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VISÕES SOBRE A GEOGRAFIA E O PÓS-


COLONIALISMO
CONVERSAS COM FELIX DRIVER, DAVID
HARVEY E PAUL CLAVAL

 ANDRÉ REYES NOVAES


MARIANA LAMEGO

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de compartilhar perspectivas sobre geografia e pós-colonialismo reunidas a partir de
conversas realizadas com três grandes geógrafos pertencentes a gerações e lugares de enunciação marcadamente distintos: Felix
Driver, David Harvey e Paul Claval. O artigo está dividido em duas seções, na primeira é exposta a transcrição das partes mais
significativas das entrevistas realizadas nos últimos meses de 2013. Na segunda, são tecidas considerações que buscam identificar
temáticas recorrentes nas narrativas dos entrevistados.

Palavras-chave: pós-colonialismo, conhecimento geográfico, identidade, visões disciplinares.

Introdução _____________________ organizadores já se preocupavam com o


“perigo de se perder significado efetivo de
A diversidade de pontos de vista sobre o conjunto”, devido à grande variedade de
pós-colonialismo pode ser, abordagens, metodologias e disciplinas
simultaneamente, temida e celebrada. Na envolvidas. Por outro lado, esta diversidade
introdução de um dos primeiros livros de de pontos de vista, ou “constelação de
divulgação sobre este campo, o Postcolonial significados” (Sidaway, 2000), também
Studies Reader (Ashcroft et al, 1995), os pode ser celebrada, pois expressa
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possibilidades de interlocução entre autores coloniais, como a obra de Edward Said
com trajetórias profundamente (Driver, 1992). Sendo uma reconhecida
diferenciadas. referência na geografia histórica britânica,
Acreditando em tais possibilidades o ambiente onde o pós-colonialismo
presente texto procura compartilhar prosperou entre professores e estudantes,
perspectivas sobre geografia e pós- Driver conduz a conversa de maneira mais
colonialismo reunidas a partir de conversas focada nas referências fundadoras e nos
realizadas com três grandes geógrafos debates acadêmicos ocorridos na Inglaterra.
pertencentes a gerações e lugares de David Harvey é professor do
enunciação marcadamente distintos: Felix Departamento de Antropologia da City
Driver, David Harvey e Paul Claval. O University of New York. O autor é
reconhecimento e prestígio do trabalho certamente um dos geógrafos mais célebres
destes geógrafos tornam desnecessária da atualidade e o impacto de seus trabalhos
qualquer exposição detalhada de suas vai muito além da geografia. Apesar de
trajetórias. Seus textos e suas biografias também ter influência considerável sobre a
estão amplamente disponíveis. Ainda assim, geografia britânica, foi a partir dos EUA que
cabe apontar alguns aspectos biográficos Harvey alcançou projeção internacional.
mais diretamente relacionados com as Sua trajetória é substancial e muito
temáticas debatidas nos diversos artigos que conhecida pelos geógrafos. A partir de seu
compõem a presente edição da E&C. livro Social Justice and the City, publicado
Felix Driver é professor do em 1973, Harvey passou a se dedicar mais
Departamento de Geografia da Royal intensamente às relações entre geografia e
Holloway University of London e desde a marxismo, e abriu um leque variado de
conclusão do seu doutorado em Cambridge pesquisas sobre pós-modernidade,
passou a se interessar progressivamente capitalismo, neoliberalismo e espaço
pelas relações entre conhecimento urbano. Sendo uma referência internacional
geográfico, império, cultura visual e cultura da geografia crítica, Harvey apresentou seu
da exploração. Estes interesses conduziram posicionamento a respeito das relações de
o autor a uma apropriação geográfica poder na produção do conhecimento
pioneira de trabalhos importantes para o geográfico, explicitando alguns debates
desenvolvimento do campo de estudos pós- fundamentais sobre o marxismo e o pós-

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colonialismo. professores e pesquisadores de
Paul Claval é um dos geógrafos mais universidades brasileiras, estava no Rio de
renomados da França e é professor de Paris Janeiro para as festas do final de ano e foi
IV-Sorbonne. Sua trajetória é muito extremamente gentil ao aceitar um convite
diversificada e suas contribuições articulam para uma conversa no seu período de férias.
geografia histórica, geografia regional, David Harvey veio ao Rio de Janeiro
geografia política e principalmente geografia à ocasião do XIII Simpósio de Geografia
cultural. O autor foi muito importante na Urbana. Com uma agenda intensa de
introdução da geografia cultural no Brasil e palestras, entrevistas e autógrafos, Harvey
muitas de suas publicações foram traduzidas foi paciente e cordial na conversa realizada
para o português (Claval, 2007). Sua com um grupo de professores do
longeva experiência na geografia departamento de geografia da UERJ.
possibilitou uma conversa com um rico Paul Claval esteve no Rio de Janeiro
enfoque comparativo entre a geografia participando do evento organizado pelo
francesa e a geografia britânica, NEPEC em comemoração aos vinte anos de
contemplando as implicações do pós- atuação do núcleo em princípios de
colonialismo nas diferentes formas de se dezembro. Vale ressaltar que o professor
fazer geografia histórica e cultural. Claval tem estreitas relações com o Brasil,
Antes de apresentar as entrevistas tendo vindo inúmeras vezes para participar
propriamente, cabem algumas importantes de Simpósios, Congressos e Bancas de
considerações e ressalvas. Diferentes foram Doutorado. Claval, generoso como sempre,
os ensejos que provocaram os encontros concedeu a entrevista em português.
com Driver, Harvey e Claval num período Uma preocupação recorrente, em
curto e intenso em dezembro de 2013 e em todas as entrevistas, foi a de proporcionar e
abril de 2014. Situações oportunas que manter um espaço aberto para que os
aliadas ao interesse na abordagem pós- entrevistados pudessem expressar suas
colonialista na geografia, possibilitaram esse opiniões sobre a produção do
trabalho. conhecimento geográfico e suas possíveis
O professor Felix Driver, que há relações com o pós-colonialismo. O
bastante tempo vem ao Brasil e tem uma objetivo não era seguir um roteiro estrito, e
relação já consolidada com alguns sim possibilitar um instigante diálogo sobre

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o tema a partir de algumas questões ao seu lugar de enunciação mais vinculado a
previamente elaboradas. Alguns caminhos uma intelectualidade refratária ao pós-
seguidos foram definidos no próprio colonialismo. A visão marxista de Harvey
decorrer das conversas e, por isso mesmo, traz em muitos momentos uma crítica
revelam as particularidades e características importante sobre as influências do pós-
das visões de mundo desses três grandes estruturalismo nas ciências sociais.
nomes da geografia. Por fim, o professor Paul Claval nos
Seguindo as narrativas é possível oferece um instigante desfecho,
observar visões convergentes e divergentes comparando a produção do conhecimento
entre os entrevistados, contudo, o geográfico em diferentes ambientes
propósito aqui é menos demarcar acadêmicos. Ao assumir o pós-colonialismo
aproximações ou distanciamentos e mais como uma tendência com expressão recente
contribuir para o reconhecimento de um na França, Claval nos revela como os
campo de estudos no qual convivem pontos escritos pioneiros do pós-colonialismo
de vista plurais emitidos a partir de lugares e francês tiveram pouco impacto contínuo das
trajetórias muito peculiares. pesquisas geográficas daquele país.
Uma última consideração é
necessária e diz respeito à escolha da
sequência da apresentação das entrevistas. Felix Driver e a consolidação do pós-
Após o processo de transcrição ficou mais colonialismo na geografia britânica_______
evidente como o lugar de enunciação de
cada geógrafo atuou como fio condutor das E&C: Qual foi a primeira vez que você
entrevistas. A escolha de iniciar as escutou sobre o pós-colonialismo e quais
transcrições pelo professor Felix Driver, foram as principais referências no seu
teve como justificativa o fato do contato inicial com essa abordagem?
entrevistado falar a partir de um ambiente
acadêmico onde o pós-colonialismo aparece FD: Com relação ao tempo, deve ter sido
de forma consolidada, com forte influência na metade dos anos 1980 e, provavelmente,
sobre a geografia cultural e histórica. foi lendo Said alguns anos depois da
Já o professor David Harvey aparece publicação do Orientalismo1. Mas eu não
em seguida como um contraponto, devido consigo lembrar porque eu estava lendo. Eu

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lia muito Foucault, e estava escrevendo “Marxismo e Literatura”2 e então havia
sobre Foucault e pensando sobre geografia muitos interesses em Gramsci e nas relações
e império. Então, eu peguei este livro e entre cultura e poder. Vindo de uma outra
comecei a ler e ele realmente me levou para direção, embora relacionada, tinha o
alguma coisa chamada pós-colonialismo. trabalho do Stuart Hall na sociologia e nos
Embora a relação de Said com o pós- estudos culturais. Stuart Hall escreveu
colonialismo seja bastante estranha. Ele foi posteriormente sobre Said nos anos 1990 e
crítico com relação a alguns aspectos da isso foi muito importante para a geografia,
teoria pós-colonial um pouco depois. Mas ao trazer novas ideias para perto da
eu acho que foi aquele livro, e era um livro geografia, mas isso seria uma outra questão.
muito instigante, um livro engajado, um Mas para mim foi lendo Said e vendo as
livro muito histórico, que tinha uma visão ligações com algumas ideias teóricas sobre o
particular do conhecimento geográfico conhecimento geográfico, percebendo
como central para o Orientalismo. E também um uso diferente e mais político da
obviamente este teve um grande impacto na história e da história da geografia.
geografia desde então, não foi? Então, acho Um outro livro de um autor inglês
que este foi o momento, foi lendo o livro e que teve grande influência e que eu gostaria
vendo como a história imperial poderia ser de destacar é o livro chamado Colonial
pensada de uma outra forma, também ligada Encounters3 de Peter Hulme, que era sobre
com o contemporâneo. Ligada com o que o colonialismo britânico no Caribe. Ele
hoje nós chamados de “geopolítica crítica”, coloca alguma literatura marxista neste
eu suponho, mas na época não era chamada ensaio. É um livro realmente excelente, um
assim. Said falava sobre geografias livro muito histórico e eu tendo a gravitar
imaginativas, que é sobre pessoas criando e em torno de uma literatura mais histórica.
contestando a geografia, da mesma forma Porém, histórico com um tipo de
que na história e essa foi a inspiração. engajamento sério com a teoria. É
Mas naquele momento, nos anos importante manter o balanço certo.
1980 na Inglaterra, também havia uma série Mas, se você quer outro ponto de
de debates ocorrendo acerca do marxismo. referência para o meu engajamento com a
No momento em que o Orientalismo foi teoria pós-colonial, e eu acho que na
publicado, Raymond Williams publicou geografia britânica em geral, esta seria o

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livro de Jane M. Jacobs chamado Edge of geografia humana no momento de
Empire4. Ela é uma geógrafa australiana que surgimento de debates sobre pós-
fez o doutorado sobre patrimônio e política colonialismo?
em Londres e na Austrália, e ela foi
realmente a primeira pessoa a escrever FD: Nos anos 1980 todos estavam falando
sobre a geografia da cidade moderna do sobre pós-modernismo. Então veio a ideia
ponto de vista pós-colonial. Pensando como de publicar um número especial do
o império segue formando a geografia de periódico Society and Space, que se
cidades como Londres e suas relações com tornaram dois números sobre geografia e
a política de patrimônio. Acho que este é pós-modernismo. Eu fui convidado para
um exemplo muito bom e, no primeiro contribuir, mas não estava realmente
capítulo do seu livro, ela fala sobre as interessado no pós-modernismo. Gillian
relações entre pós-colonialismo e pós- Rose e Steve Pile7 escreveram sobre pós-
modernismo. modernismo e várias outras pessoas
As literaturas pós-coloniais também também. Então, eu decidi escrever sobre o
vêm de várias regiões do globo. Assim teve pós-colonialismo e o artigo acabou
esta abordagem sobre o Caribe, mas tornando-se um ensaio sobre Edward Said, a
também houve toda uma literatura do história da geografia e o império e continua
Pacífico, que eu realmente entrei em sendo bastante lido atualmente. Aquele foi
contato posteriormente. Existe, na área de o momento particular que eu vim a publicar
antropologia especialmente Nicholas este tipo de coisa, parcialmente devido à
Thomas5. Ele aborda muita coisa sobre obsessão pelo pós-modernismo e os livros
encontro e troca. Frequentemente violenta, de David Harvey e Edward Soja que vieram
mas ainda assim sobre troca. E estes ao mesmo tempo, não foi?
trabalhos parecem se relacionar melhor com Eles não estavam falando sobre o
a última fase de Said, ou o Said de “Cultura pós-colonial, mas o pós-colonialismo
e Imperialismo”6, onde ele fala que existem parecia ser mais diretamente ligado com o
dois lados: vamos olhar para o encontro, conhecimento geográfico. O pós-
vamos olhar para a luta. modernismo é relacionado com um
conjunto de teorias espaciais e muitas outras
E&C: Como era o contexto acadêmico da coisas interessantes. Então, não foi apenas

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eu, alguns geógrafos históricos se tornaram sempre um pouco confusa, particularmente
interessados nas relações entre império e para os estudantes, porque esta carrega o
geografia. Neil Smith e Anne Godlewska sentido de ser depois do colonialismo ou
escreveram um livro chamado Geography além do colonialismo. Assim ela sempre
and Empire8 em uma série que eu editei. Foi coloca em diálogo com a história alguns
uma série da Blackwell no início nos anos processos que, de alguma forma, seguem
1990 e havia muitas referências a Said. presentes. E presentes não apenas em
Obviamente o livro de Said foi nossas cabeças, nas nossas teorias e nos
primeiramente publicado em 1978 e ele não nossos conhecimentos, mas também nos
havia sido realmente considerado ou lido espaços do mundo. Eu acho que a
até meados nos anos 1980. E eu acho que persistência do pós-colonialismo na
aquela concepção do conhecimento geografia é justificada parcialmente porque
geográfico que está em Said, me parece esta tem sido útil para os geógrafos
ligada com o que Gillian Rose estava pensarem em diferentes espaços, em
escrevendo sobre feminismo e geografia. E cidades, em nações, em paisagens e sobre
ofereceu novas formas de fazer a história do todas estas questões em várias escalas
conhecimento geográfico. geográficas.
Então, só para te dar um exemplo, e
E&C: Alguns autores destacam que o uso do isso nos leva para bem longe da questão,
“hífen” poderia diferenciar o pós- mas tem relação com a ideia de formação
colonialismo do pós-colonialismo (Sharp, devido ao foco empírico de um projeto que
2000). O primeiro termo privilegiaria o eu estava trabalhando com meus colegas da
marco temporal e a ruptura com o Royal Holloway em meados nos anos 1990
colonialismo, já o segundo seria uma sobre cidades imperiais. O projeto era sobre
abordagem teórico-metodológica crítica ao as cidades europeias, em particular sobre
colonialismo, considerando suas aquelas que sofriam influência, ou foram
continuidades. Como este debate tem sido formadas pelo império. Nós nos tornamos
importante nos diversos sub-campos da muito acostumados a pensar sobre as
geografia? cidades fora da Europa, as cidades do
terceiro mundo, mas era importante pensar
FD: Claramente a palavra pós-colonial foi como o império forma o colonizador e

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entender o espaço da cidade colonial, que estava escrevendo sobre geopolítica e ele
foi geradora de novas perspectivas. Neste publicou um livro muito bom sobre
sentido, foi falando sobre espaço, pós- geopolítica e o visual ao longo do tempo.
colonialismo e vendo como o colonialismo Ele estava certamente lendo Said.
ainda está lá na cidade de várias formas que
construímos o projeto. E&C: A geografia britânica foi muito
Eu estava muito interessado em influenciada por Said, que escreveu em
saber como aquela ideia, que não era apenas inglês, existe influência de autores ligados a
nossa, seria aplicada nas cidades imperiais. tradições francesas e latino-americanas?
Assim, editamos um livro e organizamos
uma conferência9. Nós colocamos alguns FD: A influência de Fanon11 na Geografia
geógrafos em contato com historiadores anglófila teve maior interesse na direção da
sobre a cidade e eu me interesso em ver psicanálise. Que também é uma área de
como vinte anos depois esta área ainda interesse da geografia que tem sua trajetória
segue dinâmica na Europa, em vários influenciada pelas teorias pós-coloniais.
sentidos. É interessante como a teoria pós- Existe também uma pequena influencia na
colonial não ficou restrita a um gueto da geografia e literatura, com Césaire12. Mas,
geografia cultural. Ela teve na realidade você pode bem argumentar que Said tem
influencia para além da geografia cultural ou sido super-utilizado como um pensador em
da geografia da literatura. Afetando a particular devido a sua língua, isto seria
geografia urbana, a geografia econômica, reconhecer alguma forma de geografia. Mas
etc. certamente existem muitas tradições pós-
Não é possível confinar os impactos coloniais.
do pós-colonialismo na geografia cultural e Mas, a essa altura, é muito fácil cair
histórica. Têm existido engajamentos sérios em estereótipos nacionais. Pense no livro
na geografia econômica, na geopolítica que eu mencionei, que era basicamente uma
crítica e é muito difícil imaginar a releitura da Revolução Haitiana nos anos
geopolítica crítica existindo sem o pós- 1790/1800. Era uma interpretação da
colonialismo, não é? É realmente Revolução Francesa a partir do Caribe,
impossível, porque no tempo em que eu então era bem pós-colonial antes do termo
estava escrevendo, o Gerard Toal10 também pós-colonial existir, escrito em inglês, mas

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ao menos sobre história francesa e partir do sul como base para o surgimento
influenciou muitos autores como Peter de novas epistemologias?
Hulme, Catherine Hall e Stuart Hall13.
Autores cujos trabalhos têm sido tão FD: Eu não sou familiarizado com
importantes para mim. E outros geógrafos Boaventura, mas posso imaginar o
históricos britânicos como Daniel Clayton argumento. Eu acho que existe o risco do
que escreveu um livro importante sobre a essencialismo. Apenas reverter a polaridade
Ilha de Vancouver14. não é o suficiente né? Mas eu acho que
Sobre a América Latina, existem estas questões estão muito vivas. Uma coisa
abordagens sobre história popular. Você interessante nesse debate é pensar em
também pode achar que tem sido um pouco Braudel. Ele escreveu o seu livro sobre o
superficial, então eu quero saber mais sobre Mediterrâneo enquanto estava no Brasil.
isso, mas considerando a sua questão, na Você vê, não é exatamente uma coisa
geografia britânica eu diria que é a contingente. É interessante quando eu
influência de autores latino-americanos é descobri isso eu comecei a pensar que este
absolutamente negligenciada, uma realidade parece ser um exemplo literal de se pensar
pouco conhecida. sobre a Europa estando no Sul Global. Mas
é claro que a presença dele aqui era uma
E&C: Entre os autores latino-americanos e história sobre o colonialismo francês no
Ibéricos existe um destaque grande para as Brasil, era a implantação do sistema
relações de poder nos processos de acadêmico francês em São Paulo. Mas não
produção do conhecimento. Fala-se de vamos falar disso agora.
“colonialidade do saber” (Quijano, 2000) e Existem dois perigos para se evitar
da possibilidade de criação de no pós-colonialismo. O primeiro é para os
“epistemologias do sul” (Santos e Menezes, geógrafos do Norte Global, que devem
2010). Por outro lado, existem muitas entender que a coisa realmente excitante
críticas a um certo revanchismo que o pós- sobre a geografia é que ela nos ajuda a
colonialismo poderia gerar, negando entendermos nossa própria sociedade, de
influencias culturais “externas” e caindo em modo que vamos entender nossa própria
um essencialismo simplista. Você acredita geografia, nossas sociedades viradas para
nessa possibilidade de uma teoria gerada a dentro. Mas não se pode entender o Norte

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Global de forma independente das outras Por exemplo, Milton Santos, o seu trabalho
partes do mundo. O segundo perigo é o de não é conhecido na Grã-Bretanha, apesar de
se adotar uma retórica de que necessitamos haver um texto, em um desses dicionários
fazer algo renunciando ao eurocentrismo, o de pensadores-chave. Esta ainda é uma
que significa renunciar a tudo que vem da empreitada necessária para o pós-colonial,
Europa e celebrar qualquer coisa que seja ainda há um trabalho a fazer.
purificada de influência externa. Isso é
exatamente o que Doreen Massey15 David Harvey e a Refração Marxista Norte-
argumentaria contra. Isso é um Americana ________________________
essencialismo e uma política perigosa que
tenta renunciar tudo que vem de fora e quer E&C: Quais são as perspectivas atuais da
algo puramente indígena. Esta forma de geografia pensando nas relações entre poder
indígena que vira... indigenista. Mas você e produção do conhecimento?
pode entender a política e pode ver como
um trabalho a ser feito aqui na América DH: A geografia sempre teve relação com a
Latina. vigilância da população e o controle da
Uma das coisas boas sobre o pós- população. Existem muitos usos da
colonialismo é que este tentou encorajar o geografia que eu não concordo nem um
olhar sobre tradições intelectuais e teorias pouco. Mas é onde o dinheiro está e tende a
que vêm de outros lugares. Um autor na decidir os caminhos da disciplina com muita
geografia britânica que fez isso muito bem frequência. Então, existem alguns de nós
foi David Slater16, ele é um geógrafo que querem criar um tipo diferente de
político agora. Mas ele trabalhou com geografia que é sobre emancipação do
Doreen Massey na América Latina, eu acho capitalismo e do imperialismo, e anti-racista
particularmente no Peru. E ele escreveu e todos estes aspectos. Mas nós somos,
sobre o tipo de tradições políticas do Sul geralmente falando, uma minoria. Uma
Global. E ainda é verdade, ironicamente, minoria muito barulhenta. E, em alguns
que a nossa geografia, particularmente no aspectos, intelectualmente muito boa. O
Reino Unido, é de alguma forma tanto mais que coloca alguns problemas para a
internacional e ainda paroquial, talvez mais disciplina em geral.
paroquial em alguns aspectos do que nunca.

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Eu acho que a disciplina em geral desenvolvimento geográfico desigual das
tem uma grande dificuldade com alguém lutas contra a opressão e contra a
como eu. Porque eu tenho uma grande dominação capitalista. Estas questões são
reputação internacional e eles não gostam muito importantes para mim politicamente
do que eu faço. Então é uma questão e o tipo de conhecimento que eu acumulei,
complicada, que tem chamado minha por ter estado em muitos lugares, entre
atenção há bastante tempo, que é a questão geógrafos, tem sido extremamente útil.
da profissionalização das disciplinas. A Estes conhecimentos ajudam a entender a
profissionalização de estruturas de produção do espaço, a produção de
conhecimento. O tipo de divisão disciplinar configurações territoriais, entre outras
que temos foi sendo criado a partir do final coisas.
do século XIX e vem se fazendo concreto
desde então. As disciplinas tendem a sentar E&C: Uma das abordagens sobre poder e
no seu lugar e não se comunicar muito. Eu produção do conhecimento que vem
estou agora ensinando no programa de influenciando muito a geografia anglo-
antropologia. Estou bem, exceto que meus saxônica é o pós-colonialismo. Você foi um
colegas seguem dizendo: “onde está a sua dos pioneiros na introdução das teorias
etnografia”? E eu digo: “bem, existem marxistas na geografia e muitos teóricos
outras coisas além de etnografia nesse pós-colonialistas dialogam com o marxismo.
mundo”. Mas eu acho que existem alguns Como o senhor vê a introdução do pós-
problemas reais na forma como as estruturas colonialismo na geografia?
de conhecimento tem se constituído e se
consolidado. DH: Bem, eu acho que o marxismo clássico
A geografia como disciplina não esta nunca manuseou as questões geográficas
indo muito bem na maior parte do mundo, muito bem. Assim, gostaria de citar alguém
eu acho. E onde está indo bem tende a ser como Fanon, que diz que quando você está
muito pouco organizada. Não acho que isso lidando com a situação pós-colonial que
seja bom também. Mas, obviamente, para você tem que esticar o seu marxismo um
mim, o interesse está em pensar o pouco. De certa forma esse é o meu
desenvolvimento geográfico desigual do argumento sobre a geografia, quando você
capitalismo, pensar de que forma há está sendo geográfico você tem que esticar

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o argumento marxista um pouco. Assim, por não poderia imaginar que um geógrafo teria
exemplo, se você for lá olhar, quando eu algo de significativo a dizer". Isso é ridículo!
estava escrevendo Social Justice and the Então eu acho que o marxismo precisa da
City, que foi o primeiro texto em que eu geografia. E o marxismo se desenvolveu.
usei a estrutura marxista, eu estava citando Agora, teoricamente, está preparado para
Frantz Fanon. Estava me sentindo muito à olhar questões de urbanização. É preparado
vontade com a versão de Fanon de Marx e para olhar para em questões ambientais de
como ele o transformou e o traduziu para forma que não estava preparado, digamos,
uma situação colonial. Mas eu acho que ele 30 ou 40 anos atrás.
também precisa ser transformado para a Quero dizer, 30 ou 40 anos atrás, se
geografia em geral. Eu falo de brincadeira você estivesse interessado em questões
com meus alunos que, em alguns aspectos, é ambientais, você seria acusado de
mais fácil trazer Marx para a geografia do romântico, pequeno burguês, ou algo
que tem sido trazer a geografia para o parecido. Então, houve um problema real de
marxismo. Ainda é uma grande batalha. aceitabilidade para ter os conhecimentos da
Na realidade, há muitos anos eu não geografia importados para o marxismo. E foi
estava em destaque entre as principais mais fácil, como eu digo, trazer o marxismo
figuras do marxismo. Foi apenas nos últimos para a geografia. Mas a minha impressão, em
dez anos que as pessoas começaram a falar: muitas partes do mundo agora, é que a ala
"Oh! Existe um geógrafo”. "Oh! Talvez marxista da geografia radical é menos
devêssemos lê-lo". "Oh! Ele é realmente significativa do que era, porque muitos
muito interessante". "Oh! Ele tem algo a radicalismos foram para o pensamento pós-
dizer". Então, foi só nos últimos dez ou 15 colonial, identidade política, racismo,
anos. Por exemplo, eu tive uma discussão feminismo, política gays17, etc. Esses tipos
com uma figura muito importante do de coisa que, na verdade, faz quase tudo
pensamento de Marx, que há dez anos ou para não falar de classe. É a maneira que
assim me disse que devia um pedido de olho para ele. O que provavelmente não
desculpas, porque ele nunca tinha lido nada está correto. Mas eu sinto que existe um
que eu já tinha escrito. E eu disse: "Por clamor: “Oh, por favor, não fale sobre a
quê?" E ele disse: "A única razão que eu classe”. Radicais pode falar sobre qualquer
posso pensar é que você é um geógrafo e eu

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outra coisa: “mas não tragam essa coisa de
classe”. DH: Eu tenho um problema com a maneira
Eu estou generalizando a partir do que você está pensando sobre a teoria. Eu
meu sentimento sobre muitos digo aos meus alunos: "Não importa o que
departamentos de geografia, mas as coisas você está fazendo, você está fazendo
mudaram um pouco desde a crise de 2011. teoria". E essa ideia de que há algo lá fora
Por exemplo, voltando para a década de chamado teoria, que é então trazida para cá
1970, quando houve uma crise, uma grande e aplicada, é fundamentalmente errada. Essa
quantidade de geógrafos se tornou teoria não significa nada, a menos que se
fortemente envolvido na questão da trate de uma relação dialética de
habitação. Muito se escreveu sobre isso. transformação perpétua. Ambos, a
Quando esta crise ocorreu, que foi centrada compreensão do que está acontecendo no
na questão da habitação, quase não havia terreno, mas também o que a teoria está
geógrafos preparados para olhar para ela. falando. Então, quando você me diz: "É
Agora eles vêm e falam: "oh talvez nós possível que as pessoas no Sul produzam
devêssemos olhar para ela”. Mas eu acho teoria?" Minha resposta é que eles estão
que isso é um bom exemplo do que eu produzindo teoria o tempo todo. Durante
estou falando, o movimento para fora das todo o tempo.
análises das condições materiais em E é teoria boa ou teoria ruim? Bem,
ambientes urbanos e assim por diante. às vezes é bom, às vezes é ruim. Mas, o
mesmo é verdade em qualquer outro lugar.
E&C: Entre os autores latino-americanos e Há um monte de teoria ruim. Temos uma
Ibéricos existe um destaque grande para as formação profissional inteira na economia
relações de poder nos processos de dos Estados Unidos que é, na minha
produção do conhecimento. Fala-se de opinião, uma produção de teoria ruim.
“colonialidade do saber” (Quijano, 2000) e Ponto final. O grande problema é que eles,
da possibilidade de criação de em seguida, pegam a sua teoria ruim e
“epistemologias do sul” (Santos e Menezes, trazem para o Brasil, Argentina e dizem:
2010). Você acredita nessa possibilidade de "Isto é o que você tem que fazer". Mas é
uma teoria gerada a partir do sul como base uma teoria ruim no Norte. Então é apenas
para o surgimento de novas epistemologias? teoria ruim e ponto final. Então, eu tendo a

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problematizar a noção do que é estar na verdade, está em dificuldade. Eu
fazendo teoria e eu não aceito esse tipo de realmente não vejo o que ela é. Eu não sei
divisão. No programa de antropologia eles como isso está sendo trabalhando aqui, mas
fazem etnografia, como parte de sua a minha impressão é que há boas razões
formação de treinamento no primeiro ano para se preocupar com o que está sendo
eu envio os alunos para a Grande Estação produzido. Eu acho que, como muitos
Central. Eu digo para eles passarem uma campos de estudo, o pós-colonialismo pode
tarde inteira na Estação fazendo teoria. Veja tornar-se bastante conservador ao longo do
o que está acontecendo e faça teoria. E tempo. Então, eu tenho hoje problemas
todos eles voltam e dizem: "Oh, é uma coisa com isso. Quero dizer, eu amo Fanon, acho
interessante para fazer" E eu acho que este é que Fanon é ótimo. Mas, você sabe, quanto
o caminho para mim, e tem funcionado até mais perto você vem para o presente,
agora. menos você encontra. Acho que Said foi
Existe hierarquia no mundo ótimo, mas quanto eu venho para a
intelectual. Existe uma estrutura de poder. atualidade eu não acho tão interessante ou
Claramente esta estrutura de poder e esta convincente quanto antes.
hierarquia estão localizadas em certos
lugares. Eu acho que não é surpreendente Paul Claval e as Apropriações
que muitas das pessoas que estão falando Francesas___________________________
sobre pós-colonialidade estão ensinando em
algumas das universidades mais poderosos E&C: O senhor conviveu com momentos
do centro metropolitano. Então, quando variados de produção do conhecimento
Spivak18 tenta me ensinar: "Você não geográfico. Quais tendências teórico-
deveria fazer isso", eu digo: "Bem, você está metodológicas podem ser apontadas para a
na Universidade de Columbia, e que é uma geografia contemporânea?
instituição muito mais poderosa do que a
Universidade da Cidade de Nova York. PC: Acho que é uma pergunta um pouco
Portanto, não me diga que você está difícil porque acho que a evolução do
oprimido por pessoas como eu”. Quero pensamento geográfico não é semelhante ao
dizer, não faz sentido, é apenas um tipo de evolução dos anos 1950 e 1960. Foi
disparate. Acho que a teoria pós-colonial, um tempo com revoluções científicas,

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vivemos um tempo com viradas, é diferente, papel cada vez mais importante da
diferente porque o ideal da ciência muda. dimensão prática no ensino da geografia. Eu
Acho que até os anos 1960 a geografia penso que uma das tradições da evolução da
participa de uma concepção da ciência geografia na França é o desenvolvimento
positivista com uma busca por um princípio importante da geopolítica. Esta pode
geral de explicação. Acho que estamos na apresentar os fatos geográficos com um
posição de transição de um período com enfoque sobre as dimensões práticas, sobre
revoluções científicas para outro com uma os problemas de informação e a necessidade
perspectiva muito diferente, uma de tomada de decisões em um universo
perspectiva que é mais de interpretação do onde a verdade não existe. Acho que é uma
que de explicação. O resultado foi a das orientações mais importantes da
explosão do campo da disciplina com evolução da geografia contemporânea.
muitas especializações. Ao mesmo tempo os Sobre estas questões indico um texto que
geógrafos têm que trabalhar com colegas de publiquei a partir de uma conferência
outras disciplinas, sociólogos, economistas. intitulada “Uma Agenda para a Geografia”19.
As identidades científicas dos diferentes
domínios perdem uma parte da sua E&C: Dentre as influencias teórico-
significação. Quando eu falo com os colegas metodológicas e as trocas disciplinares
mais jovens, a sua identidade de geógrafos recentes, a geografia tem incorporado
não tem grande significação. Eles são debates associados às teorias pós-coloniais.
pesquisadores, pesquisadores sobre Muitos autores provenientes de ex-colônias
problemas complexos, com uma francesas são referências primordiais para o
necessidade de cooperação e o resultado desenvolvimento deste campo (Césaire,
deve ser evidenciar uma linha importante de 1950, Fanon, 1961). Como se dá a
reorientação. influência dos debates pós-coloniais na
Mas, ao mesmo tempo, existe a ideia geografia francesa?
de preparar o geografo para o ensino ou
para uma pesquisa cientifica clássica. Hoje o PC: A influência do pós-colonialismo não
que se necessita para a vida econômica é um foi importante na geografia francesa até
tipo de conhecimento com aplicações mais poucos anos atrás, a partir de 2005. Acho
rápidas. Um economista na França fala do que hoje existe um grupo importante de

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pesquisadores sobre as questões coloniais e pelos autores pós-coloniais está Michael
pós-coloniais. Existe um grupo de Foucault. A apropriação das teorias pós-
pesquisadores em Boudeaux, que trabalha coloniais abriu novos caminhos para
sobre este problema, especialmente uma incorporação de Foucault na geografia
colega que se chama Christine Chivallon20. anglo-saxônica. Como tem se dado a
Ela é especialista do mundo Caribenho e apropriação deste autor na geografia
seu doutorado foi sobre a Martinica. Ela é francesa?
muito interessada nestes problemas da
interpretação pós-colonial. Existe também, PC: A influência de Foucault sobre a
na minha universidade, um pesquisador de geografia francesa é muito menor do que
origem canadense, Louis Dupont21, que é sua influência sobre a geografia inglesa. É
perfeitamente bilíngue, ele ensinava em evidente. São poucos os trabalhos, por
universidades americanas antes de ensinar exemplo sobre os problemas das prisões.
em francês. Sua mãe é inglesa e seu pai é Existe um colega na Universidade de Paris
francês. Ele tem interesse também em IV que fez o seu doutorado sobre os
teorias pós-coloniais e outro tema também, problemas dos prisioneiros nas cadeias
as geografias queer. francesas. Existe um desenvolvimento
Existe um desenvolvimento, mas recente. São poucos os geógrafos franceses
não existe uma relação importante entre os que utilizam o Foucault até hoje. Parte disso
trabalhos de Frantz Fanon e outros autores é justificado pela própria atitude de
e este desenvolvimento na geografia. Entre Foucault. Foucault não gostava da geografia.
o período de lutas anti-coloniais entre os Isso foi também verdade para o Bourdieu22,
anos 1950 e 1960 e o desenvolvimento das que também foi muito crítico à geografia
orientações atuais sobre os problemas do francesa e à geografia em geral. E como
pós-colonialismo, existe um período de 20 consequência os geógrafos franceses não
ou 30 anos sem pesquisas importantes, seja tiveram uma atração muito forte seja por
pelos historiadores, seja pelos geógrafos Foucault, seja por Bourdieu. Salvo algumas
franceses. Hoje é diferente e isso é pesquisas recentes, como a de uma colega
interessante. sobre os excluídos, sem tetos na cidade de
Boudeux, trabalho muito interessante, a
E&C: Entre as várias referências utilizadas organização, os problemas das relações

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sociais, saúde. Trata do problema dos dezenas de trabalhos sobre as estruturas
excluídos com uma orientação de Foucault. agrárias, sobre a evolução da propriedade
fundiária e o resultado foi que a prática do
E&C: Embora o pós-colonialismo tenha geógrafo na pesquisa da geografia histórica
influência em diversas formas de se fazer foi menor.
geografia, talvez dois sub-campos tenham O mais importante dos historiadores
sido especialmente afetados por esta franceses nos anos 1950 e 1960, Fernand
abordagem: a geografia histórica e a Braudel, desenvolveu a ideia de tempo
geografia cultural. No entanto, estes longo, a longa duração, pegando um
campos são bem diferentes na França e na empréstimo dos geógrafos do começo do
Inglaterra. O senhor poderia comparar o século XX. Acho que o resultado é que a
desenvolvimento destes campos nos dois construção dos trabalhos de geografia
países? histórica na França é muito diferente da
construção dos trabalhos de geografia
PC: Já tive a oportunidade de escrever um histórica dos ingleses. Os trabalhos ingleses
texto sobre as diferenças entre as utilizaram a divisão, a temporalidade
abordagens da geografia histórica na França definida pelos historiadores. Os geógrafos
e na Inglaterra23. Na Inglaterra, a geografia franceses, geralmente buscaram desenvolver
histórica se desenvolveu em uma situação a sua própria temporalidade. Em alguns
onde os historiadores não apresentaram uma trabalhos, o resultado foi a divisão de dois
abordagem sobre os problemas espaciais. períodos para entender o desenvolvimento
Daí a possibilidade de Darby24, em da geografia histórica da França. Um
Cambridge, que foi o criador da escola de período de diferenciação, até o século XV,
geografia histórica inglesa, que pode depois um período de Unificação.
construir uma história geográfica. O Pessoalmente, como trabalho no
problema da França foi diferente porque até limite da geografia cultural e da geografia
1968 a formação dos geógrafos e dos histórica, a temporalidade que eu uso é
historiadores foi praticamente a mesma e o baseada na divisão de três tipos. A
resultado foi um número importante de temporalidade cultural, enquanto
doutorados de historiadores sobre história e temporalidade da sociedade dos povos
geografia regional, por exemplo. São primeiros. As temporalidades das

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sociedades históricas clássicas, na Universidade de São Paulo, ele produziu
considerando uma temporalidade em que artigos muito importantes sobre, por
parte da população permanecia na tradição exemplo, a criação da cidade em uma
oral e parte desenvolve uma narrativa situação completamente diferente, por
histórica das elites. Por fim, há uma causas religiosas. Essa tradição nunca
temporalidade que aparece com o desapareceu, uma tradição onde o papel da
desenvolvimento dos meios de dimensão material era muito importante e
comunicação moderna. Com uma permanece também em trabalhos sobre as
uniformização das formas de difusão. No culturas populares e o resultado foi que
passado, a origem das culturas populares foi quando a geografia cultural começa a ter um
local, hoje não é mais local, porque os bebês grande dinamismo nos anos 1980 e 1990,
olham na televisão programas de Bollywood esta não se apresentou como uma
e de Tokio. E essas temporalidades são revolução. Foi um enriquecimento, mas não
completamente diferentes. Esse tipo de como uma quebra. Como foi o caso de
temporalidade parece importante para Duncan e Cosgrove na América e na
construir uma interpretação da geografia Inglaterra26. Acho que eu fui pessoalmente
cultural. responsável por essa situação, porque a
Passando para a geografia cultural, tradição francesa me parece importante,
existia na França uma tradição mais forte pode ser igualmente importante
que na Inglaterra. Ela foi forte nos Estados desenvolver outras orientações, mas sem
Unidos, mas ela praticamente não existia na uma ruptura fundamental. A orientação
Inglaterra. Salvo por um grupo de cultural francesa permanece,
antropólogos sociais que tinham formação aparentemente, menos social, mas acho que,
geográfica. Na França existia uma tradição em parte, as críticas de alguns colegas é uma
que foi presente essencialmente nas obras emanação sem fundamento. Pessoalmente
de Pierre Deffontaines e Jean Brunnhes, eu comecei trabalhando nos domínios da
como o desenvolvimento de uma coleção de geografia econômica, da geografia social, da
livros muito importante para o geografia política, e hoje trabalho no
desenvolvimento do pensamento geográfico domínio também da geografia cultural. Mas,
na França25. E, quando o Pierre nunca recuso as minhas publicações no
Deffontaines veio para o Brasil para ensinar domínio da geografia social, acho que é

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importante levar em conta todas as deste texto não foi produzir comparações
condições econômicas e sociais. acerca dos pontos de vista apresentados.
Quando os geógrafos começaram a Muito embora seja importante posicionar os
estudar uma nova abordagem sobre o autores, é fundamental reconhecer seus
estudo das paisagens, eles desenvolveram percursos, suas pesquisas e reflexões para
pesquisas sobre o papel da percepção. além da necessidade de classificá-los sob
Sobre a dimensão social da construção das qualquer rótulo ou generalização acerca de
imagens e isso é uma forma de geografia suas escolhas metodológicas, escolas de
social. Mais fundamental ainda é a dimensão pensamento ou tradições disciplinares, as
ligada à transmissão da cultura de uma quais, por ventura, possam se remeter.
geração a outra, de um grupo a outro. Ela é Uma leitura possível se desenvolve a
negligenciada geralmente pelos partir da combinação de três temas
historiadores, pela geografia cultural. A recorrentes nas entrevistas e que, em larga
segunda dimensão social mais conhecida é a medida, sugerem diálogos entre os
dimensão desenvolvida nos Estados Unidos entrevistados: 1) as tensões e distensões
por Don Mitchell27. A paisagem não é uma entre pós-colonialismo e marxismo; 2) a
pintura é uma cena onde existem conflitos e circulação do conhecimento e as diferenças
acho que essa abordagem é importante. entre a geografia francesa e anglo-saxã; 3) as
Acho a ideia de que a dimensão social não posições sobre o tema das novas
existe na geografia francesa é um pouco epistemologias possíveis a partir do Sul
errada. Ela é certamente menos importante Global. É interessante notar como esses
que na geografia cultural inglesa, mas ela temas quando tratados por Driver, Harvey e
existe. Claval revelam muito das identidades de
cada um desses geógrafos. Identidades que
estão sobremaneira articuladas ao espaço e
Temáticas e Diálogos Possíveis _________ tempo de enunciação de seus discursos. Tal
reflexão indica uma outra leitura possível,
As entrevistas acima possibilitam circunscrita à trajetória pessoal dos
algumas reflexões e leituras. Como já foi pesquisadores, que subjaz à primeira
assinalado, as entrevistas não seguiram um proposta.
roteiro fechado de perguntas e o objetivo Para se destacar as tensões e

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distensões entre marxismo e pós- No entanto, mesmo com essa reconhecida
colonialismo na geografia é importante influencia, existe uma crítica já bastante
considerar que, desde o final do século XX, consolidada sobre como o pós-colonialismo
vivemos uma época de superação da busca pode ser um “usurpador pós-estruturalista”
por modelos teóricos, conceituais e das teorias marxistas (Castro-Gomes,
metodológicos de uma visão disciplinar 2001).
hegemônica. Paul Claval explicita essa Por outro lado, uma primeira crítica
questão logo no início da sua entrevista, comum se relaciona com o fato de o pós-
afirmando que o pensamento geográfico não colonialismo dar uma maior ênfase para as
busca mais “revoluções científicas” ou lutas de minorias sociais do que para a luta
“grandes viradas” explicativas. Ou seja, o de classes. Neste ponto, a crítica de David
pós-colonialismo não pode e, ao que parece, Harvey foi bem explícita, afirmando que “a
não pretende “substituir” ou “superar” ala marxista da geografia radical é menos
nenhuma abordagem que tenha conduzido significativa do que era, porque muitos
trabalhos anteriores. David Harvey alerta radicalismos foram para o pensamento pós-
para a “profissionalização das estruturas de colonial, identidade política, racismo,
conhecimento”, o que também pode feminismo, política gays, etc”. Segundo o
relativizar qualquer intenção de apresentar o autor o destaque destas minorias é muitas
pós-colonialismo como a nova via para a vezes útil para atender a um clamor
geografia. contemporâneo comum: “oh, por favor, não
O marxismo é apresentado por fale sobre a classe”.
muitos autores como um dos pilares Paul Claval também faz essa
fundamentais do pós-colonialismo (Spivak, associação entre o pós-colonialismo e as
1999). Este fato é explicitado na entrevista chamadas teorias queer, porém o geógrafo
de Felix Driver, quando o autor cita os francês não considera que o enfoque na
trabalhos de Raymond Willians (Marxismo dimensão cultural reduza a dimensão social
e Literatura) e Stuart Hall (Estudos das pesquisas geográficas. Felix Driver
Culturais) como referências importantes também associa pós-colonialismo e as
para se compreender o ambiente intelectual temáticas ligadas ao gênero ao afirmar que a
do final dos anos 1980: “havia uma série de concepção do conhecimento geográfico de
debates ocorrendo acerca do marxismo”. Said “me parecia ligada com o que Gillian

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Rose estava escrevendo sobre feminismo e Os rótulos aqui não são certamente
geografia”. No entando, o autor parece dar suficientes para enquadrar os autores e
bastante ênfase à dimensão política do pós- provavelmente todos concordam sobre a
colonialismo que possibilita o importância dos textos pioneiros do pós-
desenvolvimento de formas engajadas e colonialismo para as ciências sociais. David
críticas de se construir a história da Harvey afirma categoricamente que "Fanon
geografia. é ótimo”, “Said é ótimo”, mas se preocupa
A segunda tensão marxista que pode com trabalhos mais recentes que seriam
ser delineada nas entrevistas é mais “menos interessantes e convincentes”. O
diretamente relacionada aos autores autor destaca inclusive, que utilizou Fanon
vinculados ao pós-colonialismo, em Social Justice and the City como
principalmente aqueles ligados aos grupos exemplo da necessidade de “esticar” a teoria
de estudos subalternos. Segunda a visão de marxista. Assim como Fanon expandiu a
alguns marxistas, como Ahmad (1993), os teoria marxista para o colonialismo, que
pós-colonialistas são indivíduos que, por um seria “o ponto cego de Marx” (Castro-
lado, “denunciam hipocritamente o Gomes, 2001), Harvey também buscou
sofrimento da opressão colonial da qual se expandir a teoria marxista para o espaço,
beneficiaram”, por outro, “se colocam como desenvolvendo uma leitura geográfica de
uma nova geração de profissionais Marx.
imigrantes que aproveitam destes benefícios Além de destacar a importância de
para se posicionarem vantajosamente no autores com abordagem marxista para o
mercado de trabalho do primeiro mundo” desenvolvimento do pós-colonialismo na
(Castro-Gomes, 2001:31). David Harvey geografia britânica, Felix Driver também
explicitou claramente esta crítica ao chama a atenção para a existência de uma
produzir ironicamente um diálogo fictício série de debates internos nas teorias pós-
com Spivak: "Bem, você está na coloniais. Segundo o autor existem muitas
Universidade de Columbia, e que é uma diferenças e críticas entre Edward Said e
instituição muito mais poderosa do que a outros autores como Bhabha e Spivak. As
Universidade da Cidade de Nova York. relações com o marxismo e o pós-
Portanto, não diga-me que você está estruturalismo se apresentam de forma
oprimido por pessoas como eu”. variada, e por vezes divergente, entre esses

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autores. Observamos assim, a existência de bastante influenciada pelos estudos pós-
divergências e convergências entre o coloniais. Césaire influenciou alguns
marxismo e o pós-colonialismo. estudos na literatura, mas sua influência
O segundo tema que se destacou segue consideravelmente limitada. Mas se
nas entrevistas foi o da circulação do Said influenciou mais a geografia anglófila,
conhecimento e as diferenças entre a seria plausível que autores que escreviam
geografia francesa e a geografia anglo-saxã. originalmente em francês tivessem
É importante pensar inicialmente nas fontes influenciado mais a geografia francesa. No
de inspiração para o desenvolvimento de entanto, segundo Claval, “a influência do
abordagens pós-coloniais na geografia. Felix pós-colonialismo não foi importante na
Driver cita uma série de autores geografia francesa até poucos anos atrás”. O
fundamentais para o pós-colonialismo, autor foi categórico em afirmar que entre o
como Peter Hulme, Jane M. Jacobs, Stuart período de lutas anti-coloniais (1950 e
Hall, mas em sua entrevista fica claro que o 1960) e o desenvolvimento das orientações
livro, o Orientalismo, de Edward Said, teve atuais sobre os problemas do pós-
mesmo um papel central para o colonialismo, “existe um período de 20 ou
desenvolvimento dessa abordagem. Said 30 anos sem pesquisas importantes, seja
escrevia diretamente em inglês e falava pelos historiadores, seja pelos geógrafos
explicitamente sobre “geografias franceses”. Sendo assim, não haveria relação
imaginativas”, daí o seu impacto evidente direta entre os pioneiros do pós-
no estudo do Império pela geografia. Mas colonialismo escrito em francês e o
como teria se dado a apropriação das desenvolvimento atual do pós-colonialismo
abordagens pós-coloniais pioneiras escritas na geografia da França.
em francês, como Fanon e Césaire? As hipóteses aqui delineadas estão
A apropriação de Harvey do obviamente sujeitas a pesquisas e reflexões
trabalho de Fanon foi pioneira, porém mais profundas no futuro e são frutos de
pontual, não sendo explorada de forma conversas livres sobre a temática. De
sistemática em estudos posteriores. qualquer forma, o pós-colonialismo parece
Segundo Driver, “a influência de Fanon na ser uma abordagem desenvolvida de
Geografia anglófila teve maior interesse na maneira ainda tímida na geografia francesa.
direção da psicanálise”, que seria uma área Porém, a entrevista com Felix Driver

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evidenciou como este debate teve forte enquanto que na França a proximidade na
impacto sobre a geografia humana na formação do geógrafo e do historiador fez
Inglaterra, aparecendo em vários sub- com que os historiadores realizassem
campos disciplinares. muitos trabalhos regionais. Este fato pode
Driver destaca como “a teoria pós- ter inibido o desenvolvimento sistemático
colonial não ficou restrita a um gueto da da geografia histórica como um sub-campo
geografia cultural”, influenciando a na França, mas também levou os franceses a
geografia urbana, a geografia econômica e a produzirem periodizações que não eram
geopolítica. Segundo o autor, uma das necessariamente definidas por
vertentes mais recentes da geopolítica acontecimentos destacados pelos
anglo-saxônica não teria existido sem a historiadores. Já a geografia cultural,
leitura de autores como Edward Said: “é apresentaria uma tradição maior na França,
muito difícil imaginar a geopolítica crítica como Pierre Deffontaines e Jean Brunhes do
existindo sem o pós-colonialismo”. Estes que na Inglaterra. Por esse motivo, segundo
fatos evidenciam o impacto diversificado do Claval, quando a geografia cultural aparece
pós-colonialismo na geografia inglesa. Mas, com grande dinamismo nos anos 1980 e
apesar de ser impossível delimitar o impacto 1990 na Inglaterra e nos EUA, “aquilo não
dessa abordagem a algum sub-campo da soava como uma grande ruptura” para os
geografia, como afirmou Driver, pode-se franceses. Foi “um enriquecimento e não
destacar a forte influência que esta uma quebra”.
abordagem teve na geografia histórica e Claval admite que “a orientação
cultural. cultural francesa permanece,
A comparação entre a geografia aparentemente, menos social”. No entanto,
histórica e cultural na Inglaterra e na França o autor destaca várias formas de
apareceu com mais evidencia na conversa consideração das questões sociais nas
com o professor Paul Claval. Um primeiro análises culturais da geografia. Para ele, a
elemento importante é notar como a ideia de que “a dimensão social não existe
geografia histórica se desenvolveu por um na geografia cultural francesa é um pouco
caminho distinto dos dois países. Na errada”. De qualquer forma, o autor destaca
Inglaterra os historiadores não os trabalhos de língua inglesa como Don
apresentavam abordagens espaciais, Mitchell como referências fundamentais

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para uma abordagem mais crítica e engajada as referências a uma “epistemologia do sul”
na geografia cultural. Talvez a maior não lhe eram familiares e que a “influência
influência do pós-colonialismo e do de autores latino-americanos é
marxismo, com autores como Said e absolutamente negligenciada, uma realidade
Raymond Williams, tenha estimulado o pouco conhecida” na geografia britânica.
desenvolvimento de abordagens mais Apesar de reconhecer que a academia
explicitamente críticas na geografia histórica britânica é bastante fechada e “paroquial”, o
e cultural anglo-saxã. Porém, como aponta autor também criticou qualquer tipo de
Claval, este fato não significa a ausência essencialismo como caminho para as
completa do social na geografia cultural abordagens pós-coloniais: “apenas reverter a
francesa. polaridade não é o suficiente, né”? Driver
Por fim, é importante considerar as destaca o perigo de se adotar uma retórica
respostas relativas à pergunta sobre as de renúncia ao eurocentrismo, buscando
possibilidades de desenvolvimento de celebrar ideias “purificadas” e sem
teorias a partir do Sul Global. Esta era uma “influência externa”. Para o autor, esse seria
pergunta bastante aberta, sobre a qual não justamente o pensamento contra o qual
se esperava respostas muito desenvolvidas, argumentaria Doreen Massey.
pois a ideia de uma epistemologia Já David Harvey respondeu a
essencialmente subalterna ou posicionada indagação sobre a possibilidade de criação
no Sul é, em si, bastante problemática. O de teorias para uma epistemologia do Sul
interesse subjacente à pergunta era saber se questionando a noção de teoria. O autor
nossos entrevistados, representantes do argumentou contra a ideia de que exista
pensamento geográfico do norte, teriam algo “lá fora” chamado “teoria” que pode
algum conhecimento das iniciativas de ser aplicado em diferentes casos. Neste
pensadores latino-americanos sobre a sentido, os intelectuais do Sul estariam
temática do pós-colonialismo. As respostas “fazendo teoria o tempo todo”, mesmo que
foram interessantes e podem contribuir para esta teoria seja boa ou ruim. O autor
se compreender as relações entre destaca, no entanto, que “existe hierarquia
geopolítica e produção do conhecimento no mundo intelectual”, existe “estrutura de
geográfico. poder” e claramente “estas hierarquias estão
Felix Driver deixou bem claro que localizadas em certos lugares”. O autor

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exemplifica esta posição citando autores pertinentes sobre a produção do
pós-coloniais que alcançaram grande conhecimento geográfico. Dialogar com
projeção internacional justamente por estes pesquisadores capacitados e
trabalharem em Universidades renomadas experientes, compartilhar seus pontos de
dos Estados Unidos e da Europa. vista, estimulou a elaboração deste texto
Já Paul Claval declarou que tinha voltado às interpretações sobre pós-
conhecido recentemente este debate colonialismo. Por fim, pode-se concluir que,
envolvendo pesquisadores ibéricos e latino- longe de ser algum tipo de solução
americanos. O autor afirmou que não tinha metodológica, a abordagem pós-colonial
uma visão clara sobre como poderia se parece ter um mérito inicial bem claro: gerar
desenvolver uma nova forma de debates renovados sobre a prática dos
epistemologia e também relativizou a geógrafos. Como coloca Driver, estas
possível existência de uma visão reflexões certamente não ficarão restritas à
essencialista na produção do conhecimento geografia cultural, e vêm aparecendo
geográfico. De forma geral os três autores também na geografia histórica, urbana,
não se mostraram muito familiarizados com regional, entre outras. Reconhecer variados
os debates que vêm sendo conduzidos por pontos de vista sobre uma abordagem ou
autores latino-americanos. Um dos motivos um grupo de autores é certamente uma
apontados foi o pouco interesse destes tarefa infindável, mas é a ampliação do
autores por pesquisas históricas mais debate que pode alimentar novos caminhos
aprofundadas, mas estas informações de pesquisas para geografia brasileira.
evidenciam também as limitações e as Queiramos ou não, como nos lembrou
barreiras na circulação do conhecimento. Harvey, estamos sempre
Os três autores contribuíram de fazendo/legitimando teorias.
forma contundente para estimular reflexões

2
Williams, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979
Notas________________________________ 3
Hulme, Peter. Colonial Encounters: Europe and the native
Caribbean 1492-1797. Virginia University: Routledge, 1992.
* Professor Adjunto do Departamento de Geografia da
4
Jacobs, Jane. M. Edge of Empire: Postcolonialism and the City.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro London and New York: Blackwell, 1996.
** Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso 5
Colonialism‟s Culture: Anthropology, Travel and Government.
Suckow da Fonseca. Princeton University Press, 1994. Nicholas Thomas is currently
professor of Historical Anthropology, and Director, Museum of
1
Said, E. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. Archaeology and Anthropology, University of Cambridge
São Paulo: Cia das Letras, 2003 6
Said, E. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das
Letras. 1995.
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255
7
All or nothing? Politcs and critique in the modernism – 20
Entre os principais trabalhos de Chivallon destacam-se Espace
postmodernism debate. Environment and Planning D: Society and et identité à la Martinique. Paysannerie des mornes et reconquête
Space, 10 (2), 1992, 123-136. collective (1840-1960). Paris: CNRS Éditions, 1998 e La diaspora
8
Smith, Neil; Godlewska, Anna (ed.). Geography and Empire: noire des Amériques. Expériences et théories à partir de la
Critical Studies in the History of Geography. Oxford: Basil Caraïbe. Paris: CNRS Éditions, 2004.
21
Blackwell, 1994. Professor do Instituto de Geografia da Universidade de Paris
9
Driver, Felix; Gilbert, David (ed.) Imperial Cities: Landscape, IV, Sorbonne.
Display and Identity. Manchester: Manchester University Press, 22
O famoso sociólogo francês Pierre Bourdieu apresentou uma
2003. série de críticas a geografia acadêmica na França. Para uma
Critical Geopolitics: The Politics of Writing Global Space.
10 exemplificação, ver: BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos
Minneapolis: University of Minnesota Press and London: de habitus e de campo. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico.
Routledge, 1996. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 59-73.
11
Frantz Fanon (1925-1961) foi um ensaísta, psiquiatra, negro,
23
The historical dimension of french geography. Journal of
nascido na Martinica e revolucionário no processo de libertação Historical Geography, Volume 10, Issue 3, July 1984, Pages 229-
nacional da Argélia. Fanon escreveu a obra “Os condenados da 245
24
terra”, publicada em 1961. Henry Clifford Darby é considerado um dos geógrafos
12
Aimé Césaire (1913-2008) foi um poeta, ensaísta, negro, históricos mais famosos da Inglaterra. O autor, que nasceu no País
também nascido na Martinica que escreveu em 1950 o livro de Gales em 1909, se graduou como doutor em geografia em
“Discurso sobre o colonialismo”. Assim como Fanon, Césaire Cambridge, onde se tornou professor posteriormente. A famosa
junto com o tunisiano Albert Memmi são considerados “a tríade escola de geografia histórica fundada pelo professor teve como
francesa” que constituiu uma das bases do pensamento pós- grande destaque a reconstrução cuidadosa da paisagem britânica
colonial. em diversos períodos. O autor também contribuiu com textos
metodológicos sobre as relações entre geografia e histórica, ver:
13
Hulme, Colonial Encounters; Hall, Catherine, White, Male and "On the relations of geography and history", publicado no
Middle Class: Explorations in Feminism and History. Cambridge: Transactions of the Institute of British Geographers, No. 19
Polity, 1992; Hall, Catherine, Civilising Subjects: Metropole and (1953), pp. 1-11.
Colony in the English Imagination 1830 – 1867, Cambridge: 25
Polity, 2002; Hall, Stuart, „The local and the global: globalization A título de exemplo tem-se o clássico L‟homme et la terre
and ethnicity‟ and „Old and new identities, old, and new cultivée: bilan d‟um siècle de Jean Brunhes, publicado
ethnicities‟, both in King, Anthony D. (ed.), Culture, originalmente em 1900.
Globalization and the World System. London: Macmillan, 1991; 26
Os geógrafos James Duncan e Denis Cosgrove são
Hall, Stuart, “New cultures for old‟ in Massey, Doreen; Jess, Pat reconhecidos respectivamente nos EUA e na Inglaterra como
(ed.), A Place in the World? Oxford: Oxford University Press, importantes autores da chamada “nova geografia cultural”. Para
1995. uma tradução de artigos significativos dos dois autores, ver:
14
Clayton, Daniel. Islands of Truth: The Imperial Fashioning of Rosendahl, Z. e Corrêa, R. L. (2012). Geografia Cultural: uma
Vancouver Island. Vancouver: University of British Columbia antologia (volume 1). Rio de Janeiro. EdUERJ.
Press, 2000. 27
Don Mitchell é professor de geografia na Maxwell School of
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Doreen Massey é Professora emérita da Open University, na Syracuse University. Um dos artigos mais famosos do autor, que
Inglaterra. A autora é muito reconhecida entre os geógrafos causou grande debate na geografia cultural anglo-saxônica foi
brasileiros, principalmente pela sua visão crítica no trabalho com traduzido na revista E&C, ver: MITCHELL,D. (1999). Não Existe
conceitos geográficos como espaço e lugar. Um de seus textos Aquilo que Chamamos de Cultura:Para uma Reconceitualização
mais famosos sobre um entendimento do lugar a partir da troca e da Idéia de Cultura em Geografia. In: Espaço e Cultura, n°8,
da circulação foi traduzido e esta disponível em português: Ago./Dez. 1999. Rio de Janeiro, UERJ, pp.31-51.
MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A.
(org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 176 –
185.
16
David Slater é professor de Geografia Social e Política na Referências Bibliográficas________________
Loughborough University. Ele é autor de Territory and State
Power in Latin America (1989), co-editor do The American AHMAD, Aijaz 1993. In theory. Classes, nations, literatures.
Century (1999) e editor do periódico Political Geography. Em Verso,Londres.
2004 o autor escreveu o livro Geopolitics and the Post-Colonial:
Rethinking North-South Relations, publicado pela editora Wiley- ASHCROFT, B.; GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H. (1995)
Blackwell. Postcolonial Studies. The key concepts. London and New York:
17
“gay politics” (N.T.) Routledge
18
Gayatri Spivak (1942 - ) é uma das mais proeminentes autoras CASTRO-GOMES, S. (2005): Poscolonialidad Explicada a los
do denominado grupo indiano de estudos subalternos. Seu artigo Niños. Universidad del Cauca. Popayan.
Can the subaltern speak?, publicado pela primeira vez em 1988, já
foi traduzido para diversas línguas, ganhando uma versão DRIVER, F. (1992) Geography's empire: histories
portuguesa, publicada no Brasil sob a forma de um pequeno livro of geographical knowledge. Environment and Planning D: Society
(pela Editora da UFMG em 2010). Uma resenha desse seminal and Space, 10 (1), 23-40, 241.
texto é publicado no presento número da E&C. Spivak é
atualmente professora da Columbia University. QUIJANO, A. (2000) Colonialidad del poder, eurocentrismo y
19
América Latina. In: Lander, Edgardo (org.) La colonialidad del
A conferência foi organizada pelo Centro de Estudos de saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
Geografia e Planejamento Regional (e-GEO) do Departamento de latinoamericanas (Buenos Aires:CLACSO/UNESCO).
Geografia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade de Lisboa em outubro 2012. O texto está disponível SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. (ed.) (2009)
no site do e-Geo. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina.

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 34, P.231-258, JUL./DEZ. DE 2013


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SHARP, J. (2009) Geographies of Postcolonialism: Spaces of SPIVAK, G. C.. A Critique of Postcolonial Reason: Toward a
Power and Representations. London: Sage. History of the Vanishing Present. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1999.
SIDAWAY, J. (2000) Postcolonial geographies: an exploratory
essay. Progress in Human Geography, 24 (4), pp.591-612.

VISIONS ON GEOGRAPHY AND POSTCOLONIALISM: CONVERSATIONS WITH FELIX DRIVER, DAVID HARVEY AND PAUL CLAVAL

ABSTRACT: THIS PAPER AIMS TO SHARE SOME PERSPECTIVES ON GEOGRAPHY AND POSTCOLONIALISM GATHERED FROM
CONVERSATIONS HELD WITH THREE IMPORTANTE GEOGRAPHERS FROM DIFFERENT GENERATIONS AND PLACES OF ENUNCIATION:
FELIX DRIVER, DAVID HARVEY AND PAUL CLAVAL. THE PAPER IS DIVIDED IN TWO SECTIONS, IN THE FIRST IS EXPOSED THE
TRANSCRIPTION OF SOME OF THE MOST SIGNIFICANT PARTS OF THE INTERVIEWS PERFORMED IN THE LAST MONTHS OF 2013. IN THE
SECOND SECTION, WE DISCUSS SOME CONSIDERATIONS IN ORDER TO IDENTIFY RECURRING THEMES IN THE NARRATIVES OF THE
INTERVIEWED PROFESSORS.

KEYWORDS: POSTCOLONIALISM, GEOGRAPHICAL KNOWLEDGE, IDENTITY, DISCIPLINARY VISIONS

VISIONES DE GEOGRAFÍA Y POSTCOLONIALISM: CONVERSACIONES CON FELIX DRIVER, DAVID HARVEY Y PAUL CLAVAL

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 34, P.231-258, JUL./DEZ. DE 2013


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RESUMEN: ESTE ARTÍCULO TIENE COMO OBJETIVO COMPARTIR PERSPECTIVAS SOBRE LA GEOGRAFÍA Y EL POSCOLONIALISMO
RECOGIDOS DE LAS CONVERSACIONES MANTENIDAS CON TRES GEÓGRAFOS IMPORTANTES QUE PERTENECEN A GENERACIONES Y
LUGARES DE ENUNCIACIÓN MARCADAMENTE DISTINTOS: FELIX DRIVER, DAVID HARVEY Y PAUL CLAVAL. EL ARTÍCULO SE DIVIDE EN
DOS SECCIONES. EN LA PRIMERA SE EXPONE LAS PIEZAS MÁS SIGNIFICATIVAS DE LA TRANSCRIPCIÓN DE LAS ENTREVISTAS
REALIZADAS EN LOS ÚLTIMOS MESES DE 2013. EN LA SEGUNDA SECCIÓN TRATA DE ALGUNAS CONSIDERACIONES QUE BUSCAN
IDENTIFICAR TEMAS RECURRENTES EN LOS RELATOS DE LOS ENTREVISTADOS.

PALABRAS CLAVE: POSCOLONIALISMO, CONOCIMIENTO GEOGRÁFICO, IDENTIDAD, VISIONES DISCIPLINARIAS

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