanálise se refere à um método
de investigação que consiste “essencialmente em evidenciar o significado do inconsciente das
palavras, ações e das produções imaginárias de um sujeito”.
Portanto, o método a seguir no presente trabalho consiste na observação clínica e escuta,
visto que o material a ser analisado provém do discurso do sujeito que se submete a análise,
caracterizando-se assim como uma pesquisa qualitativa.
A partir da escolha de um caso clínico atendido no ambulatório de Psicologia do
Hospital do Servidor Público Estadual durante o curso de aprimoramento profissional no ano
de 2015, buscou-se identificar e compreender a transferência erótica, com a finalidade de
estabelecer relações entre a teoria freudiana e a prática clínica e, assim, aperfeiçoar os
atendimentos realizados, visando sempre a melhora da qualidade de vida do paciente.
Com o intuito de preservar o sigilo do caso em discussão, o nome do paciente foi trocado
por um nome fictício, assim como alguns dados pessoais foram omitidos e alterados. Durante
o andamento deste trabalho, o atendimento foi encerrado. Dessa forma, as informações foram
retiradas do prontuário e arquivo da Seção de Psicologia.
25

7 DESCRIÇÃO E DISCUSSÃO DO CASO

Rafael, 23 anos, procurou o ambulatório de Psicologia devido à uma solicitação da sua


mãe, uma vez que ele era muito desatento e isso era motivo recorrente de reclamações por parte
dela. O paciente ainda informou que, aos 20 anos, foi diagnosticado com hidrocefalia,
submetendo-se, então, a uma cirurgia. Entretanto, o paciente informou que não teve
dificuldades na vida escolar e que seu déficit de atenção só lhe causou problemas na vida adulta,
período no qual ele teve um aumento de responsabilidades, por causa do seu ingresso na
faculdade e no mercado de trabalho.
Após as entrevistas iniciais, foi estabelecido com o paciente de que o tratamento a seguir
seria a psicoterapia breve, sendo ela constituída por 12 sessões de 50 minutos cada.
Rafael demonstrou-se comprometido com o processo psicoterápico, sendo assíduo e
pontual em todas as sessões.
Nas primeiras sessões, foi possível perceber que a desatenção se referia à uma alta
concentração de atenção sobre um determinado objeto, pessoa ou situação, fazendo com que o
paciente se tornasse desatento em relação a outras coisas que não fossem o seu foco, o que
indicava que, em termos de atenção, havia um aumento da tenacidade, em detrimento da
vigilância. Esse movimento se aplicava também à sua vida emocional, visto que o paciente
tendia a focar sua atenção em determinados pensamentos, situações, bem como pessoas ou
objetos, a fim de não entrar em contato com pensamentos, sentimentos e emoções que poderiam
ser desagradáveis e, deste modo, mobilizar angústia.
Todavia, Rafael mantinha-se perseverante de que o único problema a ser tratado na
terapia era a desatenção, demonstrando não só dificuldade de entrar em contato com suas
questões subjetivas, mas também resistência ao tratamento, o que segundo Laplanche e Pontalis
(2001) caracteriza-se como “tudo o que nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento
psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao inconsciente”. (p. 458).
Além disso, observou-se que o paciente apresentava um pensamento mais concreto, o
que lhe impossibilitava simbolizar e refletir e, por conseguinte, elaborar os conflitos subjacentes
a sua queixa manifesta.
Rafael relatou ser filho único, o que, concomitante, a hidrocefalia, ocasionou um
excesso de proteção por parte da mãe, com quem ele residia. Seus pais, apesar de serem casados,
optaram por morar em cidades diferentes por razões de trabalho. Desta forma, Rafael mantinha-
se em um lugar privilegiado, uma vez que era o centro das atenções da mãe.
26

O paciente, então, tinha uma relação mais próxima com a sua mãe, sendo ela marcada
por muito companheirismo e confiança, mas que se assemelhava a uma relação de casal, em
virtude da dinâmica que os dois mantinham na casa. Isso foi apontado para o paciente, que não
hesitou e concordou, sorrindo com satisfação. O relacionamento com o seu pai, por sua vez, era
visto como distante, sendo a figura paterna sentida como ausente. Sua ausência ficou evidente
nas sessões, pois Rafael pouco falava de seu pai.
Percebemos, portanto, a permanência de um cenário edípico, caracterizado por uma
relação triangular entre filho, mãe e pai. O pai, figura de autoridade e representativo da lei,
tornou-se ausente, concreto e simbolicamente, dando espaço para que Rafael,
inconscientemente e de maneira simbólica, assumisse o papel de marido e homem da casa.
Contudo, a superproteção da mãe e o modo com o qual ela invadia a privacidade de Rafael,
mobilizaram sentimentos de raiva, corroborando com o que Freud classificou como complexo
de Édipo composto, no qual afetos ambivalentes são dirigidos a ambas figuras parentais.
Ao passo que, esses conteúdos surgiram no discurso do paciente, seu comportamento e
fala para com a terapeuta modificaram, sinalizando os primeiros sinais de uma transferência
erótica. Rafael sorria constantemente para terapeuta e quando indagado o motivo pelo qual
apresentava tal comportamento, dizia: “Nada não! ” (Sic). Além disso, começou a demonstrar
interesse pela terapeuta, como por exemplo, quando perguntou: “Você é novinha, né? ” (Sic).
O setting revestiu-se de um clima de sedução, no qual o paciente dirigia, sutilmente,
seus interesses para a terapeuta e não mais para a resolução de seus conflitos. Desta forma, a
figura materna ganhou corpo na analista e os afetos eróticos e amorosos oriundos dessa relação
primária, passaram a ser direcionados para a mesma.
Como esclareceu Freud, a confissão de todo desejo proibido é dificultado quando deve
ser feito à própria pessoa. Ora, não é de se admirar então que tais elementos inconscientes
começaram a surgir no momento em que a mãe apareceu no discurso do paciente, deixando de
lado o foco no sintoma.
Não obstante, o paciente prosseguiu resistente ao tratamento. Se antes, a resistência
traduzia-se em uma ideia fixa na desatenção, agora, ela se revelava por meio da transferência
que o paciente estabelecia com a terapeuta, o que era um elemento dificultador para a
continuidade do tratamento, em conformidade com a teoria concebida por Freud.
A contratransferência, por sua vez, foi sentida como mal-estar e incômodo, o que
dificultava o raciocínio clinico da analista, uma vez que as investidas do analisando a tiravam
de sua função profissional, transformando-a não apenas na figura materna, mas em objeto de
amor e, por conseguinte, de atenção e interesse.
27

À medida que as sessões transcorriam, os comentários voltados para a terapeuta


tornaram-se mais recorrentes e explícitos, como em um dia que Rafael falou: “Você gostaria de
ter um namorado como eu. Não gostaria? ” (Sic), bem como em outro momento que disse
“Posso te dizer algo? Seu sorriso parece o da Cléo Pires. ” (Sic).
No entanto, Freud já havia nos orientado que o amor transferencial não pode ser
atribuído aos encantos da pessoa do analista, mas sim é induzido pela situação analítica, posto
que ao invés de recordar aquilo que, outrora, foi reprimido ou recalcado, o indivíduo atua. Freud
não só estudou sobre esse fenômeno, como também o vivenciou, o que serviu de embasamento
para sua teoria.
Por se tratar de uma psicoterapia breve com um número limitado de sessões, buscou-se
não centralizar o tratamento na transferência, já que a interpretação desse fenômeno exige
tempo e cuidado. Tempo, porque o tempo do analista não é o mesmo do analisando. Qualquer
interpretação antes do momento apropriado, pode resultar no aumento de defesas e da
resistência, dificultando ainda mais o trabalho. E, cuidado, pois o conteúdo a ser revelado foi
lançado e mantido no inconsciente por despertar intensa angústia, ameaçando o equilíbrio do
aparelho psíquico e, consequentemente, a existência do paciente em questão.
Por essa razão, o primeiro passo no trabalho com Rafael foi compreender que ele tinha
um ritmo próprio para a análise e que os atendimentos, apesar de serem breves, só teriam
sucesso se a terapeuta seguisse seu ritmo, como um passo de dança. Aos poucos, Rafael se
permitiu olhar para seu mundo interior, o que implicava também em olhar para aspectos que
eram desagradáveis, mas que faziam parte da sua personalidade e da sua história. E assim,
Rafael começou a dançar conforme a música.
Compreender que Rafael repetia seus protótipos infantis provenientes da relação
primária com a figura materna foi fundamental para o prosseguimento do tratamento, porque,
dessa forma, os sentimentos despertados na contratransferência se modificaram, dando lugar a
um melhor entendimento sobre o caso.
O relacionamento de Rafael com a sua mãe se tornaram a tônica do tratamento,
proporcionando a ele a expressão e reflexão sobre os afetos que essa relação lhe suscitava.
Enquanto a satisfação de preencher simbolicamente um lugar que não era seu – lugar do pai –
e o comodismo de ser e ter tudo, sentimentos como incômodo e raiva também começaram a
aparecer, pois Rafael se deu conta de que sua mãe também o enxergava como um bebê
desprotegido, sendo excessivamente protetora, o que prejudicava seu amadurecimento,
independência e autonomia. Além disso, sua mãe era invasiva no que referia à privacidade,
entrando no banheiro enquanto ele tomava banho ou trocava de roupa, por exemplo.
28

Talvez, Rafael esperasse da terapeuta o mesmo de sua mãe, que ela fosse lhe dizer o que
fazer, lhe proteger ou invadir o seu quarto – simbolicamente falando –, correspondendo às suas
expectativas amorosas e erotizadas. No entanto, seguindo Freud, o analista não pode aceitar ou
corresponder ao amor transferencial, sequer recusá-lo, mas sim seguir a regra de abstinência, o
que significa que o paciente deve encontrar o menos possível de satisfações substitutivas para
os seus sintomas.
Ao passo que, os conflitos com a mãe foram sendo trabalhados, foram surgindo também
conflitos oriundos da relação com a figura paterna, representados por figuras de autoridade,
sobretudo, com os chefes e professores. Rafael não só buscava referências masculinas externas
ao seu núcleo familiar, como também se sentia ameaçado por elas, disputando sempre um lugar
superior, o que, mais uma vez, reforçava a existência de um conflito edípico, permeado por
afetos ambivalentes.
A representação da figura paterna também ganhou traços na terapeuta, já que os limites
foram sendo colocados, o que delimitava os papéis a serem assumidos, bem como a interdição
de uma relação proibida entre analista e analisando, correspondente a relação incestuosa com a
mãe. Um exemplo disso foi o dia no qual Rafael demonstrou interesse em incluir a terapeuta
em seu grupo social, perguntando: “Seria invasivo se eu pedisse o seu Whatsapp ou Facebook?
” (Sic). A terapeuta devolveu a questão, perguntando o que ele achava e ele acrescentou: “Ah,
não seria legal. Seria invasivo, porque aqui a gente está numa relação entre paciente e
profissional”. (Sic). Dessa forma, Rafael não só expressou o seu pensamento para a terapeuta,
como também facilitou a intervenção posterior, no qual foram estabelecidos limites, necessários
não só para o trabalho, mas para a elaboração dos conflitos com as figuras parentais, de forma
mais direta, com a mãe.
Portanto, apesar da transferência erótica não ter sido interpretada ao paciente, devido à
duração do tratamento, ela foi manejada e trabalhada a partir do relacionamento com a mãe,
pois, como já vimos, ela consistia nada mais do que a repetição dessa vivência infantil.
Concomitantemente, a determinação de limites e papéis constituíram-se como importantes
intervenções, o que simbolizou, o início de uma separação entre mãe e filho.
Se de um lado, Rafael queria crescer. Do outro, ele se mostrava inseguro e infantil,
aceitando a posição na qual a mãe o colocava. Contudo, o paciente foi adquirindo uma melhor
percepção de si e do meio circundante. Se antes, ele mantinha-se em um pensamento puramente
concreto, deu a si mesmo a possibilidade de pensar de maneira mais ampla, o que lhe permitiu
refletir e simbolizar e, por conseguinte, elaborar os conflitos psíquicos dos quais se deu conta.
Portanto, o espaço terapêutico lhe possibilitou os primeiros passos na direção elaborativa de
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sua problemática e, com isso, passos importantes na condução da mais difícil das danças, sua
própria vida.
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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos, portanto, que o fenômeno da transferência erótica nada tem a ver com o
analista, mas sim com o próprio paciente, uma vez que revela de forma atuante, seus conteúdos
inconscientes que, outrora, foram recalcados ou reprimidos.
No caso discutido, o paciente, inconscientemente, repetia e atualizava, no setting, seus
desejos inconscientes em relação à mãe, revelando não apenas o desejo incestuoso, mas o medo
da castração despertado por figuras de autoridade, representativas da figura paterna, o que
indicava a existência de um conflito edípico, ainda não elaborado completamente por Rafael.
Se de um lado, o paciente demonstrara seu amor pela mãe e satisfação em ocupar o lugar
do pai. Por outro, deixara transparecer também a raiva, pois sua mãe também o tratava como
uma criança pequena, mantendo-o em uma posição infantil, o que impossibilitava seu
crescimento, autonomia e independência. Concomitante a isso, o paciente demonstrara carinho
e saudade em relação ao pai, bem como raiva por sua ausência, embora manifestara desejo de
mantê-lo distante. Verificamos, assim, um conjunto de afetos ambivalentes direcionados às
figuras parentais, em conformidade com a teoria proposta por Freud, os quais foram transferidos
à terapeuta. Ora, representando a mãe. Ora, representando o pai.
Isso nos faz refletir que a análise ganha uma dinâmica própria, assim como o inconsciente,
posto que o setting é o espaço que o paciente tem para entrar em contato consigo mesmo,
mergulhando, através do intermédio do analista, em suas próprias profundezas. Sendo assim,
não há uma dicotomia entre certo ou errado, passado ou presente, criança ou adulto. O papel do
analista, então, é muito mais do que interpretar. É emprestar seu psiquismo com a finalidade de
compreender o outro. É mergulhar no desconhecido em conjunto com o paciente, tornando-se
não somente ator e intérprete da situação na qual está inserido, mas um facilitador do processo
de análise.
Por essa razão, resgatar a teoria foi fundamental para o êxito do tratamento, pois as
premissas apresentadas por Freud, corroboradas neste estudo, contribuíram para que a analista
retornasse ao lugar da qual foi destituída, assumindo sua posição e condução no tratamento,
cujo mergulho não deve desviar-se nunca do seu objetivo: o paciente.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE. Guia Mackenzie de trabalhos


acadêmicos. São Paulo, 2015.

FREUD, S. (1910). Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens: Contribuições à
Psicologia do amor I. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
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Companhia das Letras, 2010, v. 10, p. 100-110.
______. (1914). Recordar, repetir e elaborar: (Novas recomendações sobre a técnica da
Psicanálise II). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, v.10,
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______. (1915). Observações sobre o amor de transferência: (Novas recomendaçõe sobre a
técnica da Psicanálise III). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2010, v. 10, p. 159-172.
______. (1916-1917). A transferência: Conferência XXVII. Teoria geral das neuroses:
conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 16, p. 125-137.
______. (1923). O Eu e o Id. Tradução Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras,
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______. (1926). A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial. In: Edição
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LAGACHE, D. A transferência. 1ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário de Psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins
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MIGUELEZ, N. B. S. D. Complexo de Édipo: novas psicopatologias, novas mulheres, novos
homens. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.
MIGUELEZ, O. Amor de transferência. In: Boletim Formação em Psicanálise. São Paulo:
V.8/9, n.2/1, p. 23-30, jan./jun. 2000.
MINERBO, M. Transferência e contratransferência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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ANEXO

JUSTIFICATIVA DA AUSÊNCIA DO TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO

O presente documento tem como objetivo justificar a ausência do termo de


consentimento informado no projeto “Estudo de um caso sobre a transferência erótica no setting
psicanalítico”, desenvolvido como monografia apresentada ao final do Curso de
Aprimoramento em Psicologia Hospitalar, realizado no Hospital do Servidor Estadual
Francisco Morato em conjunto com a FUNDAP, no ano de 2015/16, pela psicóloga Camila
Gomes da Silva e orientada por Maria Tereza Viscarri Montserrat.
De acordo com a Resolução CFP n° 16/2000 de 20 de dezembro de 2000, Ementa:
Dispõe sobre a realização de pesquisa em Psicologia com seres humanos, do Consentimento
Informado, Artigo 6° - O psicólogo pesquisador poderá estar desobrigado do consentimento
informado nas situações em que:
II – As pesquisas sejam feitas a partir de arquivos e banco de dados sem identificação
dos participantes.
Foram utilizados registros em prontuários dos pacientes referidos neste trabalho, além
de registros armazenados em arquivo exclusivo do Serviço de Psicologia; estes foram
analisados qualitativamente de acordo com o referencial teórico descrito no projeto.
Para garantia do sigilo das informações e a preservação da identidade dos pacientes, os
nomes foram alterados e a apresentação foi cuidadosa no sentido de preservar dados que os
identificassem.
Fica, dessa forma, justificada a ausência do termo de consentimento informado no
presente trabalho.

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