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Sonhos Lúcidos, Florinda Donner-Grau
Sonhos Lúcidos, Florinda Donner-Grau
proporcionar o benefício de um acesso àqueles que não teriam um outro meio para tal.
Segundo a filosofia budista existem quatro formas de generosidade:
- Partilhar os ensinamentos que geram paz interior da forma adequada à mente e à cultura das
pessoas, sem esperar pagamento ou recompensa.
- Oferecer coisas materiais, como nosso corpo e nossos recursos.
- Oferecer proteção, consolo e coragem. Podemos proteger os outros de perigos
e outros humanos, de não-humanos e dos elementos.
- Oferecer amor (oferecer incondicionalmente aos outros nosso tempo, apoio emocional, energia
positiva e boas vibrações).
Após sua leitura considere, dentro do possível, a possibilidade de adquirir o original, pois assim você
estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.
Sonhos Lúcidos”
FLORINDA DONNER-GRAU
“Para todos aqueles que ensonham sonhos de feiticeiros. E para aqueles que os ensonharam
comigo.”
Cortesia:
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PREFÁCIO
Florinda Donner é uma discípula de Don Juan Matus, um mestre bruxo do estado de
Sonora, México e, por mais de vinte anos, uma companheira minha nesta aprendizagem.
Devido a seus talentos naturais, Don Juan e duas de suas companheiras feiticeiras, Florinda
Grau e Zuleica Abelar, deram a Florinda Donner uma instrução e cuidados muito especiais.
Entre os três a treinaram como “ensonhadora” e a levaram a desenvolver sua “atenção de
ensonho” a um grau de controle extraordinário.
De acordo com os ensinamentos de Don Juan Matus, os feiticeiros do antigo México
praticavam duas artes: a arte de espreitar e a arte de ensonhar. Praticar uma ou outra arte
estava decretado pela atitude inata de cada praticante da feitiçaria. Ensonhadores eram
aqueles que possuíam a habilidade de fixar o que os bruxos chamam de “atenção de
ensonhos”, um aspecto especial da consciência, nos elementos dos sonhos normais.
Chamavam espreitadores a aqueles que possuíam uma aptidão inata conhecida como a
“atenção de espreita”, outro estado especial da consciência, que permite encontrar os
elementos chave de qualquer situação no mundo cotidiano e fixar essa dita atenção neles, a
fim de alterá-los ou de ajudá-los a permanecer em seu curso.
Através de seus ensinamentos, Don Juan Matus sempre deixou muito claro que as idéias
dos bruxos da antiguidade ainda permanecem em vigência hoje em dia, e que os bruxos
modernos sempre se reúnem nesses dois grupos tradicionais. Para tanto, seu esforço como
mestre foi inculcar em seus discípulos as idéias e práticas dos bruxos da antiguidade por
meio de um rigoroso treinamento e uma disciplina férrea.
A idéia dos bruxos é que, ao fazer com que a atenção de ensonhos se fixe nos elementos
dos sonhos normais, estes sonhos se transformam de imediato em ensonhos. Para eles, os
ensonhos são estados únicos da consciência; algo como comportas abertas até outros
mundos reais, porém alheios à mente racional do homem moderno. Na primeira vez que
Don Juan me falou da arte de ensonhar, eu lhe perguntei:
_Você quer dizer, Don Juan, que um feiticeiro toma a seus sonhos como se fossem uma
realidade?
_Um feiticeiro não toma nada como se fosse outra coisa – contestou. –Os sonhos são
sonhos. Os ensonhos não são algo que se pode tomar como a realidade: os ensonhos são
uma realidade a parte.
_Como é tudo isso? Me explique.
_Você tem que entender que um bruxo não é um idiota nem um transtornado mental. Um
bruxo não tem nem o tempo nem a disposição para enganar a si mesmo, ou para enganar a
ninguém, e menos ainda para dar um passo em falso. O que perderia fazendo isso é
demasiado grande. Perderia sua ordem vital, a qual leva uma vida inteira para se
aperfeiçoar. Um feiticeiro não vai desperdiçar algo que vale mais que sua vida tomando
uma coisa por outra. Os ensonhos são algo real para um bruxo porque neles ele pode atuar
deliberadamente; pode escolher dentro de uma variedade de possibilidades àquelas que
sejam as mais adequadas para levá-lo aonde ele necessite ir.
_Então você quer dizer que os ensonhos são tão reais como o que estamos fazendo agora?
_Se prefere comparações, lhe direi que os ensonhos são talvez mais reais. Neles a pessoa
tem poder para mudar a natureza das coisas, ou para mudar o curso dos eventos. Mas tudo
isso não é o importante.
_O que é então o importante, Don Juan?
_O jogo da percepção. Ensonhar ou espreitar significa ampliar o campo do que se pode
perceber a um ponto inconcebível para a mente.
Na opinião dos bruxos, todos nós em geral possuímos dons naturais de ensonhadores ou
espreitadores, e a muitos de nós nos resulta muito fácil ganhar o controle da atenção de
ensonhos ou o da atenção de espreita, e o fazemos de uma maneira tão hábil e natural que
na maioria das vezes nem nos damos conta de o haver realizado. Um exemplo disto é a
história do treinamento de Florinda Donner, que precisou de anos inteiros de agonizante
trabalho, não para ganhar o controle de sua atenção de ensonho, e sim para clarear seus
ganhos como ensonhadora e integrá-los ao pensamento linear de nossa civilização.
Certa vez foi perguntado a Florinda Donner qual era a razão pela qual escreveu este livro, e
ela respondeu que lhe era indispensável contar suas experiências no processo de enfrentar e
desenvolver a atenção de ensonho a fim de tentar, intrigar ou incitar, pelo menos
intelectualmente, a aqueles que se interessem em levar a sério as afirmações de Don Juan
Matus acerca das ilimitadas possibilidades da percepção. Don Juan acreditava que no
mundo inteiro não existe, nem talvez já tenha existido, outro sistema, exceto o dos bruxos
do antigo México, que conceda à percepção seu merecido valor pragmático.
CARLOS CASTANEDA.
3
NOTA DA AUTORA
Meu primeiro contato com o mundo dos feiticeiros não foi algo planejado ou buscado por
mim, ou melhor, foi um evento fortuito. Conheci a um grupo de pessoas no norte do
México em julho de 1970, que eram os fiéis discípulos da tradição feiticeira dos índios do
México pré-colombiano.
Aquele primeiro encontro teve em mim um poderoso efeito; introduziu-me em outro mundo
que coexiste com o nosso. Há vinte anos estou comprometida com esse mundo, e esta é a
crônica de como começou meu compromisso e de como ele foi estimulado e dirigido pelos
feiticeiros responsáveis pelo meu ingresso nele.
A pessoa mais proeminente entre eles foi uma mulher chamada Florinda Matus. Foi minha
mentora e minha guia. Foi também quem me deu seu nome — Florinda — como um
presente de amor e poder.
Chamá-los feiticeiros não é escolha minha. Bruxos e bruxas, ou seja, feiticeiros e
feiticeiras, são os termos que eles mesmos usam para designarem-se a si mesmos. Sempre
me incomodou a conotação negativa dessas palavras, mas os próprios feiticeiros me
tranqüilizaram de uma vez por todas, explicando que o que se denomina feitiçaria é algo
bastante abstrato: a habilidade que algumas pessoas desenvolvem para expandir os limites
de sua percepção normal. A qualidade abstrata da feitiçaria, então, anula automaticamente
qualquer conotação positiva ou negativa dos termos usados para descrever àqueles que a
praticam.
Expandir os limites da percepção normal é um conceito que surge da crença dos feiticeiros
de que nossas opções na vida são limitadas devido ao fato de estarem definidas pela ordem
social. Os feiticeiros crêem que a ordem social cria nossa lista de opções, mas que nós
fazemos o resto; ao aceitar somente essas opções limitamos nossas quase ilimitadas
possibilidades.
Por sorte estas limitações, de acordo com os feiticeiros, são aplicáveis somente ao nosso
lado social e não ao outro, praticamente inacessível, que não cai dentro do domínio da
percepção comum. Para tanto, seu principal esforço tende a revelar esse lado. Eles
conseguem isso quebrando a débil e, contudo, resistente carapaça das suposições humanas
com respeito ao que somos e do que somos capazes de ser.
Os feiticeiros aceitam que em nosso mundo dos afazeres diários há quem prove o
desconhecido em busca de opções diferentes da realidade, mas argumentam que, por
desgraça, tais buscas são essencialmente de natureza mental. Nunca nos abastecem da
energia necessária para mudar nosso modo de ser. Sem energia, novos pensamentos e novas
idéias quase nunca produzem mudanças em nós.
Algo que aprendi no mundo dos feiticeiros é que, sem retirar-se do mundo e sem
avariarem-se no processo, eles conseguem realizar a magnífica tarefa de romper o pacto
que tem definido a realidade.
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
Por volta das oito da manhã chegamos na casa da curandeira, nos arredores de Ciudad
Obregón; uma casa velha, maciça, de paredes pintadas e teto de telhas cinzas por causa da
passagem do tempo. Ostentava grades de ferro e um pórtico em forma de arco. A pesada
porta da rua estava aberta de par em par, e com a confiança de quem conhece o terreno,
Delia Flores me conduziu através de um vestíbulo escuro e um largo corredor até os fundos,
a um quarto apenas mobiliado com uma cama estreita, uma mesa e várias cadeiras. O mais
estranho desse cômodo era que em cada parede havia uma porta, todas elas fechadas.
—Espere aqui — ordenou Delia, assinalando a cama com a testa. —Durma um pouco
enquanto busco a curandeira, o que pode custar-me algum tempo — e fechou a porta após
sair.
Aguardei a que os sons de seus passos se amortecessem antes de inspecionar a mais
estranha sala de curas que jamais meus olhos viram. As paredes brancas estavam desnudas,
e as lajotas marrom-claro brilhavam como um espelho. Não havia altar, imagens ou figuras
de santos, da Virgem nem de Jesus, que supunha fossem de praxe em tais quartos.
Investiguei as quatro portas; duas abriam a corredores sombrios, e as outras a um pátio
cercado por um muro alto.
Quando caminhava nas pontas dos pés por um dos corredores rumo a outro quarto, ouvi
atrás de mim um grunhido abafado e ameaçante. Virei-me lentamente, e apenas a poucos
metros vi um enorme cão negro, de aspecto feroz. Não me atacou, mas firme em sua
postura, me desafiava com grunhidos e com a exibição de seus caninos. Sem olhá-lo
diretamente nos olhos, mas mantendo-o sempre enfocado, retrocedi de costas até a sala de
curas, seguida até a própria porta pelo animal. Fechei a porta com suavidade em seu próprio
focinho, para depois apoiar-me contra a parede, até conseguir que se normalizassem as
batidas de meu coração. Depois me deitei na cama, e em pouco tempo, sem sequer me
propor a isso, caí num sono profundo. Despertou-me uma leve pressão sobre o ombro, e ao
abrir os olhos tinha ante mim o rosto enrugado e rosado de uma mulher de idade.
—Está ensonhando — disse — e eu sou parte de seu ensonho.
Assenti automaticamente com a cabeça, mas sem estar de todo convencida de estar
sonhando. A mulher era chamativamente pequena; não anã nem pigméia, e sim, melhor
dizendo, do tamanho de uma criança, de braços descarnados e ombros estreitos e frágeis.
—É a curandeira? — perguntei.
—Sou Esperanza — respondeu. —Sou a que traz os ensonhos.
Sua voz era suave e muito baixa, dotada de uma qualidade curiosa e exótica, como se o
espanhol (que falava de maneira fluida) fosse uma língua à qual os músculos do lábio
superior não estavam acostumados. Gradualmente o som de sua voz ganhou intensidade,
até converter-se numa força desconexa que enchia o recinto, fazendo-me pensar em águas
que corriam na profundidade de uma caverna.
—Não é uma mulher — murmurei para comigo mesma —, é o som da obscuridade.
—Agora vou remover a causa de seus pesadelos — anunciou, fixando em mim seu olhar
imperioso, ao mesmo tempo em que seus dedos pressionavam com suavidade minha
garganta. —Vou tirá-las uma por uma — prometeu, enquanto suas mãos se moviam sobre
meu peito em suaves ondulações. Sorriu de maneira triunfal, e então me convidou a
examinar as palmas de suas mãos.
—Vê? Saíram sem esforço algum.
Observava-me com tal expressão de conquista e assombro que não pude dizer-lhe que não
via nada em suas mãos, e certa de que a sessão curativa havia terminado, a agradeci e me
levantei. Ela sacudiu a cabeça num gesto de reprovação, e com suavidade me obrigou a
recostar-me.
—Está adormecida — me recordou. —Sou a que traz os ensonhos, lembra?
Adoraria insistir que estava desperta, mas a única coisa que consegui foi sorrir como uma
idiota, ao mesmo tempo em que o sono me afundava em um estado confortável.
Risos e sussurros me cercavam como sombras; lutei por despertar, e precisei fazer um
grande esforço para abrir os olhos, levantar-me e olhar a aqueles que se haviam juntado ao
redor da mesa. O peculiar nevoeiro do quarto entorpecia a possibilidade de vê-los
claramente. Delia estava entre eles, e estava a ponto de pronunciar seu nome quando um
insistente som raspante me fez virar para averiguar o que acontecia às minhas costas.
Um homem, precariamente erguido sobre um tamborete alto, descascava amendoins
fazendo muito barulho. A primeira vista parecia jovem, mas de alguma maneira eu sabia
que era velho. Seu sorriso era uma mistura de esperteza e inocência.
—Quer? — ofereceu.
Antes que eu pudesse ensaiar qualquer resposta minha boca se abriu em assombro, e não
pude fazer outra coisa que olhá-lo fixamente, ao ver-lhe transportar todo seu peso a uma
mão e, sem esforço, elevar seu corpo pequeno e tenso na vertical. Dessa posição me jogou
um amendoim, que caiu em minha boca aberta. Me engasguei, e um golpe seco em minhas
costas de imediato restabeleceu a respiração. Agradecida, virei-me para averiguar quem,
entre todos os que agora se haviam agrupado em torno de mim, havia reagido com tanta
presteza.
—Sou Mariano Aureliano — disse aquele que me havia ajudado.
Me deu um aperto de mãos. Seu tom suave e a encantadora formalidade de seu gesto
mitigaram a feroz expressão de seus olhos, e a severidade de seus traços aquilinos. A
inclinação de suas sobrancelhas escuras lhe dava um aspecto de ave de rapina. Seus cabelos
brancos, e o rosto bronzeado e curtido, falavam de anos, mas seu corpo musculoso exalava
vitalidade de juventude.
Havia seis mulheres no grupo, incluindo a Delia, e todas me deram um aperto de mãos de
idêntica e eloqüente formalidade. Não me disseram seus nomes, simplesmente se
pronunciaram felizes por conhecer-me. Não se pareciam fisicamente, apesar de existir entre
elas uma chamativa similaridade, uma contraditória mistura de juventude e velhice, de
força e delicadeza que me desorientava, acostumada como estava à brusquidão e ausência
de sutilezas de minha patriarcal família alemã.
Assim como não conseguia decifrar a idade de Mariano Aureliano e do acróbata do
tamborete, tampouco conseguia fazê-lo com a das mulheres, que poderia estar tanto nos
quarenta como nos sessenta anos. O fato de que as mulheres persistissem em olhar-me
fixamente me produziu uma ansiedade passageira. Experimentei a bem definida impressão
de que podiam ver dentro de mim, e estavam analisando o visto. Seus sorrisos divertidos e
contemplativos não me proporcionavam maior segurança, de modo que, ansiosa por
quebrar esse incômodo silêncio por qualquer meio, me dirigi ao homem do tamborete para
perguntar-lhe se era acróbata.
—Sou o senhor Flores — disse, e com uma pirueta para atrás abandonou o tamborete e
aterrissou no chão sobre suas pernas cruzadas. —Não sou um acróbata — esclareceu —,
sou um mágico — e com um sorriso de inocultável gozo extraiu de um bolso o xale de seda
que eu havia atado ao pescoço do burro.
—Já sei quem é você. Você é o marido dela! — e apontei um dedo acusador a Delia. —
Vocês sim que me fizeram um belo truque sujo!
O senhor Flores não respondeu, limitando-se a olhar-me em meio a um silêncio cortês.
—Não sou o marido de ninguém — disse por fim, e saiu do quarto por uma das portas que
conduziam ao pátio, fazendo medialunas. (Termo relacionado com a acrobacia, estrelinhas,
meia-lua).
Respondendo a um impulso saltei da cama e fui atrás dele. Por uns instantes, ofuscada pela
luz exterior, fiquei imóvel. Depois cruzei o pátio e corri em paralelo ao caminho de terra,
até encontrar-me num terreno recém cultivado, delimitado por árvores de eucaliptos. Fazia
calor, o sol parecia estar em chamas e os sulcos resplandeciam como grandes víboras
efervescentes.
—Senhor Flores! — gritei, sem obter resposta, e certa de que se ocultava atrás de uma das
árvores, cruzei o terreno correndo.
—Cuidado com esses pés descalços! — advertiu uma voz que chegava do alto.
Surpreendida, olhei para cima e ali, cara a cara comigo, estava o senhor Flores, pendurado
pelas pernas.
—É perigoso e bobo caminhar sem sapatos — me reprovou, balançando-se como um
trapezista. —Este lugar está infestado de víboras cascavel. Melhor me acompanhar aqui
encima. É seguro e fresco.
Apesar de saber que os galhos estavam fora de meu alcance, elevei meus braços com
confiança infantil, e antes que pudesse adivinhar as intenções do senhor Flores, ele já me
havia tomado pelos pulsos, e sem maior esforço do que o necessário para alçar a uma
boneca de trapo, me havia levantado do solo e me depositado na árvore. Deslumbrada,
sentei-me junto a ele para olhar as folhas sussurrantes que brilhavam ao sol como lascas de
ouro.
—Consegue escutar o que lhe diz o vento? — perguntou o senhor Flores depois de um
longo silêncio, e girou sua cabeça em um e outro sentido para que eu pudesse apreciar a
maneira assombrosa em que movia as orelhas.
—Zamurito! — sussurrei, enquanto as lembranças inundavam minha mente.
Zamurito, “abutrezinho”, era o apelido de um amigo de minha infância venezuelana. O
senhor Flores tinha seus mesmos traços delicados, semelhantes a um pássaro, cabelos
negros e os olhos cor mostarda e, para encher-me de assombro, ele, assim como Zamurito,
podia mover as orelhas uma de cada vez, ou ambas ao mesmo tempo.
Contei ao senhor Flores sobre meu amigo, a quem conhecia desde o jardim da infância. No
segundo grau havíamos compartilhado uma mesa, e durante os longos recessos do meio-
dia, em lugar de comer nossa merenda no colégio, nós escapávamos para fazê-lo no alto de
uma colina próxima, à sombra do que acreditávamos ser a maior árvore de manga do
mundo, cujos galhos mais baixos tocavam o solo e os mais altos roçavam as nuvens. Na
estação das frutas nos enchíamos de mangas. O alto dessa colina era nosso lugar favorito,
até o dia em que encontramos o corpo do bedel do colégio pendurado num galho.
Não nos animamos a nos mover nem a gritar; nenhum desejava perder prestígio ante o
outro. Nesse dia não subimos nos galhos. Procuramos comer nosso almoço praticamente
embaixo do corpo do morto, perguntando-nos internamente qual dos dois se desmoronaria
primeiro. Fui eu quem cedeu.
—Alguma vez pensou em morrer? — perguntou-me Zamurito, em voz muito baixa.
Eu acabara de olhar ao pendurado, e nesse instante o vento havia movido os galhos com
uma insistência chamativa, e nesse roçar das folhas eu havia escutado o morto dizer-me que
a morte era apaziguante. Isso me pareceu tão insólito que me pus de pé e fugi aos gritos,
indiferente ao que Zamurito pudesse pensar de mim.
—O vento fez com que os galhos e as folhas lhe falassem — disse o senhor Flores quando
terminei meu conto. Sua voz era baixa e suave, e seus olhos de ouro brilharam com luz
febril ao explicar-me que no momento da morte, num relâmpago instantâneo, as memórias,
sentimentos e emoções do velho bedel se haviam liberado para ser absorvidas pela
mangueira.
—O vento fez com que os galhos e as folhas lhe falassem — repetiu —, pois o vento por
direito te pertence. — com olhos aplanados, olhou através das folhas, buscando além do
horizonte que se perdia sob o sol. —O fato de ser mulher lhe permite comandar ao vento —
prosseguiu. —As mulheres não o sabem, mas em qualquer momento podem dialogar com o
vento.
Sacudi a cabeça sem compreender.
—Na verdade não sei do que você está falando — disse-lhe, e meu tom de voz delatou
minha crescente inquietude. —Isto é como um sonho, e se não fosse porque segue e segue,
juraria que é um de meus pesadelos.
Seu prolongado silêncio me incomodou, e senti o rosto sufocado pela irritação.
—Que faço eu aqui, sentada numa árvore com um velho louco? — me perguntei, mas ao
mesmo tempo, temendo tê-lo ofendido, optei por pedir desculpas por minha aspereza.
—Sei que minhas palavras não têm muito sentido para você — admitiu. —Isso é porque há
muita crosta em você, a qual lhe impede de escutar o que o vento tem para dizer.
—Demasiada crosta? — perguntei, confusa e duvidosa. —Você quer dizer que estou suja?
—Isso também — disse, fazendo-me enrubescer. Sorriu e repetiu que eu estava envolta em
uma crosta muito grossa, e que essa crosta não podia ser eliminada com água e sabão,
independentemente de quantos banhos tomasse. —Está cheia de juízos — explicou —, e
eles lhe impedem de entender o que estou lhe dizendo, e que o vento é teu para o que quiser
mandá-lo.
Observou-me com olhos críticos, tensos.
—E então? — exigiu com impaciência, e antes que pudesse me dar conta do que estava
acontecendo, ele me havia tomado pelas mãos, girando-me, e me depositado no chão.
Acreditei ver como seus braços e pernas se estiravam, como se fossem bandas elásticas,
imagem passageira que expliquei a mim mesma como uma distorção perceptual causada
pelo calor. Não pensei mais nisso, pois nesse exato momento me distraíram Delia Flores e
seus amigos, que estendiam um grande pedaço de lona embaixo da árvore vizinha.
—Quando vieram para cá? — perguntei-lhe, desorientada, pois nem havia visto nem
ouvido ao grupo acercar-se.
—Vamos ter uma comidinha em sua honra — disse.
—Porque hoje você se uniu a nós — acrescentou outra das mulheres.
—Como foi que me uni a vocês? — perguntei, sentindo-me incômoda. Não havia
conseguido individualizar a quem falou, e as olhei uma por uma, esperando que uma delas
explicasse essa declaração.
Indiferentes a minha inquietude as mulheres se concentraram na lona, assegurando-se de
que estivesse uniformemente estendida. Quanto mais as observava, maior era minha
preocupação. Tudo se me parecia tão estranho. Podia explicar com facilidade porque havia
aceitado o convite de Delia para visitar a curandeira, mas não podia compreender minhas
ações posteriores. Era como se alguém me tivesse privado de minhas faculdades racionais,
obrigando-me a permanecer ali, e reagir, e dizer coisas alheias à minha vontade. E agora
organizavam uma celebração em minha honra, da qual o mínimo que se podia dizer era que
me era desconcertante, e apesar de meus esforços não conseguia explicar minha presença
nesse lugar.
—Por certo que não me mereço nada disto — murmurei, revelando minha formação alemã
—, as pessoas não costumam fazer coisas pelos outros, ainda mais assim, sem mais.
Somente quando escutei a exuberante risada de Mariano Aureliano percebi que todos
estavam me olhando.
—Não há razão alguma para que considere tão a fundo o que está lhe acontecendo hoje —
disse, tocando-me com suavidade o ombro. —Organizamos o almoço porque nos agrada
fazer as coisas sob o impulso do momento, e posto que hoje você foi curada por Esperanza,
a meus amigos lhes agrada dizer que o almoço é em sua homenagem. — falou de maneira
casual, quase com indiferença, como se se tratasse de um assunto sem importância, mas
seus olhos diziam algo diferente; sua dureza parecia indicar que era vital que eu o escutasse
detidamente.
—É uma alegria para meus amigos poder dizer que é em sua honra, — continuou — aceite-
o tal qual eles o oferecem, com simplicidade e sem premeditação — seus olhos se
encheram de ternura ao olhar às mulheres. Depois se virou para mim para acrescentar: —A
comida, posso lhe assegurar, não é em absoluto em sua honra, e sem embargo o é. Esta é
uma contradição que lhe custará tempo para entender.
—Não pedi a ninguém que faça nada por mim — disse, mal humorada. Me havia tornado
extremadamente pesada, tal qual sempre o havia feito ao sentir-me ameaçada. —Delia me
trouxe aqui, e estou agradecida — me senti obrigada a acrescentar — e gostaria de pagar
por qualquer coisa que tenham feito por mim.
Estava segura de tê-los ofendido; sabia que a qualquer momento me pediriam que fosse
embora, ao qual, fora o fato de afetar adversamente a meu ego, não me haveria importado
em demasia. Estava assustada, e já haviam ultrapassado minha medida. Para minha
surpresa e raiva não me levaram a sério. Se riram de mim, e quanto mais me irritava maior
era seu júbilo, seus olhos sorridentes e brilhantes fixos em mim como se eu fosse um
organismo desconhecido.
A ira fez com que eu esquecesse meu temor, e os agredi, acusando-os de tomar-me por uma
boba. Acusei-os de que Delia e seu marido (não sei por quê insistia em vê-los como
parceiros) me haviam pregado uma peça suja.
—Você me traiu — disse, virando-me para Delia — para que você e seus amigos me
usassem como palhaço.
Quanto mais rabugenta, mais se riam, deixando-me perto de chorar de raiva, frustração e
lástima de mim mesma, até que Mariano Aureliano parou junto a mim e começou a falar
comigo como se eu fosse uma criança. Queria dizer-lhe que podia cuidar de mim sozinha,
que não precisava de sua simpatia, e que me ia embora para casa, quando algo em seu tom,
em seus olhos, me apaziguou ao ponto de acreditar que havia me hipnotizado. E sem
embargo, sabia que não o havia feito.
O que mais me perturbou foi a súbita e completa mudança que se produziu em mim. O que
normalmente haveria levado dias havia acontecido em um instante. Toda minha vida me
havia permitido ruminar acerca das indignidades — reais ou imaginárias — que havia
sofrido. Com cabal minuciosidade, eu as desmiuçava até que cada detalhe ficasse explicado
à minha inteira satisfação. Ao olhar para Mariano Aureliano, senti vontade de rir de minha
recente explosão. Podia apenas me lembrar daquilo que a pouco me enfureceu até quase me
deixar às lágrimas.
Delia me pegou pelo braço e me pediu que ajudasse às outras mulheres a desembrulhar os
pratos, os copos de cristal e a prataria dos vários cestos em que haviam sido trazidos. As
mulheres não falaram comigo nem o fizeram entre elas, e apenas breves suspiros de prazer
escapavam de seus lábios à medida que Mariano Aureliano exibia as iguarias: havia
tamales, enchiladas (panquecas de milho condimentadas), um guisado de pimenta
malagueta e tortilhas feitas à mão. Não eram tortilhas de farinha, comuns no norte do
México, e que não me apeteciam muito, e sim tortilhas de milho. Delia me preparou um
prato que continha um pouco de tudo, e comi com tal voracidade que fui a primeira a
terminar.
—Isto é o mais delicioso que já comi em minha vida — disse, esperando uma repetição que
ninguém me ofereceu. Para dissimular minha frustração me dediquei a elogiar a beleza do
velho rendado que bordeava a lona sobre a qual estávamos sentados.
—Isso fui eu que fiz — anunciou uma mulher sentada à esquerda de Mariano Aureliano.
Era velha, e seus descuidados cabelos grisalhos ocultavam seu rosto. Apesar do calor usava
uma saia longa, blusa e malha.
—É um rendado belga autêntico — me explicou com voz suave e sonolenta. Suas mãos
longas e delicadas, nas quais brilhavam esquisitos anéis, se demoraram amorosas sobre a
longa franja. Com riqueza de detalhes me falou de suas habilidades manuais, mostrando-me
os pontos e as linhas usados nesse trabalho. Por momentos obtinha uma versão passageira
de seu rosto através da massa de cabelos, mas não poderia dizer que aspecto tinha.
—É renda belga autêntica — repetiu —, é parte de meu enxoval. — Alçou um copo de
cristal, bebeu um gole de água e acrescentou: —Estes também são parte de meu enxoval.
São Baccarat.
Eu não duvidava disso. Os lindos pratos, cada um deles diferente dos outros, eram da mais
fina porcelana, e me estava perguntando se uma discreta olhada embaixo do meu prato
passaria inadvertida, quando a mulher sentada à direita de Mariano Aureliano me incitou a
fazê-lo.
—Não seja tímida. Anda. Está entre amigos — e sorrindo, levantou o seu. —Limoges —
anunciou, e depois levantou o meu e marcou que era um Rosenthal.
A mulher tinha traços delicados, infantis. Era pequena, de olhos negros, redondos, e cílios
grossos. Seu cabelo era negro, exceção feita à coroa de sua cabeça que se havia tornado
branca, e estava arrumado e preso num apertado mignon. Havia nela algo cortante, uma
força bastante gélida, que notei quando me apertou com perguntas, diretas e pessoais. Não
me importava seu tom inquisitorial, acostumada ao bombardeio ao qual me submetiam meu
pai e meus irmãos, quando saía com um homem, ou me embarcava em alguma atividade
própria. Isso me incomodava, mas era o normal em minha vida familiar. Portanto, nunca
aprendi a conversar: a conversação para mim consistia em desviar ataques verbais e
defender-me a qualquer custo.
Me surpreendi quando o interrogatório coercitivo da mulher não me levou a defender-me
de imediato.
—É casada? — me perguntou.
—Não — respondi, com suavidade mas com firmeza, desejando que mudasse de assunto.
—Tem um homem? — insistiu.
—Não, não tenho — rebati, e comecei a sentir os vestígios de meu velho ser defensivo
eriçando-se em mim.
—Há algum tipo de homem pelo qual sente particular apego? — insistiu. —Sente
preferência por algum traço de personalidade em especial no homem?
Por um momento pensei que ela estava brincando, mas parecia genuinamente interessada,
assim como suas companheiras. Seus rostos curiosos e ávidos me acalmaram, e deixando
de lado minha natureza belicosa, e o fato de que essas mulheres tinham idade para ser
minhas avós, lhes falei como a amigas de minha mesma geração, com quê estivéssemos
falando sobre homens.
—Deve ser alto e apresentável — comecei — e ter senso de humor. Deve ser sensível sem
ser afetado, inteligente sem ser um intelectual. —Baixei o tom de minha voz para adicionar
confidencialmente: —Meu pai costumava dizer que os homens intelectuais são fracos até os
ossos, e todos eles são traidores. Acho que coincido com meu pai.
—Isso é o que deseja de um homem?
—Não — me apressei em responder. —Sobretudo, o homem de meus sonhos deve ser
atlético.
—Como seu pai — observou uma das mulheres.
—Naturalmente — acrescentei na defensiva. —Meu pai foi um grande atleta. Um fabuloso
esquiador e nadador.
—Você se dava bem com ele?
—Maravilhosamente — disse com um tom entusiasta. —O mero pensar nele me faz
lacrimejar.
—Por que não está com ele?
—Somos demasiado parecidos — expliquei. —Há algo em mim que não entendo
plenamente nem posso controlar, que me afasta dele.
—E o que há de sua mãe?
—Minha mãe — suspirei, e fiz uma momentânea pausa para encontrar as melhores palavras
para descrevê-la. —É muito forte. É minha parte sóbria; a parte silenciosa que não precisa
ser reforçada.
—Você é muito ligada aos seus pais?
—Em espírito sim — repus com ternura —, na prática sou uma solitária. Não tenho muitas
ligações. — Depois, como se algo dentro de mim se esforçasse por sair, revelei um defeito
de personalidade que nem sequer em meus momentos mais introspectivos me animava a
confessar a mim mesma. —Antes que apreciar ou alentar afeto pelas pessoas, eu as uso…
— mas de imediato retifiquei minha declaração: —Mas também sou capaz de sentir afeto.
Com uma mistura de alívio e frustração olhei a uns e outros. Nenhum parecia ter dado
importância à minha confissão. Seguindo outra linha, as mulheres perguntaram se
descreveria a mim mesma como um ser valente ou covarde.
—Sou uma total covarde — respondi —, mas por desgraça, minha covardia jamais me
detém.
—Detém de que? — perguntou a mulher que me havia estado interrogando. Seus olhos
negros passavam uma expressão séria, e suas sobrancelhas, semelhantes a linhas pintadas
com carvão, estavam enrugadas num gesto de preocupação.
—De fazer coisas perigosas — respondi. Satisfeita ao notar que pareciam estar pendentes
de cada palavra minha, passei a explicar-lhes que outro de meus sérios defeitos era minha
grande facilidade para meter-me em problemas.
—Em qual problema esteve do qual pode nos falar? — perguntou, e seu rosto, sério até esse
momento, se iluminou com um sorriso brilhante, quase malicioso.
—Que lhe parece este, meu problema atual? — perguntei, meio de brincadeira, temerosa de
que interpretassem mal meu comentário, mas para surpresa e alívio todos riram e gritaram,
como costumam fazer os rancheiros mexicanos quando algo lhes é gracioso ou atrevido.
—Como acabou nos Estados Unidos? — inquiriu a mulher quando todos se acalmaram.
Me encolhi de ombros, não sabendo ao certo o que responder.
—Desejava ir à universidade — murmurei por fim. —Estive primeiro na Inglaterra, mas ali
o que mais fiz foi me divertir. Na verdade não sei bem o que quero estudar. Acredito estar
em busca de algo sem saber exatamente o quê.
—Isso nos leva à minha primeira pergunta — continuou a mulher, seu rosto atrevido e seus
olhos escuros destemidos e curiosos como os de um animal. —Busca um homem?
—Suponho que sim — admiti, para depois acrescentar de maneira impaciente. —Que
mulher não o está, e por que me pergunta isso tão insistentemente? Tem um candidato?
Seria este algum tipo de exame?
—Temos um candidato — interpôs Delia flores —, mas não é um homem… — e tanto ela
como as outras riram de tal maneira que não pude fazer menos do que me juntar a seu
festejo.
—Isto é definitivamente um exame — me assegurou a inquisidora, quando todos se haviam
aquietado. Guardou silêncio durante um momento, seus olhos alertas e reflexivos. —Pelo
quê nos mencionou, concluo que você é completamente de classe média — prosseguiu,
abrindo os braços num gesto de forçada aceitação. —Mas, que outra coisa pode ser uma
mulher alemã nascida no novo mundo? — e observou a raiva refletida em meu rosto com
um sorriso apenas reprimido. —As pessoas da classe média têm sonhos de classe média.
Ao observar que eu estava a ponto de explodir, Mariano Aureliano me explicou que ela
fazia essas perguntas simplesmente porque sentia curiosidade por minha pessoa. Quase
nunca recebiam visitas, e muito raras vezes gente jovem.
—Isso não quer dizer que tenham que me insultar — protestei.
Como se eu não houvesse dito nada, Mariano Aureliano continuou desculpando às
mulheres. Seu tom calmo e sua carinhosa carícia em minhas costas tornaram a derreter
minha raiva, tal qual fizera anteriormente, e seu sorriso era tão angelical que nem por um
momento duvidei de sua sinceridade quando começou a me adular. Disse que eu era uma
das pessoas mais extraordinárias que eles haviam conhecido, o qual me emocionou ao
extremo de convidá-lo a perguntar-me qualquer coisa que desejasse saber acerca de minha
pessoa.
—Você se sente importante? — perguntou.
Assenti.
—Todos somos importantes para nós mesmos. Sim, creio que sou importante, não em um
sentido geral e sim específico, para mim mesma — e me embarquei num discurso acerca de
uma imagem própria positiva e valiosa, e do vital que era o reforçar nossa importância a
fim de sermos indivíduos fisicamente sãos.
—E o que pensa das mulheres? Acredita que são mais ou menos importantes que os
homens?
—É óbvio que os homens são mais importantes — disse. —As mulheres não têm escolha.
Devem ser menos importantes para que a vida familiar corra bem sobre os trilhos, por
assim dizer.
—Mas isso está bem? — insistiu.
—Naturalmente que está bem — declarei. —Os homens são intrinsecamente superiores,
por isso manejam o mundo. Eu fui criada por um pai autoritário que, apesar de conceder-
me tanta liberdade como a de meus irmãos, me fez saber, não obstante, que certas coisas
não eram tão importantes para a mulher. Por isso não sei que faço na universidade, nem o
que é o que desejo da vida — e logo acrescentei num tom infantil e desvalido: —Suponho
que busco a um homem tão seguro de si mesmo como o era meu pai.
—É uma simplória! — disse uma das mulheres.
—Não, ela não é — assegurou Mariano Aureliano. —Simplesmente está confundida, e é
tão persistente como seu pai.
—Seu pai alemão — corrigiu enfaticamente o senhor Flores, ressaltando a palavra alemão.
Havia descido da árvore como uma folha, suavemente e sem ruído. Serviu-se de uma
quantidade imoderada de comida.
—Quanta razão você tem — concordou Mariano Aureliano, sorrindo —, ao ser tão
obstinada como seu pai alemão, não fez outra coisa que repetir o que escutou toda sua vida.
Minha raiva, que subia e abaixava como uma febre misteriosa, não se devia só ao que
diziam de mim, e sim ao fato de que falavam de mim como se eu não estivesse presente.
—Não tem remédio — disse outra das mulheres.
—Está muito bem para o projeto que temos em mãos — observou Mariano Aureliano,
defendendo-me com convicção. O senhor Flores respaldou a Mariano Aureliano, e a única
mulher que até então não havia falado disse com voz profunda e rouca que estava de acordo
com os homens: que eu servia muito bem para o propósito em mãos.
Era alta e delgada. Seu rosto pálido, delicado e severo, estava coroado por cabelos brancos,
trançados e ressaltados por olhos grandes e luminosos. Apesar de sua vestimenta gasta e
descolorida, havia em torno dela uma aura de elegância.
—O que estão fazendo comigo? — gritei, já incapaz de controlar-me. —Não se dão conta
do horrível que é para mim escutar que falam como se eu não estivesse presente?
Mariano Aureliano fixou em mim seus olhos ferozes.
—Você não está aqui — disse num tom desprovido de toda emotividade —, ao menos pelo
momento. E, o mais importante, é que isto não conta. Nem agora nem nunca.
Quase desmaiei de ira. Ninguém me havia falado jamais com tal dureza e indiferença para
com meus sentimentos.
—Eu cago em todos vocês, gusanos comemierda, filhos da puta! — gritei.
—Deus meu! Uma alemã obscena! — exclamou Mariano Aureliano, e todos riram.
Estava a ponto de ficar de pé e ir-me quando Mariano Aureliano me deu repetidos
golpezinhos nas costas.
—Bom, bom — murmurou, como quem tranquiliza à criança que arrotou. E como antes,
em lugar de incomodar-me ao ser tratada como criança, minha raiva desapareceu. Me senti
vibrante e feliz, e sacudindo a cabeça em sinal de incompreensão, os olhei e ri.
—Aprendi castelhano nas ruas de Caracas com a ralé — expliquei. —Conheço todos os
palavrões.
—Não lhe encantaram os tamales doces? — perguntou Delia, fechando os olhos para
demonstrar sua apreciação.
Sua pergunta pareceu ser uma senha: o interrogatório cessou.
—Mas é claro que lhe encantaram! — respondeu o senhor Flores por mim —, só lamenta
que não lhe serviram mais, pois tem um apetite insaciável — e veio sentar-se ao meu lado.
—Mariano Aureliano se excedeu, e nos cozinhou um manjar.
Não podia acreditar nisso.
—Quer dizer que ele cozinhou? Tem a todas estas mulheres e cozinhou? — e de imediato,
preocupada pela interpretação que pudessem dar às minhas palavras, me desculpei,
explicando minha enorme surpresa ante o fato de que um macho mexicano cozinhasse em
sua casa quando havia mulheres para fazê-lo. As resultantes risadas me demonstraram que
tampouco era isso o que quis dizer.
—Especialmente se essas mulheres são suas mulheres; é isso o que queria dizer? —
perguntou o senhor Flores, suas palavras entre misturadas com os risos de todos. —Tem
razão, são as mulheres de Mariano ou, para ser mais preciso, elas lhe pertencem — e se deu
um divertido golpe no joelho. Depois, dirigindo-se à mais alta das mulheres, aquela que só
havia falado em uma oportunidade, disse: —Por que não lhe conta acerca de nós?
—Obviamente o senhor Aureliano não tem essa quantidade de esposas — disse, ainda
mortificada por meus lapsos.
—E por que não? — retrucou a mulher, e todos riram de novo. O riso era alegre, juvenil,
mas não conseguia tranquilizar-me. —Todos aqui estamos unidos por nossa luta, pelo
profundo afeto que nos professamos e pela certeza de que se não estamos juntos nada é
possível — disse.
—Mas vocês não são parte de nenhum grupo religioso, não é? — perguntei, e minha voz
revelou minha crescente apreensão. —Nem de nenhuma espécie de comunidade?
—Pertencemos ao poder — respondeu a mulher. —Meus companheiros e eu somos os
herdeiros de uma antiga tradição. Somos parte de um mito.
Não compreendi o que estava dizendo; intranquila, olhei para os outros; seus olhos estavam
fixos em mim; observavam-me com uma mistura de expectativa e contentamento. Voltei
minha atenção à mulher alta, que também me observava com a mesma expressão
embriagada. Seus olhos brilhavam ao ponto de chispar. Inclinada sobre seu copo de cristal,
bebia sua água em delicados goles.
—Somos essencialmente ensonhadores — explicou —, agora estamos todos ensonhando e,
pelo fato de que foi trazida a nós, você também está ensonhando conosco — disse isto num
tom tão suave que na verdade não pude captar o que foi dito.
—Você quer dizer que estou dormindo e compartilhando um sonho com vocês? —
perguntei com jocosa incredulidade, e precisei morder-me os lábios para segurar o riso que
borbulhava em meu interior.
—Não é exatamente o que está fazendo, mas passa perto — admitiu, e em nada
incomodada por meus risinhos nervosos, explicou que o que eu estava experimentando se
parecia mais a um sonho extraordinário, onde todos me ajudavam ao ensonhar meu
ensonho.
—Mas isso é uma...... — comecei, mas ela me silenciou com um gesto de mão.
—Todos estamos ensonhando o mesmo ensonho — me assegurou, aparentemente extasiada
por uma felicidade que eu não alcançava compreender.
—E o que me diz dessas coisas deliciosas que acabo de comer? — procurei o molho de
chili que havia derramado sobre minha blusa. Mostrei-lhe as manchas. —Isto não pode ser
um sonho! Eu comi dessa comida! — insisti em tom forte e agitado. —Sim, eu mesma a
comi!
Seu olhar era tranqüilo, como se tivesse estado esperando tal arrebatamento.
—E o que me diz de como o senhor Flores te subiu ao alto da árvore de eucalipto? —
perguntou.
Estava a ponto de informar-lhe que não me havia subido ao alto da árvore, e sim
simplesmente a um galho, quando me interrogou em voz baixa.
—Você pensou nisso?
—Não, não pensei nisso — respondi de mau jeito.
—É claro que não — concordou, movendo a cabeça com um gesto sabichão, como se
soubesse que nesse exato instante eu havia recordado que mesmo o galho mais baixo de
qualquer uma das árvores que nos rodeavam eram impossíveis de alcançar do chão.
Explicou que a razão pela qual eu não me havia dado conta disso era porque nos ensonhos
não somos racionais.
—Nos ensonhos podemos unicamente agir — ressaltou.
—Um momento — interrompi —, pode ser que eu esteje um tanto atordoada, eu admito.
Sem contar que você e seus amigos são a gente mais estranha que jamais conheci, mas
estou desperta até não mais poder — e, vendo que ria de mim, gritei: —Isto não é um
sonho!
Com um imperceptível movimento de cabeça atraiu a atenção do senhor Flores, que num
rápido movimento se apoderou de minha mão e, juntos, nos elevamos a um galho do
eucalipto mais próximo. Ali ficamos uns instantes, sentados, e antes mesmo que eu pudesse
dizer algo, ele me baixou para a terra, ao mesmo lugar em que estive sentada.
—Compreende o que quero dizer? — perguntou a mulher alta.
—Não, não compreendo — gritei, sabendo que havia sofrido uma alucinação. Meu temor
se converteu em fúria, e lancei uma enxurrada de maldições obscenas. Esgotado meu furor
senti lástima por mim mesma e comecei a chorar. —O que vocês me fizeram? — exigi em
meio ao meu choro. —Puseram algo na minha comida? Na água?
—Não fizemos nada disso — respondeu com bondade a mulher alta. —Você não precisa de
nada…
Apenas conseguia escutá-la; minhas lágrimas eram como um véu escuro que desfigurava
tanto seu rosto como suas palavras.
—Aguenta — a escutei dizer, apesar de não poder vê-la e nem a seus companheiros. —
Aguenta, não desperte ainda.
Havia algo tão imperioso em seu tom que compreendi que minha própria vida dependia de
vê-la de novo, e graças a uma força desconhecida, e por completo inesperada, consegui
atravessar o véu de minhas lágrimas. Escutei um suave ruído de aplausos e em seguida os
vi. Eles sorriam, e seus olhos brilhavam com tal intensidade que suas pupilas pareciam
iluminadas por algum fogo interno. Me desculpei primeiro ante as mulheres, e depois aos
dois homens, por minha reação boba, mas não desejavam nem falar dela, dizendo que eu
havia me desempenhado de maneira excepcional.
—Somos as partes viventes de um mito — disse Mariano Aureliano, depois do qual juntou
os lábios para soprar. —Eu lhe soprarei até à única pessoa que agora tem o mito em suas
mãos — anunciou. —Ele lhe ajudará a esclarecer tudo isto.
—E quem pode ser essa pessoa? — perguntei com um certo ar petulante, e estava a ponto
de inquirir se essa pessoa seria tão teimosa como meu pai, mas Mariano Aureliano me
distraiu. Continuava soprando, os cabelos brancos eriçados, e as bochechas roxas e infladas.
Em evidente resposta a seus esforços, uma suave brisa começou a infiltrar-se por entre os
eucaliptos. Mariano Aureliano fez um sinal com a cabeça, como se admitisse estar inteirado
de minha confusão e de meus pensamentos não expressados, e com suavidade me fez girar
até eu ficar de frente às montanhas do Bacatete.
A brisa se converteu em vento, um vento tão frio e áspero que tornava doloroso o respirar.
Com um movimento ondulante, como se não tivesse esqueleto, a mulher alta se levantou,
tomou minha mão e me arrastou através dos sulcos arados. No meio do campo culvitado
fizemos uma repentina parada, e poderia jurar que, com seus braços estendidos, incitava e
atraía à espiral de terra e folhas mortas que se enredemoinhavam à distância.
—Nos ensonhos tudo é possível — sussurrou.
Ri, abri os braços para chamar o vento, e a terra e as folhas bailaram em torno de nós com
tal força que tudo se borrou ante minha vista. De repente vi à mulher alta muito longe. Seu
corpo parecia dissolver-se numa luz avermelhada até desaparecer por completo de meu
campo de visão. Então um negrume encheu minha cabeça.
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
Ansiosa por conhecer as revelações de Delia, regressei a Los Ângeles via Tucson, e cheguei
à cafeteria ao cair da tarde. Um velho me orientou até um espaço vazio na área de
estacionamento, e assim, quando abriu a porta de meu veículo, consegui reconhecê-lo.
—Mariano Aureliano! — exclamei. —Que surpresa. Me alegra tanto vê-lo. Que faz você
aqui?
—Te esperava — afirmou. —Por isso meu amigo e eu lhe reservamos este espaço.
Tive uma fugaz visão de um índio corpulento que manejava uma velha camionete colorida.
Deixava o local no momento em que eu entrava.
—Lamento que Delia não tenha podido vir. Precisou viajar inesperadamente a Oaxaca —
disse Mariano Aureliano e me deu um amplo sorriso antes de agregar: —Estou aqui como
seu substituto. Espero poder preencher satisfatoriamente o vazio.
—Você não tem idéia do quanto encantada que estou em vê-lo — afirmei com toda
sinceridade, convencida de que ele, melhor que Delia, poderia me ajudar dando sentido a
tudo o que me havia acontecido nos últimos dias. —Esperanza me explicou que eu estava
em uma espécie de transe quando conheci a todos vocês — acrescentei.
—Disse isso? — perguntou com um tom quase ausente.
Sua voz, sua atitude e todo seu comportamento diferiam tanto da lembrança que conservava
dele, que me dediquei a observá-lo com detenção, na esperança de descobrir o que havia
mudado. O rosto, rudemente esculpido, havia perdido sua ferocidade mas, preocupada por
minhas próprias inquietudes, desviei meus pensamentos.
—Esperanza me deixou sozinha na casa — prossegui. —Ela e todas as mulheres se foram
sem sequer se despedir de mim, mas… — me precipitei em completar — isso não me
preocupou, apesar de que normalmente me sinto muito incomodada quando as pessoas não
são cortêses.
—Não me diga! — exclamou, como se eu houvesse dito algo extremamente importante.
Temerosa de que se ofendesse pelo que eu havia dito acerca de suas companheiras, de
imediato comecei a explicar-lhe que não havia sido minha intenção acusar a Esperanza e às
outras de não ser amigáveis.
—Muito pelo contrário — lhe assegurei —, foram o mais cortêses e carinhosas. — estive a
ponto de revelar o que me fora confiado por Esperanza, mas sua olhada enérgica me deteve.
Não havia nessa olhada raiva nem ameaça, senão uma qualidade penetrante que perfurou
minhas defesas, e tive a sensação de que tinha acesso à confusão reinante em minha mente.
Desviei o olhar para esconder meu nervosismo, e declarei em tom quase de brincadeira não
haver me sentido por demais afetada ao ficar sozinha na casa.
—O que me intrigou foi que conhecia cada rincão do lugar — confessei, e me detive,
incerta a respeito do impacto que minhas palavras podiam haver lhe causado. Seguiu
olhando-me fixo. —Fui ao banheiro, e comprovei que havia estado ali antes. O banheiro
não tem espelhos, e recordei desse detalhe antes mesmo de entrar. Depois lembrei da
ausência total de espelhos na casa, percorri cada cômodo e o confirmei.
Ao comprovar sua ausência de reação ante minhas palavras, lhe confessei que ao escutar a
rádio durante minha viagem à Tucson me havia dado conta de que andava atrasada em um
dia, e terminei dizendo, num tom esforçado:
—Devo ter dormido todo um dia.
—Não dormiu um dia inteiro — assinalou Mariano Aureliano com indiferença —,
caminhou por toda a casa e falou muito conosco antes de dormir como um tronco.
Comecei a rir, um riso próximo ao histérico, mas ele não pareceu notá-lo. Riu comigo, e
isso me relaxou.
—Nunca durmo como um tronco — me senti obrigada a explicar. —Meu sono é muito
instável.
Mariano Aureliano se calou, e quando retomou a palavra sua voz era séria e exigente.
—Lembra de haver sentido curiosidade sobre como as mulheres se vestiam e se penteavam
sem a ajuda de espelhos?
Não me ocorreu nenhuma resposta, e ele prosseguiu.
—Lembra que lhe pareceu estranho a ausência de quadros nas paredes e…?
—Não lembro de haver falado com ninguém — interrompi, para depois observá-lo com
cautela na crença de que, talvez, nada mais que para confundir-me, alegaria que eu
confraternizei com todos nessa casa, quando na verdade nada disso havia acontecido.
—Não lembrá-lo não significa que não aconteceu — disse laconicamente.
Senti em meu estômago uma involuntária revoada de mariposas. Não me havia
sobressaltado seu tom de voz, e sim o fato de haver dado resposta às minhas não
formuladas perguntas. Na certeza de que se seguisse falando algo dissiparia minha
crescente apreensão, me embarquei em uma longa e confusa recitação acerca de meu estado
de ânimo. Reconstruí o acontecido e me deparei com buracos na ordem do que ocorreu
entre a sessão curativa e minha viagem à Tucson, prazo no qual, eu sabia, perdi todo um
dia.
—Vocês me estão fazendo algo — os acusei, sentindo-me momentaneamente virtuosa —,
algo incomum e ameaçante.
—Agora está se portando como uma tonta — e pela primeira vez Mariano Aureliano sorriu.
—Se algo é incomum e ameaçante é só porque é novo para você. É uma mulher forte, e
cedo ou tarde lhe encontrará o sentido.
Me incomodou o uso de mulher. Teria preferido que dissesse garota, acostumada como
estava a que pedissem meus documentos para provar que tinha mais de dezesseis anos. De
repente me senti velha.
—A juventude deve estar unicamente nos olhos de quem contempla — disse como se uma
vez mais estivesse lendo meus pensamentos. —Quem quer que te olhe deve perceber sua
juventude, seu vigor, mas está mal que você se sinta uma pequenina. Precisa ser inocente
sem ser imatura.
Por alguma razão inexplicável suas palavras excederam minha capacidade de tolerância.
Desejava chorar, não por sentir-me ferida, e sim de desalento. Incapaz de sugerir algo
melhor, sugeri comer.
—Estou morrendo de fome — anunciei com falso alvoroço.
—Isso não é verdade — retrucou autoritário. —Está tentando mudar de assunto.
Surpreendida por seu tom e suas palavras olhei-o aterrada, e minha surpresa de imediato se
converteu em raiva. Não só tinha fome, como também estava cansada e tensa por causa da
longa viagem. Desejava gritar, fazê-lo alvo de minha ira e frustração, mas seus olhos me
impediam todo movimento, esses olhos que não piscavam, e pareciam possuir atributos de
réptil. Por um momento pensei que poderia chegar a devorar-me, do mesmo modo em que
uma víbora devora a um indefeso e hipnotizado pássaro. A tensão por temor e ira alcançou
tal intensidade que senti o sangue invadindo meu rosto, e soube por uma curiosa e quase
imperceptível elevação de sobrancelhas que Mariano Aureliano havia percebido essa
mudança de cor. Desde muito nova eu havia sofrido terríveis ataques de mau gênio, e a não
ser por procurar acalmar-me, ninguém havia tentado impedir minha entrega a eles, e eu o
fazia até ao ponto de convertê-los em monumentais ataques de raiva, nunca causados por
me ser negado algo que desejava fazer ou possuir, mas sim por indignações, reais ou
imaginárias, infligidas à minha pessoa.
Não obstante, as circunstâncias desse momento me fizeram sentir vergonha de meu hábito.
Fiz um esforço consciente para controlar-me que quase consumiu todas as minhas forças,
mas me acalmei.
—Esteve todo um dia conosco, um dia que agora não pode recordar — explicou Mariano
Aureliano, pelo visto indiferente aos meus flutuantes estados de ânimo. —Durante esse
tempo esteve muito comunicativa e receptiva, o qual nos encantou. Quando ensonha
melhora, e se converte num ser mais atraente, menos geniosa. Nos permitiu conhecer-lhe
muito profundamente.
Suas palavras me inquietaram. Por ter crescido defendendo-me e afirmando-me, tal qual
fiz, me permitiu ser muito apta em detectar significados ocultos por trás das palavras.
“Conhecer-me muito profundamente” me preocupou. Em especial “profundamente”. Só
podia ter um significado, pensei, mas de imediato o descartei por ser descabido.
Me absorvi de tal maneira em meus próprios cálculos que deixei de atentar ao que dizia.
Continuava com as explicações do dia perdido por mim, mas apenas captei pedaços
isolados, e devo de ter grudado minha vista muito fixamente nele, pois de repente deixou de
falar.
—Não está prestando atenção — me admoestou severamente.
—O que me fizeram quando estive em transe? — retruquei, naquilo que, mais que uma
pergunta, era uma acusação.
Me surpreenderam minhas próprias palavras por impensadas, e Mariano Aureliano se
surpreendeu ainda mais, e quase o afogou o rompante de riso que se seguiu à sua inicial
expressão de sobressalto.
—Pode estar certa de que não nos aproveitamos de criancinhas — e não só pareceu dizê-lo
com sinceridade, senão até ofendido por minha acusação. —Esperanza lhe disse quem
somos: gente muito séria. —E depois, num tom brincalhão, acrescentou: —E levamos a
sério este negócio.
—Que tipo de negócio? — exigi belicosamente. —Esperanza não me disse o que queriam
de mim.
—Sei que o disse — respondeu com tal segurança que por um instante me perguntei se não
haveria estado oculto, escutando nossa conversa no pátio. Eu o considerava bem capaz de
fazer isso.
—Esperanza lhe disse que você nos havia sido assinalada — prosseguiu. —E agora isso
nos impulsiona, como a você lhe impulsiona o medo.
—A mim não me impulsiona nada nem ninguém — gritei, esquecendo que ainda não me
havia revelado o que desejavam de mim.
Em aparência indiferente ante minha raiva, disse que Esperanza havia sido muito clara ao
explicar-me que dali em diante eles estavam comprometidos em criar-me.
—Criar-me!? — gritei. —Vocês estão loucos. Já recebi toda a criação que necessito!
Ignorando meu estouro se dedicou a explicar que o compromisso deles era total, e o fato de
que eu o entendesse ou não, não lhes importava. Fiquei olhando-o, incapaz de ocultar meu
medo. Jamais havia escutado a alguém expressar-se com tanta indiferença e ao mesmo
tempo com interesse. Num esforço por ocultar meu alarme procurei injetar em minha voz
um valor que estava longe de sentir, e perguntei:
—O que é que querem insinuar quando falam em criar-me?
—Exatamente o que ouviu — respondeu. —Estamos comprometidos a guiar-te.
—Mas, por quê? — estava nervosa e curiosa ao mesmo tempo. —Você não vê que não
preciso de direção, nem quero que…?
O riso de Mariano Aureliano afogou minhas palavras.
—Não há dúvida alguma de que necessita direção. Esperanza já te fez ver que sua vida
carece de significado — e antecipando minha iminente pergunta me pediu silêncio. —E no
tocante a por quê você e não outra pessoa, ela lhe explicou que deixamos ao espírito a
escolha de quem devemos dirigir, e o espírito assinalou você.
—Um momento, senhor Aureliano — protestei —, não quero ser grosseira nem ingrata,
mas você precisa entender que não busco direção. A simples idéia me aborrece. Você
entende? Fui suficientemente clara?
—Sim, e compreendo o que quer que eu entenda — e ao dizer isto deu um passo para trás
para afastar-se de meu dedo em riste —, mas precisamente por não desejar nada, você se
converte na candidata ideal.
—Candidata? — gritei, farta de sua insistência. Olhei ao redor, perguntando-me se aqueles
que entravam e saíam da cafeteria poderiam ter me escutado, e continuei gritando:
—O que é isto? Você e seus companheiros são um bando de loucos! Deixem-me em paz,
me ouviu? Não preciso de vocês nem de ninguém.
Para surpresa e mórbida alegria de minha parte, Mariano Aureliano terminou por irritar-se e
se pôs a criticar-me tal como faziam meus pais e meus irmãos. Com voz controlada, que
não transcendia ao cenário de nossa discussão, me insultou, tratando-me de estúpida e de
malcriada. Depois, como se o insultar-me lhe desse ímpeto, disse algo imperdoável. Gritou
que minha única fortuna era a de ter nascido loira e de olhos azuis, numa terra onde esses
atributos eram reverenciados.
—Jamais teve que lutar por nada — assegurou. —A mentalidade colonial dos mestiços de
seu país fez que te olhassem como se merecesse tratamento especial. Um privilégio baseado
na posse de uma cabeleira loira e olhos azuis é o privilégio mais tonto que pode existir.
Eu estava passada, pois jamais fui dos que recebem insultos sem reagir. Os anos de
treinamento familiar para essas batalhas gritadas que mantínhamos, e as extremamente
descritivas vulgaridades aprendidas (e nunca esquecidas) nas ruas de Caracas quando era
menina, essa tarde me foram de suma utilidade. Disse coisas a Mariano Aureliano que me
envergonham até o dia de hoje. Tal era meu estado de nervos que não percebi que o índio
corpulento condutor da camionete se havia juntado a nós, e apenas o soube ao escutar sua
forte risada. Ele e Mariano Aureliano praticamente estavam no chão, segurando as barrigas
e gritando alvoroçados.
—O que tem isto de engraçado? — gritei ao índio corpulento, a quem também insultei.
—Que mulher tão boca-suja! — disse em perfeito inglês —, se eu fosse seu pai lhe lavava a
boca com água e sabão.
—Quem te deu vela neste enterro, gordo de merda? — e cega de fúria, dei-lhe um chute no
tornozelo.
A dor lhe fez soltar um grito, e me insultou. E eu estava a ponto de agarrar-lhe o braço e
mordê-lo quando Mariano Aureliano me pegou por trás e me jogou no ar.
O tempo se deteve. Minha descida foi tão lenta, tão imperceptível, que me pareceu estar
suspensa no ar indefinidamente. Não caí em terra com os ossos quebrados como esperava, e
sim nos braços do índio corpulento. Não cambaleou ao receber-me, sustentando-me como a
uma levíssima almofada. Consegui captar um malicioso reflexo em seus olhos, e tive a
certeza de que me iria lançar para cima de novo, mas deve ter intuído meu temor, pois
sorriu e, com suavidade, me depositou no chão. Esgotadas minhas forças e minha ira, me
apoiei contra o carro e chorei.
Mariano Aureliano me rodeou com seus braços e acariciou minha cabeça e meu braço, tal
como fazia meu pai quando eu era menina. Murmurando palavras tranquilizantes me
assegurou não estar nem um pouco incomodado pelas barbaridades que lhe havia gritado. A
culpa, e um sentimento de pena por mim mesma, aumentaram a intensidade de meu choro.
Ante isto ele sacudiu a cabeça num gesto de resignação, ainda que seus olhos brilhassem de
gozo. Depois, num esforço evidentemente destinado a fazer-me rir, confessou que, contudo,
lhe custava acreditar que eu conhecesse um linguajar tão sujo, e menos ainda usá-lo.
—Bom — cochichou — suponho que a linguagem existe para ser usada, e o linguajar sujo
para quando as circunstâncias o requerem.
Suas palavras não me causaram graça, e uma vez superado o ataque de auto-compaixão eu
comecei, como era habitual em mim, a remoer sua afirmação de que a única coisa que eu
possuía era o cabelo loiro e os olhos azuis. Devo ter revelado algo a Mariano Aureliano
acerca de meus sentimentos, pois me assegurou haver dito isso somente para mortificar-me,
e que não havia nada de certo nisso. Sabia que mentia, e por um momento me considerei
duplamente insultada, e depois espantada, ao dar-me conta de que minhas defesas estavam
destruídas. Estava de acordo com ele. Havia estado certo em tudo o que havia dito. Com
um só golpe me havia desmascarado, perfurado minha couraça. Ninguém, nem sequer meu
pior inimigo, já havia conseguido me aplicar um golpe tão demolidor, e no entanto,
pensasse o que pensasse de Mariano Aureliano, sabia que não era meu inimigo. Essa
descoberta me produziu vertigens, como se uma força invisível estivesse pressionando algo
em meu interior a idéia de mim mesma. Algo que costumava fortificar-me agora me
esgotava.
Mariano Aureliano me pegou pelo braço e me conduziu até a cafeteria.
—Vamos fazer uma trégua — me sugeriu jovialmente. —Preciso que me faça um favor.
—Você não precisa nada mais do que pedir — respondi, e procurei imitar seu tom.
—Antes que você chegasse pedi um sanduíche na cafeteria, e praticamente se recusaram a
me servir. Quando protestei o cozinheiro me dispensou. Isso acontece por eu ser índio —
queixou-se abatido.
—Denuncie o cozinheiro para o gerente — sugeri indignada, meus próprios problemas
misteriosamente esquecidos.
—Isso não me ajudaria em nada — confessou Mariano Aureliano, e me assegurou que a
única maneira em que eu podia ajudá-lo era entrando na cafeteria para sentar-me no balcão,
pedir um bom almoço, e deixar cair nele uma mosca morta.
—E tacar a culpa no cozinheiro? — conclui por ele. Tudo me parecia tão absurdo que
acabei rindo, mas ao perceber que falava a sério, prometi fazer o que me pedia.
—Espere aqui — disse, e depois, junto com o índio corpulento (que ainda não me havia
sido apresentado) se encaminharam até a camionete roxa, estacionada na rua, para regressar
quase de imediato.
—A propósito — disse Mariano Aureliano —, este é John. É um índio Yuma do Arizona.
Estava por perguntar se John também era feiticeiro, mas Mariano Aureliano se adiantou a
mim.
—É o membro mais jovem de nosso grupo.
Com um risinho nervoso estendi minha mão:
—Encantada em conhecer-lhe.
—Igualmente — retribuiu. Sua voz era profunda, ressonante, e seu aperto de mãos, cálido.
—Espero que você e eu nunca nos agarremos a tapas.
Apesar de não ser muito alto exalava a vitalidade e a força de um gigante. Até seus grandes
dentes brancos pareciam indestrutíveis. Com ânimo brincalhão inspecionou meus bíceps e
opinou:
—Aposto que pode desmontar a um sujeito com um só soco bem dado.
Antes que pudesse desculpar-me por meus chutes e insultos, Mariano Aureliano pôs uma
pequena caixa em minhas mãos.
—A mosca — explicou. —John sugeriu que use isto — e tirou uma peruca negra e
enrolada de uma bolsa. —Não se preocupe, é nova em folha — disse, enquanto a
acomodava em minha cabeça. Depois, afastando-se um pouco para inspecionar-me, disse
que servia. —Não está mal. Não quero que te reconheçam — e se ocupou de ocultar minha
longa cabeleira loira.
—Não há necessidade de disfarçar-me — protestei. —Posso assegurar-lhes que não
conheço a ninguém em Tucson. —me observei no espelho retrovisor de meu carro. —Não
posso entrar assim, pareço um poodle.
Mariano Aureliano me observava com um exasperante ar divertido, enquanto acomodava
uns fios rebeldes.
—Não se esqueça que tem que se sentar no balcão e gritar como uma louca quando
descobrir a mosca em sua comida.
—Por quê?
Olhou-me como se eu fosse uma retardada.
—Tem que chamar a atenção e humilhar ao cozinheiro.
A cafeteria estava repleta pelos clientes de primeira hora, mas não demorei em arranjar um
lugar no balcão. Uma cansada mas bem disposta garçonete pegou meu pedido. Semi-oculto
atrás da grade dos pedidos pude ver ao cozinheiro, mexicano ou norte-americano de origem
mexicana, que desempenhava suas tarefas com tal bom ânimo que tive a certeza de que era
inofensivo, incapaz de malícia alguma; mas ao pensar no velho índio que me aguardava na
praça de estacionamento, não hesitei em esvaziar o conteúdo da caixa de fósforos sobre o
hambúrguer perfeitamente assado que havia pedido, e o fiz com tal velocidade e
dissimulação que nem sequer os homens sentados de cada lado notaram minha ação. Meu
grito de asco foi autêntico, ao ver uma enorme barata morta em minha comida.
—O que foi, querida? — perguntou a garçonete.
—Como o cozinheiro espera que eu coma isto? — me queixei. Não foi necessário pretextar
raiva. Estava indignada, não com o cozinheiro e sim com Mariano Aureliano. —Como
pôde fazer isto comigo? — perguntei em voz alta.
—Só pode ser um horrível acidente — explicou a mulher aos dois curiosos clientes que me
ladeavam, ao mesmo tempo em que mostrava o prato ao cozinheiro.
—Fascinante! — opinou o cozinheiro em voz alta, e coçando a testa inspecionou o prato.
Não demonstrava preocupação alguma, e tive a vaga suspeita de que se ria de mim. —Esta
barata ou caiu do teto ou… — e olhou minha cabeça como se fascinado — …de sua
peruca.
Antes que eu pudesse demonstrar-lhe minha indignação e colocá-lo em seu lugar, me
ofereceu a escolha de qualquer prato do menu.
—Por conta da casa — prometeu.
Pedi um bife e um caldo quente, o qual me foi trazido quase de imediato, e quando estava a
ponto de colocar os temperos em minha salada, o qual sempre deixo para o final, descobri
uma aranha de respeitável tamanho emergindo por debaixo da folha. Foi tal minha surpresa
ante a evidente provocação que nem sequer pude gritar, e ao levantar os olhos vi ao
cozinheiro atrás da treliça, acenando-me com a mão e com um amplo sorriso. Mariano
Aureliano me aguardava, impaciente.
—O que aconteceu? — perguntou.
—Você e sua asquerosa barata! — disse incisiva. —Não aconteceu nada. O cozinheiro não
se incomodou, e se divertiu muitíssimo, claro que às minhas custas. A única que se
incomodou fui eu.
A pedido seu, dei a Mariano Aureliano um detalhado informe do acontecido. Quanto mais
eu falava mais parecia divertir-se. Desconcertada por sua reação exigi:
—O que é tão engraçado para você?
Lutou por manter-se sério, mas seus lábios o traíram, e o riso inicial se converteu numa
explosão de boas gargalhadas.
—Não pode se levar tão a sério — me repreendeu. —É uma excelente ensonhadora, mas
não é atriz.
—Não estou atuando agora — retruquei defensivamente em voz chorosa.
—Quero dizer que contava com sua habilidade para ser convincente — esclareceu. —Tinha
que fazer o cozinheiro acreditar em algo que não era certo. Pensei que poderia fazê-lo.
—Como você se atreve a me criticar? — gritei. —Faço o papel de tonta em seu favor, e
tudo o que se lhe ocorre dizer é que não sei atuar! — tirei a peruca e a joguei longe. —Por
certo que agora estou com piolhos.
Ignorando meu rompante Mariano Aureliano observou que Florinda já lhe havia antecipado
que eu era incapaz de fingir.
—Tínhamos que nos assegurar para colocá-la na repartição apropriada — acrescentou. —
Os feiticeiros são ou ensonhadores ou espreitadores.
—Do que está falando? Que bobagem é esta de ensonhadores e espreitadores?
—Os ensonhadores se ocupam de ensonhos — explicou. —Obtêm seu poder e sua
sabedoria dos ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com o mundo
cotidiano, e obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus semelhantes.
—Evidentemente você não me conhece — disse de maneira depreciativa. —Eu sei lidar
muito bem com as pessoas.
—Isso não é verdade — me contradisse. —Você mesma já disse que não sabia conversar. É
uma boa mentirosa, mas mente só para conseguir o que deseja. Suas mentiras são
demasiado específicas, por demais pessoais. E sabe por quê? — fez uma pausa, como para
dar-me tempo de responder, mas antes que eu pudesse pensar em algo, continuou: —
Porque para você as coisas são brancas ou pretas, sem meios tons, e não falo em termos de
moral mas sim em termos de conveniência; sua conveniência, é claro. Uma verdadeira
autoritária. — Mariano e John trocaram olhares, depois ambos endireitaram seus ombros,
fizeram soar os saltos de seus sapatos, e fizeram algo para mim imperdoável. Estiraram os
braços numa saudação fascista e gritaram:
—Mein Führer!
Quanto mais riram mais aumentava minha fúria. Senti o sangue zunindo em meus ouvidos,
sufocando meu rosto, e desta vez não fiz nada para acalmar-me além de chutar meu carro e
dar murros na capota. Em vez de consolar-me, tal qual teriam feito meus pais ou meus
amigos, os dois homens se dedicaram a rir como se eu lhes estivesse proporcionando o
espetáculo mais divertido imaginável. Sua indiferença, sua total falta de preocupação
comigo era tão chocante, que minha ira diminuía lentamente por si mesma. Nunca havia
sido ignorada a tal ponto. Senti-me perdida, sem capacidade de manobra. Nunca soube, até
esse dia, que se as testemunhas de meus ataques de raiva se mostravam indiferentes, eu não
sabia que caminho tomar.
—Creio que agora está confundida. Não sabe o que fazer. — Mariano Aureliano disse a
John, e o rodeou com seu braço e acrescentou em voz baixa mas o suficientemente alta
como para que eu escutasse: —Agora vai começar a chorar, e quando o fizer, chorará até
que a consolemos. Não há nada mais chato que uma putinha malcriada.
Isso foi o auge. Como um touro ferido, baixei a cabeça e investi contra Mariano Aureliano.
Tanto lhe surpreendeu meu furioso e inesperado ataque que quase perdeu o equilíbrio, o
qual me deu tempo suficiente para cravar os dentes na parte carnosa de sua barriga. Seu
grito foi uma mistura de dor e riso. John me pegou pela cintura para separar-me, mas eu
não afrouxei a mordida enquanto não cedeu minha prótese dental. Havia perdido dois de
meus dentes superiores frontais aos treze anos, numa briga entre os estudantes
venezuelanos e alemães da Escola Alemã de Caracas. Os dois homens riram aos gritos,
John recostado sobre o porta-malas de meu Volkswagen, segurando a barriga e golpeando o
carro.
—Tem um rombo entre os dentes como um jogador de futebol! — conseguiu articular entre
alaridos.
Minha vergonha superou toda descrição. Tal era minha raiva que meus joelhos se
afrouxaram. Caí ao chão como uma boneca de trapo e desmaiei. Quando recuperei os
sentidos estava sentada dentro da camionete. Mariano Aureliano me pressionava as costas
e, sorrindo, acariciava repetidas vezes minha cabeça. Depois me abraçou. Me surpreendeu
minha ausência de emoção; não me sentia enraivecida nem envergonhada. Estava relaxada,
em paz, dona de uma serenidade, de uma tranquilidade nunca experimentada anteriormente.
Pela primeira vez em minha vida me dei conta de que jamais havia estado em paz comigo
nem com os outros.
—Gostamos muito de você — disse Mariano Aureliano —, mas precisa se curar desses
ataques. Se não o fizer eles te matarão. Desta vez foi culpa minha, e preciso pedir perdão
por ela. Eu te provoquei deliberadamente.
Me encontrava por demais tranquila para responder. Desci da camionete para estirar braços
e pernas. Sentia câimbras nas panturrilhas. Depois de um tempo lhes pedi desculpas a
ambos, e lhes disse que meu caráter havia piorado desde que passei a tomar bebidas gasosas
compulsivamente.
—Então deixe de fazê-lo — sugeriu Mariano Aureliano. Depois mudou por completo de
assunto e seguiu como se nada houvesse acontecido. Disse estar muito contente por eu ter-
me unido a eles.
—De verdade? — perguntei sem compreender. —Eu me uni a vocês?
—Assim é. Um dia tudo terá sentido para você — e me assinalou um bando de corvos que
nos sobrevoavam. —Os corvos são um bom presságio. Olhe como são lindos. Como uma
pintura no céu. Vê-los agora é uma promessa de que nós nos veremos de novo.
Fiquei olhando aos pássaros até que desaparecessem. Quando me voltei para olhar a
Mariano Aureliano já não estava ali. A camionete se havia ido sem sequer um ruído.
CAPÍTULO CINCO
Sem me importar com as aranhaças me lancei atrás do cão que, a grande velocidade, se
enfiava por entre os arbustos de Artemísia. De súbito perdi de vista sua pelagem dourada, e
segui a pista de seus latidos, cada vez mais fracos na distância. Intranquila, observei a
grossa névoa avançando para mim, para cerrar-se em torno do lugar onde me encontrava, e
em poucos momentos o céu se apagou. A suavizada bola do sol declinante da tarde era
apenas avistada, e a magnífica vista da baía de Santa Mônica, agora mais imaginada que
vista a partir das montanhas de Santa Susana, havia desaparecido com incrível rapidez. Não
me preocupava a perda do cachorro, mas não tinha idéia de como regressar ao apartado
local escolhido por meus amigos para o piquenique, nem onde se encontrava o caminho de
pedestres que tomei para perseguir ao animal.
Encaminhei uns passos inseguros na mesma direção tomada pelo cachorro quando algo me
deteve. Descendendo desde alguma abertura na névoa vi como um pequeno ponto luminoso
caía até mim. Outro o seguiu, depois outro, semelhantes a pequenas chamas atadas a uma
linha; tremiam e vibravam no ar para extinguir-se justo antes de me alcançar, como
tragadas pela névoa. Dado que desapareceram a poucos metros diante de mim, me
aproximei desejosa de examinar o extraordinário espetáculo, e perfurando a névoa com a
vista, vi deslizarem-se umas escuras figuras humanas, suspendidas no ar a curta distância
do sólo como se caminhassem nas pontas dos pés sobre as nuvens. Uma atrás da outra se
agacharam até formar um círculo. Ensaiei uns passos vacilantes para depois deter-me
quando a névoa ficou mais espessa e tragou as figuras.
Permaneci imóvel, sem saber o que fazer, vítima de um estranho medo, não o conhecido, e
sim um medo que afetava o corpo, o estômago, o tipo de medo que os animais devem
experimentar. Não sei quanto tempo permaneci ali. Quando a névoa levantou-se o
suficiente descobri à minha esquerda, a uns vinte e tantos metros, dois homens sentados no
chão com as pernas cruzadas. Cochichavam, e o som de suas vozes parecia vir de todas as
direções, presas em pequenas capas de névoa semelhantes a tufos de algodão. Não lhes
entendi, mas uma ou outra palavra chegada aos meus ouvidos me produziu tranquilidade;
falavam espanhol.
—Estou perdida! — gritei.
Ambos se viraram com lentidão, hesitantes e incrédulos, como quem vê a uma aparição.
Olhei atrás de mim para ver se alguém que estivesse ali fosse o causador de sua dramática
reação. Não havia ninguém.
Sorrindo, um dos homens se levantou. Estirou seus membros até fazer estalar suas
articulações, e depois, com rápidos passos percorreu a distância entre nós. Era jovem, de
baixa estatura e forte constituição: ombros poderosos e cabeça grande. Seus olhos escuros
irradiavam uma divertida curiosidade. Disse-lhe que passeava com amigos e me havia
perdido perseguindo seu cão.
—Agora não sei como juntar-me de novo a eles.
—Por aqui não se pode seguir — me advertiu. —Estamos parados sobre um penhasco — e
com grande seriedade me pegou pelo braço e me conduziu à própria borda do precipício,
distante não mais de uns três metros de onde eu havia estado parada. —Este amigo — e
assinalou ao outro homem que havia permanecido sentado — acabava de contar-me que
abaixo há um velho cemitério indígena, quando você apareceu e quase nos matou de susto.
Você é sueca? — perguntou, estudando meu rosto e minha longa trança loira.
Ainda confusa com o que foi dito pelo jovem acerca do cemitério, fixei minha vista na
névoa. Sob circunstâncias normais, como estudante de antropologia, me haveria
entusiasmado a idéia do cemitério indígena, mas nesse momento pouco me importava o que
havia abaixo nessa cavidade enevoada. A única coisa em que conseguia pensar era que, de
não me haver distraído essas luzes, eu poderia ter terminado enterrada ali.
—Você é sueca? — insistiu.
—Sim — menti, e de imediato o lamentei, mas não podia pensar em como desdizer-me sem
perder prestígio.
—Fala castelhano com perfeição — comentou. —Os suecos possuem uma maravilhosa
facilidade para os idiomas.
Apesar de sentir-me muito culpada, não pude fazer nada menos que acrescentar que, mais
que um dom, era uma necessidade para os escandinavos aprender vários idiomas, se
desejavam comunicar-se com o resto do mundo.
—Ademais — confessei —, me criei na América do Sul.
Por alguma estranha razão esta informação pareceu desorientá-lo. Sacudiu a cabeça, como
para exteriorizar sua dúvida; depois permaneceu um longo tempo em silêncio, absorto em
seus pensamentos. Logo após, como se houvesse chegado a uma decisão, me pegou pela
mão e me levou junto ao outro homem que permanecia sentado.
Não era minha intenção entregar-me à sociabilidade. Queria juntar-me com meus amigos o
mais rápido possível, mas o jovem me deixou tão envaidecida, que em lugar de pedir-lhe
que me conduzisse ao caminho de pedestres, lhe ofereci uma detalhada versão das luzes e
das figuras humanas que acabara de ver.
—Que raro que o espírito tenha lhe ajudado — murmurou o homem sentado como para
seus botões, franzindo o cenho, mas era óbvio que se dirigia a seu companheiro, que
respondeu com outro ininteligível murmúrio, e trocaram olhares que intensificaram minha
inquietude.
—Perdão? — disse, dirigindo-me ao homem sentado. —Não entendi o que disse.
Olhou para mim de modo agressivo.
—Foi advertida do perigo — anunciou em voz grave e ressonante. —Os emissários da
morte vieram em seu auxílio.
—Quem? — me senti obrigada a perguntar, apesar de ter lhe entendido perfeitamente bem.
Olhei-o de perto, e por um momento tive a certeza de que o conhecia bem, mas ao
completar meu estudo cheguei à conclusão de não tê-lo visto jamais, apesar de não poder
descartar a impressão inicial. Não era tão jovem como o outro, embora tampouco velho, e
sem dúvida alguma era índio, de tez escura, cabelo negro e liso da grossura de uma escova.
Mas não era seu aspecto exterior o que o fazia familiar. Era mal humorado como só eu
podia ser. Pelo visto meu exame o incomodou, pois ficando de pé abruptamente, anunciou
que me levaria para junto de meus amigos.
—Siga-me, e não se atreva a cair. Cairia encima de mim e ambos nos mataríamos — disse
em tom pouco amável, e antes de dar-me a oportunidade de responder que não era uma
tonta, se adiantou por um pronunciado declive na direção oposta ao penhasco.
—Sabe aonde vai? — gritei-lhe, revelando na voz meu nervosismo.
Não podia orientar-me (nunca fui boa para isso), mas não achei estar subindo um monte
quando persegui ao cão. O homem se virou, o rosto iluminado por um sorriso, apesar de
que seus olhos não sorriram. Me lançou um olhar pétreo.
—Te levarei para com seus amigos — foi tudo o que disse.
Não me agradava o sujeito, mas sem dúvida acreditava nele. Não era muito alto, talvez um
metro e setenta, e de ossos pequenos, apesar do qual seu corpo impressionava por ser
maciço e compacto. Se movia com muita confiança na névoa, pisando com graça e
facilidade naquilo que eu acreditava ser uma baixada vertical.
O homem mais jovem desceu atrás de mim, ajudando-me em cada uma de minhas
dificuldades. Tinha as polidas maneiras de um velho cavalheiro. Suas mãos eram suaves ao
tato, porém fortes, bonitas e de tremendo poder. Várias vezes, com grande facilidade,
alçou-me por cima de sua cabeça, talvez não uma grande façanha dado meu peso escasso,
mas impressionante posto que estávamos parados sobre beiradas de argila, e ele só era mais
alto que eu por quatro ou cinco centímetros.
—Precisa agradecer-lhes, aos emissários da morte — ordenou o que havia encabeçado
nossa travessia, nem bem alcançamos terra plana.
—Sim? — perguntei, zombando; a mera idéia me parecia ridícula. —Devo ajoelhar-me? —
perguntei entre risadas.
Ao homem não lhe pareceu tão gracioso. Com os braços na cintura me olhou nos olhos sem
sorrir. Havia um quê ameaçante em seu porte, em seus escuros olhos inclinados, que
olhavam sob sobrancelhas hirsutas que se uniam sobre a ponte de seu nariz esculpido. De
improviso me deu as costas e se afastou, para sentar-se sobre uma rocha próxima.
—Não podemos nos ir daqui até que você agradeça aos emissários da morte — repetiu.
De repente me preocupou a comprovação de estar só num lugar perdido, prisioneira da
névoa e junto com dois homens estranhos, um deles talvez perigoso, que não se moveria do
lugar se para tanto eu não cumprisse sua ridícula exigência, mas, que surpresa… em lugar
do temor, senti vontade de rir. O sorriso compreensivo do homem jovem revelava às claras
que sabia como eu me sentia, o qual lhe causava grande prazer.
—Não precisa chegar ao extremo de ajoelhar-se — disse, depois do qual, incapaz de
controlar seu regozijo, soltou uma risada alegre que soava como se pequenos seixos
caíssem em torno. Seus dentes eram imaculadamente brancos e paralelos, como os de uma
criança, e seu rosto por sua vez doce e travesso. —Basta apenas dizer obrigado —
aconselhou. —Diga-o. O que pode perder com isso?
—Me sinto boba — confessei, procurando de forma deliberada ganhá-lo para meu lado. —
Não o farei. — depois, entre risos, repeti: —Eu sinto muito, mas não posso fazê-lo. Sou
assim. Enquanto alguém me insiste que faça algo que não quero fazer, me ponho tensa e
irritada.
Com a vista fixa no chão, a testa descansando sobre os nós dos dedos, moveu a cabeça em
sinal de estar ponderando o assunto.
—É um fato que algo impediu que você se machucasse, talvez até que se matasse. Algo
inexplicável.
Estive de acordo, e ainda admiti que tudo me parecia muito estranho. Inclusive tentei
exibir-me falando sobre um fato fortuito que, por coincidência, acontece no lugar certo e na
hora certa.
—Tudo isso está muito bem, mas não explica seu caso particular — e me deu um carinhoso
golpe na testa. —Você recebeu um presente, chame ao doador de coincidência,
circunstância, cadeia de acontecimentos ou o que seja, mas o fato é que você não foi ferida
e nem sofreu dor alguma.
—Talvez tenha razão — concedi. —Deveria mostrar-me mais agradecida.
—Não mais agradecida, mais flexível, mais fluida — opinou rindo, e vendo a raiva que se
gestava em mim, abriu bem os braços como para abarcar os arbustos de Artemísia que nos
rodeavam. —Meu amigo acredita que o que você viu tem relação com o cemitério indígena
que por certo está aqui.
—Não vejo nenhum cemitério — respondi na defensiva.
—É difícil de reconhecer, e não é a névoa o que impede de vê-lo. Mesmo em dias de sol a
única coisa que se vê são os arbustos. — se ajoelhou, e me olhou com um sorriso. —Não
obstante, para o olho conhecedor, se trata de um grupo de arbustos de forma insólita. — se
deitou no chão, sobre o estômago, a cabeça virada para a esquerda, indicando-me para fazer
o mesmo.
—Esta é a única forma de vê-lo com claridade — explicou.—Eu não o saberia a não ser por
meu amigo, que conhece todo tipo de coisas interessantes.
Inicialmente não vi nada; depois, uma por uma, descobri as rochas entre o espesso mato.
Escuras e brilhantes, como se a névoa as houvesse lavado, estavam reunidas em círculo, e
mais pareciam criaturas que pedras, e quando me dei conta de que eram idênticas às figuras
humanas vistas entre a névoa, precisei reprimir meu grito.
—Agora estou assustada de verdade — murmurei. —Eu lhes disse que vi figuras humanas
sentadas em círculo — e tratei de procurar em seu rosto repúdio ou ironia, antes de
acrescentar: —É demasiado inaudito, mas quase juraria que essas rochas são as pessoas que
vi.
—Eu sei disso — falou em voz tão baixa que precisei me aproximar. —Tudo é muito
misterioso. Meu amigo, que como você já terá notado, é índio, disse que certos cemitérios
indígenas têm um círculo ou uma fila de pedras. Essas pedras são os emissários da morte —
me observou com detenção, e depois, como para assegurar-se de minha total atenção,
confessou: —Tome nota. São os emissários, não a representação dos emissários.
Fixei minha vista no homem, não só porque não sabia bem como interpretar suas palavras,
e sim pelo fato de que esse rosto mudava à medida que ele falava e sorria. Porém não eram
os traços os que mudavam, era o rosto que um minuto era o de um menino de seis anos,
depois de um adolescente de dezessete, e também o de um velho.
—São crenças estranhas — continuou, indiferente a meu olhar inquisidor. —Eu não lhes
dei maior crédito até o momento em que você apareceu de improviso, quando meu amigo
me falava dos emissários da morte e justamente vem você nos dizendo que acabara de vê-
los. Se eu fosse dado à suspeitas — e seu tom se tornou subitamente ameaçador — diria
que você e ele estão confabulados.
—Não o conheço! — me defendi, a simples suspeita me indignava. Depois, em voz baixa,
para que só ele pudesse me escutar, acrescentei: —Para ser-lhe franca, seu amigo me dá
medo.
— Se eu fosse dado à suspeitas — repetiu o jovem, ignorando minha interrupção —,
acreditaria que vocês dois estão tratando de assustar-me. Mas sou confiante, de modo que o
único que posso fazer é suspender todo juízo e desejar saber mais sobre você.
—Eu não quero que saiba nada de mim — disse com irritação — e de qualquer jeito não sei
de que merda você fala. — olhei-o furiosa. Não simpatizava com seu dilema, pois também
ele me estava inspirando medo.
—Está falando de agradecer aos emissários da morte — disse o homem maior que havia
chegado onde eu estava, e me olhava de maneira estranha.
Desejosa de abandonar o lugar e a esses dois loucos, fiquei de pé e gritei meu
agradecimento. Minha voz rebateu no mato rasteiro, que parecia ter se convertido em rocha,
e a escutei até que o eco se extinguiu. Depois, como possuída, e fazendo algo que meu bom
juízo censuraria, gritei meu agradecimento uma e outra vez.
—Estou certo de que os emissários estão mais que satisfeitos — opinou o jovem,
golpeando minha panturrilha e deixando-se cair ao chão para rir às gargalhadas. Eu não
duvidei por um instante que, apesar da leviandade de meu gesto, havia de fato agradecido
aos emissários da morte e, curiosamente, me sentia protegida por eles.
—Quem são vocês? — perguntei, dirigindo-me ao mais jovem dos dois homens.
Num salto ágil se pôs de pé.
—Eu sou José Luis Cortez, meus amigos me chamam Joe — e me estendeu a mão —, e
este aqui, é meu amigo Gumersindo Evans Pritchard.
Temendo soltar uma risada mordi os lábios e comecei a coçar o joelho.
—Há de ser uma pulga — disse-lhes, olhando de um para outro. Ambos devolveram meu
olhar, desafiando-me a zombar do nome, e tal era a seriedade de suas expressões que meu
riso se desvaneceu. Gumersindo Evans-Pritchard pegou minha mão e a sacudiu com vigor.
—Encantado em conhecê-la — disse em perfeito inglês de classe alta britânica. —Por um
momento pensei que você era uma dessas mulherzinhas estúpidas e presunçosas sem outra
graça que não a boceta.
Em uníssono meus olhos e minha boca se dilataram. Apesar de intuir que suas palavras
mais continham um elogio que um insulto, meu choque foi tão intenso que fiquei como
paralisada, apesar de ser capaz de competir com quem fosse no uso de linguajar sujo, mas a
palavra boceta (coño) me soou tão espantosamente ofensiva que fiquei privada da fala.
Joe veio em meu auxílio. Desculpou ao seu amigo com a explicação de que era um
iconoclasta social extremado, e antes de permitir-me a oportunidade de dizer que
Gumersindo havia feito em pedacinhos meu sentido de decência e de boas maneiras,
acrescentou que a compulsão de Gumersindo a ser iconoclasta se devia a ser seu sobrenome
Evans-Pritchard.
—Não deveria surpreender a ninguém. Seu pai é um inglês que abandonou à sua mãe, uma
índia de Jalisco, antes de Gumersindo nascer.
—Evans-Pritchard? — repeti cautelosamente, e depois perguntei a Gumersindo se era
correto permitir a Joe revelar a uma estranha seus segredos de família.
—Não há segredos de família — respondeu Joe por seu amigo — e sabe por quê? — e
fixou em mim seus olhos escuros e brilhantes, que não eram negros nem castanhos, e sim
da cor de cerejas maduras. Sacudi a cabeça em gesto de desamparo, minha atenção presa ao
seu olhar insistente, onde um olho parecia rir de mim, enquanto o outro se mantinha sério,
agourento e ameaçador.
—Porque o que você chama segredos de família constitui a fonte de energia de
Gumersindo. Sabia que seu pai é agora um famoso antropólogo inglês? Gumersindo o
odeia.
Com um gesto quase imperceptível de cabeça, como orgulhoso de seu ódio, Gumersindo
aprovou. Não podia acreditar em minha boa sorte. Estavam se referindo a E. E. Evans-
Pritchard, um dos antropólogos sociais mais importantes do século XX, e era precisamente
nesse semestre na universidade que eu estava preparando um trabalho sobre antropologia
social, e sobre os mais eminentes investigadores nesse campo.
Que sorte a minha! Precisei reprimir a tentação de gritar e saltar de alegria! Descobrir
semelhante segredo: um grande antropólogo que seduz e abandona a uma mulher índia.
Pouco importava que Evans-Pritchard não tenha trabalhado no México (era mais conhecido
por suas investigações na África), pois estava certa de descobrir que durante alguma de
suas visitas aos Estados Unidos havia estado no México. Tinha a prova diante de meus
olhos.
Com um sorriso suave nos lábios contemplei a Gumersindo, e me fiz uma secreta promessa
de não revelar nada sem sua permissão. Bom, talvez eu dissesse algo a algum dos
professores: depois de tudo, uma pessoa não topava todos os dias com este tipo de
informação. As possibilidades giravam em minha mente. Talvez uma conversa íntima com
alguns estudantes selecionados na casa de um de meus professores. Até selecionei o
professor, alguém que não me caía muito bem, e que tinha uma maneira um tanto infantil
de querer impressionar a seus alunos. Nos encontrávamos de tanto em tanto em sua casa,
onde cada vez descobria sobre sua escrivaninha, como deixada ao acaso, uma nota dirigida
a ele pelo famoso antropólogo Claude Lévi-Strauss.
—Não nos disse seu nome — recordou Joe, puxando-me suavemente pela manga.
—Carmen Gebauer — respondi sem titubear, dando o nome de uma amiga de minha
infância, e para abrandar minha culpa e incômodo por ter mentido, perguntei a Joe se era da
Argentina, e ao observar sua expressão confusa me apressei a acrescentar que seu sotaque
era definitivamente argentino, ainda que não parecesse um argentino, completei.
—Sou mexicano — disse —, e julgando por seu sotaque, você foi criada em Cuba ou na
Venezuela.
Não quis seguir essa linha de conversação, de modo que mudei de assunto com rapidez.
—Sabe como voltar ao caminho de pedestres? — perguntei, subitamente consciente de que
meus amigos podiam estar preocupados por mim.
—Eu não — confessou Joe com candura infantil —, mas meu amigo Gumersindo Evans-
Pritchard sim.
Gumersindo nos guiou através do chaparral, por uma estreita trilha do outro lado da
montanha, e não demoramos muito em ouvir as vozes de meus amigos e ao latido de seu
cachorro. Experimentei um intenso alívio, mas ao mesmo tempo me desiludiu e desagradou
o fato de que nenhum dos dois mostrava-se interessado em se comunicar de novo comigo.
—Bom, é certo que voltaremos a nos ver — se despediu Joe desinteressadamente, e
Gumersindo Evans-Pritchard me surpreendeu beijando galantemente minha mão, e o fez de
maneira tão natural e graciosa que não me ocorreu rir.
—Está em seus genes — explicou Joe. —Apesar de ser só meio inglês, seu refinamento é
impecável. É um perfeito galã!
Sem mais delongas ambos desapareceram na névoa, e duvidei muito se os veria de novo.
De repente me senti muito culpada por haver mentido sobre meu nome, e estive a ponto de
correr atrás deles, mas o cachorro de meus amigos me derrubou no chão ao tratar de saltar
para lamber-me a cara.
CAPÍTULO SEIS
Confusa, examinei ao orador convidado. Ajeitado em seu terno, recém barbeado e com seu
cabelo curto e enrolado, Joe Cortez parecia alguém de outra época entre os estudantes de
cabelo longo, barbudos, carregados de enfeites e vestidos com negligência, que lotavam um
dos grandes salões-auditório da Universidade da Califórnia, em Los Ângeles. Acomodei-
me no assento vazio da última fila, que me havia reservado a amiga com quem fiz o passeio
pelas montanhas de Santa Susana.
—Quem é? — perguntei.
Minha amiga sacudiu a cabeça, impaciente e incrédula, e rabiscou Carlos Castaneda num
pedaço de papel.
—E quem diabos é Carlos Castaneda?
—Te dei seu livro — respondeu, e depois acrescentou que era um antropólogo muito
conhecido, que havia levado à cabo extensas investigações no México.
Estava a ponto de confiar à minha amiga que o orador era a mesma pessoa que conheci nas
montanhas no dia em que me perdi, mas por uma razão muito boa não o fiz. Esse homem
era responsável pela quase ruptura de nossa amizade, a qual eu valorizava sobremaneira.
Minha amiga insistia obstinadamente em catalogar a história do filho de Evans-Pritchard
como uma conversa fiada. Eu insistia que nenhum dos dois homens ganharia nada em
mentir. Sabia que de maneira ingênua haviam dito a verdade, porém minha amiga,
indignada, me rotulou de tonta e de crédula. Já que nenhuma das duas estava disposta a
ceder, a discussão se fez agitada, e o marido de minha amiga, numa tentativa para acalmar-
nos, havia sugerido que talvez eu dizia a verdade, e minha amiga, irritada ante essa falta de
solidariedade, lhe havia ordenado aos gritos que se calasse.
Fizemos a viagem de regresso num silêncio hostil, a amizade sob tensão, e precisamos de
duas semanas para restabelecer a cordialidade. Entretanto eu fiz averiguações entre várias
pessoas a respeito do filho de Evans-Pritchard, pessoas mais versadas em antropólogos e
antropologia que minha amiga e eu, e folga dizer que me fizeram cair como uma idiota.
Obstinada, persisti em minha versão de que só eu conhecia a verdade. Me haviam criado
para ser prática: se alguém mentia, devia ser para obter uma vantagem de outro modo
inalcançável, e não chegava a entrever quê vantagem pretendiam obter esses homens com a
sua.
Prestei pouca atenção à conferência de Carlos Castaneda, demasiado absorta em tratar de
sondar sua razão para mentir-me sobre seu nome. Dada minha tendência a deduzir os
motivos alheios a partir de uma simples dedução ou observação, se mostrava muito
problemático neste caso dar com uma pista satisfatória, mas depois lembrei que também eu
havia dado um nome falso, e não podia explicar-me a razão.
Após uma longa deliberação mental decidi que havia mentido porque automaticamente não
havia confiado nele. Eu o achei demasiado seguro de si mesmo, demasiado presunçoso para
inspirar-me confiança. Minha mãe me havia ensinado a desconfiar dos homens latinos, em
especial se não se mostravam humildes. Costumava dizer que os machos latinos eram como
os galos de rinha, interessados unicamente em brigar, comer e fazer amor, nessa ordem, e
suponho que acreditei nela sem prestar atenção ao assunto.
Por fim olhei para Carlos Castaneda. Suas palavras não tinham para mim nem pé nem
cabeça, mas me fascinaram seus movimentos. Parecia falar com todo o corpo, e suas
palavras, mais que sair de sua boca, davam a impressão de surgir de suas mãos, as quais
movia com a graça e a habilidade de um mágico. Procurei-o ao terminar a conferência.
Rodeado por estudantes, se mostrava tão solícito e amável com as mulheres que
automaticamente o depreciei.
—Me mentiu acerca de seu nome, Joe Cortez — disse-lhe em castelhano, apontando-lhe
um dedo acusador.
Segurando o estômago com as mãos, como se houvesse recebido um golpe, me olhou com
a mesma expressão vacilante e incrédula que mostrou quando pela primeira vez nos vimos
na montanha.
—Também é mentira que seu amigo Gumersindo é filho de Evans-Pritchard, não é? —
emendei antes que conseguisse repor-se de sua surpresa.
Com um gesto de súplica me pediu para não continuar, mas não parecia em absoluto
envergonhado. Havia em seus olhos tal olhar de surpresa que minha ira justificada se
desvaneceu. Com suavidade me pegou por uma mão, como se temendo que o abandonasse.
Quando terminou com os estudantes me conduziu em silêncio até um banco afastado,
sombreado por um gigantesco pinheiro.
—Tudo isto é tão surpreendente que me deixou sem fala — disse em inglês ao sentarmos,
olhando-me como se ainda não pudesse crer que me tinha sentada ao seu lado. —Não
pensei que lhe encontraria de novo — disse em tom meditativo. —Depois que você se foi,
meu amigo, cujo nome em tudo isto é Nestor, e eu falamos muito de você, e chegamos à
conclusão de que era uma semi-aparição. — Mudou de repente ao espanhol e confessou
que inclusive haviam regressado ao lugar onde me deixaram na esperança de encontrar-me.
—Por que queria encontrar-me? — perguntei em inglês (confiada em que responderia nesse
idioma) que o havia feito porque gostava de mim.
Em castelhano não há modo de dizer que uma pessoa simplesmente “gosta” de outra, a
resposta precisa ser mais enfeitada e ao mesmo tempo mais precisa. Em castelhano uma
pessoa pode arriscar um manso me caes bien, ou despertar paixão total com me gustas.
Minha inocente pergunta o mergulhou num longo silêncio. Parecia estar debatendo consigo
entre falar ou não. Por fim disse que o encontrar-me na névoa naquela tarde o havia
transtornado, e seu rosto revelava isso ao dizê-lo, assim como sua voz, quando acrescentou
que me encontrar na sala de conferências havia representado a culminação.
—Por quê? — perguntei, aguçada em minha vaidade, mas de imediato lamentei de ter
perguntado, pois estava convencida de que confessaria estar perdidamente apaixonado de
mim, e isso me perturbaria por não saber o que responder.
—É uma longa história — respondeu, ainda pensativo. Fez um trejeito com a boca. Parecia
estar falando sozinho, ensaiando a próxima coisa a dizer.
Eu reconhecia os sinais do sujeito a ponto de proferir:
—Não li nada seu — disse, visando desviar do tema. —O que você faz?
—Escrevi um par de livros sobre a feitiçaria.
—Que tipo de feitiçaria? Vudú, espiritualismo ou o que?
—Sabe algo sobre feitiçaria? — perguntou, com uma nota de expectativa na voz.
—É claro… cresci com ela. Passei bastante tempo na região costeira da Venezuela, área
famosa por seus feiticeiros. Eu passava a maior parte de meus verões com uma família de
bruxos.
—Bruxos?
—Sim — respondi, contente com sua reação. —Eu tinha uma babá que era bruxa, uma
negra de Puerto Cabello que me cuidou até a adolescência. Meus dois pais trabalhavam, e
quando eu era menina me deixavam aos seus cuidados. Ela me manejava melhor que a
qualquer um dos dois, me deixava fazer o que queria. Meus pais, naturalmente, deixavam
que ela me levasse por onde desejasse, e durante as férias escolares ela me levava para
visitar sua família, não sua família biológica e sim sua família de bruxos. Não me
permitiam participar de seus rituais nem sessões de transe, contudo ainda assim consegui
ver bastante.
Joe me olhou com curiosidade, como se não me acreditasse. Depois perguntou sorridente:
—O que é que fazia dela uma bruxa?
—Todo tipo de coisas. Matava galinhas e as oferecia aos deuses em troca de favores. Ela e
seus companheiros bruxos, homens e mulheres, dançavam até cair em transe, e ela recitava
encantações secretas que tinham o poder de curar a seus amigos e de fazer danos a seus
inimigos. Sua especialidade eram as poções de amor. As preparava com todo tipo de
plantas medicinais e resíduos humanos, como sangue menstrual, restos de unhas e cabelo,
em especial pelos púbicos. Confeccionava amuletos de boa sorte para o jogo e para as
coisas de amor.
—E seus pais permitiam isso?
—Em casa ninguém sabia disso, exceto é claro minha babá, seus clientes e eu. Fazia visitas
a domicílio como qualquer médico, mas em casa se limitava a acender velas no toalete dos
fundos quando eu tinha pesadelos, e dado que parecia surtir efeito e não havia perigo de
incêndio, por causa dos azulejos, minha mãe lhe concedia ampla liberdade para fazê-lo.
Subitamente Joe ficou de pé e começou a rir.
—O que tem de engraçado? — pensei que talvez suspeitasse que eu o havia inventado. —
Te asseguro que é verdade.
—Você afirma algo e, enquanto lhe diz respeito, isso se converte em verdade — e a
expressão de seu rosto era serena.
—Mas é verdade — insisti, certa de que se referia à minha babá.
—Eu vejo através das pessoas — assegurou com calma. —Por exemplo, vejo que está
convencida de que lhe vou declarar meu amor. Se convenceu disso e isso agora é a verdade.
É disso que falo.
Desejei dizer algo, mas a indignação me deixou sem ar. Gostaria de ter fugido, mas
acabaria sendo muito humilhante. Franziu o cenho, e tive a desagradável impressão de que
conhecia meus sentimentos. Enrubesci, e tremi com reprimida ira. Contudo, em pouco
tempo, me senti extraordinariamente calma, ainda que não devido a um esforço consciente
de minha parte. No entanto tive a clara sensação de que algo em mim havia mudado, e a
vaga reminiscência de ter atravessado alguma vez uma experiência semelhante, ainda que
minha memória falhasse tão logo entrava em ação.
—O que está me fazendo? — murmurei.
—Se dá o caso de que posso ver através das pessoas. Não sempre, e por certo não com
todas, somente com aquelas com as quais estou intimamente ligado. Não entendo por que
acontece contigo.
Sua sinceridade era evidente. Parecia muito mais confundido que eu. Sentou-se de novo e
se aproximou de mim. Permanecemos um período em total silêncio, e foi uma experiência
prazerosa o poder abandonar todo esforço por conversar, e não sentir que eu era estúpida.
Olhei o céu, limpo de nuvens e transparente como vidro azul. Uma suave brisa soprava
entre os pinheiros, e suas agulhas caiam sobre nós como uma chuva mansa. Depois a brisa
se tornou vento, e as folhas caídas de um sicômoro próximo se enredemoinharam ao redor
com um som suave e rítmico, e em uma de suas rajadas o vento as elevou até as alturas.
—Essa foi uma bonita demonstração do espírito — murmurou — e foi para você: as folhas
girando ao vento bem diante de nós. O feiticeiro com quem trabalho diria que esse é um
presságio. Algo lhe assinalou, para que eu te visse no exato momento em que pensava que
seria melhor que me fosse embora. Agora não posso fazê-lo.
Pensando em nada mais que em suas últimas palavras me senti inexplicavelmente feliz.
Não uma felicidade triunfalista, do tipo que sentimos quando nos sorri um êxito, ou melhor,
era uma sensação de profundo bem-estar que não perdurou. Meu ser impulsivo tomou conta
de súbito e exigiu que me desfizesse desses pensamentos e sentimentos. Eu não tinha por
que estar ali. Havia faltado a uma aula, ao almoço com meus verdadeiros amigos e à minha
diária cota de natação no ginásio feminino.
—Talvez seja melhor que eu me vá — disse. A intenção foi de aparentar alívio, mas
quando a anunciei soou como se sentisse pena de mim mesma, o qual, de certo modo, era
verdade. Em lugar de ir-me lhe perguntei da maneira mais casual possível se sempre havia
podido ver através das pessoas.
—Não, não sempre — e seu tom carinhoso denunciou com clareza que percebia minha
inquietude interna. —O velho feiticeiro com quem trabalho o ensinou-me recentemente.
—Acha que ele poderia ensiná-lo a mim?
—Sim, acho que sim. Se sentir por ti o mesmo que eu sinto, ele fará — e pareceu
assombrado por suas próprias palavras.
—Conhecia algo de feitiçaria antes? — perguntei com timidez, emergindo com lentidão de
minha inquietação.
—Na América Latina todos acreditam saber, e eu não era exceção. Nesse sentido você me
faz lembrar a mim mesmo. Como você, estava convencido de que sabia o que era a
feitiçaria, mas depois, quando a conheci de verdade, não era como eu a havia concebido.
—Como era?
—Simples, tão simples que assusta — confessou. —Acreditamos que a feitiçaria assusta
por sua malignidade, mas a que eu descobri não tem nada de maligno, e por isso é o mais
pavoroso que existe.
Eu o interrompi para assinalar que sem dúvida estava se referindo à magia branca, em
contraposição à magia negra.
—Não diga bobagens, caralho!
O choque de escutá-lo falar-me nesse tom me obrigou a respirar pela boca. De imediato
renasceu minha inquietação. Ele desviou o olhar para evitar o meu. Havia se permitido
gritar comigo, e me enfureci ao ponto de achar que me descomporia. Me arderam as
orelhas, e vi pontos negros ante meus olhos. Eu o teria pegado se não tivesse se posto fora
de meu alcance num rápido movimento.
—É muito indisciplinada — opinou ao sentar-se de novo — e bastante violenta. Sua babá
deve de ter permitido muito a você, e te tratado como se você fosse de vidro — mas ao
notar meu rosto aborrecido, explicou que não me havia gritado por sentir impaciência ou
raiva. —Pessoalmente não me importa se presta atenção ou não, mas importa a aquele em
cujo nome gritei com você. Alguém que nos está observando.
No começo senti perplexidade, depois inquietude. Olhei em torno de nós, pensando que
talvez seu mestre feiticeiro fosse quem nos observava. Me ignorou e prosseguiu:
—Meu pai nunca me disse que temos uma testemunha permanente, e não o fez porque não
o sabia, como você tampouco o sabe.
—De que bobagens está falando? — e minha voz irritada refletia meus sentimentos do
momento. Me havia gritado, me havia insultado, e me incomodava que estivesse
conversando como se nada tivesse acontecido. Se ele achava que sua conduta ia passar por
alto uma surpresa lhe esperava.
—Não se sairá com essa… — disse-lhe, sorrindo com malícia. —Não comigo, menininho.
—Estou me referindo a uma força, a uma entidade, uma presença que não é força, entidade
nem presença — explicou com um sorriso angelical. Parecia totalmente indiferente a meu
estado de ânimo belicoso. —Te parecerá conversa mole mas não o é. Refiro-me a algo que
unicamente os feiticeiros conhecem. Chamam-no o espírito, nosso observador pessoal,
nossa testemunha permanente.
Não sei exatamente como, ou qual palavra exata fez o prodígio, mas de repente ele teve
toda a minha atenção. Prosseguiu falando dessa força que, segundo ele, não era Deus, nem
tinha nada que ver com a religião ou a moral, e sim uma força impessoal, um poder à nossa
disposição para ser utilizado somente se conseguíssemos nos reduzir a nada. Inclusive me
pegou pela mão, o qual não me desagradou. Melhor, me agradou seu toque suave e forte.
Senti-me morbidamente fascinada pelo estranho poder que exercia sobre mim, e me
horrorizava comprovar que ansiava sentar-me indefinidamente com ele nesse banco, com
minha mão unida à sua.
Continuou falando, eu pendente de cada uma de suas palavras, mas ao mesmo tempo
perversamente intrigada a respeito de quando me ia tocar as pernas. Sabia que somente a
mão não lhe havia de satisfazer, e que eu nada podia fazer para impedi-lo. Ou era eu que
não desejava fazer nada para impedi-lo? Explicou que ele havia sido tão negligente e
indisciplinado mais do que tudo, porém que nunca conheceu a diferença por estar
aprisionado pela modalidade do tempo.
—E o que é a modalidade do tempo? — perguntei com tom áspero e inamistoso, destinado
a não fazer-lhe saber que desfrutava por estar em sua companhia.
—Em nossos dias, o que os feiticeiros chamam a modalidade do tempo é a preocupação da
classe média. Eu sou homem da classe média, assim como você é mulher da classe média...
—Enquadramentos desse tipo não têm validez — interrompi com rudeza, ao mesmo tempo
em que arrancava minha mão da sua. —Não são mais que generalidades — lancei-lhe um
olhar, furiosa e desconfiada.
Havia algo chamativamente familiar em suas palavras, mas não pude precisar de onde as
havia escutado, ou qual importância eu estava lhes concedendo, contudo estava certa de sua
vital importância se pudesse apenas recordar o sabido por mim acerca delas.
—Não me venha com essas asneiras científico-sociais. — disse jovialmente. —Conheço-as
tanto como você.
Cedi a um momento de total frustração, peguei sua mão e a mordi.
—Na verdade sinto muito — murmurei antes que ele conseguisse se repor de sua surpresa.
—Não sei por que fiz isso. Não mordia a ninguém desde que era menina — e escorri até o
extremo do banco à espera de sua retaliação, que não chegou.
—É completamente primitiva — foi tudo o que disse, esfregando a mão com um ar como
confundido.
Emiti um profundo suspiro de alívio. Havia se quebrado o poder que exercia sobre mim, e
lembrei ter uma velha dívida a cobrar. Ele me havia transformado na “faz-me-rir” de
minhas colegas de antropologia.
—Regressemos ao problema original — disse, procurando abafar minha raiva. —Por que
me contou todas essas besteiras acerca do filho de Evans-Pritchard? Você deve ter se dado
conta de que eu cairia como uma tonta. — observei-o com cuidado, certa de que, ao
confrontá-lo desta maneira, e depois da mordida, terminaria por quebrar seu autocontrole,
ou pelo menos incomodá-lo. Esperei que gritasse, que perdesse sua confiança e insolência,
mas permaneceu imperturbável. Suspirou fundo e adotou uma expressão séria.
—Sei que parece um simples caso de alguém que mente por diversão, porém a coisa é mais
complexa — e riu disfarçado antes de recordar-me que naquele momento ele desconhecia
minha condição de estudante de antropologia, e de que eu terminaria fazendo um papelão.
Fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras adequadas, depois encenou um
impotente encolhimento de ombros e acrescentou: —Verdadeiramente não posso explicar-
lhe agora por que apresentei ao meu amigo como filho de Evans-Pritchard, a menos que te
conte muito mais acerca de mim e minhas metas, e isso não é algo prático.
—Por quê?
—Porque quanto mais saiba de mim, mais te complicará — e seus olhos me demonstravam
sua sinceridade —, e não me refiro a uma confusão mental, e sim a algo pessoal comigo.
Esta aberta demonstração de descaramento me devolveu a confiança. Desenterrei o meu já
testado sorriso sarcástico, e falei num tom cortante:
—É repugnante, e conheço seu tipo. É o exemplo típico do macho latino confesso, contra o
qual tenho lutado toda minha vida — e ao ver sua expressão surpreendida, insisti, dando
livre vazão a toda minha soberba: —Como se atreve a pensar que posso chegar a envolver-
me contigo?
Seu rosto não enrubesceu como eu esperava. Em lugar disso riu estrepitosamente,
golpeando-me o joelho como se o dito por mim houvesse sido o mais cômico que escutou
em sua vida e, para completar, começou a fazer-me cosquinhas do mesmo modo em que se
faz a uma criança. Temendo rir-me (as cosquinhas me afetavam muito), gritei minha
indignação.
—Como se atreve a me tocar! — e tremendo me pus de pé para retirar-me, mas em seguida
assombrei a mim mesma recuperando meu assento. Vendo que pretendia continuar com as
cosquinhas, cerrei os punhos e os esgrimi ante seus olhos. —Vou quebrar seu nariz se me
tocar de novo — adverti.
Por completo indiferente à minha ameaça, reclinou a cabeça contra o encosto do banco e
fechou os olhos. Espasmos de riso o faziam sacudir.
—Você é a típica menina alemã que cresceu rodeada por negrinhos.
—Como sabe que sou alemã se nunca lhe disse isso? — perguntei com voz insegura, à qual
tentei dar uma inflexão levemente ameaçante.
—Sabia que era alemã desde o instante em que te conheci. Você o confirmou no momento
em que mentiu que era sueca. Unicamente alemães nascidos no Novo Mundo depois da
Segunda Guerra Mundial mentem assim. Isso, é claro, se vivem nos Estados Unidos.
Apesar de que não se admitiria isso, ele tinha razão. Com frequência havia sentido a
hostilidade daqueles que se interavam de que meus pais eram alemães: para eles isso nos
fazia automaticamente nazistas, e de nada adiantava se lhes dizia que meus pais eram
idealistas. Logicamente preciso admitir que, como bons alemães, se achavam superiores,
mas eram boas pessoas, sendo que toda sua vida foi apolítica.
—Eu não fiz nada além que concordar contigo — disse acidamente. —Você viu cabelo
loiro, olhos azuis, pômulos altos, e só pôde pensar em uma sueca. Não tem muita
imaginação, sabia? — aproveitei minha vantagem para dizer-lhe que ele não tinha nenhum
direito de mentir. —A menos que seja um mentiroso de merda por natureza — e à medida
que falava minha voz se fazia estridente contra minha vontade. Terminei dando-lhe uns
golpezinhos no peito com meu dedo indicador: —Joe Cortez então, hein?
—E seu nome é Cristina Gerbauer? — retrucou, imitando minha voz alta e odiosa.
—Carmen Gebauer! — gritei, ofendida porque não o havia recordado completamente.
Depois, arrependida de meu estouro, tentei uma caótica autodefesa, mas ao fim de uns
minutos me detive, consciente de não estar falando com coerência. Admiti ser alemã, e que
Carmen Gebauer era o nome de uma amiga de infância.
—Eu gosto disso — comentou com um sorriso apenas esboçado, mas não pude estabelecer
se se referia às minhas mentiras ou à minha confissão. Em seus olhos brilhava uma luz
entre bondosa e divertida, e com doçura passou a me contar a história de sua amiga de
infância, Fabiola Kunze.
Porque me confundiu sua reação desviei a vista até o sicômoro próximo e aos mais
distantes pinheiros. Depois, ansiosa por ocultar meu interesse em seu relato, comecei a
brincar com minhas unhas, com a cutícula e o esmalte, que eu descascava de forma
metódica.
A história de Fabiola Kunze se assemelhava tanto à minha que em poucos minutos esqueci
minha pretensa indiferença para escutá-la com atenção. Supus que era pura invenção,
apesar do qual precisei lhe dar crédito por certos detalhes que unicamente a filha de uma
família alemã do Novo Mundo podia conhecer.
Segundo a história Fabiola Kunze vivia num mortal temor dos morenos garotos latinos,
mas igualmente temia aos alemães; aos latinos por sua irresponsabilidade, e aos alemães
por ser tão previsíveis. Soltei uma risada quando descreveu cenas ocorridas aos domingos
de tarde na casa de Fabiola, quando duas dezenas de alemães se reuniam ao redor de uma
mesa esquisitamente posta, com a melhor louça, prataria e cristaleria, e ela precisava
escutar duas dezenas de monólogos que pretendiam ser conversas.
À medida que Joe proporcionava detalhes dessas tardes de domingo comecei a sentir-me
mais e mais incomodada: ali estava o pai de Fabiola, que proibia os debates políticos em
sua casa mas compulsivamente intentava dar pé a eles, ao buscar por meios tortuosos contar
piadas obscenas a respeito dos sacerdotes católicos, e o medo mortal da mãe: que sua louça
fina estivesse nas mãos desses caipiras imorais.
As palavras de Joe Cortez eram guias às quais eu respondia inconscientemente; comecei a
ver cenas de minhas tardes dominicais projetadas sobre a parede. Me converti num feixe de
nervos, senti desejo de chutar e de me descontrolar como só eu sabia fazê-lo. Desejava
odiar a esse homem, mas não podia. Necessitava ser justiçada, receber desculpas. Queria
dominá-lo, que se enamorasse por mim para poder rejeitá-lo. Envergonhada de meus
sentimentos imaturos procurei, mediante um grande esforço, reagir, e pretextando
aborrecimento me aproximei dele para perguntar:
—Por que mentiu a respeito de seu nome?
—Não menti — respondeu. —Esse é meu nome, tenho vários. Os feiticeiros têm nomes
diferentes para ocasiões diferentes.
—Que conveniente! — comentei com sarcasmo.
—Muito conveniente — repetiu, e me piscou o olho, atitude que me enfureceu.
Logo depois fez algo insólito e inesperado. Me abraçou, sem que esse abraço encerrasse
conotações sexuais. Foi um espontâneo, doce e simples gesto de um menino que deseja
consolar a um amigo, e me tranquilizou ao ponto de me fazer soluçar de maneira
incontrolável.
—Sou uma merda — confessei. —Quero agredir você e olhe-me: estou em seus braços — e
estava a ponto de acrescentar que isso me agradava, quando me invadiu uma corrente de
energia, e como se saísse de um sonho, o afastei. —Deixe-me! — gritei, e me afastei a
grandes trancos.
Escutei que o riso o afogava, o qual não me preocupou em absoluto, por já ter se dissipado
meu ataque. Fiquei paralisada, tremendo e incapacitada para afastar-me. Então, como se
respondesse a uma banda elástica aderida a meu corpo, regressei ao banco.
—Não se sinta mal — disse com bondade. Parecia saber muito bem o que me arrastara de
novo ao banco. Espalmou minhas costas tal como se faz com um bebê depois de ter
comido. —Não é o que você e eu fazemos — continuou. —É algo fora de nós que nos está
influenciando. Está influenciando a mim desde há muito tempo e me acostumei a ele, mas
não entendo por que atua sobre você. Não me pergunte de quê se trata — disse,
antecipando-se à minha pergunta. —Ainda não o posso explicá-lo.
De todo modo não pretendia perguntar-lhe nada. Minha mente havia deixado de funcionar,
me sentia como dormida, sonhando que falava. Momentos depois meu adormecimento
cedeu, e apesar de não haver regressado ao que era meu normal, me senti muito mais
animada.
—O que me está acontecendo? — perguntei.
—Está sendo enfocada por algo que não emana de ti. Algo te está empurrando, usando-me
a mim como instrumento. Algo está sobrepondo outro critério sobre suas convicções de
classe média.
—Não comece com essa bobagem de classe média — protestei debilmente. Senti como se o
estivesse suplicando isso.
Apresentei um sorriso desamparado, pensando que havia perdido minha usual
impulsividade.
—Lembre-se que estas não são minhas próprias idéias ou opiniões — disse. —Como você,
sou produto de uma ideologia de classe média. Imagine meu horror quando precisei
enfrentar-me com uma ideologia diferente e mais avassaladora. Me fez em pedaços.
—Que ideologia é essa? — perguntei humildemente, minha voz tão fraca que apenas
escutava-se.
—Um homem a trouxe-me, ou melhor, o espírito falou e me influenciou através dele. Esse
homem é um feiticeiro, sobre quem tenho escrito. Se chama Juan Matus, e é quem me fez
enfrentar minha mentalidade de classe média.
—Juan Matus certa vez me fez uma pergunta importante: “O que você acha que é uma
universidade?”. Eu, evidentemente, lhe respondi como um cientista social: “um centro de
estudos superiores”. Ele me corrigiu, dizendo que uma universidade deveria chamar-se “um
Instituto de Classe Média”, pois é o lugar ao qual comparecemos para aperfeiçoar nossos
valores de classe média. Disse que comparecemos a esses institutos para nos convertermos
em profissionais. A ideologia de nossa classe social nos diz que devemos nos preparar para
ocupar posições gerenciais, que ali vamos para nos tornarmos engenheiros, advogados,
médicos, etecétera, e as mulheres para conseguir um marido adequado, provedor e pai de
seus filhos. Adequado é logicamente definido pelos valores da “classe média”.
Desejava contradizê-lo, gritar-lhe que conhecia gente à qual não os interessava uma carreira
ou encontrar marido; que conhecia gente interessada em idéias, no conhecimento em si.
Mas não conhecia a tais pessoas. Senti uma terrível pressão no peito, e tive um acesso de
tosse seca. Não foram a tosse nem o mal estar físico os que me fizeram retorcer no assento
e impediram que discutisse com ele. Era a certeza de que se referia a mim: eu ia à
Universidade para encontrar um homem adequado.
De novo me pus de pé, disposta a partir. Inclusive estendi minha mão para despedir-me,
quando senti um poderoso puxão em minhas costas, tão forte que precisei sentar-me para
não cair. Sabia que ele não me havia tocado. Estive observando-o todo o tempo. Memórias
de pessoas não de todo recordadas, de sonhos não esquecidos, inundaram minha mente e
formaram uma intrincada trama da qual não podia desembaraçar-me. Rostos
desconhecidos, orações semi-escutadas, imagens escuras e borradas de lugares e pessoas
me remeteram momentaneamente a uma espécie de limbo. Estive próxima de recordar algo
deste caleidoscópio de sons e visualizações, mas o conhecimento se desvaneceu,
dominando-me uma sensação de calma e alívio, uma tranquilidade tão profunda que
eliminou todo desejo de afirmar-me.
Estiquei as pernas ante mim como se não tivesse uma só preocupação no mundo (e nesse
momento não tinha) e comecei a falar. Não lembro de tê-lo feito com tanta franqueza
anteriormente, e não podia descobrir por que de repente baixei minhas defesas ante ele.
Contei-lhe da Venezuela, de meus pais, minha juventude, minha vida inquieta e sem
significado. Contei-lhe coisas que não admitiria a mim mesma.
—Venho estudando antropologia desde o ano passado, e na verdade não entendo por quê.
— começava a sentir-me levemente incômoda ante minhas próprias revelações. Me movi
inquieta no banco, mas não pude deixar de acrescentar: —As duas matérias que mais me
interessam são a literatura castelhana e a alemã, e estar em antropologia desafia tudo o que
sei acerca de mim mesma.
—Isso me intriga sobremaneira — opinou. —Não posso pensar nisso agora, mas me parece
que fui posto aqui para que você me encontrasse, ou vice-versa.
—Que significa tudo isto? — perguntei, e fiquei corada ao me dar conta de que estava
centrando e interpretando tudo em torno de minha feminilidade.
Ele parecia estar completamente a par de meu estado mental. Pegou minha mão e a apertou
contra o coração. “¡Me gustas, Nibelunga!”, exclamou dramaticamente, e depois traduziu a
frase ao inglês. “Você me atrai de maneira apaixonada, Nibelunga”.
Fez a paródia de me devorar com os olhos, ao estilo amante latino, e depois soltou uma
gargalhada.
— Está convencida de que cedo ou tarde preciso dizer isto, de modo que bem podia ser
agora.
Em lugar de irritar-me por ser alvo de seu humor, ri; seu humor me agradava muito… os
únicos Nibelungos que conhecia eram provenientes do livro de meu pai sobre mitologia
alemã; Siegfrid e suas Nibelungen. Até onde podia me lembrar se tratava de seres
subterrâneos, mágicos e anões.
—Está me chamando de anã? — perguntei em tom de gracejo.
—Que Deus não o permita! — protestou —, te estou comparando com um ser mitológico
alemão.
Mais tarde, como se fosse a única coisa que podíamos fazer, fomos de carro até as
montanhas de Santa Susana, ao lugar onde nos havíamos conhecido. Nenhum dos dois
pronunciou palavra alguma quando estivemos sentados no penhasco sobre o cemitério
indígena. Movidos por um puro impulso de companheirismo ficamos em silêncio,
indiferentes à tarde que se convertia em noite.
CAPÍTULO SETE
Joe Cortez estacionou seu carro aos pés de uma baixada. Abriu minha porta, e com um
gesto galante me ajudou a descer. Senti alívio por ter ao fim detido nossa marcha, ainda que
não saberia dizer por que. Estávamos no meio do nada, depois de haver viajado desde as
primeiras horas da manhã. O calor, o deserto chato, o sol inclemente e a poeira do caminho
se tornaram uma vaga memória quando respirei o ar frio e pesado da noite.
Agitado por esse vento o ar se enredemoinhava em torno de nós como algo palpável, vivo.
Não havia lua, e as estrelas, incríveis em número e em brilho, pareciam intensificar nosso
isolamento. Sob o inquieto resplendor os montes e o deserto se estendiam ao redor, quase
invisíveis, cheios de sombras e sons murmurados. Procurei orientar-me pelas estrelas, mas
não soube identificar as constelações.
—Estamos de frente ao leste — sussurrou Joe Cortez, como se eu houvesse falado em voz
alta, e com paciência tentou me instruir a respeito das constelações maiores desse céu de
verão. Eu só recordava da estrela Vega, pois seu nome me trazia à memória o escritor
espanhol do século XVII, Lope de Vega.
Sentados ali, em silêncio, sobre sua perua, passei em revista aos acontecimentos de nossa
viagem. Não se haviam ainda completado as vinte e quatro horas desde que, enquanto
comíamos num restaurante japonês de Los Ângeles, ele me pedira, sem preâmbulo algum,
que o acompanhasse à Sonora por uns dias.
—Me encantaria — respondi impulsivamente. —Minhas aulas terminaram e estou livre.
Quando planeja partir?
—Esta noite! — respondeu. —Na verdade, assim que terminarmos de comer.
Tive que rir. Estava certa de que esse convite não passava de um gracejo.
—Não posso partir com tão pouco pré-aviso. O que você acha de amanhã?
—Esta noite — insistiu, e estendeu sua mão para segurar a minha num apertão formal.
Somente ao ver o brilho travesso e alegre de seus olhos me dei conta de que não estava se
despedindo, e sim que selava um acordo.
—Quando se toma uma decisão se deve agir de imediato — anunciou, e as palavras ficaram
flutuando no ar diante de meus olhos. Ambos as olhamos como se na verdade pudéssemos
adivinhar sua forma e seu tamanho.
Concordei, apenas consciente de haver tomado uma decisão. A oportunidade estava ali,
independente de minha vontade, pronta e inevitável. Nada precisei fazer para que se
materializasse. De repente, com uma intensidade demolidora, lembrei minha viagem do ano
anterior à Sonora, e meu corpo se endureceu, comovido e temeroso, à medida que imagens
descontínuas em sequência ganhavam vida em meu interior. Os acontecimentos daquela
viagem rara haviam se esfumaçado de minha consciência a tal ponto que, até momentos
antes, era como se nunca tivessem ocorrido, mas agora adquiriam uma claridade idêntica à
que tiveram no momento em que aconteceram.
Tremia, não de frio, mas sim por um medo indefinível, e encarei Joe Cortez para falar-lhe
dessa viagem. Olhava-me com rara intensidade, e seus olhos, como túneis escuros e
profundos, absorveram meu espanto e fizeram retroceder as imagens temidas, as quais, uma
vez perdido seu impulso, deixaram minha mente em branco. Nesse momento acreditei, fiel
à minha maneira de pensar, que nada poderia contar-lhe, pois uma verdadeira aventura
sempre dita sua própria direção, e os eventos mais emocionantes de minha vida haviam
sido sempre aqueles em cujo curso não me havia interposto.
—Como quer que te chame, Joe Cortez ou Carlos Castaneda? — perguntei-lhe com
desagradável jovialidade feminina. Seu rosto avermelhado se desdobrou num sorriso.
—Sou seu companheiro de infância — respondeu. —Dê-me um nome. Eu te chamarei
Nibelunga.
Ao não acertar com um nome adequado, perguntei-lhe:
—Existe uma ordem em seus nomes?
—Bom, Joe Cortez é cozinheiro, jardineiro e “faz-tudo”, um homem solícito e pensativo.
Carlos Castaneda é homem do mundo acadêmico, mas não creio que o tenha conhecido
ainda. — olhou-me fixo e sorriu, e esse sorriso levava implícito algo infantil e intensamente
sincero.
Decidi chamá-lo Joe Cortéz.
Passamos a noite (em quartos separados) num motel de Yuma, Arizona. Depois de sair de
Los Ângeles, e através de uma longa viagem, me preocupei muito no que dizia respeito a
onde e como dormiríamos. Por momentos temi que tentaria algo antes que chegássemos ao
motel. Afinal, era um homem jovem e forte, agressivo e muito seguro de si mesmo. Não me
haveria preocupado tanto se ele fosse europeu ou norte-americano, mas por ser latino eu
sabia quais eram suas intenções. O fato de aceitar seu convite de passar juntos uns dias
significava que aceitava compartilhar sua cama.
Sua preocupação e bom comportamento durante a viagem se encaixavam perfeitamente
com o que eu pensava e esperava dele. Preparava o terreno. Era tarde quando chegamos ao
motel. Ele se dirigiu ao escritório do gerente para reservar quartos. Eu permaneci no carro,
imaginando obscuras cenas. Tão absorta estive com minhas fantasias que não percebi seu
retorno, e ao escutar o tilintar das chaves, que ele fazia dançar ante meus olhos, me
sobressaltei, deixando cair a sacola de papel que continha meus artigos de toalete,
comprados no caminho, que eu inconscientemente apertava contra o peito.
—Te consegui um quarto na parte traseira do motel — anunciou. —Está longe da estrada
— indicou uma porta situada próxima, antes de acrescentar: —Eu dormirei neste, perto da
rua. Estou acostumado aos ruídos. Eram os únicos quartos que sobraram.
Desiludida, tomei a chave que me estendia. Todas minhas visões se evaporaram. Já não
teria a oportunidade de rechaçá-lo, o qual na verdade não desejava, mas minha alma
clamava por uma vitória, por pequena que fosse.
—Não vejo por que devemos alugar dois quartos — opinei com fingida indiferença, e
minhas mãos tremiam ao recolher os artigos caídos, que recoloquei na sacola. O que
acabara de dizer era incrível, mas não pude evitá-lo. —O tráfego não te permitirá
descansar, e você precisa tanto como eu. — não podia conceber que alguém pudesse dormir
dado o ruído que provinha da estrada. Sem olhá-lo, desci do carro e me escutei dizer: —
Poderíamos dormir no mesmo quarto, em duas camas, é claro.
Fiquei aturdida e espantada. Jamais havia feito algo semelhante, nem tido reação tão
esquizofrênica. Dizia coisas sem me propor dizê-las, ou é que as dizia deliberadamente,
sem saber o que sentia? Seu riso pôs fim à minha confusão, e era tão forte que se
acenderam as luzes num quarto, e alguém nos exigiu silêncio aos gritos.
—Dividir seu quarto e permitir que se aproveite de mim no meio da noite, depois de ter me
dado um banho de água fria? Nem pensar! — disse entre ondas de alegria.
Enrubesci ao ponto que minhas orelhas ardiam. Quis morrer de vergonha. Esta não era uma
de minhas cenas imaginadas. Voltei ao carro e fechei a porta com violência.
—Leve-me ao ônibus da Greyhound — apontei, dominando minha indignação. —Por que
diabos vim contigo? Deveria fazer com que examinassem minha cabeça!
Sem deixar de rir abriu a porta e, com suavidade, me fez sair.
—Durmamos não só no mesmo quarto, e sim na mesma cama. Deixe-me fazer amor com
você — suplicou, e tive a impressão de que desejava isso de verdade.
Horrorizada, me desfiz dele e gritei:
—Jamais em sua puta vida!
—Bom — disse —, diante de tão feroz recusa não me animo a insistir — pegou minha mão
e a beijou. —Me rejeitou e me pôs em meu lugar. Se acabaram os problemas. Está vingada.
Me afastei dele, a ponto de chorar. Meu desgosto não se devia à sua falta de desejo de
passar a noite comigo – se ele tivesse querido, com toda franqueza, não teria sabido como
reagir – e sim ao fato de que me conhecia melhor do que eu conhecia a mim mesma. Eu
havia recusado dar crédito ao que acreditava ser sua maneira de se auto-lisonjear. Para ele
eu era transparente, e de repente isso me assustou. Joe se aproximou para abraçar-me, um
abraço doce e simples. Tal qual aconteceu anteriormente, minha inquietação se evaporou
como se nunca houvesse existido. Devolvi seu abraço, e disse outra coisa incrível:
—Esta é a aventura mais excitante de minha vida. — de imediato quis retratar-me; as
palavras pronunciadas não eram minhas. Nem sequer sabia qual havia sido minha intenção
ao proferi-las. Esta não era a aventura mais excitante de minha vida. Havia feito muitas
viagens emocionantes: havia percorrido o mundo.
Minha irritação chegou ao cume quando me deu um beijo de despedida, um beijo suave e
doce como o que se dá em uma criança, e contra minha vontade me agradou. Havia perdido
a vontade. Com um empurrão Joe me enviou em direção ao meu quarto. Maldizendo-me,
sentei-me na cama e chorei de frustração, raiva e pena de mim mesma. Desde os alvores de
minha vida sempre se haviam satisfeito meus caprichos. Estava acostumada a isso. Estar
confusa e não saber o que queria era uma experiência nova e nada agradável. Tive uma
noite de sono intranquilo. Dormi vestida, até que ele bateu em minha porta bem cedo de
manhã.
Viajamos todo o dia por caminhos afastados e tortuosos. Tal qual me havia informado, Joe
Cortez era na verdade atento, e durante toda a longa viagem provou ser o mais bondoso e
divertido dos companheiros. Me mimou com comidas, canções e contos. Era dono de uma
profunda porém clara voz de barítono, e conhecia todas minhas canções favoritas:
espalhafatosas canções de amor de todos os países sul-americanos, e seus hinos nacionais.
Velhas baladas e até canções infantis. Seus contos me fizeram rir até doer os músculos
abdominais. Como narrador me manteve fascinada com cada caso. Era um imitador nato.
Sua assombrosa imitação de todos os acentos sul-americanos, inclusive o singular
português do Brasil, superava a imitação para converter-se em magia. Estávamos
empoleirados no teto da perua quando Joe formulou a advertência:
—Melhor descermos. As noites no deserto se tornam frias.
—É um meio ambiente indômito — comentei. Desejava gozar de novo do refúgio da
cabine, e então nos afastamos dali. Observei-o enquanto recolhia algumas sacolas do
interior do veículo. Havia comprado toda sorte de presentes para aqueles que íamos visitar.
—Por que paramos no meio do nada? — perguntei.
—Nibelunga, você faz as perguntas mais bobas — disse. —Nós paramos aqui pois é o local
onde começa nossa viagem.
—Chegamos ao misterioso destino sobre o qual não pôde falar? — perguntei com
sarcasmo. A única coisa que havia entorpecido nossa agradável viagem havia sido sua
renúncia a informar-me com exatidão para onde nos dirigíamos.
Em questão de segundos me enfureci ao extremo de querer lhe dar um grande soco no
nariz, mas a noção de que minha repentina irritabilidade obedecia ao cansaço de um longo
dia produziu o necessário alívio.
—Estou me pondo desagradável, mas não por querê-lo — disse num tom jovial que soava
falso, pois a tensão de minha voz revelava a dificuldade para controlar-me. Preocupava-me
a rapidez com que me enfurecia com ele.
—Na verdade você não sabe conversar — acusou-me com um grande sorriso —, só sabe
pressionar.
—Oh! Vejo que Joe Cortez se foi. Vai começar a insultar-me de novo, Carlos Castaneda?
Minha observação lhe causou graça, apesar de que minha intenção era outra.
—Este lugar não está no meio do nada, a cidade de Arizpe está perto, e a fronteira dos
Estados Unidos ao norte, Chihuahua ao leste e Los Ângeles em algum ponto ao noroeste —
recitou.
Sacudiu a cabeça num gesto desdenhoso e tomou à dianteira. Em silêncio caminhamos
através do chaparral, mais intuído do que visto, por uma estreita e serpenteada trilha que se
alargava ao chegar a um amplo espaço aberto encerrado por baixas algarobeiras.
Conseguimos discernir os contornos de duas casas, recortadas contra a escuridão. No
interior da maior brilhavam luzes. Uma casa menor se alçava a curta distância.
Caminhamos em direção à casa grande. Pálidas traças revoavam por onde a luz se infiltrava
pelas janelas panorâmicas.
—Devo advertir-lhe que a gente que vai conhecer é um tanto estranha — sussurrou. —Não
diga nada. Deixe que eu falo.
—Direi o que se me der na telha — respondi. —Não me agrada que me digam como devo
comportar-me. Não sou uma criança. Ademais, meus hábitos sociais são impecáveis, e
posso lhe assegurar que não te farei passar vergonha.
—Deixe de idiotices, caralho! — respondeu, esforçando-se por controlar a voz.
—Não me trate como se eu fosse sua esposa, Carlos Castañeda — gritei a plenos pulmões,
pronunciando seu sobrenome como eu considerava que deveria se pronunciar: com ñ (nhe),
o qual sabia que ele não gostava.
Contudo, ele não se irritou. Minha tirada o fez rir, algo frequente nele quando eu esperava
que explodisse. “Nunca se irrita”, pensei com um suspiro. Sua equanimidade era
extraordinária. Nada parecia confundi-lo, nem fazer-lhe perder o controle. Inclusive,
quando gritava, os gritos soavam falsos.
Quando Joe estava por bater, a porta se abriu, e um homem frágil projetou sua sombra
negra no retângulo de luz. Com um gesto impaciente nos convidou a entrar, e ingressamos
num vestíbulo abarrotado de plantas. Com rapidez, como se temesse mostrar a cara, nos
precedeu e, sem uma palavra de boas-vindas, abriu outra porta cujos vidros não estavam
bem fixos, e que soavam ao abri-la. O seguimos por um escuro corredor e através de um
pátio interno, onde um jovem sentado numa cadeira de palha cantava com voz tremulante,
acompanhando-se com o violão. Fez uma pausa ao nos ver, não retribuiu minha saudação, e
continuou tocando quando dobramos uma esquina e encaramos outro corredor escuro.
—Por que todos são tão pouco gentis? — sussurrei no ouvido de Joe Cortez. —Tem certeza
de que estamos na casa certa?
—Já lhe disse, são excêntricos — murmurou.
—Está seguro de que os conhece?
—Que tipo de pergunta é essa? — rebateu num tom tranquilo, ainda que ameaçante. —É
claro que os conheço.
—Passaremos a noite aqui? — perguntei, intranquila.
—Não tenho a menor idéia — e ao dizê-lo me beijou na bochecha. —E por favor, não faça
mais perguntas. Estou tentando levar a cabo uma manobra quase impossível.
—Que manobra é essa? — perguntei também em voz baixa. Uma súbita percepção me fez
sentir ao mesmo tempo ansiosa e incomodada, e por sua vez estimulada. A palavra manobra
havia proporcionado a pista.
Ao parecer convencido de meus sentimentos íntimos, passou as sacolas que portava a um
de seus braços, e com suavidade pegou minha mão para beijá-la, contato que enviou
agradáveis correntes de prazer através de meu corpo. Cruzamos um umbral para ingressar
numa sala grande, tenuemente iluminada e exiguamente mobiliada. Não era minha idéia de
uma sala de província mexicana. As paredes e o teto eram de um branco imaculado, por
completo desprovidas de quadros ou ornamentos. Contra a parede oposta à porta havia um
grande sofá, e sentadas sobre ele três imponentes senhoras, vestidas com elegância. Não
pude ver bem seus rostos, mas a luz fraca permitiu comprovar a chamativa semelhança e o
ar familiar existente entre elas, mesmo sem parecerem-se. Isto me desorientou ao ponto de
que apenas pude reparar em duas pessoas sentadas em poltronas próximas. No meu afã por
chegar junto às três mulheres dei um grande salto involuntário, por não ter reparado nos
desníveis do piso de ladrilhos, e ao estabilizar-me notei um lindo tapete oriental, e à mulher
sentada numa das poltronas.
—Delia Flores! —exclamei. —Deus santo, não posso acreditar nisso! — toquei-a para
assegurar-me que não era uma figura fruto de minha imaginação. Em vez de saudá-la,
perguntei:
—O que está acontecendo? — e ao mesmo tempo percebi que as mulheres do sofá eram
minhas velhas conhecidas do ano anterior na casa da curandeira. Permaneci com a boca
aberta, gelada, a mente aturdida pela descoberta. Um esboço de sorriso crispava os cantos
dos lábios das mulheres quando se viraram em direção ao ancião de cabelos brancos,
sentado na outra poltrona.
—Mariano Aureliano — minha voz saiu fraca e quebrada; tinha perdido toda sua energia.
Virei-me até Joe Cortez, e nesse mesmo tom débil o acusei de ter me enganado. Desejava
gritar-lhe, insultá-lo, agredi-lo fisicamente, mas não tinha nem forças para levantar um
braço. Tampouco para notar que, como eu, estava parado como se estivesse preso ao chão,
o rosto pálido de assombro e confusão. Mariano Aureliano, ficando de pé, se aproximou, os
braços estendidos em sinal de abraço.
—Estou tão feliz de ver-lhe novamente! — sua voz era doce, seus olhos brilhavam de
felicidade, e com um abraço de urso me levantou do chão. Meu corpo frouxo, desprovido
de forças, não acertava em retribuir seu carinho. Não pude articular palavra. Me depositou
de novo ao chão, e foi em direção à Joe Cortez, para dar-lhe uma igualmente efusiva boas-
vindas.
Delia Flores e suas amigas se aproximaram, cada uma com seu abraço, e murmuraram algo
em meu ouvido. Me reconfortaram suas carícias e vozes suaves, contudo não entendi uma
só palavra. A mente não me acompanhava. Podia sentir e escutar, mas não captar a essência
de minhas sensações. Mariano Aureliano dirigiu-se a mim com voz clara que dissipou meu
nublado entendimento.
—Você não foi enganada. Eu lhe disse desde o princípio que te sopraria até ele.
—De modo que você é… — não pude terminar a frase, pois finalmente captei que Mariano
Aureliano era o homem de quem tanto me havia falado Joe Cortez: Juan Matus, o feiticeiro
que mudou o curso de sua vida.
Abri a boca para dizer algo, e em seguida a fechei. Tinha a sensação de ter sido separada de
meu corpo. Minha mente não podia acomodar novas surpresas. Depois vi ao senhor Flores
emergir por entre as sombras, e ao dar-me conta de que havia sido ele quem nos abriu a
porta, desmaiei. Quando recuperei os sentidos me encontrava sobre o sofá, sentindo-me
extraordinariamente bem, descansada e livre de ansiedade. Para determinar o tempo que
estive inconsciente me levantei para alçar o braço e olhar meu relógio de pulso.
—Esteve fora de comissão exatamente dois minutos e vinte segundos — anunciou o senhor
Flores, consultando seu pulso desprovido de relógio. Estava sentado numa otomana de
couro vizinha ao sofá, e na posição de sentado pareceu mais alto, pois suas pernas eram
curtas e seu dorso largo.
—Que terrivelmente dramático, isso de desmaiar-se! — disse ao sentar-se a meu lado. —
Sinto muito que tenhamos lhe assustado — mas seus olhos cor âmbar, plenos de riso,
desdiziam o tom genuinamente preocupado de sua voz. —E desculpe-me por não os ter
saudado ao abrir a porta. Com seu cabelo escondido sob o chapéu, e com essa pesada
jaqueta, pensei que você era homem. — entretanto ele brincava, encantado, com minha
trança.
Ao ficar de pé precisei me apoiar no sofá. Continuava algo mareada. Insegura, percorri o
quarto com a vista. Nem as mulheres nem Joe Cortéz estavam ali. Mariano Aureliano
estava sentado numa das poltronas com a vista fixa à frente. Talvez estivesse dormido com
os olhos abertos.
—Assim que os vi de mãos dadas pensei que Charlie Spider tinha virado bicha… — disse o
senhor Flores em inglês, pronunciando cada palavra de maneira impecável e com genuíno
gosto.
Ri ao escutar esse nome, e da formal pronúncia inglesa.
—Charlie Spider? Quem é?
—Não o sabe? — perguntou, abrindo os olhos, autenticamente desconcertado.
—Não, não sei. Por acaso deveria saber?
Expressou sua surpresa ante minha negação coçando a cabeça, e depois perguntou:
—Com quem estava de mãos dadas?
—Carlos segurava minha mão ao entrar nesta casa.
—Pois isso — aprovou o senhor Flores, sorrindo contente como se tivesse solucionado um
difícil enigma. Depois, ao ver minha expressão ainda perplexa, acrescentou: —Carlos
Castaneda não só é Joe Cortez como também Charlie Spider.
—Charlie Spider — repeti. —É um nome muito repelente.
—Dos três, era o que mais me agradava, sem dúvida devido à minha afeição pelas aranhas,
às quais jamais temi. Nem sequer às grandes aranhas tropicais. Nos cantos de meu
apartamento sempre se podiam encontrar suas teias, as que não eram destruídas ao se fazer
a limpeza.
—Por que se faz chamar Charlie Spider? — perguntei.
—Diferentes nomes para diferentes situações — e o senhor Flores recitou a resposta como
se estivesse anunciando um produto. —Quem pode explicar-lhe tudo isto é Mariano
Aureliano.
—Mariano Aureliano é também Juan Matus?
—Eu acho que sim — respondeu com um amplo e divertido sorriso. —Também ele tem
distintos nomes para distintas situações.
—E você, senhor Flores, também tem diferentes nomes?
—Flores é meu único nome. Genaro flores — e aproximando-se, se insinuou em tom
conquistador, apenas murmurado: —Pode me chamar de Genarito.
Sacudi a cabeça sem querer. Algo nele me assustava mais que Mariano Aureliano, mas num
nível racional não conseguia determinar a causa. O senhor Flores parecia muito mais
abordável que o outro. Era infantil, brincalhão e de fácil trato, apesar do qual não me sentia
confortável em sua companhia. O senhor Flores interrompeu meus pensamentos profundos:
—A razão pela qual tenho um só nome é que não sou um nagual.
—E o que é um nagual?
—Ah, isso é muito difícil de explicar — e me ofereceu um sorriso cativante. —Unicamente
Mariano Aureliano ou Isidoro Baltazar podem explicar isso.
—Quem é Isidoro Baltazar?
—Isidoro Baltazar é o novo nagual.
—Basta. Não me diga mais nada — e levando a mão à frente me sentei no sofá. —Está me
confundindo, senhor Flores, e ainda estou fraca — e com olhar suplicante, perguntei: —
Onde está Carlos?
—Charlie Spider está tecendo um sonho aracnóide — o senhor Flores disse a frase inteira
em seu inglês extravagante, após o qual emitiu um breve riso, como se estivesse saboreando
uma anedota especialmente boa. Olhou com malícia a Mariano Aureliano (que seguia com
a vista fixa na parede), depois a mim, e por último de novo a seu amigo. Deve de ter
pressentido meu crescente medo, pois encolheu os ombros e elevou as mãos num gesto
resignado antes de dizer: —Carlos, também conhecido como Isidoro Baltazar, foi visitar
a…
—O que, ele se foi?! — meu grito fez com que Mariano Aureliano se virasse para olhar-
me. Me perturbava mais ficar sozinha com os dois velhos que saber que Carlos Castaneda
tinha ainda outro nome e era o novo nagual, fosse isso o que fosse. Mariano Aureliano se
levantou, fez uma profunda reverência, e estendendo sua mão para ajudar-me a ficar de pé,
perguntou:
—O que pode ser mais agradável e recompensador para dois velhos que cuidar de ti até que
te despertará de seus ensonhos?
Seu gracioso sorriso e sua cortesia finissecular eram irresistíveis. Relaxei-me de imediato.
—Não posso pensar em nada mais agradável — concordei, e permiti que me conduzisse a
um refeitório bem iluminado, situado do outro lado do corredor, a uma mesa de caoba
ovalada nos fundos do aposento. Com um gesto galante me ofereceu uma cadeira.
Aguardou a que me instalasse comodamente, e depois disse que não era demasiado tarde
para comer, e que ele mesmo se encarregaria de trazer-me algo delicioso da cozinha. Minha
proposta de ajudar foi recusada com finura.
O senhor Flores, em vez de caminhar até a mesa, exibiu sua destreza acrobática
impulsionando-se com uma meia-lua, e calculou a distância com tal precisão que aterrissou
a poucos centímetros da mesa. Com um sorriso tomou assento a meu lado. Seu rosto não
revelava o esforço realizado, e nem sequer ofegava.
—Apesar de que negue ser um acrobata, creio que você e seus amigos são parte de um
espetáculo mágico — opinei.
O senhor Flores saltou de sua cadeira, o rosto iluminado por intenções travessas.
—Você tem toda a razão do mundo! Somos parte de um espetáculo mágico! — e pegou um
jarro de cerâmica que estava sobre um largo aparador. Serviu-me uma caneca de chocolate
quente. —Isto e um pedaço de queijo representam para mim uma refeição — e me cortou
um pedaço de queijo Manchego. Juntos eram uma delícia.
Apesar de meus desejos não me ofereceu repetir. A meia caneca que me serviu não me
satisfez. Sempre gostei de chocolate, que nenhum dano me fazia por mais que comesse, e
tinha a certeza de que se me concentrasse em meu desejo de comer mais, ele se veria na
obrigação de oferecer-me outra caneca sem um pedido de minha parte. De menina, isto me
dava resultado quando era forte meu desejo por algo. Observei-lhe retirar dois copos e dois
pratinhos extras do armário, e notei que entre a louça, os cristais e a prataria, pastava uma
rara mistura de figuras de cerâmica pré-hispânica e uns monstros pré-históricos de plástico.
—Esta é a casa das bruxas — informou o senhor Flores com ar de conspirador, como se
isso explicasse a incongruência do conteúdo do móvel.
—As esposas de Mariano Aureliano? — perguntei desafiante.
Em vez de responder me convidou com um gesto a olhar atrás de mim. Mariano Aureliano
estava às minhas costas.
—As mesmas — admitiu, colocando uma sopeira de porcelana sobre a mesa. —As mesmas
bruxas que fizeram esta deliciosa sopa de rabo de boi — e com um concha de prata encheu
um prato e me instou a juntar-lhe um pedaço de lima e outro de abacate. Assim fiz,
devorando tudo nuns poucos goles. Comi vários pratos até ficar fisicamente satisfeita,
quase saciada.
Permanecemos ao redor da mesa um longo tempo. A sopa de rabo de boi exerceu um
maravilhoso efeito sedativo sobre mim. Sentia-me tranquila. Algo usualmente muito
desagradável em mim estava desconectado, e todo meu ser, corpo e espírito, agradecia ao
fato de não ter que utilizar energia para defender-me. Assentindo com a cabeça, como
confirmando em silêncio cada um de meus pensamentos, Mariano Aureliano me observava
com olhos agudos e divertidos. Estava a ponto de dirigir-me a ele chamando-o Juan Matus
quando antecipou meu intento e disse:
—Eu sou Juan Matus para Isidoro Baltazar. Para você sou o nagual Mariano Aureliano. —
sorrindo, chegou mais perto e sussurrou confidencialmente: —O homem que te trouxe aqui
é o novo nagual, o nagual Isidoro Baltazar. Você deve usar esse nome quando falar com ele
ou o mencionar.
—Não está totalmente dormida nem desperta — continuou Mariano Aureliano —, de modo
que poderá entender e recordar tudo o que lhe dizemos — e vendo que eu estava a ponto de
interrompê-lo, acrescentou com suavidade: —E esta noite não vai ficar fazendo perguntas
estúpidas.
Não foi tanto seu tom e sim uma força, um cordão, o que me gelou, paralisando minha
língua. Contudo minha cabeça, como independente de minha vontade, fez um gesto de
assentimento.
—Precisa colocá-la à prova — lembrou o senhor Flores a seu amigo. Um brilho
decididamente perverso apareceu em seus olhos. —Ou melhor ainda, deixe que eu o faça.
Mariano Aureliano fez uma pausa, longa e deliberada, plena de sinistras possibilidades, e
me olhou em forma crítica, como se minhas feições pudessem dar-lhe um indício para
algum importante segredo. Imobilizada por seus olhos penetrantes, nem sequer pisquei.
Depois deu seu perdão, e o senhor Flores me formulou uma pergunta em voz grave e
profunda:
—Está enamorada de Isidoro Baltazar?
E que me condenem se não disse que sim, de maneira mecânica e inanimada.
O senhor Flores se aproximou até que nossas cabeças quase se tocaram, e em um murmúrio
cheio de riso sufocado perguntou: —De verdade, louca, loucamente apaixonada?
Repeti que sim, e ambos os homens estouraram em sonoras gargalhadas. O som de suas
risadas, repiqueteando em torno do aposento como bolinhas de ping-pong, pôs fim a meu
estado de transe. Me agarrei ao som e saí do encantamento.
—Que porra é esta? — perguntei a todo pulmão.
Ambos os homens saltaram em suas cadeiras, assustados por meus gritos. Se olharam, e
logo seus olhares convergiram em mim, e ambos se abandonaram a um riso extático.
Quanto mais eloqüentes eram meus insultos, maior eram suas gargalhadas, e tão contagioso
era seu entusiasmo que não pude evitar de aderir-me a ele.
Quando nos acalmamos, Mariano Aureliano e o senhor Flores me bombardearam com
perguntas. Os interessava em especial como e quando havia conhecido a Isidoro Baltazar, e
cada pequeno detalhe os enchia de alegria. Quando repeti os acontecimentos pela quarta ou
quinta vez, havia ampliado ou melhorado a história, ou recordado detalhes que não teria
suspeitado que poderia recordar.
—Isidoro Baltazar conseguiu ver através de você e de todo o assunto — julgou Mariano
Aureliano quando finalizei minha exposição. —Contudo, ainda não vê o suficientemente
bem. Nem sequer concebeu que fui eu quem te enviou a ele — e me lançou outra de suas
olhadas perversas antes de corrigir-se: —Na verdade não fui eu e sim o espírito, que me
elegeu para fazer seu mandato, e te soprei até ele quando estava no máximo de seu poder,
no meio de seu ensonhar desperta — falava de maneira casual, quase com negligência, e
somente seus olhos transpareciam sua sabedoria. —Talvez seu poder para ensonhar
desperta foi a razão pela qual Isidoro Baltazar não percebeu quem era, apesar a que estava
vendo, ainda quando o espírito o tenha revelado desde o primeiro momento em que ele te
viu. Não pode existir maior indício que essa exibição de luzes na névoa. Que estupidez a de
Isidoro Baltazar de não ver o óbvio.
Riu contidamente e eu concordei, sem saber com quê estava concordando.
—Isso te demonstrará que o fato de ser feiticeiro não é grande coisa. Isidoro Baltazar é
feiticeiro; ser um homem de conhecimento é algo diferente. Para chegar a isso, os
feiticeiros precisam às vezes esperar toda uma vida.
—Qual é a diferença? — perguntei.
—Um homem de conhecimento é um líder — explicou em voz baixa, sutilmente
misteriosa. —Os feiticeiros precisam de líderes para guiá-los até e através do desconhecido.
Um líder se revela por suas ações; eles não têm preço, o que significa que não se pode os
comprar, subornar, adular ou mistificar.
Acomodou-se melhor em sua cadeira, e disse que todos os membros de seu grupo haviam
concordado em estudar aos líderes através da História, para descobrir se algum deles
chegou a justificar sua condição de tal.
—E vocês encontraram alguns que o conseguiram?
—Alguns — admitiu. —Os que encontramos poderiam ter sido naguais. Os naguais são,
pois, líderes naturais, homens de tremenda energia, que se convertem em feiticeiros
agregando um marco a mais ao seu repertório: o desconhecido. Se esses feiticeiros chegam
a converter-se em homens de conhecimento não existe praticamente limite ao que podem
alcançar.
—Podem as mulheres…? — não me permitiu terminar.
—As mulheres, como descobrirá algum dia, podem fazer coisas infinitamente mais
complexas ainda.
—Isidoro Baltazar — interrompeu o senhor Flores —, lhe fez lembrar a alguém que
conhecera previamente?
—Bom — respondi —, me senti muito bem com ele, como se o conhecesse de toda a vida.
Me fez recordar a alguém, talvez alguém de minha infância, um amigo esquecido.
—De modo que não recorda tê-lo conhecido antes? — insistiu o senhor Flores.
—Você quer dizer na casa de Esperanza? — talvez estivera ali e eu não o recordava.
Sacudiu sua cabeça, desiludido. Depois, pelo visto esgotado seu interesse em minha
resposta, perguntou se eu havia reparado em alguém que nos saudava com a mão quando
dirigíamos em direção à casa.
—Não, ninguém.
—Pense bem — insistiu.
Contei-lhe que depois de Yuma, em vez de nos dirigirmos ao leste, a Nogales na Rota 8, o
caminho mais lógico, Isidoro Baltazar havia marchado até o sul, ao México, depois ao leste
através de “El Gran Desierto”, depois de novo ao norte entrando nos Estados Unidos por
Sonoyta a Ajo, Arizona, depois de novo ao México à Caborca, onde desfrutamos de um
delicioso almoço de língua de boi em molho picante de pimenta verde.
—Quando voltamos ao carro com o estômago cheio, já quase nem prestei atenção à rota —
admiti. —Sei que passamos por Santa Ana, e após nos dirigimos até o norte à Cananea, e
depois outra vez ao sul. Tudo muito confuso, em minha opinião.
—Não lembra ter visto a alguém na rota — insistiu o senhor Flores —, alguém que os
saudava com a mão?
Fechei bem os olhos, procurando visualizar a quem pudesse ter-nos saudado de tal maneira,
mas minha lembrança da viagem era feita de contos, canções e cansaço físico. E de repente,
quando estava a ponto de abrir os olhos, surgiu a fugaz imagem de um homem. Disse-lhes
que recordava vagamente a um jovem às margens de um desses povoados, de quem pensei
que nos pedia que o levássemos.
—Pode ter feito sinais com a mão, mas não o posso assegurar.
Ambos riram como crianças empenhadas em ocultar um segredo.
—Isidoro Baltazar não estava muito seguro de nos encontrar — anunciou Mariano
Aureliano —, por isso seguiu essa rota insólita. Seguiu a rota dos feiticeiros, o caminho do
coiote.
—Por que não estaria seguro de encontrá-los?
—Não sabia se nos encontraria até ver ao jovem fazendo-lhe sinais — explicou Mariano
Aureliano. —Esse jovem é uma sentinela do outro mundo. Seu sinal era prova de que se
podia seguir adiante. Isidoro Baltazar deveria ter sabido ali mesmo quem era. Mas, como
você, é extremamente cauteloso, e quando não o é, é extremamente temerário. — fez uma
pausa para permitir que suas palavras se registrassem, e depois acrescentou
significativamente: —O mover-se entre esses dois pontos é a maneira mais segura de errar.
A cautela cega tanto como o atrevimento.
—Não entendo a lógica de tudo isto — murmurei fatigada.
Mariano Aureliano esclareceu:
—Quando Isidoro Baltazar traz um convidado, precisa prestar atenção ao sinal da sentinela
antes de seguir viagem.
—Certa vez trouxe a uma garota por quem estava enamorado — informou o senhor Flores,
e fechou os olhos como transportado por sua lembrança da garota. —Era alta, forte e de
cabelos escuros. Pés grandes e rosto bonito. Percorreu toda a Baja Califórnia, e a sentinela
nunca lhe autorizou a passagem.
—Quer dizer que traz suas namoradas? — perguntei com mórbida curiosidade. —Quantas
tem trazido?
—Umas tantas — respondeu o senhor Flores com inocência. —Naturalmente o fez por
conta própria. Seu caso é diferente. Você não é sua namorada; você retornava. Isidoro
Baltazar quase explodiu quando descobriu que por tonto não compreendeu todas as
indicações do espírito. Ele simplesmente serviu de chofer. Nós te esperávamos.
—O que teria acontecido se a sentinela não estivesse lá?
—O que sempre acontece quando Isidoro Baltazar vem acompanhado — retrucou Mariano
Aureliano. —Não nos teria encontrado, porque não corresponde a ele eleger a quem trazer
ao mundo dos feiticeiros — sua voz se fez agradavelmente doce ao acrescentar: —Somente
aqueles a quem o espírito tenha assinalado podem bater à nossa porta, depois que um de
nós o tenha admitido.
Estive a ponto de interromper, mas recordando a advertência de não fazer perguntas tontas,
tapei minha boca com a mão. Com um sorriso Mariano Aureliano acrescentou que em meu
caso Delia havia sido quem me trouxe ao mundo.
—É uma de nossas duas colunas, por assim dizer, que fazem a porta de nosso mundo, a
outra é Clara, a quem conhecerá logo.
Havia uma genuína admiração em seus olhos e em sua voz quando disse:
—Delia cruzou a fronteira nada mais que para trazer-lhe à casa. A fronteira é um fato
concreto, mas os feiticeiros o usam de maneira simbólica. Você estava do outro lado e
precisava ser trazida a este lado. No outro está o mundo do cotidiano, mas neste se encontra
o mundo dos feiticeiros.
“Delia te escoltou com delicadeza, um trabalho verdadeiramente profissional; uma manobra
impecável que você apreciará mais e mais à medida que passe o tempo.”
Mariano Aureliano se levantou em sua cadeira para alcançar a compoteira de porcelana da
divisória. Colocou-a diante de mim com um convite: —Sirva-se, são deliciosos.
Fascinada olhei os damascos polpudos e logo provei um deles. Eram tão deliciosos que, de
imediato, despachei mais três. O senhor Flores, depois de piscar-me um olho, me instigou a
comê-los todos, antes que retirassem o prato. Com a boca cheia fiquei corada, e procurei
pedir desculpas.
—Não se desculpe! — recomendou Mariano Aureliano. — Seja você mesma, mas você
mesma sob controle. Se quer acabar com os damascos, termine-os, e assunto encerrado. O
que jamais deve fazer é terminá-los e depois arrepender-se.
—Então os terminarei — disse, e isso os fez rir.
—Sabia que conheceu a Isidoro Baltazar no ano passado? — disse o senhor Flores, que se
balançava tão precariamente em sua cadeira que temi que caísse para trás e batesse contra o
armário das louças. Um brilho maligno apareceu em seus olhos, ao mesmo tempo em que
começou a cantarolar uma bem conhecida ranchera, fazendo um arremedo da letra para
contar a estória de Isidoro Baltazar, famoso cozinheiro de Tucson, que jamais perdia a
calma, nem sequer quando se lhe acusavam de pôr baratas mortas na comida.
—Oh! — exclamei —, o cozinheiro! O cozinheiro da cafeteria era Isidoro Baltazar! Mas
isso não pode estar certo. Não acredito que ele… — interrompi a frase na metade.
Olhei fixamente a Mariano Aureliano, na esperança de descobrir algo em seu rosto, em seu
nariz aquilino, em seus olhos penetrantes, e senti um involuntário calafrio. Havia algo de
selvagem em seus olhos frios.
—Sim — me incitou. —Não acredita que ele… — e com um movimento de cabeça me
pressionava a completar minha frase. Estive por dizer que não acreditava que Isidoro
Baltazar era capaz de mentir-me dessa maneira, mas não me animei a formular a frase. Os
olhos de Mariano Aureliano se endureceram, mas eu me sentia tão mal comigo mesma que
não tinha cabimento para o medo.
—Ou seja, que, depois de tudo, fui enganada — explodi por fim, olhando-o com fúria. —
Isidoro Baltazar sabia todo o tempo quem era eu. Tudo não é mais que um jogo.
—Tudo é um jogo — concordou Mariano Aureliano —, mas um jogo maravilhoso. O único
que vale a pena jogar. — fez uma pausa, como para dar-me a oportunidade de continuar
com minhas queixas, mas antes que eu pudesse fazê-lo me lembrou da peruca que ele
insistiu em colocar-me naquela oportunidade. —Se você não reconheceu a Isidoro Baltazar,
que não estava disfarçado, o que te faz pensar que ele te reconheceu em seu disfarce de
cachorro peludo?
Mariano Aureliano seguia me observando. Seus olhos haviam perdido sua dureza, agora se
viam tristes e cansados.
—Não foi enganada, nem sequer pensei em fazê-lo, não que não o faria se o julgasse
necessário — acrescentou. —Disse-lhe como eram as coisas desde o começo. Tem sido
testemunha de coisas estupendas, mas não tem reparado nelas. Como faz a maioria das
pessoas, associa a feitiçaria com comportamentos incomuns, rituais, drogas, encantamentos
— e, aproximando-se, baixou a voz ao nível de um sussurro para acrescentar que a
verdadeira feitiçaria era uma muito sutil e esquisita manipulação da percepção.
—A verdadeira feitiçaria — o senhor Flores concluiu — não permite a interferência
humana.
—Mas o senhor Aureliano diz ter me soprado até Isidoro Baltazar — assinalei com imatura
impertinência. —Não é isso uma interferência?
—Sou um nagual — respondeu Mariano Aureliano. —Sou o nagual Mariano Aureliano, e o
fato de ser o nagual me permite manipular a percepção.
Eu o havia escutado com toda atenção, mas não tinha a menor idéia do que queria dizer
com manipulação da percepção. De puro nervosismo, estendi a mão para tomar o último
damasco do prato.
—Você vai ficar doente — disse o senhor Flores —, é tão pequena, e no entanto é uma dor
de cabeça.
Mariano Aureliano parou atrás de mim, e apertou minhas costas de tal maneira que me fez
devolver o último damasco que tinha na boca.
CAPÍTULO OITO
Neste ponto a sequência dos fatos, tal como eu os recordo, se faz confusa. Não sei o que
aconteceu depois. Talvez dormi sem ter me dado conta disso, ou talvez a pressão que
exerceu Mariano Aureliano sobre minhas costas foi tão forte que desmaiei. Quando voltei a
mim estava estendida sobre uma esteira no chão. Abri os olhos e de imediato me dei conta
da luminosidade que me rodeava. O sol parecia brilhar dentro do quarto. Pisquei repetidas
vezes, pensando ter algum problema com os olhos, pois não podia centrá-los.
—Senhor Aureliano — chamei —, acho que algo anda mal com meus olhos… — tentei
levantar-me sem consegui-lo.
Não eram o senhor Aureliano ou o senhor Flores que estavam de pé junto a mim, e sim uma
mulher, que estava inclinada para frente a partir da cintura, tapando a luz. Seus cabelos
negros balançavam soltos em torno de seus ombros e seus lados; tinha um rosto redondo e
um busto imponente. De novo procurei levantar-me. Não me tocava, apesar do qual soube
que de alguma maneira era ela que me retinha.
—Não o chame de senhor Aureliano, ou senhor Mariano. Essa é uma falta de respeito de
sua parte. Chame-o nagual, e quando falar dele refira-se ao nagual Mariano Aureliano. Ele
gosta de seu nome completo. — sua voz era melodiosa. Simpatizei com essa mulher.
Queria averiguar o que era toda essa bobagem com relação à falta de respeito. Tinha
escutado a Delia e todas as outras mulheres chamá-lo pelos mais ridículos diminutivos, e
fazer-lhe festa como se ele fosse seu boneco favorito, e por certo que ele havia desfrutado
de cada momento, mas eu não podia recordar de onde o havia presenciado.
—Entende? — perguntou a mulher.
Quis dizer que sim, mas tinha ficado sem voz. Aventei, sem êxito, de abrir a boca, de falar,
mas quando ela insistiu em perguntar se eu havia compreendido, tudo o que pude fazer foi
afirmar com a cabeça. Ofereceu-me sua mão para me ajudar a levantar, mas antes que me
tocasse eu já estava de pé, como se meu desejo tornasse inútil o contato com sua mão, e
conseguido seu objetivo antes de sua intervenção. Assombrada por esta inesperada
derivação quis fazer-lhe perguntas, mas apenas era possível manter-me em pé, e quanto a
falar, as palavras se recusavam a sair de minha boca. Acariciou repetidas vezes meus
cabelos, obviamente interada de meu problema. Sorriu bondosamente e disse:
—Está ensonhando.
Não a escutei dizer isso, mas sabia que suas palavras se haviam movido sem transição de
sua mente à minha. Fez um sinal afirmativo com a cabeça, e me informou que, de fato, eu
podia escutar seus pensamentos e ela aos meus. Me assegurou ser como uma invenção de
minha imaginação, apesar do qual podia atuar comigo ou sobre mim.
—Preste atenção! — ordenou. —Não estou movendo meus lábios e contudo estou lhe
falando. Faça o mesmo.
Sua boca não se movia em absoluto, e a fim de averiguar se seus lábios o faziam ao
enunciar suas palavras, desejei tocar sua boca com meus dedos. Era bonita, mas de aspecto
ameaçante. Tomou minha mão e a apertou contra seus lábios sorridentes. Não senti nada.
—Como posso falar sem meus lábios? — pensei.
—Tem uma fenda entre as pernas — me informou, introduzindo as palavras de maneira
direta em minha mente. —Concentre sua atenção nela. A perereca fala.
Essa observação tocou uma fibra especial em mim, e ri até ficar sem ar e desmaiar de novo.
A mulher me sacudiu até me fazer reagir. Continuava sobre a esteira no chão, mas agora
apoiada num grosso almofadão em minhas costas. Pisquei, um calafrio me sacudiu, suspirei
fundo e a olhei. Estava sentada ao meu lado sobre o chão.
—Não costumo desmaiar — disse, surpreendida de poder fazê-lo com palavras. O som de
minha própria voz era tão reconfortante que ri forte e repeti a mesma frase várias vezes.
—Eu sei, eu sei — disse para apaziguar-me. —Não se preocupe, não está de todo desperta.
Eu sou Clara. Já nos conhecemos na casa de Esperanza.
Deveria ter protestado, ou perguntado o que queria dizer com isso. Entretanto, sem duvidar
por um só instante, aceitei que seguia adormecida e que havíamos nos conhecido na casa de
Esperanza. Lembranças, pensamentos brumosos, visões de gente e de lugares começaram a
surgir lentamente. Um pensamento muito claro tomou conta de minha mente. Certa vez
havia sonhado que a conheci; foi um sonho, portanto nunca havia pensado nele como num
acontecimento real. Nesse momento lembrei de Clara.
—É claro que já nos conhecemos — declarei triunfalmente —, mas nos conhecemos num
sonho, por conseguinte não é real. Devo de estar sonhando neste momento, e desse modo
posso me lembrar de você.
Suspirei, feliz de que tudo pudesse ser explicado com tamanha facilidade, e me reclinei
sobre os almofadões. Outra clara lembrança de um sonho se estampou. Não podia lembrar
quando o havia sonhado, porém me lembrava dele com a mesma fidelidade de um fato real.
Nele, Delia me apresentava à Clara, a quem havia descrito como a mais gregária das
mulheres ensonhadoras.
—Tem amigos que a adoram — me confessou.
A Clara do sonho era bastante alta, forte e rotunda, e me havia observado com insistência
como quem observa a um membro de uma espécie desconhecida, com olhos atentos e
sorrisos nervosos. E entretanto, apesar de seu olhar penetrante, havia gostado muito dela.
Seus olhos eram especulativos, verdes e sorridentes, e o que mais recordava de seu olhar
era sua similaridade com o de um gato: o fato de não piscar.
—Eu sei que este é só um sonho, Clara — repeti, como se precisasse me assegurar disso.
—Não, este não é só um sonho, é um sonho especial — me contradisse Clara. —Faz mal
em urdir tais pensamentos. Os pensamentos têm poder, você deve cuidar deles.
—Você não é real, Clara — insisti, minha voz aguda e tensionada —, é um sonho. Por isso
não posso lembrar de você quando estou acordada.
Minha obstinada persistência fez Clara sorrir.
—Nunca intentou recordar-me. Não havia razão nem sentido para isso. Nós, as mulheres,
somos extremamente práticas. É nosso grande defeito e nosso grande capital.
Estava a ponto de perguntar-lhe qual era o aspecto prático de recordá-la agora, quando se
antecipou à minha pergunta.
—Dado que estou frente a você necessita recordar-me, e me recorda. — se agachou ainda
mais para fixar em mim seu olhar felino e disse: —E já não me esquecerá. Os feiticeiros
que me criaram me disseram que as mulheres necessitam dois de cada coisa para que se
fixe. Duas vistas de algo, duas leituras, dois sustos, etc. Você e eu já nos encontramos um
par de vezes. Agora sou sólida e real — e para provar o quanto era real, arregaçou a blusa e
flexionou seus bíceps. —Toque-os — convidou-me.
Rindo, eu o fiz. Na verdade ela tinha músculos duros, poderosos e bem definidos. Também
me fez provar os de suas coxas e panturrilhas.
—Se este é um sonho especial, que faço eu nele? — perguntei cautelosamente.
—O que se te der vontade. Até agora está indo bem. Não posso guiar você, pois não sou
sua mestra de ensonhos, e sim simplesmente uma bruxa gorda que cuida de outras bruxas.
Foi minha sócia, Delia, quem te trouxe ao mundo dos feiticeiros, como uma parteira. Mas
não foi quem primeiro te encontrou. Essa foi Florinda.
—E quem é Florinda, e quando me encontrou?
—Florinda é outra bruxa. Você a conheceu; é a que te levantou em seu ensonho, na casa de
Esperanza. Lembra da refeição no campo?
—Ah… — suspirei, compreendendo. —Refere-se à mulher alta de voz profunda? — me
senti feliz; sempre admirei as mulheres altas.
Clara confirmou minha suposição:
—A mulher alta de voz profunda. Ela encontrou você em uma festa, à qual você
compareceu faz alguns anos, com seu amigo. Um acontecimento elegantíssimo na casa de
um petroleiro, em Houston, Texas.
—E o que fazia uma bruxa numa festa na casa de um petroleiro? — perguntei. Em seguida,
me golpeou o pleno impacto de sua declaração. Fiquei muda. Apesar de não lembrar ter
visto a Florinda lembrava muito bem da festa. Eu havia comparecido com um amigo, que
havia voado de propósito em seu jato particular desde Los Ângeles, e regressado no dia
seguinte. Eu fui sua tradutora. Compareceram vários homens de negócios, mexicanos que
não falavam inglês.
—Meu Deus! — exclamei em segredo. —Que insólito! — e descrevi a festa com riqueza
de detalhes à Clara. Aquela foi minha primeira visita ao Texas, e como uma deslumbrada
admiradora de estrelas de cinema, os homens me deixaram boba, não por serem lindos e
sim porque me parecia tão chamativa sua indumentária: seus chapéus Stetson, seus ternos
cor pastel e suas botas de cowboy. O petroleiro havia contratado artistas e montado um
espetáculo digno de Las Vegas, numa gruta que fazia as vezes de um night-club, cheia de
luzes e música estridente, e lembrava da comida como sendo de primeiríssima qualidade.
—Mas por que Florinda iria a uma festa desse tipo?
—O mundo dos feiticeiros é o que de mais estranho existe — respondeu Clara, que com um
acrobático salto se levantou sem utilizar os braços, para percorrer o quarto num ir e vir
frente à esteira e ostentar seu aspecto chamativo: uma ampla saia escura, blusa de algodão
com as costas bordadas em alegres cores, e sólidas botas de vaqueiro. Um chapéu
australiano, cuja longa aba escondia seu rosto do sol do meio-dia, dava o toque final à tão
insólita vestimenta.
—Gostou do meu conjunto? — perguntou radiante, detendo-se frente a mim.
—É fabuloso! — aplaudi. Não havia dúvida de que Clara possuía o atrevimento e a
confiança necessários para usar tais roupas. —Elas lhe caem muito bem — acrescentei.
Ajoelhando-se junto a mim me fez uma confidência:
—Delia está verde de inveja. Sempre competimos para ver quem se anima a usar a roupa
mais maluca. Precisa ser louca sem ser estúpida — guardou silêncio durante os segundos
em que me contemplou: —Se desejar competir é bem-vinda — ofereceu. —Quer participar
do nosso jogo?
Aceitei com muito prazer, e ela me pôs a par das regras.
—Originalidade, praticidade, preço baixo e nada de ostentação — enumerou. Depois se pôs
novamente de pé para percorrer o quarto e, rindo, desparramar-se ao meu lado. —Florinda
acha que devo animá-la a participar. Disse-me que naquela festa descobriu que você mostra
uma tendência para conjuntos sumariamente práticos… — apenas conseguiu terminar a
frase, pois a assaltou um ataque de risos.
—Florinda falou comigo lá? — perguntei, olhando-a furtivamente, intrigada por saber se
ela forneceria os detalhes daquela festa que eu não havia dado, e nem estava disposta a
proporcionar.
Clara negou com um movimento de cabeça, e logo sorriu de maneira distraída, destinada a
evitar novas referências à festa.
—Como foi que Delia assistiu ao batismo em Nogales, Arizona? — perguntei, orientando a
conversa para o tema da outra festa.
—Florinda a enviou — admitiu Clara, recolhendo seus cabelos soltos sob o chapéu
australiano. —Chegou dizendo a todos que voltaria contigo.
—Um momento! — interrompi. —Isto não é um sonho. O que está tentando fazer comigo?
—Estou procurando instruir-lhe — insistiu Clara sem modificar seu ar indiferente,
utilizando um tom quase casual. Não parecia interessar-lhe o efeito que suas palavras
pudessem ter em mim, apesar do qual me observou de maneira cuidadosa ao agregar: —
Este é um ensonho, e certamente estamos falando em seu ensonho porque eu também estou
ensonhando seu ensonho.
Que suas insólitas declarações bastaram para apaziguar-me foi prova de que eu ensonhava.
Minha mente se acalmou, sonolenta, e capaz de aceitar a situação. Escutei minha voz
separada de minha vontade.
—Não havia modo de que Florinda soubesse de minha viagem a Nogales — disse. —O
convite de minha amiga foi feito no último momento.
—Sabia que isto seria incompreensível a você — suspirou Clara, e olhando no fundo de
meus olhos e pesando suas palavras cuidadosamente, declarou: —Florinda é sua mãe, mais
que qualquer outra mãe que jamais tenha tido.
Essas palavras me pareceram absurdas, mas não podia dizer nada a respeito.
—Florinda te pressente — continuou Clara com um toque diabólico nos olhos. — Utiliza
um dispositivo rastreador. Sabe onde você se encontra.
—Que aparelho rastreador? — perguntei, sentindo que de súbito minha mente estava sob
controle. O simples pensar que alguém pudesse saber meu paradeiro a todo o momento me
encheu de medo.
—Os sentimentos dela por você são um aparelho rastreador — respondeu Clara com
esquisita simplicidade, e num tom tão doce e harmonioso que meus temores desapareceram.
—Que sentimentos, Clara?
—Quem sabe, filha? — e encolheu as pernas, as rodeou com os braços e descansou a testa
sobre os joelhos. —Nunca tive uma filha assim.
Meu estado de ânimo mudou de maneira abrupta; o temor voltou, e com meu velho estilo
racional e ponderado, comecei a preocupar-me pelas sutis implicações do que foi dito por
Clara. E foram precisamente essas deliberações racionais as que me fizeram retomar
minhas dúvidas. Não era possível que isto fosse um sonho. Eu estava desperta, somente
assim se poderia explicar meu intenso grau de concentração.
Deslizando-me pelo almofadão, no qual apoiava minhas costas, semicerrei os olhos.
Mantive a vista fixa em Clara através das pálpebras, e me perguntei se desapareceria
lentamente, como desaparecem as pessoas e as visões nos sonhos. Não o fez, e
momentaneamente me tranquilizou a idéia de que ambas estávamos despertas.
—Não, não estamos despertas — contradisse Clara, de novo intrometendo-se em meus
pensamentos.
—Posso falar — disse, para justificar meu estado de total consciência.
—Grande façanha! — zombou ela. —Agora farei algo que te despertará, para que possa
continuar esta conversa estando verdadeiramente desperta — e enunciou a última palavra
com extremo cuidado, prolongando-a exageradamente.
—Espere, Clara, espere — roguei. —Dê-me tempo para adaptar-me a tudo isto — preferia
minha insegurança ao que pudesse me fazer.
Indiferente à minha súplica, Clara ficou de pé e esticou a mão até uma jarra de água
colocada sobre uma mesa próxima. Rindo, girou sobre mim, mantendo a jarra sobre minha
cabeça. Tentei desviar-me para um lado sem consegui-lo; meu corpo se recusava a
obedecer, parecia cimentado à esteira. Antes que ela chegasse a despejar a água sobre mim,
senti uma suave e fria garoa sobre meu rosto, e o frio, mais que o molhado, produziu uma
sensação muito particular. Primeiro semi-ocultou o rosto de Clara, como as ondas que
distorcem a superfície da água: logo o frio se concentrou em meu estômago, fazendo me
retrair sobre mim mesma como uma manga invertida, e meu último pensamento foi que me
afogaria num jarro de água. Borbulhas e mais borbulhas escuras bailaram ao meu redor até
que tudo se fez negro.
Quando recobrei a consciência já não estava sobre a esteira, e sim sobre um divã na sala.
Duas mulheres se encontravam aos meus pés, olhando-me com grandes olhos fixos.
Florinda, a mulher alta de voz rouca, estava sentada ao meu lado, cantarolando uma canção
de ninar, ou assim pareceu a mim, e acariciava meu cabelo, meu rosto e meus braços com
grande ternura. O contato e o som de sua voz me serenaram. Permaneci deitada, meus olhos
fixos nos seus, certa de estar experimentando um de meus sonhos vívidos que sempre
começavam como sonhos e acabavam como pesadelos.
Florinda me falava, me ordenava olhá-la nos olhos, e suas palavras se moviam sem som,
como asas de mariposa, mas o que vi em seus olhos me encheu de uma sensação familiar, o
terror abjeto e irracional que experimentava em meus pesadelos. Levantei-me de um salto e
corri até a porta, respondendo à reação automática e animal que sempre as acompanhava.
—Não tenha medo, meu amor — me consolou Florinda, que me havia seguido. —Relaxe,
estamos todos aqui para lhe ajudar. Não deve se angustiar, pois danificará seu corpinho se o
submeter ao temor desnecessário.
Eu me havia detido junto à porta, não em reação às suas palavras, e sim por não poder abri-
la. Meu tremor aumentou, sacudindo-me ao ponto de fazer doer o corpo e bater o coração
de maneira tão forte e irregular que pressenti que terminaria por estourar.
—Nagual! — gritou Florinda por cima de seu ombro —, terá que fazer algo ou ela morrerá
de susto.
Eu não conseguia ver a quem se dirigia, mas em minha aloucada busca de um lugar por
onde fugir divisei uma segunda porta no outro extremo do cômodo. Estava certa de contar
com suficiente energia como para alcançá-la, porém minhas pernas cederam, e como se a
vida tivesse abandonado meu corpo, caí ao chão já sem respirar. Os longos braços da
mulher descenderam sobre mim como as asas de uma águia enorme, me recolheram, e
pondo sua boca sobre a minha insuflou ar em meus pulmões.
Lentamente meu corpo se relaxou, se fez normal meu ritmo cardíaco, e me invadiu uma
estranha paz que, de repente, se transformou em viva excitação. Não era o medo a causa, e
sim o ar recebido da mulher, ar forte que abrasou minha garganta, meus pulmões, meu
estômago e virilha para chegar às minhas mãos e meus pés. Num instante percebi que ela
era igual a mim, só que mais alta, tão alta como eu gostaria de ter sido, e senti tal amor por
ela que fiz algo incrível: beijei-a apaixonadamente. Senti que sua boca se alargou num
sorriso, e depois jogou a cabeça para trás e riu.
—Esta ratita me beijou — anunciou, dirigindo-se aos outros.
—Estou sonhando! — exclamei, e todos riram com um abandono infantil.
Inicialmente não pude evitar rir com eles, mas quase em seguida me transformei em meu
verdadeiro eu: envergonhada por causa de um ato impulsivo, e irritada por ter sido
desmascarada. A mulher alta me abraçou.
—Sou Florinda — disse, e alçando-me me ninou em seus braços como se fosse uma
criança. —Você e eu somos iguais. Você é tão pequena como eu gostaria de ser. Ser alta é
uma grande desvantagem. Ninguém pode ninar você. Eu meço um metro e setenta e sete.
—Eu, um metro e cinquenta e sete — confessei, e ambas rimos, pois nos entendíamos à
perfeição. Eu era um pouco menor no último centímetro mas sempre o arredondava, e
estava certa de que com Florinda acontecia ao contrário.
Beijei suas bochechas e seus olhos, amando-a com um amor que me era incompreensível,
sem dúvidas, medo ou expectativas. Era o amor que se sente nos sonhos. Pelo visto
concordou comigo. Florinda deixou escapar um suave riso. A luz fugaz de seus olhos e o
branco fantasmal de seu cabelo representavam algo assim como uma lembrança esquecida.
Tinha a impressão de conhecê-la desde o dia que nasci, e se me ocorreu que os meninos que
admiram às suas mães têm que ser meninos perdidos. O amor filial, unido à admiração
física pela mãe, deve produzir um amor total como o que eu sentia por esta mulher alta e
misteriosa. Depositou-me no chão, e virando-me até a uma mulher bonita, de cabelo e olhos
escuros, disse:
—Esta é Carmela. — os traços de Carmela eram delicados e sua pele impecável; pele suave
e da palidez cremosa de quem está sempre dentro de casa.
—Somente tomo banhos de lua — sussurrou em meu ouvido ao abraçar-me. —Deveria
fazer o mesmo. É demasiado branca para estar ao sol; está lhe arruinando a pele.
Mais que nada foi sua voz a que reconheci. Era a mesma que me havia feito todas aquelas
perguntas diretas e pessoais na refeição do campo. Lembrava dela sentada, e então me
parecia frágil; agora, para minha surpresa, comprovei que me ultrapassava em oito ou nove
centímetros, e seu corpo poderoso e muscular me fez se sentir insignificante em
comparação.
Com seu braço em torno de meu ombro Florinda me guiou até a outra mulher, que estava
parada junto ao divã quando despertei. Era alta e musculosa, ainda que não tão alta como
Florinda; a sua não era uma beleza convencional (seus traços eram demasiado fortes para
isso), apesar do qual havia nela algo chamativo que atraía, inclusive a tênue sombra que
povoava seu lábio superior, e que obviamente eu não achava necessário ter. Pressenti nela
uma tremenda força, uma agitação subjacente, mas totalmente controlada.
—Esta é Zoila — disse Florinda.
Zoila não insinuou abraçar-me ou apertar minha mão, e foi Carmela quem, rindo, falou por
ela:
—Estou muito contente de ver você de novo. — a boca de Zoila se curvou no mais
delicioso dos sorrisos, mostrando dentes brancos, grandes e paralelos, e quando sua longa e
fina mão cheia de jóias roçou minha bochecha me dei conta de que era aquela cujo rosto
esteve oculto sob uma massa de cabelos desarrumados. Era quem havia costurado a renda
belga nas bordas da lona sobre a qual nos sentamos nessa ocasião da comida.
As três mulheres me rodearam, obrigando-me a sentar no divã.
—Quando lhe conhecemos estava ensonhando — informou Florinda —, de modo que não
houve oportunidade para nos relacionarmos. Agora está desperta, e sendo assim, então nos
fale de você.
Estive a ponto de interrompê-la para dizer-lhe que este era um sonho, e que durante o
piquenique, adormecida ou desperta, já lhes havia contado tudo o que se merecia saber de
minha vida.
—Não, não. Está equivocada — respondeu Florida, como se de fato eu houvesse
exteriorizado esse pensamento. —Agora está totalmente desperta, e o que desejamos saber
é o que tem feito desde nosso último encontro. Em especial conte-nos de Isidoro Baltazar.
—Quer dizer que este não é um sonho? — perguntei timidamente.
—Não, não é um sonho — assegurou-me. —Há uns minutos você ensonhava, mas isto é
diferente.
—Não vejo a diferença.
—Isso se deve a que é uma boa ensonhadora — explicou. —Seus pesadelos são reais; você
mesma disse isso.
Todo meu corpo se tensionou e, depois, como sabendo que não resistiria a outro ataque de
medo, se afrouxou, abandonando-se ao momento. Repeti a elas o já narrado e recontado a
Mariano Aureliano e ao senhor Flores. Contudo, nesta oportunidade recordei detalhes
passados por alto anteriormente, tais como os dois lados do rosto de Isidoro Baltazar, e os
dois simultâneos estados de ânimo que revelavam seus olhos: o esquerdo sinistro,
ameaçador, o direito aberto e amistoso. Sustentei que era um homem perigoso.
—Possui o raro poder de mover os fatos até onde lhe agrada, enquanto ele permanece fora
deles e observa como estes se contorcem.
Às mulheres lhes fascinou o que eu revelava, e Florinda me indicou com um sinal que
prosseguisse.
—O que torna à gente tão vulnerável a seus encantos é sua generosidade — continuei —, e
a generosidade é talvez a virtude que não podemos resistir por estarmos despossuídos dela,
seja qual for nossa base. — ao dar-me conta do alcance dessas palavras me detive
abruptamente e as observei espantada, medindo sua reação.
—Não sei o que me aconteceu — disse tentando desculpar-me. —Na verdade não sei por
que disse isso, quando eu mesma não pensei em Isidoro Baltazar nesses termos. Não sou eu
quem fala, pois nem sequer sou capaz de fazer esse tipo de juízo.
—Não importa de onde lhe vêm esses pensamentos, menina — consolou Florinda. —
Obviamente os está sacando direto da fonte. Todos nós fazemos isso: tirá-los da própria
fonte, mas se precisa ser feiticeiro para dar-se conta disso.
Não entendi o que intentava dizer-me. Repeti que não havia sido minha intenção deixar que
minha língua me dominasse. Florinda riu, e durante uns momentos me contemplou
pensativa.
—Atue como se estivesse ensonhando. Seja audaz e não se desculpe.
Me senti tonta, incapaz de analisar o que sentia. Florinda ordenou às suas companheiras:
—Conte-lhe de nós.
Carmela limpou sua garganta, e sem olhar-me, disse:
—Nós três e Delia formamos uma unidade. Nos ocupamos do mundo cotidiano.
Eu estava atenta a cada uma de suas palavras, mas não consegui entendê-la.
—Somos a unidade de feiticeiras que trata com a gente. Há outra unidade de quatro
mulheres que nada têm a ver com as pessoas.
Carmela tomou minha mão na sua e examinou a palma, como se estivesse por ler minha
sorte, para depois formar um punho com ela e acrescentar: —Por alto é como nós, e em
particular como Florinda. Pode lidar com as pessoas. — fez uma nova pausa, e com uma
olhada sonolenta repetiu o que Clara já me havia antecipado:
—Foi Florinda quem te encontrou. Assim, enquanto permanecer no mundo dos feiticeiros,
lhe pertence. Ela há de guiar e cuidar de você. — era tal a certeza de seu tom que me
deixou em profunda preocupação.
—Não pertenço a ninguém e não preciso que cuidem de mim — disse, e minha voz soava
tensa, insegura e nada natural.
As três mulheres me observaram em silêncio, sorridentes.
—Crêem que necessito ser guiada? — perguntei desafiante, passando meu olhar de uma à
outra. Seus olhos estavam semicerrados, seus lábios abertos em sorrisos contemplativos, e
os imperceptíveis movimentos de suas testas, indicava que aguardavam que eu terminasse
com o que tinha a dizer. —Creio que me arranjo bastante bem na vida — terminei alegando
com escassa convicção.
—Lembra-se do que fez na festa, aquela onde te encontrei? — perguntou Florinda.
Ao notar que eu reagia assombrada, Carmela cochichou em meu ouvido:
—Não se inquiete. Sempre encontrará um modo de explicá-lo por inteiro — e pelo gesto de
desdém que traçou com sua mão, deu a entender não estar minimamente preocupada. A
mim me dominou o pânico só de pensar que pudessem saber que naquela festa eu me havia
passeado desnuda frente a dezenas de pessoas.
Até esse momento, se não até orgulhosa dele, eu aceitava esse ato desinibido como uma
manifestação de minha personalidade espontânea. Em primeiro lugar havia feito um longo
passeio a cavalo com o dono da casa, vestindo meu traje de noite e sem cela, depois que ele
me desafiou a fazê-lo e apostasse que não o faria. Foi para demonstrar que eu era tão boa
montando como qualquer cowboy. Tive um tio na Venezuela dono de um haras, e montava
desde que era muito pequena. Após ganhar a aposta, mareada pelo esforço e pelo álcool,
arrematei minha façanha mergulhando nua na piscina.
—Foi ali, na piscina, onde você se exibiu pelada — disse Florinda, obviamente a par de
meus pensamentos. —Me roçou com suas nádegas desnudas, e escandalizou a todos,
inclusive a mim. Me agradou sua ousadia, sobretudo a atitude de caminhar nua de um lado
ao outro da piscina, nada mais que para esfregar-se contra mim. O tomei como uma
indicação de que o espírito te estava assinalando para benefício meu.
—Não pode estar certo — murmurei —, se tivesse estado nessa festa eu me lembraria de
você. É muito alta e chamativa para passar inadvertida. — não disse isso em som de elogio.
Queria convencer-me de que estava sendo enganada, manipulada.
—Me agradou isso de você estar se matando para exibir-se — continuou Florinda. —Era
um palhaço ansioso por chamar a atenção por qualquer meio, em especial quando saltou
sobre uma mesa e dançou sacudindo sua bunda desavergonhadamente enquanto o anfitrião
gritava como louco.
Ao invés de envergonhar-me, seus comentários me produziram uma sensação incrível de
tranquilidade e agrado. Se havia feito público meu segredo, o que jamais me havia animado
a admitir: eu era uma exibicionista capaz de qualquer ato que centrasse a atenção em mim.
Dominou-me um novo estado de ânimo, definitivamente mais humilde, menos defensivo,
mas temi que este estado seria de curta duração. Sabia que as percepções e as realizações às
quais alcancei em sonhos jamais foram duradouras. Mas talvez Florinda estivesse certa e
não era este um sonho, e por conseguinte meu exaltado estado perduraria. Evidentemente
conhecedora de meus pensamentos, as três mulheres concordaram de maneira enfática, o
qual, em lugar de estimular-me, só fez reavivar minha incerteza. Tal como temia, meu
estado perceptivo foi efêmero. Em poucos minutos fervia de dúvidas, e precisava de uma
trégua.
—Onde está Delia? — perguntei.
—Em Oaxaca — informou Florinda, e depois acrescentou sutilmente: —Esteve aqui nada
mais que para saudar-lhe.
Pensei que se mudasse de assunto conseguiria um respiro e a oportunidade de recuperar
minhas forças, mas agora enfrentava algo contra o qual me encontrava desprovida de
recursos. Não podia acusar a Florinda de mentir deliberadamente para manipular-me, o qual
normalmente teria feito com qualquer um. Não podia argumentar que suspeitava que me
houvessem drogado e levado de quarto em quarto enquanto estava inconsciente.
—O que você disse, Florinda, é absurdo — a censurei. —Sem dúvida não esperará que te
leve a sério. Sei que Delia está escondida em um dos quartos.
Os olhos de Florinda pareciam dizer-me que entendia meu dilema.
—Não tem outra alternativa que a de levar-me a sério — e apesar do tom ser moderado, a
intenção era categórica.
Virei-me até as outras duas mulheres, com a esperança de obter algum tipo de resposta,
qualquer coisa capaz de apaziguar meu crescente temor.
—Se outra pessoa lhe guia é muito fácil ensonhar — confiou-me Carmela. —A única
desvantagem é que essa pessoa precisa ser um nagual.
—Faz tempo que venho escutando essa palavra. O que é um nagual?
—Um nagual é um feiticeiro de grande poder, que pode conduzir a outros feiticeiros
através da escuridão e levá-los à luz — explicou Carmela —, mas o nagual já lhe disse isso,
não se lembra?
Florinda intercedeu ao comprovar o esforço que eu fazia para recordar.
—Os acontecimentos de nossa vida cotidiana são fáceis de recordar. Temos muita prática
nela, mas os que vivemos em ensonhos são farinha de outro saco. Precisamos lutar muito
para recuperá-los, simplesmente porque o corpo os armazena em diferentes lugares. Com
mulheres que não possuem seu cérebro de sonâmbula — continuou — as instruções para
ensonhar começam por fazer com que desenhem um mapa de seus corpos, um trabalho
cuidadoso que revela onde as visões dos ensonhos são armazenadas.
—Como se traça esse mapa, Florinda? — perguntei, autenticamente intrigada.
—Percorrendo e investigando cada polegada do corpo, mas não posso dizer mais. Sou sua
mãe, não sua mestra de ensonho. Sua mestra recomenda um martelinho de madeira para
golpear o corpo e tatear somente as pernas e os quadris, pois muito raramente o corpo
armazena estas memórias no peito ou no ventre. O que se guarda no peito, costas e ventre
são as lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A única coisa que diz respeito a
você agora é que recordar ensonhos tem a ver com a pressão física sobre o ponto específico
onde está armazenada essa visão. Por exemplo — terminou dizendo com amável
simplicidade — se empurrar sua vagina pressionando o clitóris, recordará o que te disse
Mariano Aureliano.
Olhei-a espantada, e depois caí num acesso de risinhos nervosos. Não pensava empurrar
nada. Florinda também riu, ao parecer estar desfrutando de meu desconcerto.
—Se não o fizer — ameaçou —, então terei que fazer com que Carmela o faça por você.
Virei-me até Carmela, que com um sorriso a ponto de tornar-se gargalhada, me assegurou
que o faria.
—Não faz falta! — gritei. —Eu lembro de tudo! — e de verdade o recordava, e não só o
dito por Mariano Aureliano. —O senhor Aureliano...
Carmela não me permitiu continuar.
—Clara lhe disse que o chame de nagual Mariano Aureliano.
—Os ensonhos são portas que conduzem ao desconhecido — disse Florinda, acariciando
minha cabeça. —Os naguais guiam por meio de ensonhos, e o ato de ensonhar com um
propósito é a arte dos feiticeiros. O nagual Mariano Aureliano tem lhe ajudado a chegar aos
ensonhos que todos nós ensonhamos.
Pisquei repetidas vezes, sacudi a cabeça, e depois me deixei cair sobre os almofadões do
divã, espantada pelo absurdo do quanto estava recordando. Lembrei ter sonhado com eles
um ano atrás em Sonora, um sonho que pareceu durar eternamente. Nesse sonho conheci a
Clara, Nélida e Hermelinda, a equipe de ensonhadoras. Disseram-me que quem dirigia essa
equipe era Zuleica, mas que eu ainda não podia sonhar com ela.
À medida que a memória desse sonho se aclarava, também se fez claro que entre essas
mulheres nenhuma era mais ou menos que a outra. Que uma de cada grupo fosse líder de
nenhuma maneira implicava poder, prestígio ou realização, mas sim por uma simples
questão de eficiência. Não sei por que, mas eu estava convencida de que a única coisa que a
elas importava era o profundo afeto existente entre elas.
Naquele sonho todos me haviam dito que Zuleica era minha professora de ensonhos; era
tudo o que podia recordar. Tal como me havia dito Clara, necessitava vê-las ou sonhar com
elas uma vez mais para cimentar meu conhecimento de suas personalidades. No momento
não passavam de lembranças incorpóreas.
Vagamente escutei a Florinda dizer que depois de outras poucas tentativas eu melhoraria
em mover-me de minha lembrança de um ensonho ao ensonho que estava ensonhando, e
depois ao estado normal de consciência. Escutei Florinda rindo, mas eu já não estava na
casa e sim fora, caminhando através do chaparral, lentamente, por uma trilha invisível, e
um tanto intranquila devido à falta de luz, lua ou estrelas.
Atraída por uma força invisível entrei num aposento grande, escuro salvo por umas linhas
de luz que cruzavam de parede a parede sobre as cabeças daqueles que estavam sentados
em dois círculos, um externo e outro interno, linhas que aumentavam e diminuíam de
intensidade como se alguém no círculo manipulasse um interruptor que acendia e apagava a
corrente.
Reconheci a Mariano Aureliano e a Isidoro Baltazar, sentados costas contra costas no meio
do círculo interior. Reconheci tanto seus rostos como sua energia, a qual não era mais
brilhante ou intensa que a dos outros, e sim mais massiva, mais volumosa; um esplêndido e
enorme montão de brilho inacabável.
O quarto emitia um brilho límpido e tudo, cada ângulo, cada esquina, reluzia uma força
quase irreal. Tal era a claridade que tudo se destacava em separado, em especial aquelas
linhas de luz aderidas às pessoas sentadas no círculo, ou que emanavam delas. Todas elas
estavam conectadas por raios luminosos que pareciam os pontos de suspensão de uma
gigantesca teia de aranha, e se comunicavam sem palavras através da luz. Me vi atraída em
direção a essa tensão elétrica e silenciosa, até converter-me eu também num ponto dessa
rede de luminosidade.
—O que vai acontecer? — perguntei a Florinda. Encontrava-me estirada no divã com a
cabeça em seu colo.
Não respondeu; tampouco Carmela nem Zoila, que estavam sentadas ao seu lado com os
olhos fechados. Repeti a pergunta várias vezes, mas só obtive como resposta a suave
respiração das três mulheres. Tinha a certeza de que dormiam, e no entanto sentia sobre
mim a presença de seus olhos. O silêncio e a escuridão rondavam a casa como algo vivo,
trazendo com eles um vento gelado e o perfume do deserto.
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
A cama era grande, branda e confortável. Uma irradiação aurífera enchia o quarto, e na
esperança de prolongar esse momento de bem-estar fechei os olhos e mergulhei numa
felicidade sonolenta, entre fragrantes lençóis de linho e o aroma de travesseiros perfumados
com lavanda. Sentia tensos cada músculo e cada osso de meu corpo ao recordar os
acontecimentos da noite, fragmentos desunidos de um sonho horrível. Não existia
continuidade nem sequência linear em tudo o que experimentei durante essas horas
intermináveis. Duas vezes despertei aquela noite em camas diferentes, em quartos distintos,
inclusive em casas distintas.
Se diria que essas imagens separadas possuíam vida própria, pois de repente se empilharam
e se expandiram para formar um labirinto que, de alguma maneira, consegui compreender.
Melhor dizendo, percebi cada evento simultaneamente. A sensação dessas imagens,
nascendo de minha cabeça para formar uma enorme e caprichosa touca, era tão forte que
saltei da cama para chegar até a cômoda de aço e vidro, cujo espelho de três painéis
encontrei coberto com papel arroz. Tentei arrancar um pedaço desse papel, mas estava
aderido como uma pele. Ver o jogo de escova e pentes montados sobre prata, os frascos de
perfume e os potes de cosméticos sobre a cômoda, teve sobre mim um efeito tranquilizante,
pois também eu os teria disposto por tamanho como ferramentas. De algum modo soube
que me encontrava no quarto de Florinda, na casa das bruxas, e isto restabeleceu meu
sentido de equilíbrio.
O quarto de Florinda era enorme, e a cama e a cômoda seus únicos móveis. Estavam
localizadas em cantos opostos, em ângulo, e separadas das paredes, deixando atrás delas um
espaço triangular. Esta disposição não deixou de intrigar-me, pois não sabia se era em
resposta a alguma trama esotérica cujo significado me escapava, ou se simplesmente
respondia ao capricho estético de sua dona.
Senti curiosidade pelas três portas do quarto. E meu desejo de saber para onde conduziam
me levou a prová-las. A primeira estava fechada por fora, a segunda abria a um pequeno
pátio, retangular e amuralhado. Estudei intrigada o céu, até que por fim me dei conta de que
não era de manhã, tal qual supus ao despertar, mas o fim da tarde. Não me preocupava o
fato de haver dormido todo o dia: ao contrário, me senti feliz, pois convencida de ser uma
insone crônica, sempre me extasia o exceder-me em dormir. A terceira porta abria a um
corredor, e ansiosa por encontrar a Isidoro Baltazar me dirigi à sala, que encontrei vazia.
Havia algo imponente na maneira prolixa e simples em que estava disposto o mobiliário.
Nada induzia a crer que o sofá e as poltronas tivessem sido ocupados na noite anterior. Até
as almofadas estavam esticadas como soldados em posição de sentido. Também o
refeitório, seguindo pelo corredor, parecia abandonado. Nem uma cadeira fora de lugar,
nem uma migalha, nem uma mancha sobre a lustrada superfície da mesa de caoba, nada
delatava o fato de que na noite anterior eu havia ceiado ali com o nagual Mariano Aureliano
e o senhor Flores.
Na cozinha, separada do refeitório por um pórtico e um estreito vestíbulo, encontrei um
jarro com restos de champurrada e um prato tampado, de tamales doces. A fome me fez
resistir ao incômodo de esquentá-los. Me servi uma caneca do espesso chocolate e comi os
três tamales diretamente de seus pacotes. Tinham recheio de pedaços de pinha, uvas passas
e amêndoas, que achei deliciosos.
Era-me inconcebível que me tivessem deixado sozinha na casa, mas não podia ignorar o
silêncio que me rodeava. Não era a paz reconfortante que se percebe quando os moradores
deliberadamente se abstêm de fazer ruídos, antes era o rotundo silêncio de lugar deserto, e a
possibilidade de ter sido abandonada me fez engasgar com um pedaço de tamale.
De volta ao quarto de Florinda me detive ante cada porta para golpear repetidas vezes e
perguntar “Tem alguém em casa?”; ninguém respondeu. Estava a ponto de sair ao pátio
quando ouvi com nitidez uma voz que perguntava:
—Quem chama? — voz profunda e áspera cujo sexo não pude determinar, assim como
tampouco a direção de onde vinha.
Retrocedi e repeti a pergunta a plenos pulmões. Ao chegar ao extremo do corredor parei um
instante frente a uma porta fechada, depois acionei a maçaneta e entrei. Com os olhos
fechados, apoiada contra a parede, esperei até que se normalizassem as batidas de meu
coração, e pensei com antecipada culpa nas consequências que podia acarretar-me o fato de
ser surpreendida ali. Mas minha curiosidade venceu, superei a sensação de estar cometendo
um ato delituoso, e aspirei o ar de encanto e de mistério que impregnava o cômodo.
Pesadas cortinas escuras impediam toda a claridade, e a iluminação vinha de uma lâmpada
cujo enorme abajur adornado com franjas vertia um círculo de luz amarela sobre o sofá
próximo à janela. No próprio centro uma cama de quatro colunas, com dossel e cortinado,
dominava tudo qual se fosse um trono, e as figuras orientais de bronze e madeira, talhadas a
mão e dispostas sobre as quatro mesinhas situadas em cada canto, pareciam ser as
sentinelas celestiais que guardavam o aposento. Livros, papéis e jornais estavam
amontoados sobre a escrivaninha e sobre um armário; a cômoda carecia de espelho, e em
lugar de pente e escova, ou frascos de perfume e cosméticos, a superfície de vidro estava
coberta por uma coleção de pequenas taças. Colares de pérolas, correntes de ouro, anéis e
broches transbordavam das taças de bordas douradas como tesouros abandonados, e
reconheci dois dos anéis por tê-los visto nas mãos de Zoila.
Reservei para o final a inspeção da cama. Quase com reverência, como se de fato se tratasse
de um trono, corri o cortinado e emiti uma exclamação de gozo: as almofadas brilhantes
sobre a colcha verde me lembravam flores silvestres num prado. Contudo, não pude
impedir que um calafrio sacudisse meu corpo, pois só podia atribuir a uma ilusão esse calor
e mistério que o quarto exalava.
A sensação de ter-me introduzido em algum tipo de miragem se fez mais pronunciada no
terceiro cômodo, que a princípio também me pareceu cálido e amistoso. O próprio ar era
suave e afetuoso, ecos de risos pareciam repicar de suas paredes, porém esta atmosfera era
tão tênue e fugaz como a luz do entardecer infiltrando-se através do cortinado transparente
de uma janela. Como no outro quarto, a cama, também com dossel, e decorada com
almofadas multicolores distribuídas ao acaso, dominava o espaço. Uma máquina de costura
descansava contra uma parede: velho artefato de pé, pintado a mão. Junto a ela havia uma
biblioteca, cujas estantes se viam forradas com rolos das mais finas sedas, algodões e
gabardines de lã, prolixamente empilhados por cor e por textura. Seis perucas de diferentes
cores, estendidas sobre cabaças, estavam em exibição sobre uma mesa baixa junto à janela,
entre elas a peruca loira que usou Delia Flores, e a escura e esquisita que Mariano
Aureliano me enfiou na cabeça no dia do incidente da cafeteria de Tucson.
O quarto cômodo estava um tanto afastado dos outros, e do outro lado do vestíbulo.
Comparado com os demais dava a impressão de estar vazio. Os últimos raios do sol da
tarde, infiltrando através de uma parede treliçada, jaziam no piso como um tapete de luzes e
sombras, trama ondulante e retangular. As poucas peças de mobília estavam tão
engenhosamente distribuídas que faziam com que parecesse maior do que na realidade era.
Estantes baixas para livros, com portas de vidro, se alinhavam junto às paredes, e num
extremo do cômodo havia uma cama estreita cuja manta com quadrinhos cinzas e brancos
pendia até o piso e fazia jogo com as sombras no piso. A delicada secrétaire de madeira
rosa, com sua cadeira de igual madeira com bronze, antes aumentava que reduzia a
sensação espartana do ambiente. Sabia que era o quarto de Carmela.
Gostaria de ter examinado os títulos dos livros, mas minha ansiedade era muito grande, e
como perseguida por alguém, saí precipitadamente ao corredor e dali ao pátio. Sentei-me
numa cadeira de junco: tremia e transpirava, e apesar disso sentia as mãos geladas. Não era
por causa da culpa que tremia (não me teria importado que me surpreendessem xeretando) e
sim a estranha, não mundana, qualidade que distinguia esses quartos tão lindamente
mobiliados, a quietude aderida às paredes era uma quietude singular que nada tinha a ver
com a ausência de seus moradores, mas sim com a ausência dos sentimentos e emoções que
normalmente distinguem os lugares habitados.
Eu havia rido comigo mesma cada vez que alguém se referia às mulheres como bruxas e
feiticeiras. Nem se pareciam ou se comportavam como se espera que façam as bruxas:
extravagantemente dramáticas e sinistras. Mas agora não me cabia dúvida alguma de que
eram diferentes de outros seres humanos. Assustava-me que fossem diferentes de uma
maneira para mim incompreensível e inconcebível.
Um som suave e raspante pôs fim a meus inquietantes pensamentos, e em busca de sua
origem deslizei na ponta dos pés pelo corredor, afastando-me dos dormitórios em busca dos
fundos da casa. O ruído emanava de um quarto detrás da cozinha, mas quando cheguei a ele
e encostei meu ouvido na porta, parou, para reiniciar assim que me afastei. Intrigada,
aproximei de novo minha orelha e outra vez parou, e assim várias vezes, como se o som e o
consequente silêncio dependessem de meus movimentos.
Decidida a descobrir quem se escondia ou, pior ainda, quem deliberadamente tratava de
assustar-me, busquei a maçaneta da porta, mas ao não poder abrir lutei vários minutos antes
de me dar conta de que estava fechada, e com a chave na fechadura.
Nem bem me encontrei dentro pensei que alguém perigoso bem podia, por muitas boas
razões, estar encerrado neste aposento. Uma penumbra opressiva se aderia às pesadas
cortinas fechadas, como algo vivo que atraía às sombras de toda a casa até esse recinto
enorme. A luz se enfraqueceu, as sombras se engrossaram ao redor do que pareciam ser
móveis descartados, e de figuras incomuns, enormes e pequenas, feitas de madeira e de
metal.
O mesmo som raspante que me trouxe a este quarto quebrou o silêncio. As sombras se
deslizavam pelo quarto como felinos em busca de uma presa, enquanto gelada de terror eu
observava como a cortina batia e respirava igual a um dos monstros de meus pesadelos. De
repente cessaram o som e o movimento, fazendo ainda mais temível a resultante quietude e
silêncio, e já me dispunha a abandonar o lugar quando o ruído recomeçou. Então, armando-
me de valor, cruzei o quarto e descorri o cortinado, e soltei uma risada ao comprovar que
através do vidro quebrado da janela o vento havia estado chupando e soprando a cortina.
A luz declinante da tarde, ao penetrar pelas cortinas semi-abertas, reagrupava as sombras e
revelava um espelho ovalado quase escondido por uma das estranhas figuras de metal.
Consegui deslizar-me entre a escultura e a parede para contemplar embelezada o velho
espelho veneziano, manchado e gasto pelos anos, que ao distorcer grotescamente minha
imagem me obrigou a fugir do lugar.
Saí afora pela porta traseira e encontrei deserta a ampla clareira detrás da casa. O céu
seguia brilhante, mas as altas árvores de frutas já haviam adquirido os tons do crepúsculo.
Um bando de corvos passou voando, suas negras asas escureceram a luz, e se fez noite
sobre o lugar. Dominada pela tristeza e a desesperança me sentei no chão e chorei, e quanto
mais forte era meu pranto maior prazer me ocasionava lamentar-me em viva voz. O ruído
de um rastelo me tirou de meu lamento, e ao levantar a vista vi a uma pessoa ágil
arrastando folhas em direção a um fogo que ardia nos fundos do pátio.
—Esperanza! — gritei, correndo até ela, mas me detive ao comprovar que não era ela e sim
um homem quem manipulava o rastelo. — Eu lamento — murmurei —, o confundi com
outra pessoa — e lhe estendi minha mão para apresentar-me. Procurei não olhá-lo muito
fixamente, mas não pude evitar, pois não estava de todo segura de que não se tratasse de
Esperanza disfarçada de homem.
Apertou minha mão suavemente, e a título de apresentação anunciou que era o “cuidador”.
Não disse seu nome. Quando tive sua mão na minha me pareceu tão frágil como a asa de
um pássaro; também seu rosto tinha algo de pássaro, aquilino e de olhos vivos, cabelo
branco semelhante a plumas e penacho. Em suma, um homem fraco e antigo. Mas não eram
só sua aparência de passarinho e sua delicadeza as que me faziam lembrar a Esperanza,
como também o rosto enrugado e carente de expressão, os olhos límpidos e brilhantes como
os de uma criança, e os dentes pequenos, quadrados e muito brancos.
—Sabe onde está Florinda? — perguntei, e ante sua resposta negativa acrescentei: —E os
outros?
Aguardou num amplo silêncio, e depois, como se eu não tivesse feito pergunta alguma,
repetiu que era o cuidador.
—Eu cuido de tudo o que está aqui — disse.
—Não me diga? — perguntei, observando-o com desconfiança. Tal era sua fragilidade que
era difícil concebê-lo cuidando de algo, inclusive de si mesmo.
—Cuido de tudo — repetiu com um doce sorriso, destinado talvez a eliminar minhas
dúvidas, e parecia estar a ponto de acrescentar algo quando mudou de idéia, mordeu
pensativo seu lábio inferior, para logo dar meia volta e continuar reunindo as folhas num
pequeno monte, mediante hábeis movimentos de sua ferramenta.
—Onde estão todos? — perguntei.
Com a testa descansando sobre a mão que segurava o rastelo me dirigiu uma olhada
ausente. Depois, com um sorriso vazio, olhou ao redor como se a qualquer momento
alguém pudesse aparecer por detrás de uma das árvores de frutas. Com um forte e audível
suspiro eu estava prestes a me retirar. Ele limpou sua garganta, e com voz rouca e gasta
pelos anos, disse:
—O velho nagual levou a Isidoro Baltazar às montanhas. — não me olhou; seus olhos
enfocavam algo na distância. —Regressarão em alguns dias.
—Dias! — gritei indignada. —Está certo de ter escutado bem? — e abatida por haver se
concretizado meu maior temor, só pude murmurar: —Como podem ter me deixado sozinha
desta maneira?
—Partiram de noite. — informou o velho, ao mesmo tempo em que recobrava uma folha
que o vento lhe havia roubado.
—Isso é impossível, acabamos de chegar de noite — retruquei. —Bem tarde.
Indiferente à minha presença e meu tom agressivo, o velho botou fogo no monte de folhas.
—Isidoro Baltazar deixou alguma mensagem para mim? — perguntei, ficando de cócoras
junto a ele. —Não deixou nada dito para mim ou algo parecido? — sentia vontade de gritar,
mas algo me impedia disso. Um certo aspecto mistificador do velho me desconcertava, e a
idéia de que pudesse ser Esperanza disfarçada não me havia abandonado ao todo.
—E Esperanza, foi com eles para as montanhas? — perguntei, e minha voz tremeu, atacada
por um súbito e desesperado desejo de rir. A não ser que abaixasse suas calças e me
mostrasse seus genitais, nada que ele fizesse poderia me convencer de que era homem.
—Esperanza está na casa — murmurou, sua atenção fixa no monte de folhas fumegantes.
—Está na casa com os demais.
—Não seja ridículo, ela não está na casa — o contradisse de mau modo. —Não há ninguém
na casa. Eu os estive buscando toda a tarde, e revistei todos os quartos.
—Está na casa pequena — repetiu o velho com obstinação, transferindo seu intenso olhar
das folhas ao meu rosto. O brilho malicioso de seus olhos fez com que eu desejasse chutá-
lo.
—Que pequena…? — não completei a pergunta, pois lembrei da outra casa que havia visto
quando chegamos, e a lembrança chegou a me causar uma dor física.
—Deveria de ter me dito desde o princípio que Esperanza estava na casa pequena — o
censurei, enquanto sub-repticiamente buscava o lugar, oculto de minha vista pelas grandes
árvores e por uma parede. —Irei ver se é verdade que Esperanza está lá como disse — e
fiquei de pé.
O velho também se levantou, e da árvore mais próxima pegou uma lamparina e um saco de
estopa que estavam pendurados num galho baixo. —Eu sinto muito, mas não posso deixá-la
ir lá sozinha — anunciou.
—Não vejo por que não? — respondi incomodada. —Talvez não o saiba, mas sou hóspede
de Florinda. Me levaram à casinha de noite. — fiz uma pausa antes de acrescentar: —
Estive lá, não duvide disso.
Escutou com atenção, mas a dúvida se refletia em seu rosto.
—É complicado chegar lá — advertiu —, preciso lhe preparar o caminho. Preciso… —
pareceu parar no meio de um pensamento que não desejava expressar. Encolheu-se de
ombros e repetiu o referente à preparação do caminho.
—O que é que tem que preparar? Tem que se abrir caminho pelo chaparral com um facão?
— perguntei sem ocultar minha irritação.
—Sou o cuidador. Eu preparo o caminho — repetiu com obstinação, e se sentou no chão
para acender a lamparina de azeite. Antes de acender-se satisfatoriamente, a lamparina
apresentou problemas. Depois, sob sua luz, os traços do velho pareceram descamados, sem
rugas, como se essa luz tivesse apagado os maus-tratos do tempo.
—Assim que terminar de queimar estas folhas te levarei até lá.
—Eu lhe ajudarei — retorqui.
Era óbvio que estava senil e necessitava que o satisfizessem. Colaborei com ele juntando as
folhas em pequenos montículos que ele de imediato queimava, para colocá-las no saco de
estopa assim que se esfriavam. O interior da bolsa estava recoberto de plástico. E foi este
detalhe, o forro plástico, o que ressuscitou uma lembrança quase esquecida de minha
infância.
Enquanto juntávamos as folhas na bolsa contei-lhe que de menina, vivendo num povoado
vizinho à Caracas, com frequência me despertava o ruído de um rastelo. Então me escapulia
da cama, e com passo de gato deixava para trás os dormitórios dos meus pais e irmãos, e
chegada ao quarto que ficava de frente à praça, com extremo cuidado por causa das
dobradiças traiçoeiras, abria as persianas de madeira e me deslizava por entre as barras de
ferro. O velho, a cujo encargo estava a limpeza da praça, me dava as boas-vindas com um
sorriso desdentado, e juntos costumávamos recolher as folhas caídas durante a noite em
pequenos montículos, relegando os demais dejetos às latas de lixo. Queimávamos as folhas
e, ao esfriarem-se, as metíamos em um saco de estopa forrado de seda. Segundo o velho, as
fadas aquáticas que moravam num riacho sagrado nas montanhas próximas convertiam as
cinzas em pó de ouro.
—Também conhece às fadas que transformam as cinzas em pó de ouro? — perguntei ao
perceber o quão feliz que estava o velho com o conto.
Não respondeu, mas riu com tal prazer e abandono que não pude fazer menos que juntar-me
à sua felicidade. Logo chegamos ao último montículo de cinzas junto ao portão em arco
implantado na parede: o portão de madeira estava aberto de par em par. Do outro lado do
chaparral, quase oculta em sombras, encontrava-se a outra casa. Nenhuma luz brilhava em
suas janelas, e me deu a impressão de que se afastava de mim. Perguntei-me se tudo não
seria mais que fruto de minha imaginação, um lugar recordado em um sonho, e pisquei
repetidas vezes e esfreguei meus olhos. Decidi que algo andava mal ao lembrar minha
chegada à casa das bruxas na noite anterior com Isidoro Baltazar. A casa menor ficava à
direita da maior. Como, então, a via agora do pátio traseiro da casa das bruxas? Em minha
tentativa por orientar-me me movi de um lado a outro, choquei-me com o velho, agachado
junto a um monte de cinzas, e cai no chão. Com incrível agilidade ficou pé e me ajudou a
levantar.
—Está cheia de cinzas — disse, limpando-me o rosto com o punho recolhido de sua camisa
de trabalho.
—Lá está! — gritei. Recortada nitidamente contra o céu a casa esquiva parecia estar a
poucos passos. —Lá está. — repeti, e comecei a saltar como se com esses pulos conseguiria
reter a casa em seu lugar e no tempo. —Essa é a verdadeira casa das bruxas — acrescentei,
enquanto deixava que o velho continuasse com a limpeza de meu rosto —, a casa grande é
só uma fachada.
—A casa das bruxas — repetiu ele, lentamente, saboreando cada palavra, para depois
gargalhar, parecendo se divertir.
Enfiou as últimas cinzas em sua bolsa, e com um sinal me convidou a segui-lo. Dois pés-
de-laranja cresciam do outro lado do portão, afastados da parede. Uma brisa fresca soprava
através de seus galhos floridos, mas as flores em si não se moviam, não caíam ao chão.
Contra a escura folhagem, pareciam talhadas em quartzo leitoso. Como sentinelas, as duas
árvores guardavam o estreito caminho, branco e muito reto, como traçado com uma régua.
O velho me entregou a lamparina; depois extraiu um punhado de cinzas da bolsa, as quais
passou várias vezes de uma mão à outra, como se as pesasse, antes de espalhá-las pelo
chão.
—Não faça perguntas e siga minhas instruções — disse numa voz já não rouca, e sim
dotada de uma qualidade aérea, enérgica e convincente. Levemente encurvado e
caminhando para trás deixou que o resto das cinzas caíssem da bolsa sob o estreito
caminho.
—Mantenha seus pés na linha das cinzas — advertiu. —Se não o fizer nunca chegará na
casa.
Tossi para esconder meu riso nervoso, e estendendo os braços encarei a estreita linha de
cinzas como se caminhasse por uma corda bamba: e cada vez que parávamos para permitir
ao velho recuperar o fôlego, me virava para olhar a casa recém abandonada, a qual parecia
afastar-se apesar de que a outra não dava a impressão de aproximar-se. Tentei me
convencer de que se tratava de uma ilusão de ótica, mas me pesou a vaga certeza de que
jamais alcançaria uma ou outra casa se o tentasse por minha conta. Diria-se que o velho
percebeu meus temores, pois segurou meu braço para dar-me ânimo.
—Por isso estou preparando o caminho — explicou, e olhando dentro de sua bolsa
acrescentou: —Não tardaremos a chegar. Lembre-se de manter seus pés sobre a linha de
cinzas. Se o fizer poderá transitar sem problema num ou noutro sentido a qualquer
momento.
Minha mente me dizia que o homem era um louco, mas meu corpo sabia que sem ele e suas
cinzas eu estava perdida. E tão absorta estive em manter meus pés sobre a linha que me
surpreendeu quando finalmente nos encontramos frente à porta. O velho pegou de volta a
lamparina, limpou sua garganta e depois golpeou suavemente com os nós dos dedos sobre o
painel entalhado. Não esperou resposta, empurrou e entramos.
—Não vá tão rápido! — gritei, temerosa de ser deixada para trás.
O segui por um estreito vestíbulo, onde deixou a lamparina sobre uma mesa baixa, e logo a
seguir, sem uma palavra, e sem sequer olhar atrás, abriu uma porta e desapareceu tragado
pela escuridão. Guiada por uma vaga lembrança entrei no quarto adjacente, apenas
iluminado, e de imediato me dirigi à esteira que cobria o piso. Não tinha a menor dúvida de
ter estado ali e dormido sobre essa esteira na noite anterior, mas não estava tão segura sobre
o jeito em que cheguei. Que Mariano Aureliano me havia carregado em suas costas através
do chaparral estava claro em minha mente, como também ter despertado nesse quarto com
Clara ao meu lado, antes de ser levada pelo velho nagual.
Confiante de que tudo me seria explicado em breve me sentei sobre a esteira. A luz da
lamparina vacilou e depois se apagou, e pressenti, mais que vi, coisas e pessoas movendo-
se ao redor. Escutei o murmúrio de vozes e sons intangíveis surgindo de cada canto, e entre
todos eles reconheci um familiar frufru de saias e um suave risinho.
—Esperanza? — sussurrei. —Meu Deus, não sabe quanto me alegra por lhe ver! — e
apesar de ser ela quem me esperava, me surpreendi quando a tive a meu lado. Timidamente
toquei seu braço.
—Sou eu — me assegurou.
Apenas escutar sua voz me convenceu de que na verdade era Esperanza, e não o cuidador,
que havia trocado sua roupa de trabalho caqui por anáguas sussurrantes e um vestido
branco. Quando senti o toque tranquilizante de sua mão sobre meu rosto desapareceu toda a
preocupação pelo cuidador.
—Como cheguei aqui? — perguntei.
—O cuidador te trouxe — respondeu rindo. —Não lembra? — e virando-se até a mesa
acendeu de novo a lamparina.
—Falo da outra noite — esclareci. —Sei que estive aqui, despertei sobre esta esteira. Clara
estava comigo, e Florinda, e as outras mulheres… — e minha voz apagou ao lembrar que
depois havia despertado na sala da outra casa, e depois sobre uma cama. Sacudi a cabeça,
como para por ordem em minhas lembranças. Sentindo-me desamparada olhei para
Esperanza, confiante de que ela estava enrolando, e lhe falei das dificuldades que estava
experimentando para recordar, em sua ordem seqüencial, dos acontecimentos daquela noite.
—Não deveria ter problemas — respondeu. —Meteu-se no trilho dos ensonhos. Agora está
ensonhando desperta.
—Quer dizer que neste exato instante estou dormindo? — perguntei brincando. —Você
também dorme?
—Não estamos dormindo — respondeu, articulando suas palavras com cuidado. —Você e
eu estamos ensonhando despertas — e elevando suas mãos num gesto desvalido,
acrescentou: —Eu lhe disse isso no ano passado. Lembra?
Tive de repente um pensamento salvador que chegou como se dito por alguém em meu
ouvido: na dúvida a pessoa deve separar os dois trilhos, o dos assuntos ordinários e o dos
ensonhos, já que cada um tem um diferente estado de consciência. Isso me levantou o
ânimo, pois sabia que o primeiro a ser examinado era o dos ensonhos; se a situação não
corresponde a este trilho então a pessoa não está ensonhando. Meu júbilo desapareceu
quando tentei examinar o trilho dos ensonhos. Não tinha noção de qual era, nem de como se
faz, para proceder à sua revisão e, para piorar, não lembrava quem me havia recomendado
este procedimento.
—Fui eu — revelou Esperanza. —Você tem avançado muito no reino dos ensonhos. Quase
recordou o que te disse o ano passado, no dia depois da comida. Disse então a você que
quando duvidar sobre se está ou não ensonhando, precisa examinar o trilho pelo qual
marcham os ensonhos, significando com isto que precisa examinar o grau de consciência
que temos nos ensonhos, sentindo aquele com o qual está nesse momento em contato. Se
está ensonhando, esse sentir regressa a você como um eco; se não regressar, é sinal de que
não está ensonhando.
Sorrindo, beliscou minha coxa e disse:
—Prove com esta esteira sobre a qual está recostada. Experimente com suas nádegas. Se
obter resposta, então está ensonhando…
Minhas intumescidas nádegas não receberam resposta. De fato, eu estava tão intumescida
que nem sequer sentia a esteira. Tinha a sensação de estar estendida sobre as ásperas lajotas
do chão. Experimentei um forte desejo de informar-lhe que deveria imperar o oposto: caso
se receba resposta, então se está desperto, mas me detive a tempo pois sabia, acima de
qualquer dúvida, que para ela o significado de “o sentir que regressa como um eco” nada
tinha a ver com nosso conhecido e aceito entendimento do que é uma sensação ou um eco.
A diferença entre estar desperta e ensonhar desperta me escapava, apesar de minha certeza
de que essa diferença não coincidia em absoluto com nossa maneira convencional de
entender a consciência. No entanto, nesse momento, as palavras abandonavam minha boca
sem controle de minha parte. Disse:
—Sei que estou ensonhando desperta e ponto final. — Pressenti a estar aproximando-me a
um novo e mais profundo nível de compreensão que, contudo, não conseguia assimilar. —
O que queria saber é: quando eu dormi? — perguntei.
—Já te disse, não está adormecida. Está ensonhando desperta.
Sem querer comecei a rir de maneira tranquila, mas visivelmente nervosa. Ela não pareceu
notá-lo nem importar-se.
—Quando teve lugar a transição? — perguntei.
—Quando o cuidador te estava fazendo cruzar o chaparral, e tinha que concentrar-se em
manter seus pés sobre as cinzas.
—Deve ter me hipnotizado! — disse de não muito bom grado.
Comecei a falar de forma incoerente, enredando-me em palavras sem conseguir que elas
tivessem sentido, para terminar chorando e denunciando a todos. Esperanza me observou
em silêncio, sobrancelhas levantadas e olhos abertos em atitude de surpresa. De imediato
lamentei meu rompante, apesar de que me satisfez o fato de ter falado, pois senti um
momentâneo alívio do tipo que se experimenta depois de uma confrontação.
—Sua confusão se origina em sua facilidade para passar de um tipo de consciência a outra.
Se tivesse tido que lutar para conseguir isso, como o faz todo mundo, então saberia que o
ensonhar desperto não é somente hipnose. — Esperanza fez uma pausa antes de continuar.
—O ensonhar desperto é o estado mais sofisticado que os seres humanos podem conseguir.
Olhou em direção às sombras do quarto, como se de lá alguém pudesse lhe fornecer uma
explicação mais clara. Depois, virando-se para mim, perguntou:
—Você comeu sua comidinha?
A mudança de assunto me surpreendeu, e comecei a balbuciar. Ao recobrar-me, disse-lhe
que, de fato, havia comido os tamales doces, que havia tido tanta fome que nem me
incomodei em esquentá-los, e que estavam deliciosos. Enquanto brincava com seu chale
Esperanza me pediu uma detalhada versão de tudo o que havia feito desde meu despertar no
quarto de Florinda. Como se me tivessem administrado uma poção reveladora da verdade,
soltei mais do que era minha intenção divulgar. A Esperanza não pareceu importar-lhe
minha passagem pelos quartos das mulheres, nem lhe impressionou o fato de que eu
soubesse qual quarto correspondia a cada uma. O que se lhe interessou, não obstante, foi
meu encontro com o cuidador, e com um sorriso de inocultável felicidade, escutou o relato
de minha confusão, de tê-lo tomado a ele por ela. Ao admitir que em determinado momento
estive a ponto de pedir-lhe a exibição de seus genitais como prova, fez com que ela se
torcesse de risos sobre a esteira.
Apoiando-se em mim, cochichou em meu ouvido:
—Te tranquilizarei — e com um brilho perverso nos olhos adicionou —, olhe os meus.
—Não é necessário, Esperanza — retruquei, intentando dissuadi-la. —Não duvido de que
seja mulher.
—Não há como se estar seguro disso — rebateu, ignorando minhas palavras, e indiferente
ao meu desconcerto (ocasionado não tanto pela iminente desnudez, e sim pelo fato de ter
que contemplar um corpo velho e enrugado) se recostou na esteira e, com grande sutileza,
levantou lentamente suas saias.
Minha curiosidade triunfou sobre meu desconcerto, e a olhei boquiaberta. Não usava
calcinhas, e carecia por completo de pelos púbicos. Seu corpo era incrivelmente jovem, as
carnes fortes e firmes, e os músculos delicadamente delineados. Era de uma só cor, um
uniforme rosa-avermelhado; sua pele não exibia uma só mancha nem varizes, e nada
danificava a uniforme suavidade de suas pernas e seu abdômen.
Me estiquei para tocá-la, como se precisasse do tato para assegurar-me de que essa pele
sedosa era real, e ela abriu os lábios de sua vagina com os dedos. Afastei meu rosto, não
tanto por sentir-me incomodada, mas por causa de minhas conflitadas emoções. Não era
uma questão de desnudez: havia nascido num lugar sem preconceitos, onde ninguém tinha
problemas a esse respeito, e durante meus dias escolares na Inglaterra fui convidada um
verão a passar duas semanas na Suécia, na casa de uma amiga que morava junto ao mar.
Toda sua família pertencia a uma colônia nudista que adorava o sol com cada pedaço de sua
pele desnuda.
Ver a Esperanza sem roupas ante mim foi diferente, e me excitou de maneira muito
especial. Nunca havia reparado antes nos órgãos sexuais de uma mulher. Certamente já
havia examinado a mim mesma no espelho. Desde todo ângulo possível. Também havia
assistido à exibição de filmes pornográficos, que não só me desagradaram como me
ofenderam, mas vê-la assim a Esperanza foi uma experiência demolidora, pois sempre
considerei normais minhas reações no terreno sexual. Pensei que como mulher unicamente
me excitaria um homem, e me surpreendeu tremendamente um incontível desejo de montá-
la, neutralizado somente por minha falta de pênis.
Quando Esperanza ficou de pé e tirou a blusa, aspirei o ar num sonoro gesto de surpresa, e
depois mantive a vista fixa no piso até que se amainou a sensação febril em meu pescoço e
em meu rosto.
—Olhe-me! — exigiu impaciente. Estava totalmente nua, os olhos brilhantes e as
bochechas coradas. Seu corpo era leve, porém maior e mais forte do que aparentava
vestida, e seus seios cheios e firmes.
—Toque-os! — ordenou num tom suave e convidativo.
Suas palavras rebateram ao redor do quarto como um ritmo enfeitiçador, um som mais
sentido que escutado, que pouco a pouco cresceu em intensidade até tornar-se tão forte
como o de meu próprio coração. Depois não escutei nem senti outro som além do da risada
de Esperanza.
—O cuidador não estará escondido aqui, verdade? — perguntei quando pude falar,
repentinamente receosa e sentindo-me culpada por minha ousadia.
—Espero que não! — rebateu com tal ar de espanto que não pude evitar o riso.
—Onde está? — insisti.
Esperanza abriu bem os olhos e sorriu, como quem se preparara a gargalhar, mas de
imediato adotou uma expressão séria, e em tom formal explicou que o homem cuidava das
duas casas, e não era seu costume espiar as pessoas.
—Mas é verdadeiramente o cuidador? — perguntei, cuidando para mostrar-me ascética. —
Não quero menosprezá-lo, mas não me parece capaz de cuidar de nada.
Segundo Esperanza, a fragilidade do cuidador era só aparente.
—É muito capaz, — me assegurou — e deve se ter cuidado com ele, pois ele gosta de
moças jovens, em especial das loiras — e se aproximou para cochichar em meu ouvido: —
Ele tentou algo contigo?
Acudi em sua defesa.
—Céus, não! Foi muito correto e de grande utilidade. É só que… — e minha voz se
arrastou até se fazer um sussurro, e minha atenção se desviou até os móveis do quarto, que
não conseguia distinguir por causa da má luz da lamparina de azeite.
Quando por fim pude enfocar de novo minha atenção em Esperanza o cuidador deixou de
me preocupar. Somente podia pensar, com tenaz insistência, em por que Isidoro Baltazar
havia partido sem avisar-me, sem sequer deixar-me um bilhete.
—Por que me deixou desta maneira? — perguntei a Esperanza. — A alguém deve de ter
avisado quando voltará — e, ao notar seu sorriso irônico, emendei com tom beligerante: —
Estou segura de que você sabe algo sobre tudo isto.
—Não sei de nada — insistiu, incapaz de entender meu problema. —Essas coisas não me
preocupam, e tampouco deveriam preocupar a você. Isidoro Baltazar se foi, e assunto
acabado. Regressará num par de dias, num par de semanas… quem sabe? Tudo depende do
que aconteça nas montanhas.
Achei abominável sua falta de compreensão e simpatia.
—Tudo depende?! — gritei. —E eu? Eu não posso ficar semanas aqui.
—Por que não? — perguntou Esperanza com ar inocente.
Olhei-a como quem olha a um demente, e logo me lancei a dizer que não tinha com que me
arranjar, que não havia nada que eu pudesse fazer ali. Minha lista de queixas era
interminável, e mal a havia acabado quando me esgotei.
—Simplesmente tenho que ir pra casa, regressar a meu meio normal — concluí, lutando
contra minhas inevitáveis lágrimas, às quais opus valente batalha.
—Normal? — e Esperanza repetiu a palavra com lentidão, como se estivesse saboreando-a.
—Pode ir quando quiser; ninguém lhe impede disso. Podemos arranjar para fazer-lhe
chegar sem problemas à fronteira, de onde pode tomar um ônibus da Greyhound que lhe
deixará em Los Ângeles.
Não me animei a falar, de modo que assenti com um gesto. Tampouco sabia que não partir
era o que eu desejava, pois a mera idéia de ausentar-me me era intolerável. De algum modo
eu sabia que se eu fosse, jamais encontraria de novo a essas pessoas, nem sequer a Isidoro
Baltazar em Los Ângeles. Comecei a chorar incontrolavelmente. Não poderia ter posto
minhas emoções em palavras, mas a aridez de uma vida, de um futuro sem essa gente, me
era inconcebível.
Não percebi a partida e o regresso de Esperanza do quarto, mas não teria percebido nada a
não ser pelo aroma delicioso de chocolate que senti sob minhas narinas.
—Se sentirá melhor depois que tiver comido — disse, colocando uma bandeja em minha
saia, e sorrindo carinhosamente tomou assento a meu lado, e confessou que o chocolate era
o melhor remédio para a tristeza.
Concordei plenamente com ela, bebi uns poucos goles e comi umas tantas tortilhas
enroladas e untadas com manteiga, e confessei que, apesar de não conhecer bem a ela nem
às suas amigas, não podia conceber o afastar-me e não vê-las mais. Admiti que com elas
sentia uma liberdade e uma soltura jamais experimentada antes. Uma sensação estranha,
expliquei, em parte física e em parte psicológica, que desafiava toda análise, que só podia
se descrever como uma sensação de bem-estar, ou como a certeza de ter encontrado por fim
um lugar ao qual pertencia.
Esperanza sabia com exatidão o que eu intentava expressar. Disse que o pertencer ao
mundo dos feiticeiros, ainda por um curto tempo, provocava vício, dependência. Não era a
extensão do tempo, ressaltou, e sim a intensidade dos encontros o que importava. —Seus
encontros foram muito intensos… — afirmou.
—Eles foram? — perguntei.
Esperanza levantou as sobrancelhas num autêntico gesto de surpresa, e depois coçou sua
testa de maneira exagerada, como se estivesse ponderando um problema sem solução.
Depois de um longo silêncio emitiu sua opinião:
—Caminhará mais aliviada quando se der completamente conta de que não pode voltar à
sua antiga vida — sua voz, apesar de ser apenas audível, continha uma força extraordinária;
seus olhos prenderam um instante os meus, e ali reconheci o significado de suas palavras.
—Para mim nada voltará a ser igual — disse. Esperanza concordou.
—Regressará ao mundo, mas não ao seu mundo, à sua antiga vida — considerou,
levantando-se da esteira com essa abrupta majestade própria de pessoas pequenas. Correu
até a porta, parou bruscamente e, virando-se para mim, pronunciou outra de suas sentenças:
—É muito excitante fazer algo sem saber o porquê, e ainda o é mais, se você se decide a
fazer algo sem saber qual será o resultado.
Estive em completo desacordo com ela, e disse-lhe:
—Preciso saber o que faço. Necessito saber em quê estou me metendo.
Esperanza suspirou e levantou as mãos numa cômica atitude de súplica.
—A liberdade causa muito temor — disse asperamente, e antes que eu tivesse chance de
responder, mudou de tom, e agregou com doçura: —A liberdade requer atos espontâneos.
Não tem idéia do que significa o abandonar-se espontaneamente...
—Tudo o que eu faço é espontâneo — interrompi. —Por que acha que estou aqui? Acha
que pensei muito sobre se deveria vir ou não?
Voltou à esteira e ficou contemplando-me um longo período antes de dizer:
—É evidente que não o pensou muito, mas seus atos de espontaneidade se devem mais à
sua falta de avaliação que a um ato de abandono — e golpeando o chão com o pé para
impedir uma nova interrupção de minha parte, acrescentou: —Um ato verdadeiramente
espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas só depois de uma
profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram devidamente levados em
conta e descartados, pois nem se espera nada nem se lamenta nada. Com atos dessa
natureza os bruxos convocam a liberdade.
—Não sou uma bruxa — murmurei em voz baixa, e procurei retê-la segurando o meio de
seu vestido, mas ela deixou bem claro que não tinha interesse algum em continuar com
nossa conversa. Eu a segui pelo caminho que conduzia à outra casa. Tal qual fizera o
cuidador, também ela me recomendou manter os pés sobre a linha de cinzas.
—Se não o fizer — disse —, você cairá no abismo.
—Abismo? — repeti, olhando em torno, à massa do escuro chaparral que nos rodeava.
Se alçou uma leve brisa, e das sombras chegaram vozes e sussurros. Instintivamente me
aferrei à sua saia.
—Pode ouvi-los? — perguntou.
—O que é que devo ouvir?
Ela se aproximou como se temesse que alguém nos escutasse, para me dizer no ouvido:
—Surems de outro tempo. Usam o vento para vagar pelo deserto, sempre despertos.
—Fantasmas?
—Não existem os fantasmas — manifestou de maneira terminante, e retomou sua
caminhada.
Me certifiquei muito bem de manter os pés sobre a linha de cinzas, e não soltei a saia de
Esperanza até que ela parou bruscamente no meio do pátio da casa grande. Ali vacilou um
instante, como se não pudesse decidir a qual parte da casa havia de levar-me. Percorreu
corredores e dobrou em várias esquinas, até que por fim ingressamos num enorme aposento
que havia escapado de minha exploração anterior. As paredes estavam cobertas do piso ao
teto com livros; em um extremo havia uma mesa larga e forte, e em outro estava pendurada
uma rede tecida, de cor branca.
—Que quarto magnífico! — exclamei. —A quem pertence?
—É seu — ofereceu Esperanza com um gracioso gesto, e depois, de um armário próximo à
porta, extraiu três grossas cobertas de lã.
—Pegue, as noites são frias — disse.
—Quer dizer que posso dormir aqui? — perguntei, e todo meu corpo tremeu de prazer
quando forrei a rede com as cobertas e me instalei nela… De menina, foram muitas as
vezes em que dormi numa rede, de modo que, recriando esses momentos, suspirei feliz e
passei a me balançar. Depois meti as pernas e me estendi voluptuosamente.
—Saber dormir em rede é como saber andar de bicicleta. Nunca se esquece — disse, mas
ninguém me escutou.
Esperanza havia partido sem que eu o notasse.
CAPÍTULO ONZE
Apaguei a luz e permaneci muito quieta na rede, embalada pelos ruídos da casa: estalos
estranhos, e o gotejar da água de um filtro de barro situado junto à porta de meu quarto. O
inconfundível som de passos no corredor me fez levantar bruscamente.
—Quem pode ser a esta hora? — me perguntei.
Abandonei a rede, e nas pontas dos pés me aproximei da porta para apoiar meu ouvido
contra ela. Os ruídos eram fortes, e meu coração acelerou ao constatar que chegaram perto
e pararam ante meu quarto. Houve uma batida na porta carregada de urgência que, apesar
de esperar por isso, me sobressaltou. Dei um salto para trás e derrubei uma cadeira.
—Teve um pesadelo? — perguntou Florinda ao entrar. Deixou a porta semi-aberta, e a luz
do corredor invadiu o recinto. —Pensei que ficaria feliz ao escutar o som de meus passos
— disse de brincadeira. —Não queria me aproximar furtivamente — acrescentou, enquanto
pendurava uma camisa e uma calça cor caqui sobre o encosto de uma cadeira. —Com os
cumprimentos do cuidador. Disse que pode ficar com elas.
—Ficar com elas? — repeti, olhando as prendas com desconfiança. Davam a impressão de
estar limpas e recém passadas. —O que tem de errado com meus jeans?
—Se sentirá mais cômoda com essas calças durante a longa viagem a Los Ângeles —
explicou Florinda.
—Mas eu não quero ir! Eu fico aqui até que Isidoro Baltazar volte.
Ao observar que eu estava a ponto de entregar-me ao choro, Florinda riu.
—Isidoro Baltazar regressou, e você pode ficar mais um tempo, se assim o desejar.
—Oh, não, nada disso — respondi, esquecida já de toda a ansiedade acumulada nesses dois
dias, assim como também de todas as perguntas que desejava fazer a Florinda. Somente
conseguia pensar no fato de que Isidoro Baltazar estava de volta.
—Posso vê-lo já?
—Temo que não — e Florinda me impediu que abandonasse o quarto.
Por uns minutos não compreendi o sentido de suas palavras. Olhei-a fixo sem entender, até
que ela repetiu que naquela noite não seria possível ver ao novo nagual.
—Por que não? — perguntei confundida. —Estou certa de que ele desejaria me ver.
—Sem dúvida alguma — rebateu —, mas está profundamente adormecido, e não pode ser
despertado. — ante a tão terminante recusa não pude fazer nada mais que contemplá-la em
silêncio.
Florinda passou um longo tempo com o olhar fixo no chão, e quando por fim me encarou
seu olhar era triste. Por um momento achei que modificaria sua decisão e me levaria junto a
Isidoro Baltazar, mas concluiu repetindo que não poderia vê-lo essa noite, e dito isto, como
temerosa de arrepender-se, me abraçou e me beijou, abandonou o quarto, apagou a luz do
corredor, e das sombras me mandou ir dormir.
Incapaz de conciliar o sono, passei longas horas revolvendo-me na rede. Já estava por
amanhecer quando decidi levantar-me e vestir os presentes trazidos por Florinda. Salvo as
calças, que por falta de cinta precisei segurar com uma corda, o conjunto me caía bem.
Com os sapatos na mão atravessei o corredor, deixei para trás o quarto do cuidador, e me
dirigi à entrada traseira. Cuidando para não fazer ruído, abri parcialmente a porta.
Lá fora estava escuro, mas o suave azul da madrugada já coloria o céu. Corri até o pórtico
assentado sobre a parede, parando apenas junto às duas árvores sentinelas do caminho. Um
forte aroma de flor de laranjeiras perfumava o ar, e toda a dúvida a respeito de cruzar o
chaparral morreu quando comprovei que cinzas frescas cobriam o chão. Sem pensar duas
vezes corri até a outra casa.
A porta estava entreaberta, porém adiei meu ingresso. Escondida sob uma janela, esperei
ser guiada por algum som, que me chegou em pouco tempo na forma de sonoros roncos.
Deixei passar uns minutos, entrei, e guiada pelos roncos me encaminhei diretamente ao
quarto dos fundos da casa. Na escuridão apenas distingui uma forma adormecida sobre uma
esteira, mas não tive dúvidas de que se tratava de Isidoro Baltazar. Temerosa de que um
despertar repentino o perturbasse, voltei ao aposento da frente e me sentei no sofá. Tal era
minha excitação que não conseguia ficar quieta, feliz com a idéia de que a qualquer
momento despertaria. Duas vezes regressei na ponta dos pés para olhá-lo. Havia mudado de
posição durante o sono, e já não roncava.
Devo ter adormecido no sofá, pois através de meu inquieto sono tive a sensação de que
alguém havia entrado no quarto. Ergui-me um pouco para murmurar “estou esperando que
Isidoro Baltazar desperte”, mas sabia que nenhum som havia saído de minha boca. Com um
esforço consciente me sentei, e tudo dançou ante meus olhos, até que pude enfocar ao
homem de pé diante de mim. Era Mariano Aureliano.
—Isidoro Baltazar, ainda dorme? — perguntei.
O velho nagual me contemplou por um longo período, e não sabendo se sonhava, tentei
pegar sua mão. Precisei soltá-la precipitadamente, pois ardia como uma brasa. Arqueou as
sobrancelhas, ao parecer surpreendido por meu comportamento.
—Não poderá ver a Isidoro Baltazar até a manhã — disse, e pronunciou estas palavras
lentamente, como se o fazê-lo lhe ocasionasse um grande esforço.
Antes que tivesse oportunidade de dizer que já era quase de manhã, e que aguardaria a
Isidoro Baltazar onde estava, senti a mão fervente de Mariano Aureliano sobre minhas
costas, expulsando-me do quarto.
—Volte para a sua rede.
Houve um repentino golpe de vento, e quando me virei para protestar Mariano Aureliano já
não estava ali. O vento retumbou em minha cabeça como um tambor grave, para fazer-se
cada vez mais suave e morrer numa simples vibração. Abri a boca para prolongar os
últimos frágeis ecos. Despertei no meio da manhã na rede, vestindo as roupas que me
deixara Florinda. Automaticamente, quase sem pensar, me encaminhei até a casa pequena,
cuja porta encontrei fechada à chave. Apesar dos golpes que dei nela e de meus gritos não
recebi resposta. Tentei forçar as janelas, que também encontrei fechadas.
Aturdida e próxima às lágrimas, corri colina abaixo até a clareira junto ao caminho, único
lugar onde se podia estacionar um carro, para descobrir que a perua de Isidoro Baltazar não
estava ali. Depois percorri em vão um bom trecho do caminho em busca de rastros recentes
de rodas de carro. Não havia nenhum.
Muito confusa voltei à casa, e sabendo que seria inútil buscar pelas mulheres em seus
quartos, parei no meio do pátio interno e chamei aos gritos por Florinda. A única réplica foi
o eco de minha voz. Repassei incontáveis vezes às palavras de Florinda, sem chegar a uma
conclusão satisfatória. A única certeza que me assistia era a de que Florinda tinha vindo ao
meu quarto no meio da noite para trazer-me as roupas que agora eu vestia. Essa visita, e seu
anúncio de que Isidoro Baltazar havia regressado, sem dúvida alguma haviam produzido
tão vivido sonho em mim.
Para conter-me de toda especulação acerca do motivo de estar só na casa, pois nem sequer
o cuidador havia dado sinais de vida, me dediquei a lavar os pisos. Este tipo de trabalho
sempre exerceu um efeito tranquilizante sobre mim, e havia terminado com todos os
cômodos, inclusive a cozinha, quando escutei o inconfundível som de um motor
Volkswagen. Corri colina abaixo e me atirei nos braços de Isidoro Baltazar ainda antes que
ele abandonasse o veículo, quase derrubando-o no chão.
—Não posso acreditar — disse rindo, enquanto me abraçava. —Você é a moça de quem
tanto me falou o nagual. Sabia que quase desmaiei quando lhe deram as boas-vindas?
Não esperou minha resposta. Abraçou-me de novo e, rindo, me levantou nos braços.
Depois, como se alguma comporta se tivesse aberto nele, começou a falar sem pausa. Disse
que fazia um ano que sabia de minha existência, pois o nagual lhe havia informado que lhe
encomendaram uma garota estranha, à qual descreveu como “o meio-dia de um dia claro,
não ventoso nem calmo, nem frio nem quente, mas que alterna entre tudo isso, deixando-
lhe louco”. Isidoro Baltazar confessou que sendo o tonto pomposo que era, havia sabido
instantaneamente que o nagual estava se referindo à sua namorada.
—Quem é sua namorada? — o interrompi.
Fez um movimento brusco com a mão, evidentemente incomodado por minhas palavras.
—Esta não é uma história de feitos — disse irritado —, é uma história de idéias, de modo
que verá o idiota que sou. — de repente sua irritação cedeu lugar a um brilhante sorriso. —
Até cheguei a acreditar que poderia averiguar por mim mesmo quem era essa garota — e
fez uma pausa antes de acrescentar: —Inclusive cheguei a incluir a uma mulher casada,
com filhos, em minha busca.
Suspirou fundo, sorriu e disse:
—A moral desta história é que no mundo dos feiticeiros a pessoa deve eliminar o ego ou
sofrer as consequências, pois não há forma em que pessoas como nós possam predizer algo.
Ao notar que eu chorava me afastou um pouco e perguntou ansioso:
—O que aconteceu, Nibelunga?
—Na verdade nada — respondi, rindo em meio a meus soluços. —Não possuo uma
mentalidade abstrata capaz de preocupar-se do mundo das histórias abstratas — e
acrescentei, com todo o cinismo e a dureza que pude reunir: —Me preocupo com o aqui e o
agora. Não tem idéia das coisas que passei nesta casa.
—Claro que sim; tenho uma muito boa idéia — retrucou com deliberada rudeza — pois já
faz anos que lido com isso. — olhou-me com olhos de inquisidor ao formular sua seguinte
pergunta: —O que desejo saber é por que não me disse que já havia estado com eles?
—Estava a ponto de fazê-lo, mas não me pareceu importante — respondi confusa, mas em
seguida minha voz se fez firme à medida que as palavras surgiam alheias à minha vontade:
—De longe, vejo que a única coisa importante que fiz na vida é ter me relacionado com
eles.
Para ocultar a surpresa que me produziu esta admissão, comecei a queixar-me de ter sido
abandonada, de ter ficado sozinha nessa casa.
—Não tive oportunidade de lhe avisar que eu ia às montanhas com o nagual — disse.
—Isso eu já esqueci — assegurei-lhe. —Estou falando do dia de hoje. Esta manhã, ao
despertar, esperava ver você aqui. Estava segura de que tinha passado a noite na casinha,
dormindo sobre uma esteira, e ao não te encontrar entrei em pânico.
Ao notá-lo intrigado, contei-lhe da visita noturna de Florinda, e de meu sonho de encontrar-
me sozinha na casa ao despertar. Sabia que meu discurso era incoerente, meus pensamentos
e palavras confusas, mas não pude deter-me. Conclui meu discurso dizendo:
—Há tanto que não posso aceitar, e tampouco refutar.
Isidoro Baltazar não respondeu, e seu olhar, suas sobrancelhas arqueadas e a expressão
espirituosa de seu rosto delgado e cansado, cor de fumaça, pareciam indicar que aguardava
a que eu continuasse falando. Sua pele exsudava uma estranha frescura, e um vago cheiro a
terra, como se houvesse passado dias numa caverna subterrânea.
Todo vestígio de inquietude desapareceu quando encarei seu sinistro olho esquerdo e sua
terrível, inclemente olhada. Nesse momento deixou de importar-me qual era a verdade
autêntica, a ilusão, o ensonho dentro do ensonho. Ri feliz, leve como o vento, livre do
insuportável peso que carregava em minhas costas. Reconheci o olho de bruxo, igual ao que
tinham Florinda, Mariano Aureliano, Esperanza e o cuidador. Destinado desde os princípios
do tempo a carecer de sentimento e emoção, esse olho refletia o vazio, e como se já tivesse
revelado demais, uma pálpebra interna, como a do olho de um lagarto, se fechou sobre a
pupila esquerda. Antes que eu tivesse chance de comentar sobre seu olho Isidoro Baltazar
fechou ambos; quando, depois de um instante, os abriu, se viam idênticos, escuros,
brilhantes e sorridentes. O olho de bruxo caiu em ilusão. Com um braço rodeando meus
ombros subimos a encosta. Antes de chegar na casa Isidoro Baltazar me ordenou recolher
minhas coisas.
—Te espero no automóvel — disse.
Pareceu-me estranho que não entrasse comigo, mas nesse momento não me ocorreu
investigar sua razão, e somente quando estava recolhendo meus poucos pertences, ocorreu-
me que talvez temesse às mulheres, o qual me provocou riso, pois se havia algo que Isidoro
Baltazar não temia era às mulheres. Disso estava totalmente segura. Ao chegar junto ao
carro continuava com meu riso, e abri a boca para explicar a Isidoro Baltazar o motivo de
meu júbilo, quando me invadiu uma forte e estranha emoção.
Não era paixão sexual o que sentia, tampouco afeto platônico, e menos ainda aquele
carinho para com meus pais e irmãos. Simplesmente amava a ele com um amor ausente de
expectativas, dúvidas e temores, e como se eu tivesse dito tudo isto em voz alta, Isidoro
Baltazar me abraçou com tal força que apenas me permitia respirar.
Partimos muito lentamente, e botei a cabeça pela janela, acreditando que poderia ver o
cuidador entre as árvores.
“Sinto-me rara, partindo desta maneira”, pensei. “De certo modo, Florinda se despediu de
mim à noite, mas eu teria gostado de agradecer a Esperanza e ao cuidador.”
O caminho de terra serpenteava em torno do monte, e ao chegar a uma curva fechada vimos
de novo a casa. Isidoro Baltazar parou o carro, desligou o motor, e com o dedo assinalou ao
velho, sentado sobre um caixote em frente à casa. Quis abandonar o veículo e correr até ele,
mas Isidoro Baltazar me deteve.
—Dê adeus com a mão.
O cuidador se levantou; o vento brincava com sua camisa solta e suas calças, fazendo que
parecessem asas batendo contra seus membros. Soltou uma gargalhada, se encurvou, e ao
parecer aproveitando a força do vento, deu dois saltos mortais para trás. Por um momento
pareceu estar suspenso no ar, porém nunca aterrissou. Simplesmente se evaporou, como se
o próprio vento o tivesse sugado.
—O que aconteceu? Para onde foi? — perguntei assombrada.
—Ao outro lado — respondeu Isidoro Baltazar, rindo com a felicidade de uma criança se
divertindo. —Essa foi sua maneira de se despedir.
Colocou o carro em movimento, e enquanto viajávamos, como se estivesse me tentando,
lançava-me ocasionais olhadas irreverentes.
—O que é que te preocupa, Nibelunga? — perguntou.
—Você sabe quem ele é, verdade? — acusei-o —Não é o cuidador, não?
Isidoro Baltazar franziu o cenho, e depois de um longo silêncio me lembrou que, para mim,
o nagual Juan Matus era Mariano Aureliano, assegurando-me que deveria existir uma razão
muito boa para que o conhecesse por esse nome, e agregou:
—Estou certo de que deve de existir uma justificativa igualmente válida para que o
cuidador não te revele seu nome.
Eu argumentei que já que sabia quem era Mariano Aureliano, a pretensão do cuidador não
tinha sentido e — acrescentei com propriedade — eu sei quem é o cuidador… — e ao dizê-
lo, olhei de soslaio a Isidoro Baltazar, cujo rosto nada revelou.
Quando falou foi para dizer que, como todos os seres do mundo dos feiticeiros, o cuidador
também era um feiticeiro, mas que eu não sabia quem era. Lançou-me um breve olhar, e em
seguida transferiu sua atenção ao caminho.
—Depois de todos estes anos eu mesmo não sei quem são eles realmente, e incluindo ao
nagual Juan Matus. Enquanto estou com ele creio saber quem é, mas assim que me vira as
costas, estou perdido.
Com acento quase sonhador, Isidoro Baltazar acrescentou que no mundo cotidiano nossos
estados subjetivos eram compartilhados por todos nossos semelhantes. Por tal razão
sabemos a todo momento o que fariam estes semelhantes sob certas condições.
—Está equivocado! — gritei. — Totalmente equivocado. Não saber o que farão nossos
semelhantes sob certas circunstâncias é o que faz excitante a vida. É uma das poucas coisas
excitantes que nos sobram. Não me diga que o quer eliminar.
—Não sabemos com exatidão o que fariam nossos semelhantes, — explicou pacientemente
— mas poderíamos redigir uma lista de possibilidades que teria sentido. Uma lista muito
longa, te advirto, no entanto uma lista limitada. Para escrevê-la não necessitamos averiguar
as preferências de nossos semelhantes. Só precisamos nos colocar em seu lugar e escrever
as possibilidades que nos concernem. Serão aceitáveis a todos, pois as compartilhamos.
Nossos estados subjetivos são compartilhados por todos nós.
Disse depois que nosso conhecimento subjetivo do mundo nos é conhecido como sentido
comum. Pode diferir de grupo em grupo, de cultura em cultura, mas apesar de todas essas
diferenças, o sentido comum é o suficientemente homogêneo, como para garantir a
declaração de que o mundo cotidiano é um mundo intersubjetivo.
—Entretanto com os feiticeiros o sentido comum, ao qual estamos acostumados, não tem
vigência. Possuem outro tipo de sentido comum, pois têm outro tipo de estados subjetivos.
—Quer dizer que são como seres de outro planeta? — perguntei.
—Sim — respondeu Isidoro Baltazar, rindo —, são como seres de outro planeta.
—É por isso que são tão reservados?
—Não acho que o termo reservado seja o correto — observou pensativo. —Lidam de
maneira diferente com o mundo cotidiano, e seu comportamento nos parece reservado pois
não compartilhamos seu significado, e já que carecemos de padrões para medir o que para
eles é sentido comum, optamos por acreditar que seu comportamento é reservado.
—Eles fazem o que nós fazemos: dormem, cozinham suas refeições, lêem — observei —,
contudo, nunca pude surpreendê-los no ato de fazê-los. Eu lhe asseguro que são reservados.
Sorrindo, sacudiu a cabeça.
—Viu o que eles quiseram que visse, apesar do qual não te ocultavam nada. Simplesmente
você não conseguia ver.
Estava a ponto de contradizê-lo, mas me abstive, pois não queria que me tomasse antipatia.
Não era tanto o fato de que tivesse a razão, pois afinal eu não entendia de quê falava. Antes
disso, sentia que todas minhas averiguações e curiosidades não me haviam dado pista
alguma a respeito de quem eram essas pessoas e o que faziam. Com um suspiro, fechei os
olhos e reclinei minha cabeça contra o encosto do banco.
No trajeto lhe falei de meu sonho, do quão real que me foi o vê-lo dormido e roncando
sobre a esteira. Falei-lhe de minha conversa com Mariano Aureliano, do calor de sua mão, e
quanto mais falava mais me convencia de que tudo isso não havia sido um sonho, e me
agitei de tal forma que terminei chorando.
—Não sei o que me fizeram — disse. —Neste momento não estou muito certa se estou
sonhando ou se me encontro desperta. Florinda sempre insiste em que eu ensonho desperta.
—O nagual Juan Matus se refere a isso como “consciência intensificada” — esclareceu
Isidoro Baltazar.
—Consciência intensificada — repeti.
As palavras me eram familiares, ainda que parecessem exatamente o oposto de ensonhar
desperto. Recordei vagamente de tê-las ouvido antes. Florinda ou Esperanza as havia
utilizado, mas não lembrava em quê contexto, e já estavam a ponto de adquirir sentido
(vago talvez) mas minha mente se encontrava sobrecarregada por minhas vãs tentativas de
recontar minhas atividades diárias na casa das feiticeiras.
Apesar do muito que me esforcei não conseguia lembrar certos episódios. Lutava por dar
com palavras que empalideciam e se desvaneciam ante meus próprios olhos, igual a visões
semivistas e lembradas pela metade. Não era que tivesse esquecido, e sim que as imagens
me chegavam fragmentadas, como peças de um quebra-cabeça que se recusam a encaixar.
Tudo isto adquiria estatura de sensação física, e podia resumir-se como uma névoa descida
sobre certas partes de meu cérebro.
—De modo que consciência intensificada e ensonhar desperto são o mesmo? — mais que
uma pergunta era essa uma declaração cujo significado me escapava.
Mudei de posição no assento, e recolhendo as pernas me sentei de frente a Isidoro Baltazar.
O sol fazia ressaltar seu perfil, seus cabelos negros e enrolados caindo sobre sua frente, os
pômulos cinzelados, sua forte testa e nariz, e os lábios finos, lhe davam um aspecto
romano.
—Devo de estar ainda em estado de consciência intensificada — disse —, não me havia
fixado antes em você.
Jogou a cabeça para trás e riu, e essa ação fez com que o carro balançasse.
—Não há dúvida de que está ensonhando desperta. A pouco você se esqueceu de que sou
nanico, negro e de aspecto insignificante?
Tive que rir, não porque estivesse de acordo com essa descrição de si mesmo, e sim porque
era a única coisa que lembrava que ele havia dito naquela conferência em que o conheci
formalmente. Minha alegria logo cedeu lugar a uma estranha ansiedade. Tive a sensação de
que haviam se passado meses, e não apenas dois dias, desde nossa chegada à casa das
feiticeiras.
—A passagem do tempo é diferente no mundo dos feiticeiros — disse Isidoro Baltazar,
interpretando meus pensamentos —, e também o vivemos de maneira diferente.
Depois acrescentou que um dos aspectos mais difíceis de sua aprendizagem foi o de ter que
lidar com sequências de acontecimentos em termos de tempo. Com frequência essas
confusas imagens se misturavam em sua mente, que penetravam mais profundamente
quando mais tentava enfocá-las.
—Somente agora, com a ajuda do nagual, consigo recordar fatos e aspectos de seus
ensinamentos, que tiveram lugar há muitos anos — disse.
—Como te ajuda? — perguntei. —Te hipnotiza?
—Me fez mudar os níveis de consciência e, ao fazê-lo, não só lembro acontecimentos
passados como também os revivo.
—E como faz isso? Me refiro a fazer-lhe mudar seus níveis de consciência.
—Até a bem pouco tempo achava que se conseguia com uma forte palmada nas costas,
entre os ombros, mas agora estou seguro que o consegue com sua mera presença.
—Então, não te hipnotiza?
Sacudiu a cabeça.
—Os feiticeiros são experts em mudar seus próprios níveis de consciência. Alguns o são
tanto que conseguem mudar os níveis de outros.
Eu fervia de perguntas, mas com um gesto ele me pediu paciência.
—Os feiticeiros nos fazem ver que a natureza total da realidade é diferente de nosso
conceito dela, ou seja, o que nos foi ensinado a acreditar que é a realidade. Intelectualmente
estamos dispostos a brincar com a idéia de que a cultura predetermina nossa existência,
nossa conduta, o que estamos preparados a aprender e o que podemos sentir. Mas não
estamos dispostos a dar corpo a esta idéia, aceitá-la como uma proposta prática e concreta,
e a razão é que não queremos aceitar que a cultura também predetermina o que somos
capazes de perceber.
A feitiçaria — continuou — nos faz dar conta de diferentes realidades, diferentes
possibilidades, não só acerca do mundo e sim sobre nós mesmos, ao extremo de nos fazer
entrar num estado no qual já não estamos em condições de acreditar sequer nas mais sólidas
convicções a nosso respeito e ao nosso entorno.
Surpreendeu-me poder absorver suas palavras com tanta facilidade, visto que na realidade
não as compreendia.
—Um feiticeiro não só tem consciência de diferentes realidades — continuou — como usa
a esse conhecimento com um sentido prático. Os feiticeiros sabem, não só intelectualmente,
e sim praticamente, que a realidade, ou o mundo, tal como o conhecemos, consiste apenas
de um acordo extraído a cada um de nós. Se poderia fazer que esse acordo se derrube, dado
que é apenas um fenômeno social, e quando se derruba, todo o mundo se derruba com ele.
Ao ver que eu não conseguia seguir seus argumentos, tratou de apresentá-los por outro
ângulo. Disse que o mundo social nos define a percepção em proporção à sua utilidade em
nos guiar através da complexidade da experiência na vida diária. O mundo social fixa
limites ao que percebemos e ao que somos capazes de perceber. Para um feiticeiro a
percepção pode exceder esses parâmetros acordados. Estes parâmetros estão feitos e
respaldados por palavras, pelo idioma, por pensamentos, ou seja, por acordos.
—E os feiticeiros não têm acordos? — perguntei, fazendo um esforço para compreender
sua premissa.
—Sim, eles os têm — respondeu —, mas seus acordos são diferentes. Os feiticeiros
quebram o acordo normal, não só intelectual como física ou praticamente. Os feiticeiros
derrubam os parâmetros da percepção socialmente determinada, e para compreender o que
querem dizer os feiticeiros com isso, a pessoa deve converter-se em um praticante, ela
precisa comprometer-se, ela precisa empregar tanto a mente como o corpo. Precisa ser uma
rendição consciente e sem medo.
—O corpo? — perguntei, de imediato desconfiada a respeito do tipo de ritual que isso
poderia exigir. —O que é que querem com meu corpo?
—Nada, Nibelunga — esclareceu rindo. Depois, num tom sereno embora bondoso,
acrescentou que nem meu corpo nem minha mente se encontravam ainda em condições de
seguir o árduo caminho de feiticeiro, e ao perceber minha intenção de protestar, se apressou
a assegurar-me que nem meu corpo nem minha mente sofriam de falha alguma.
—Um momento! — interrompi.
Isidoro Baltazar ignorou minha interrupção e prosseguiu seu discurso para dizer que o
mundo dos feiticeiros era um mundo sofisticado, e que não era suficiente compreender seus
princípios de maneira intuitiva. Também era necessário assimilá-los intelectualmente.
—Contrariamente ao que as pessoas acreditam — explicou —, os feiticeiros não são
praticantes de obscuros e esotéricos ritos, e sim que estão à frente de nosso tempo. E a
modalidade de nosso tempo é a razão. Em geral somos homens razoáveis. Não obstante os
feiticeiros são homens de razão, o que é totalmente diferente: têm um romance com as
idéias, cultivam a razão até seus limites, pois crêem que unicamente compreendendo
plenamente o intelecto podem corporificar os princípios da feitiçaria sem perder sua própria
integridade e sobriedade. Aqui reside a drástica diferença entre os feiticeiros e nós. Nós
possuímos pouca sobriedade e ainda menos integridade.
Lançou-me uma olhada furtiva e sorriu. Eu sentia a desagradável impressão de que ele
sabia com exatidão o que eu estava pensando nesse momento, ou melhor, que me
encontrava incapacitada para pensar. Havia entendido suas palavras, mas não seu
significado. Não sabia o que dizer nem sequer o que perguntar, e pela primeira vez em
minha vida me senti uma estúpida total. Contudo não me incomodei, pois não podia negar
que ele tinha razão. Meu interesse em assuntos intelectuais foi sempre muito superficial, e
para mim pensar em ter um romance com idéias era totalmente insólito.
Chegamos à fronteira em poucas horas, mas a viagem acabou sendo extremamente
cansativa. Eu queria falar, mas não sabia o que dizer, ou melhor, não encontrava as palavras
para expressar-me. Sentia-me intimidada, uma sensação nova para mim!
Isidoro Baltazar notou minha insegurança e meu mal-estar, e se apropriou da palavra. Com
candidez admitiu que até esse mesmo momento o mundo dos feiticeiros o desorientava,
apesar dos muitos anos de estudar e agir com eles.
—E quando digo estudar, falo muito à sério — esclareceu. —Esta mesma manhã esse
mundo me avassalou de uma maneira impossível de descrever.
Falava num tom que era meio afirmação e metade queixa, apesar do qual sua voz estava
carregada de tal alegria e potência interior que me senti exaltada. Me transmitiu uma
sensação de onipotência e de capacidade para tolerar tudo sem deixar que nada importasse,
e constatei uma vontade e habilidade para sobrepor-se a todos os obstáculos.
—Imagine: pensei que minha viagem com o nagual havia sido de só dois dias — e virando-
se para mim, e rindo, me sacudiu com sua mão livre.
Eu estava tão absorta pela vitalidade de sua voz que não compreendi o significado de suas
palavras. Pedi a ele para repetir o que dissera: ele o fez, e continuei sem compreender.
—Não entendo o que é que te excita tanto — disse repentinamente irritada por minha
incapacidade para entender o que pretendia dizer-me. —Esteve ausente um par de dias, e
daí?
—Como? — gritou, e seu grito fez com que eu saltasse em meu banco e batesse com a
cabeça no teto do veículo.
Seu olhar penetrou até o fundo de meus olhos, mas não pronunciou uma só palavra. Sabia
que não me acusava de nada, mas sim que zombava de minha aspereza, meus humores
variantes e minha falta de atenção. Parou o veículo às margens do caminho, desligou o
motor, e se acomodou para ficar de frente para mim.
—Agora quero que me conte todas as suas experiências — sua voz transmitia excitação
nervosa, inquietação e vitalidade, ao assegurar-me que a ordem dos acontecimentos não
importava em absoluto, e seu sorriso me tranquilizou ao extremo de fazer-me contar em
detalhes tudo o que recordava. Escutou com atenção, rindo de tanto em tanto e animando-
me com um gesto de sua testa cada vez que eu vacilava.
—De modo que… tudo isto te aconteceu em… dois dias?
—Sim — rebati com firmeza.
Cruzou os braços sobre seu peito.
—Tenho uma notícia para você — e a luz divertida de seus olhos traiu a seriedade de sua
voz e a firmeza de sua boca quando acrescentou: —Eu estive ausente doze dias, mas achei
que foram só dois. Pensei que iria apreciar a ironia de meu erro por ter mantido um melhor
controle do tempo, mas não foi assim. É igual a mim: perdemos dez dias.
—Dez dias — murmurei perplexa, e meu olhar se perdeu na paisagem que estava além da
janela.
Não pronunciei uma só palavra durante o resto da viagem. Não era que não lhe acreditasse,
nem que não quisesse falar. Simplesmente nada tinha para dizer, nem sequer depois de ter
comprado o Los Ângeles Times e corroborado a verdade sobre a perda dos dez dias.
Contudo, estavam de verdade perdidos? Me fiz essa pergunta sem desejar obter uma
resposta.
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
Nos momentos em que me encontrava totalmente desperta, não recordava muito bem esses
dias perdidos, apesar de saber sem espaço a dúvidas, que não eram dias perdidos. Algo me
havia acontecido nesse tempo, algo com um significado interior que me escapava. Não
realizei nenhum esforço consciente para recapturar todas essas memórias vagas: sabia que
estavam ali, semi-ocultas, como essas pessoas a quem alguém conhece apenas, e cujos
nomes não se consegue lembrar.
Nunca fui de dormir bem, mas dessa noite em diante, desde a aparição de Florinda no
estúdio de Isidoro Baltazar, eu dormia a toda hora com o exclusivo propósito de ensonhar.
Adormecia com inteira naturalidade cada vez que me encostava, e por longos períodos.
Inclusive engordei, por desgraça não nos lugares apropriados. No entanto jamais ensonhei
com os feiticeiros.
Uma tarde um forte ruído de lata me despertou. Isidoro Baltazar havia deixado cair a
chaleira na pia da cozinha. Doía-me a cabeça, suava copiosamente e tinha a vista nublada.
Restou-me a lembrança de um sonho terrível, que se desvaneceu muito rápido.
—É culpa sua! — gritei-lhe. —Se apenas me ajudasse não desperdiçaria minha vida
dormindo. — Desejava ceder à minha frustração e à minha impaciência mediante um
protesto retumbante, mas rapidamente me dei conta de que isso era impossível, pois já não
desfrutava protestando como antes.
O rosto de Isidoro Baltazar exteriorizava sua satisfação, como se eu tivesse expressado
meus pensamentos em voz alta. Pegou uma cadeira e, cavalgando-a, disse:
—Sabe que não posso lhe ajudar. As mulheres possuem uma rota diferente para seus
ensonhos. Nem sequer posso conceber o que fazem as mulheres para ensonhar.
—Deveria saber — retruquei de mau modo —, com tantas mulheres em sua vida…
Minha réplica provocou sua risada. Nada parecia perturbar seu bom ânimo.
—Não posso conceber o que fazem as mulheres para ensonhar — repetiu. —Os homens
precisam lutar incessantemente para enfocar sua atenção nos sonhos. As mulheres não
lutam, mas precisam adquirir disciplina interna. Há algo que pode lhe ajudar — agregou
sorrindo —, trate de não ensonhar com sua acostumada atitude compulsiva. Deixe que o
ensonho venha a ti.
Abri e fechei a boca, e rapidamente meu assombro se trocou por fúria. Esquecida minha
recente lucidez, calcei meus sapatos e abandonei a casa, batendo a porta ao sair. Sua risada
me seguiu até onde se encontrava estacionado meu carro. Deprimida, sentindo que não me
amavam, sozinha e, acima de tudo, com pena de mim mesma, me dirigi à praia. Estava
deserta, e chovia mansamente. A ausência de vento era total. O som das ondas lambendo a
praia, e o da chuva golpeando as águas, atuaram sobre mim como um calmante. Tirei os
sapatos, arregacei minhas calças, e caminhei até ficar limpa de meus caprichosos arranques.
Reconheci estar limpa, pois o sussurro das ondas me trouxe as palavras de Florinda: “É
uma luta solitária”. Não me senti ameaçada, simplesmente aceitei minha solidão, e foi esta
aceitação o que me deu a convicção do que precisava fazer; e posto que não sou dada às
postergações, agi de imediato.
Deixei um bilhete sob a porta de Isidoro Baltazar (não queria que ele me dissuadisse) e
tomei rumo à casa das feiticeiras. Dirigi toda a noite. Em Tucson me registrei num motel,
dormi a maior parte do dia, e retomei minha viagem ao cair da tarde, seguindo a mesma
rota que tomou Isidoro Baltazar em nossa viagem de regresso.
Meu sentido de direção é pobre, mas tinha bem gravada essa rota. Com segurança
assombrosa soube quais caminhos tomar, onde virar, e em escasso tempo cheguei ao
destino. Não me incomodei em consultar meu relógio, pois não queria perder a sensação de
que o tempo não se havia movido entre minha partida de Tucson e minha chegada à casa
das feiticeiras.
Não me incomodou não encontrar a ninguém na casa, pois tinha bem presente que não me
havia se estendido nenhum convite formal, mas lembrava muito bem que Nélida, ao
esconder numa gaveta uma pequena cesta contendo os presentes que me fizeram, me disse
que devia voltar todas as vezes que quisesse. Suas palavras soavam em meus ouvidos: “De
dia ou de noite esta cesta te ajudará a que chegue bem.”
Com uma segurança à qual normalmente se chega com a prática, fui diretamente ao quarto
que Esperanza me designara, onde a rede branca com franjas parecia estar me esperando.
Finalmente me invadiu uma vaga inquietude, mas não o medo que deveria ter sentido. Um
pouco inquieta, instalei-me na rede, deixando uma perna para fora, com a qual balançar-me.
—Ao diabo com meus temores — gritei, e em seguida recolhi a perna, e totalmente
instalada na rede me estirei com a voluptuosidade de um gato, fazendo estalar todas as
minhas articulações.
Uma voz me saudou vinda do corredor:
—Vejo que chegou sã e salva.
Não precisei vê-la para reconhecer a voz. Sabia que era Nélida, e esperei em vão a que
entrasse no quarto. Eu a ouvi dizer “sua comida está na cozinha”, e depois seus passos se
afastaram pelo corredor. Abandonei a rede e corri atrás dela, mas não havia ninguém no
corredor nem nos quartos que passei a caminho da cozinha. Na verdade não havia ninguém
em toda a casa. Contudo, eu tinha a certeza de que se encontravam ali. Escutei suas vozes,
suas risadas e o ruído de pratos e panelas.
Meus dias seguintes transcorreram em permanente estado de antecipação, em esperar a que
algo importante ocorresse. Não imaginava o quê, mas tinha a certeza de que esse algo
estava ligado às mulheres. Por alguma razão insondável as mulheres não desejavam ser
vistas, e esse insólito comportamento furtivo me manteve nos corredores a toda hora,
espreitando silenciosa como uma sombra, mas apesar de meus engenhosos estratagemas me
foi impossível surpreendê-las, ou obter sequer uma fugaz visão de seus corpos. Se
deslizavam invisíveis por toda a casa, entravam e saíam de seus quartos como se fosse entre
diferentes mundos, deixando o rastro de suas vozes e seus risos.
Houve momentos em que duvidei de sua presença na casa, e até cheguei a suspeitar que os
ruídos de passos, murmúrios e risos não passavam de ser fruto de minha imaginação; e
quando me encontrava a ponto de aceitar como válida esta suspeita, escutava a alguma
delas fazendo algo no pátio, e então, plena de expectativa e de fervor renovado, corria até a
parte posterior da casa para topar-me com a realidade de ter sido enganada mais uma vez.
Nesses momentos me convencia de que elas, sendo como eram, verdadeiras bruxas,
possuíam algum tipo de sistema de eco interno, parecido ao dos morcegos, que as alertava a
respeito de minha aproximação.
Meu desencanto ao não poder surpreendê-las junto ao fogão sempre desaparecia ante as
exóticas comidas que me deixavam, e cujo delicioso sabor compensava a mesquinhez das
porções. Com enorme prazer comia sua magnífica comida, apesar do qual sempre sentia
fome.
Certo dia, um pouco antes do crepúsculo, escutei a voz de um homem, pronunciando meu
nome com suavidade, vinda dos fundos da casa. Saltei da rede e corri até lá, e me produziu
tal felicidade encontrar ao cuidador que saltei sobre ele como salta um cachorro. Incapaz de
conter minha alegria o beijei em ambas as bochechas.
—Cuidado, Nibelunga — disse com a mesma voz e modo de Isidoro Baltazar. Minha
surpresa me fez dar um salto e abrir os olhos surpreendida. Com uma piscada me formulou
uma maliciosa advertência:
—Controle-se, pois se não me cuido é capaz de se aproveitar de mim.
Por um momento não soube como interpretar suas palavras, mas ao ver que ria, e sentir que
me espalmava as costas para me animar, relaxei por completo.
—Me alegra muito ver você — disse-me com suavidade.
—E eu — respondi alegremente — me alegro muitíssimo de ver você! — depois lhe
perguntei onde estavam os demais.
—Oh, andam por aí — respondeu de maneira ambígua. —Neste momento, misteriosamente
inacessíveis, mas sempre presentes — e percebendo minha desilusão, acrescentou: —Tenha
paciência.
—Sei que andam por aí, pois me deixam comida — confessei —, mas sempre tenho fome,
já que as porções são muito pequenas.
Em sua opinião essa era a condição natural das iguarias que conferiam poder: nunca se
recebia o suficiente. Disse que cozinhava sua própria comida, arroz e feijões com pedaços
de porco, vaca ou frango uma vez ao dia, mas nunca à mesma hora. Depois me levou a seu
aposento. Vivia num quarto grande e desordenado atrás da cozinha, entre as estranhas
esculturas de ferro e de madeira, onde o ar impregnado de jasmim e eucalipto pairava
imóvel ao redor das cortinas fechadas. Dormia sobre uma cama portátil, que mantinha
dobrada dentro de um armário quando não estava em uso, e comia sobre uma pequena mesa
Chippendale de pernas frágeis.
Confessou-me que assim como as misteriosas mulheres, detestava a rotina. Para ele tanto
importava o dia como a noite, a manhã como a tarde. Mantinha limpos os pátios e se
ocupava de varrer quando sentia vontade de fazer, indiferente a se o que jazia no chão eram
folhas ou flores.
Nos dias subseqüentes tive grandes problemas para ajustar-me a este tipo de vida
desarticulada. Mais por compulsão que por desejo de ser útil, ajudei ao cuidador em suas
tarefas, e também aceitei seus convites de compartilhar suas comidas, que se mostraram ser
tão deliciosas como sua companhia. Convencida de que ele era algo mais que um cuidador,
tentei, com perguntas manhosas, surpreendê-lo desprevenido; técnica inútil, que não
produziu respostas satisfatórias.
—De onde você é? — perguntei-lhe a queima-roupa certo dia enquanto comíamos.
Levantou a vista do prato e apontou com o dedo em direção às montanhas, que a janela
aberta emoldurava como se fosse um quadro.
—El Bacatete? — perguntei, revelando no tom de voz minha incredulidade. —Mas você
não é índio — murmurei desconcertada. —De acordo com como eu vejo tais coisas,
somente o nagual Mariano Aureliano, Delia e Genaro Flores são índios — e encorajada
pela expressão de surpresa e expectativa refletida em seu rosto acrescentei que, sempre em
minha opinião, Esperanza transcendia as categorias raciais. Aproximando-me, e baixando a
voz a um nível de conspirador, confessei-lhe o que já havia confiado a Florinda. —
Esperanza não nasceu como ser humano. Foi estabelecida por um ato de bruxaria. É o diabo
em pessoa.
Afastando sua cadeira para trás, o cuidador extravasou sua alegria.
—E o que me diz de Florinda? Sabia que é francesa? Ou melhor, que seus pais eram
franceses, das famílias que vieram ao México com Maximiliano e Carlota.
—É muito bonita — murmurei, tratando de lembrar em que momento exato do século
passado Napoleão havia enviado o príncipe austríaco ao México.
—Não a viu quando se enfeita toda… — acrescentou o cuidador. —É outra pessoa, para
quem a idade não conta.
—Carmela me disse que eu sou como Florinda — me aventurei a dizer, num ataque de
vaidade e anseio ilusório.
Impulsionado pelo riso que fervia em seu interior, o cuidador saltou de sua cadeira.
—Bem que você gostaria que fosse… — comentou sem maior ênfase, como se não lhe
interessasse a repercussão que teriam em mim suas palavras.
Irritada por seu comentário e sua falta de sensibilidade olhei-o com um aborrecimento mal
disfarçado. Depois, ansiosa por mudar de assunto, lhe fiz uma pergunta relacionada com o
nagual Mariano Aureliano:
—E ele, exatamente de onde provém?
—Quem sabe de onde provém os naguais — contrapôs, e aproximando-se da janela fixou
sua vista durante um longo período nas montanhas distantes. Depois completou: —Há
quem diga que os naguais vêm do próprio inferno. Eu acredito. Alguns dizem que nem
sequer são humanos… — houve uma nova pausa que me fez perguntar-me se o longo
silêncio seria repetido, ao fim do qual, como se tivesse intuído minha impaciência, sentou-
se a meu lado e continuou: —Se perguntassem a mim eu diria que os naguais são super-
humanos. Por essa razão conhecem tudo acerca da natureza humana. Não se pode mentir a
um nagual. Vêem através de ti. Até vêem através do espaço os outros mundos além deste, e
outras eras deste mundo.
Me senti incômoda, e essa incomodidade me pôs inquieta. Desejava que deixasse de falar, e
lamentei tê-lo levado a essa conversa. Tinha a certeza de que o homem estava louco.
—Não, não estou louco — assegurou, e ao escutar essas palavras soltei um grito. —
Simplesmente estou falando de coisas que você nunca escutou antes.
Colocada na defensiva, meus olhos piscaram repetidas vezes, mas essa inquietação me
proporcionou a coragem necessária para perguntar-lhe sem preâmbulo algum:
—Por que se escondem de mim?
—É óbvio — respondeu. Depois, ao ver que para mim não era tão óbvio, acrescentou: —
Deveria saber. Você, e os que são como você, constituem a tripulação, não eu. Não sou um
deles, sou apenas o cuidador, o que azeita a máquina.
—Está me confundindo cada vez mais — respondi irritada. Depois tive um momento de
intuição. —Quem são os da tripulação à qual se referiu?
—Todas as mulheres que conheceu da última vez que esteve aqui. As espreitadoras e as
ensonhadoras. Me disseram que você pertence às espreitadoras.
Após servir-se de um copo de água se dirigiu à janela, levando consigo o copo. Bebeu uns
goles antes de me informar que o nagual Mariano Aureliano havia posto à prova minhas
condições de espreitadora em Tucson, quando me fez entrar na cafeteria para por uma
barata na comida. Depois, encarando-me, anunciou:
—Você falhou.
Eu o interrompi, pois não desejava escutar o resto dessa estória.
—Não quero escutar essa bobagem.
Enrugou o rosto, prelúdio nele de alguma travessura.
—Mas depois do fracasso você se reabilitou, gritando e chutando ao nagual Mariano
Aureliano sem vergonha nem consideração alguma — e ressaltou que as espreitadoras são
pessoas que possuem a habilidade de lidar com outras pessoas.
Abri a boca, a ponto de dizer-lhe que não entendera uma só palavra, mas a fechei de novo.
—O desconcertante é que também é uma grande ensonhadora. Se não fosse por isso seria
como Florinda, naturalmente sem sua estatura e sua beleza.
Sorrindo venenosamente, maldisse em silêncio ao velho debochado. De repente me
disparou uma pergunta.
—Lembra quantas mulheres havia no piquenique?
Fechei os olhos para visualizar melhor o acontecimento. Vi com clareza a seis mulheres
sentadas em torno da lona estendida sob os eucaliptos. Esperanza não estava presente, mas
sim Carmela, Zoila, Delia e Florinda.
—Quem eram as outras duas? — perguntei, mais confusa que nunca.
—Ah — murmurou, apreciando minha pergunta, a julgar pelo brilhante sorriso que enrugou
seu rosto. —Essas eram duas ensonhadoras de outro mundo. Você as viu claramente, mas
logo desapareceram, e sua mente não as registrou, pois lhe pareceu completamente
inconcebível.
Aceitei sua explicação sem lhe prestar demasiada atenção, incapaz de conceber como havia
visto somente quatro mulheres, quando sabia que eram seis. Minha dúvida deve de ter-se
transparecido a ele, pois explicou que era muito natural que eu tivesse me concentrado
somente em quatro.
—As outras duas são sua fonte de energia. São incorpóreas, e não pertencem a este mundo.
Perdida e desconcertada, não pude atinar, senão olhá-lo fixo. Se me haviam esgotado as
perguntas.
—Dado que você não está no planeta das ensonhadoras, seus sonhos são pesadelos, e suas
transições entre ensonhos e realidade lhe acabam sendo muito instáveis e perigosas, a você
e às demais ensonhadoras. Por conseguinte, Florinda assumiu a tarefa de apoiar-lhe e
proteger-lhe.
Fiquei de pé com tal ímpeto que minha cadeira foi ao chão.
—Não quero saber mais! — gritei, e justo a tempo me abstive de acrescentar que estava
melhor assim, sem conhecer seus loucos costumes e explicações.
O cuidador me pegou pela mão e me conduziu para fora, através do pátio e do chaparral,
até a parte traseira da casa pequena.
—Preciso da sua ajuda com o gerador — pediu. —Tem que repará-lo.
Seu pedido me causou graça. Respondi que ignorava tudo a respeito de geradores, e assim
que abriu a portinhola de uma pequena casinha de cimento, me dei conta de que a corrente
elétrica para as luzes da casa se gerava ali. Até então presumi que as luzes e
eletrodomésticos do México rural eram os mesmos que na cidade.
Deste dia em diante procurei não fazer-lhe demasiadas perguntas, pois não me sentia
preparada para suas respostas. Então nossa relação adquiriu contornos de ritual, onde eu me
esmerava por igualar o esquisito domínio que o velho possuía do idioma espanhol.
Dediquei horas à consulta de vários dicionários, buscando palavras novas e quase sempre
arcaicas, com as quais impressioná-lo.
Certa tarde em que esperava que o cuidador trouxesse a comida, (era a primeira vez desde
que conheci seu quarto que me encontrava sozinha nele) lembrei do velho e estranho
espelho, e me dediquei a examinar sua superfície brumosa e manchada.
—Cuidado. Esse espelho te prenderá se você se contemplar muito nele — aconselhou uma
voz em minhas costas.
Minhas esperanças de ver ao cuidador se frustraram pois, ao virar-me, o quarto estava
deserto de presença humana, e em meu precipitado afã por alcançar a porta esbarrei numa
das esculturas. Automaticamente estirei a mão para estabilizá-la, mas antes sequer de que
pudesse aproximar-me, a figura pareceu afastar-se com um estranho movimento rotativo,
para depois retomar sua posição original após emitir um suspiro quase humano.
—O que acontece? — perguntou o cuidador, entrando no quarto. Colocou uma grande
bandeja sobre a mesinha frágil e, reparando em meu rosto, que devia de estar verde, insistiu
em sua questão.
Respondi assinalando a escultura.
—Há momentos em que sinto que essas monstruosidades têm vida própria e me espiam —
disse, e ao observar a expressão séria e chateada de seu rosto me apressei em assegurar-lhe
que por “monstruosidade” não me referia à feiúra e sim ao tamanho das peças. Após
respirar profundamente repeti minha impressão de que estavam vivas, o qual, depois de
olhar furtivamente em torno dele, e com apenas um fio de voz, o cuidador confirmou com
seu “Têm vida”.
Me senti tão incômoda que comecei a tagarelar acerca da tarde em que descobri seu quarto,
de como me senti atraída a ele por um inquietante murmúrio que no fim era obra do vento
empurrando a cortina através de uma janela quebrada.
—Sem dúvida nesse momento achei que se tratava de um monstro — confessei entre
risinhos nervosos —, uma presença estranha alimentada pelas sombras do crepúsculo.
Fui objeto do olhar penetrante do cuidador, que mordeu seu lábio inferior e depois deixou
que esse olhar vagasse em torno do aposento antes de chegar a uma decisão.
—É melhor que nos sentemos à mesa antes que a comida se esfrie. — ofereceu-me uma
cadeira, e assim que me sentei acrescentou em tom vibrante: —Tem muita razão em
chamá-las presenças, pois não são esculturas, são invenções. Foram concebidas segundo
modelos vistos em outro mundo por um grande nagual.
—Por Mariano Aureliano?
—Não, por um nagual muito mais velho, chamado Elías.
—E por que estão estas invenções em seu quarto? Esse grande nagual as fez para você?
—Não — respondeu —, eu só cuido delas — e pondo-se de pé, tirou um lenço branco de
um bolso e começou a limpar com ele a invenção mais próxima. —Dado que sou o
cuidador, me corresponde cuidar delas. Algum dia, com a ajuda dos feiticeiros que você
conheceu, entregarei estas invenções ao lugar onde lhes corresponde.
—E onde é isso?
—O infinito, o cosmos, o vazio.
—E como pretende levá-las até lá?
—Mediante o mesmo poder que as trouxe: o poder de ensonhar desperto.
—Se você ensonha como ensonham estes feiticeiros — disse com cautela, procurando
evitar que minha voz adquirisse um tom triunfalista —, então você também há de ser um
feiticeiro.
—Eu sou, mas não sou como eles.
Sua ingênua admissão me confundiu.
—Qual é a diferença?
—Ah! — exclamou com ar sabichão. —Existe uma enorme diferença, que não posso lhe
explicar agora. Se o fizesse, te afetaria muito, e te poria mais triste que nunca. No entanto
chegará o dia em que o saberá sozinha, sem necessidade de que alguém o revele a você.
Senti em minha mente girar as rodas do esforço enquanto buscava algo novo para dizer,
alguma outra pergunta para fazer.
—Pode me dizer como chegaram essas invenções ao poder do nagual Elías?
—Ele as viu em seus ensonhos e as capturou. Algumas são cópias feitas por ele, cópias de
invenções que não pôde transportar. Outras são o produto verdadeiro; invenções que o
nagual trouxe até aqui.
Não lhe acreditei nem em uma só palavra, contudo não pude evitar outra pergunta.
—Por que o nagual Elías as trouxe?
—Porque as próprias invenções lhe pediram.
—E por quê?
O cuidador me silenciou com um gesto de sua mão, e me instou a comer, e essa renúncia a
satisfazer minha curiosidade serviu como incentivo para meu interesse. Não podia imaginar
os motivos que lhe impediam de falar dos artefatos, quando era tão hábil em matéria de
respostas evasivas. Poderia ter me respondido a primeira coisa que lhe ocorresse.
Nem bem terminamos nossa refeição me pediu que tirasse sua cama do armário, e
conhecendo suas preferências, eu a armei em frente à porta francesa que tinha uma cortina.
Com um suspiro que demonstrava seu bem-estar estendeu-se nela, descansando a cabeça
sobre uma pequena almofada presa num dos extremos. A almofada havia sido recoberta
com feijões secos e grãos de milho e, segundo ele, garantia-lhe sonhos felizes.
—Já estou pronto para minha siesta (cochilo da tarde) — anunciou, enquanto afrouxava sua
cinta.
Era sua maneira discreta de pedir-me que me retirasse. Aborrecida por sua negativa de falar
das invenções, empilhei os pratos sobre a bandeja e abandonei o quarto, escoltada por seus
roncos, que me seguiram até a própria cozinha.
Essa noite me despertou os acordes de um violão. Automaticamente busquei a lanterna que
guardava junto à minha rede e consultei meu relógio: apenas passava da meia-noite.
Enrolei-me numa coberta e, na ponta dos pés, saí ao corredor que conduzia ao pátio
interior. Ali, sentado sobre uma cadeira de junco, um homem tocava o violão. Apesar de
não poder ver seu rosto sabia que era o mesmo que Isidoro Baltazar e eu havíamos visto e
escutado na ocasião de minha primeira visita. Como naquela oportunidade, parou de tocar
assim que me viu, ficou de pé e entrou na casa.
Assim que cheguei de volta ao meu quarto a música recomeçou, e estava a ponto de dormir
quando o escutei cantar com voz clara e firme. A melodia era uma invocação ao vento, um
convite a cruzar milhas e milhas de silêncio e de vazio, e como se fosse em resposta a essa
convocação, o vento ganhou força, silvou através do chaparral, arrancou as folhas secas das
árvores e as depositou em montões contra as paredes da casa.
Num impulso abri a porta que dava ao pátio, e o vento se introduziu e encheu o quarto de
profunda tristeza; não a tristeza das lágrimas, e sim a da melancólica solidão do deserto, a
poeira e as sombras velhas. O vento percorreu o quarto como se fosse uma fumaça. Eu o
aspirei com cada inalação, e o senti pesado nos pulmões, apesar do qual cada profunda
aspiração me fez sentir mais aliviada.
Fui para fora, e deslizando-me por entre os altos arbustos, cheguei à parte de trás da casa
cujas paredes caiadas captavam o brilho da lua, para refletí-lo sobre o descampado, varrido
pelo vento. Temendo ser vista corri de árvore em árvore, aproveitando as sombras para
ocultar-me, até chegar aos dois pés-de-laranja guardiões do caminho que levava à casa
pequena. O vento me trouxe o rumor de risinhos e vagas murmurações, e em sua procura,
numa atitude decidida, me lancei pela trilha para só me acovardar ao chegar à porta da
casinha escura. Tremendo, me aproximei pouco a pouco da janela aberta. Reconheci as
vozes de Delia e Florinda, mas a altura da janela me impediu de ver o que faziam.
Escutei, à espera de algo profundo, de ser transportada a alguma revelação transcendente
capaz de me ajudar a resolver o porquê de minha presença ali, minha inabilidade para
ensonhar, mas unicamente escutei fofocas, e me prendi de tal maneira a suas maliciosas
insinuações que ri forte várias vezes, esquecendo de minha situação.
Inicialmente achei que falavam de terceiros, mas depois compreendi que falavam das
ensonhadoras, e que seus comentários mais insidiosos eram dirigidos a Nélida. Disseram
que até o momento, apesar dos anos transcorridos, não havia conseguido desprender-se da
atração do mundo. Não só era vaidosa, pois segundo elas passava o dia inteiro em frente ao
espelho, como também era impudica, já que fazia todo o possível para ser sexualmente
atrativa a fim de agarrar ao nagual Mariano Aureliano, e uma vez até chegou a contar que
era a única capaz de acomodar seu enorme e intoxicante órgão.
Depois foi a vez de Clara. A apelidaram de elefante pomposo, que se achava encarregada
de distribuir bênçãos a todos. O receptor de sua atenção era nesse momento o nagual
Isidoro Baltazar, e o prêmio, seu corpo desnudo, prêmio que o nagual podia contemplar
mas não possuir. Uma vez, de manhã e de novo à noite, presenteava-lhe o espetáculo de sua
nudez, convencida de que ao fazê-lo se assegurava a potência sexual do novo nagual.
A terceira mulher de quem falaram foi Zuleica. Disseram que tinha aspirações de santa, de
ser a Virgem Maria, e que sua assim chamada espiritualidade não passava de ser loucura.
Periodicamente perdia o rumo, e em seus ataques de insânia lhe ocorria por limpar a casa
de ponta a ponta, as rochas do pátio e inclusive as dos terrenos vizinhos.
Depois Hermelinda, a quem descreveram como muito sensata e decorosa, um perfeito
modelo dos valores da classe média. Assim como Nélida, era incapaz de cessar de
ambicionar ser a mulher perfeita, a perfeita dona de casa. Apesar de não saber cozinhar,
costurar, bordar ou tocar piano para entreter aos hóspedes, Hermelinda desejava ser
conhecida — e isto o disseram entre acessos de risinhos debochados — como o modelo de
perfeição da casta feminina, assim como Nélida aspirava a ser o paradigma da mulher
libidinosa.
Escutei uma voz lamentar-se do fato de que ambas não combinassem seus talentos, pois se
o fizessem chegariam a constituir a mulher perfeita, capaz de agradar ao amo: perfeita na
cozinha e na sala, quer seja vestindo avental ou traje de noite, e perfeita na cama, com as
pernas abertas quando assim o desejasse seu amo.
Quando se calaram voltei à casa, ao meu quarto e à minha rede, onde apesar de meus
esforços não pude recuperar o sono. Sentia que algum tipo de cápsula protetora havia se
arrebentado, destruindo o encanto e a felicidade de encontrar-me na casa das feiticeiras.
Somente podia pensar em que, desta vez por escolha própria, me achava presa em Sonora
com uma coleção de velhas loucas, cujo único entretenimento era a fofoca, ao invés de
estar me divertindo em Los Ângeles.
Vim em busca de conselhos, e ao invés de achá-los fui ignorada e reduzida à companhia de
um velho senil de quem suspeitava que fosse mulher, e quando chegou a manhã e o
momento de sentar-me para comer com o velho cuidador, eu havia levado meu sentido de
legítima indignação a tal ponto que não pude comer nada.
—O que se passa? — perguntou o velho, olhando-me nos olhos, quando normalmente
evitava este tipo de contato direto. —Está sem apetite?
Eu lhe devolvi um olhar venenoso, e abandonando todo intento de controlar-me,
descarreguei minha raiva e frustração acumuladas. Enquanto o fazia prevaleceu por um
momento meu sentido de moderação: disse-me que era injusto culpar ao velho, que me
havia tratado com todo carinho. Devia lhe estar agradecida, mas já não podia me conter.
Minhas pequenas queixas haviam adquirido vida própria, e minha voz se fazia cada vez
mais aguda à medida que exaltava e distorcia os fatos dos últimos dias. Com maliciosa
satisfação, confessei ter escutado a conversa das mulheres.
—Elas não têm nenhuma intenção de ajudar-me — assegurei. —Não fazem outra coisa que
falar mal das ensonhadoras, de quem disseram coisas horríveis.
—O que as escutou dizer?
Com gosto lhe relatei tudo, surpreendendo a mim mesma pela fidelidade com que lembrei
de cada um dos maliciosos comentários.
—Obviamente falavam de você — declarou, nem bem havia finalizado minha exposição.
—Logicamente que em sentido figurado. — esperou que suas palavras ganhassem peso em
mim, e antes que eu pudesse protestar, perguntou inocentemente: —Não é você
muitissimamente assim?
—Como se atreve! — explodi —, e não me venha com essa merda psicológica. Não a
aceito de um homem educado, menos ainda de você, peão de merda.
Meu ataque súbito o pegou de surpresa. Abriu bem os olhos, e seus frágeis ombros se
encolheram. Não senti nenhuma pena por ele, só lástima de mim mesma. Comunicar-lhe o
que ouvi havia sido uma perda de tempo. Estava a ponto de lhe dizer que ter feito essa
longa e árdua viagem havia sido um erro da minha parte, quando me olhou com tal
desprezo que senti vergonha de minha explosão.
—Se controlar seu gênio se dará conta de que nada do que fazem estes feiticeiros é para
entreter-se ou para impressionar a alguém, ou dar livre vazão às suas compulsões. Tudo o
que fazem ou dizem tem uma razão, um propósito — e me olhou com tal frieza que senti
vontade de me afastar. —Não vá pensando que está aqui de férias — insistiu. —Para estes
feiticeiros as férias não existem.
—Por que me disse isto? — perguntei irritada. —E não fique dando voltas. Diga.
—Não vejo como posso dizê-lo mais claramente — respondeu. Sua voz era enganosamente
suave, carregada de uma intenção cujo alcance eu não conseguia decifrar. —As bruxas já te
disseram de noite o que você é. Usaram as quatro mulheres do planeta das ensonhadoras
como fachada para descrever você, para fazer saber, a quem estava escondida atrás da
janela, o que é: uma puta com delírios de grandeza.
Foi tal o impacto que fiquei momentaneamente aturdida. Depois a fúria, quente como lava,
tomou posse de meu corpo.
—Miserável, insignificante pedaço de merda — gritei-lhe, chutando-o na virilha. Não havia
chegado meu chute ao alvo e já me deparava com a imagem do pequeno bastardo
retorcendo-se no chão de dor, e contudo o destino de meu chute acabou sendo o ar. Com a
velocidade de um boxeador ele o havia evitado.
Sorriu com a boca, mas não com os olhos, que, frios e inexpressivos, contemplaram minhas
investidas e lamentos.
—Está fazendo ao nagual Isidoro Baltazar vítima de tudo o que disseram as bruxas.
Treinaram você para isso. Pense nisso, e não se limite apenas em irritar-se.
Abri a boca para dizer algo, mas não emiti som. Não eram tanto suas palavras que me
deixaram sem fala, e sim seu tom indiferente, gelado e demolidor. Teria preferido que me
gritasse, já que assim saberia como reagir: teria gritado mais forte.
Não tinha sentido enfrentá-lo, disse a mim mesma. Não tinha razão. Era simplesmente um
velhinho senil com uma língua de víbora. Não, decidi, não me irritaria com ele, mas
tampouco o levaria a sério.
—Espero que não vá começar a chorar — me advertiu, ainda antes que me recobrasse.
Decidi não exteriorizar minha raiva, contudo não pude evitar que enrubescesse o rosto
quando mencionei que nem pensava fazê-lo, e que dada sua condição de pobre servente,
merecia ser açoitado por sua impertinência; mas seu olhar duro me aplacou, e finalmente,
persistindo em seu trato cortês mas inexpressivo, conseguiu me convencer de que devia
desculpar-me.
—Eu sinto muito — e na verdade o sentia —, meu mau gênio e maus modos sempre
terminam por vencer-me.
—Eu sei, todos me advertiram a seu respeito — disse muito sério, mas em seguida seu
sorriso reapareceu quando me convidou a comer.
Sentia-me incomodada durante a refeição. Mastigando com lentidão o observei sub-
repticiamente, e constatei que apesar de não se esforçar por mostrar-se amável sua raiva
havia desaparecido. Tentei sem êxito consolar-me com esse pensamento, e percebi que sua
falta de interesse em mim não era algo deliberado nem estudado. Não me castigava, pois
nada do que foi dito ou feito por mim podia afetá-lo. Terminei minha comida, e disse a
primeira coisa que me ocorreu com uma segurança que não deixou de me assombrar.
—Você não é o cuidador.
Reapareceu seu sorriso quando perguntou:
—E quem acha que sou?
Esse sorriso me fez abandonar toda precaução, e com um tremendo descaro e, naturalmente
com intenção de insulto, disse-lhe que era uma mulher: Esperanza. O fato de ter-me
descarregado dessa suspeita me trouxe alívio. Suspirei e completei:
—Por isso somente você tem espelho. Quer seja como mulher ou como homem, precisa
soar convincente.
—O ar de Sonora deve ter lhe afetado. É bem sabido que o ar rarefeito do deserto afeta às
pessoas de maneira peculiar — e agarrou meu pulso quando acrescentou: —Ou talvez seja
normal em você ser mesquinha e chata, e dizer o que lhe convém com ar de absoluta
autoridade.
Em seguida mudou de atitude, e rindo me propôs compartilhar sua siesta.
—Nos fará muito bem. Ambos somos chatos.
—De modo que assim são as coisas — acusei, não muito segura de se devia me ofender ou
rir. —Quer dormir comigo, é? Esperanza já me havia advertido disto.
—E por que razão se opõe a sestear comigo se acha que sou Esperanza? — perguntou,
acariciando minha nuca com uma mão tíbia e apaziguante.
Minha defesa foi frágil.
—Não me oponho. Acontece que odeio as siestas. Nunca durmo a siesta, e me disseram que
até quando era criança as odiava. — me defendi falando com rapidez, gaguejando,
repetindo palavras. Desejava abandonar o quarto, mas a leve pressão de sua mão sobre
minha nuca me impedia disso. —Sei que é Esperanza — repeti. —Reconheço esse tato.
Possui o mesmo efeito sedante que o seu. — senti que minha cabeça se bamboleava e que
meus olhos se fechavam contra minha vontade.
—Assim é — concordou. —Te fará bem recostar-se mesmo que não seja mais que por uns
minutos — e interpretando meu silêncio como sinal de aceitação, tirou do armário sua cama
dobrável e um par de mantas, uma das quais me cedeu.
Continuaram as surpresas. Sem saber por que, e sem protestar, me deitei, e através das
pálpebras entreabertas o observei estirar-se até fazer estalar cada uma de suas articulações,
tirar as botas, desajustar a cinta e encostar-se ao meu lado. Já coberto pela manta se desfez
de suas calças, que depositou no chão junto às suas botas, depois do qual levantou a manta
e se mostrou. Roxa de vergonha, comprovei que seu corpo desnudo, igual ao de Esperanza,
era a antítese do imaginado. Era um corpo flexível, imberbe e limpo; delicado como um
junco, mas por sua vez musculoso e, definitivamente masculino e jovem! Não me parei
para pensar. Prendendo a respiração levantei cautelosamente minha própria manta.
Um risinho feminino me fez fechar os olhos e fazer de conta que dormia, mas me aquietou
o saber que quem se ria não entraria no quarto. Apoiei a cabeça em meus braços, e me
absorveu a sensação de que o cuidador e os risinhos haviam restabelecido um equilíbrio, e
recriado em torno de mim a borbulha mágica. Não sabia com exatidão qual significado lhe
dava a isto, mas sim que quanto mais meu corpo se relaxava mais me aproximava a uma
resposta.
CAPÍTULO CATORZE
Do meu regresso da casa das feiticeiras já não necessitei ser persuadida ou animada. As
mulheres haviam conseguido infundir-me uma estranha coerência, uma certa estabilidade
emocional como nunca antes possuí. Não me converti da noite para o dia em outra pessoa,
mas minha existência adquiriu um propósito definitivo, meu destino estava traçado: devia
lutar para livrar minha energia. Simples assim.
Porém não podia recordar, quer fosse clara ou mesmo vagamente, tudo o que aconteceu nos
três meses transcorridos nessa casa. Tal tarefa me demandou anos de esforço e
determinação. Contudo, o nagual Isidoro Baltazar me advertiu acerca da falácia das metas
definidas e das conquistas emocionalmente carregadas. Disse que careciam de valor, pois o
verdadeiro cenário de um feiticeiro é a vida cotidiana, e ali as motivações conscientes
superficiais não aguentam as pressões.
As feiticeiras haviam expressado mais ou menos o mesmo, só que de um modo mais
harmonioso. Explicaram que dado que as mulheres estão habituadas a serem manipuladas,
elas acediam com facilidade, e que suas conformidades eram simplesmente ocas adaptações
à pressão. Mas de ser na verdade factível convencer à mulher da necessidade de mudar seus
hábitos, então metade da batalha estava ganha; ainda sem sua conformidade, seu êxito é
infinitamente mais durável que o dos homens.
Podia optar entre as duas opiniões, ambas a meu ver acertadas. De tanto em tanto, todas as
razões fundamentais da feitiçaria que eu havia aprendido sucumbiam sob a pressão do
mundo diário, mas minha entrega ao mundo dos feiticeiros nunca foi posta no tapete da
dúvida.
Pouco a pouco comecei a adquirir a energia necessária para ensonhar, o que significava que
por fim havia compreendido o que me disseram as mulheres: Isidoro Baltazar era o novo
nagual, e havia deixado de ser um homem. Compreender isto me deu suficiente energia
para regressar periodicamente à casa das feiticeiras.
Essa casa era propriedade de todos os pertencentes ao grupo de Mariano Aureliano, grande
e encorpada vista de fora, mas indistinguível de outras; apenas visível, apesar da exuberante
primavera florida que pendia sobre o muro que circundava a propriedade. A razão pela qual
as pessoas passavam sem vê-la, diziam os feiticeiros, residia na tênue névoa que a cobria,
delicada como um véu, visível ao olho, porém impossível de perceber para a mente.
Não obstante, uma vez dentro da casa, tinha-se a aguda sensação de ter ingressado em outro
mundo. Os três pátios, sombreados por árvores frutíferas, conferiam uma luz de ensonho
aos escuros corredores e aos muitos aposentos que se abriam sobre eles, e impressionavam
os pisos de tijolos e lajotas, com seus intrincados desenhos.
Não era um lugar cálido, mas sim acolhedor, e de nenhuma maneira um lar, dada sua
onipresente personalidade e sua implacável austeridade. Era o lugar onde o velho nagual
Mariano Aureliano e seus feiticeiros concebiam seus ensonhos e realizavam seus
propósitos, e dado que suas inquietudes nada tinham a ver com o mundo cotidiano, essa
casa era o reflexo de suas preocupações não humanas, e refletia a autêntica medida de sua
individualidade, não como pessoas, mas como feiticeiros.
Nessa casa me relacionei e lidei com todas as feiticeiras do grupo do nagual Mariano
Aureliano, que não me ensinaram feitiçaria, nem sequer a ensonhar. Segundo elas, não
havia nada para ensinar. Disseram que minha tarefa era recordar de tudo o que aconteceu
entre elas e eu durante esses momentos iniciais de nossa convivência, em especial tudo o
que Zuleica e Florinda me fizeram ou disseram, mas Zuleica nunca me havia dirigido a
palavra.
Quando tentava pedir-lhes ajuda recusavam fazê-lo. Seu argumento era que sem a
necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir-se, e não dispunham de tempo
para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas depois de um
tempo abandonei toda tentativa de indagá-las, e me dediquei a desfrutar de sua presença e
de sua companhia. Cheguei assim a aceitar sua razão para não querer jogar nosso jogo
intelectual predileto, esse de pretextar interesse nas assim chamadas perguntas profundas,
que usualmente nada significam para nós pela verdadeira razão de que não possuímos a
energia para utilizar com proveito a resposta que possamos receber, exceto para estar ou
não de acordo com ela.
Não obstante, graças a essa diária inter-relação, cheguei a compreender muitas coisas
acerca de seu mundo. As ensonhadoras e as espreitadoras representavam duas formas de
comportamento entre mulheres, muito distintas entre si. Inicialmente me perguntei se o
grupo que me havia sido descrito como ensonhadoras: Nélida, Hermelinda e Clara, eram na
realidade as espreitadoras pois, até onde eu podia determinar, minha relação com elas era
sobre uma base estritamente mundana e superficial. Somente mais tarde pude dar-me conta
de que sua mera presença provocava em mim uma nova maneira de comportamento. Com
elas não necessitava reafirmar-me. De minha parte não existiam dúvidas nem perguntas.
Possuíam a singular habilidade de fazer-me ver, sem necessidade de verbalizá-lo, o absurdo
de minha existência, apesar do qual não achava necessário defender-me.
Talvez fosse esta ausência de esforço o que me levou a aceitá-las sem resistência, e não
levei muito tempo para dar-me conta de que as ensonhadoras, ao tratar-me num nível
mundano, me estavam proporcionando o modelo necessário para recanalizar minhas
energias. Desejavam que eu mudasse minha maneira de enfocar assuntos cotidianos tais
como cozinhar, limpar, estudar ou ganhar a vida. Disseram-me que essas tarefas deviam
fazer-se com distintos auspícios, não como tarefas mundanas, e sim como esforços
artísticos, todos de igual importância.
Sobretudo foi sua mutua inter-relação, e sua relação com as espreitadoras, o que me deu a
pauta do quão especial eram. Em seu trato habitual careciam de falhas humanas. Seu
sentido de dever coexistia facilmente com suas características individuais, fossem estas o
mau gênio, a irritabilidade, grosseria, loucura ou doçura excessiva. Na presença e
companhia de qualquer destas feiticeiras eu experimentava a rara sensação de estar em
férias permanentes, só que isso era uma miragem, pois elas viviam em permanente estado
de guerra, sendo o inimigo a idéia do “eu”.
Na casa delas conheci a Vicente e Silvio Manuel, os outros dois feiticeiros do grupo de
Mariano Aureliano. Vicente era obviamente de origem espanhola, e soube que seus pais
eram oriundos da Catalunha. Era magro, de aspecto aristocrático, com mãos e pés que
davam uma errônea impressão de fragilidade. Andava sempre em alpargatas, e preferia
blusas de pijamas (pendiam abertas sobre suas calças caqui) a camisas. Suas bochechas
eram rosadas apesar de sua palidez. Ostentava uma barbinha que cuidava com esmero, a
qual lhe conferia um toque de distinção a seu porte abstraído.
Não só parecia, como era de fato um erudito; os livros no quarto que eu ocupava eram seus,
ou melhor, era ele quem os colecionava, lia e cuidava. O atraente de sua erudição (sabia de
tudo) era que se portava como se fosse um perpétuo aprendiz. Eu tinha a certeza de que não
era assim, pois era óbvio que sabia mais que os outros, e seu espírito generoso o levava a
compartilhar seus conhecimentos com magnífica naturalidade e humildade, já que jamais
envergonhava a terceiros por saber menos que ele.
Silvio Manuel era de média estatura, corpulento, sem pelos e moreno. Um índio sinistro e
misterioso, perfeito exemplo da imagem que eu me havia formado do que deveria ser um
bruxo. Sua aparente taciturnidade me assustava, e suas lacônicas respostas revelavam o que
eu suspeitava ser uma natureza violenta. Somente ao conhecê-lo melhor compreendi o
muito que gozava cultivando essa imagem. Acabou se mostrando ser o mais aberto e, para
mim, o mais encantador de todos os feiticeiros. As intrigas e os segredos eram sua paixão,
fossem ou não autênticos, e era a maneira em que os contava o que, para mim e para todos,
não tinha preço. Além disso, possuía um inextinguível repertório de piadas, a maioria delas
pesadas, sujas. Era o único que se divertia vendo TV, e portanto sempre estava em dia com
as notícias do mundo, as quais transmitia aos outros, grosseiramente exageradas e
temperadas com uma grande dose de malícia.
Silvio Manuel era um excelente bailarino, e era legendária sua habilidade e seus
conhecimentos das várias danças sagradas indígenas. Se movia com extático abandono, e
com frequência me pedia que dançasse com ele. Fosse a dança um joropo venezuelano,
uma cumbia, um samba, um tango, o twist, rock and roll ou um bolero dos que se dançam
de rosto colado, conhecia a todas.
Também interagi com John, o índio que me apresentou o nagual Mariano Aureliano em
Tucson, Arizona. Seu aspecto rotundo, inalterável e jovial não era outra coisa que uma
fachada, pois era o menos abordável dos feiticeiros. Conduzindo sua camionete se
encarregava dos recados de todos, e também reparava o que precisava ser consertado dentro
e ao redor da casa.
Se me mantinha em silêncio, não o incomodando com perguntas e comentários, John me
permitia acompanhá-lo em suas viagens, e me ensinava a consertar coisas: banheiros,
torneiras e máquinas de lavar roupas, e também como reparar uma placa, comutadores
elétricos, e lubrificar e mudar as velas de meu automóvel. Ensinada por ele, o uso de
martelos, chaves-de-fenda e serras se converteu em tarefa fácil para mim.
A única coisa em que não me ajudaram foi em responder às minhas perguntas e
averiguações acerca de seu mundo, e quando intentava comprometê-los se referiam ao
nagual Isidoro Baltazar. Sua recusa usual era: “Ele é o novo nagual, e é missão dele lidar
com você. Nós somos meramente seus tios e tias”.
Inicialmente o nagual Isidoro Baltazar representava para mim algo mais que um mistério.
Não tinha bem claro onde residia, pois indiferente a horários e rotinas, aparecia e
desaparecia do estúdio a toda hora. O dia e a noite lhe eram indiferentes. Dormia quando
estava cansado, quase nunca, e comia quando tinha fome, quase sempre. Em meio às suas
frenéticas idas e vindas trabalhava com uma concentração na verdade assombrosa, sendo
sua capacidade para esticar ou comprimir o tempo incompreensível para mim. Tinha a
certeza de ter passado horas, e até dias inteiros com ele, quando na realidade poderiam ter
sido só momentos, furtados aqui e ali, seja lá durante o dia ou a noite, ou a outras de suas
desconhecidas atividades.
Sempre me considerei uma pessoa ativa, cheia de energia, mas descobri que me era
impossível manter-me a par de seu ritmo. Vivia em permanente movimento — ou assim
parecia —, ágil e ativo, sempre pronto para encarar algum projeto. Seu vigor era
permanente e francamente incrível.
Muito tempo depois cheguei a compreender que a fonte da inesgotável energia de Isidoro
Baltazar residia em sua falta de preocupação por si mesmo, e foi seu permanente apoio,
suas imperceptíveis e por sua vez hábeis maquinações, as que me mantiveram na senda
correta. Residia nele uma alegria, um gozo em sua sutil e contudo poderosa influência, que
me levou a mudar sem que eu notasse que estava sendo conduzida por um novo caminho,
um caminho em que já não valiam os jogos, os pretextos ou o uso de minhas argúcias
femininas para conseguir meus propósitos.
O que tornou tão urgente sua guia e conselhos era o fato de que não o abrigavam motivos
ulteriores. Não era possessivo, e sua diretiva não se via adulterada por promessas ou atos de
sentimentalismo. Não me empurrou em nenhuma direção precisa, ou seja, não me
aconselhou a respeito do rumo a se tomar ou aos livros que devia ler. Nisso tive caminho
livre.
Somente impôs uma condição: eu devia trabalhar exclusivamente em favor do edificante e
agradável processo de pensamento. Uma proposta estremecedora! Eu nunca havia
entrevisto o pensar nesses ou em outros termos, e apesar de que não me desagradava
estudar, jamais havia considerado as tarefas escolares como algo prazeroso, e sim como
algo que eu era obrigada a fazer, no geral às pressas e empregando nele um mínimo de
esforço.
Não pude evitar o estar de acordo com o que Florinda e seus companheiros, tão sem
delicadeza, me haviam dito na ocasião de nosso primeiro encontro: que eu havia ido ao
colégio não para aprender, e sim para divertir-me, e o fato de ter-me distinguido obedecia
mais a uma questão de sorte e loquacidade do que por ter estudado. Eu possuía uma
memória bastante boa, sabia falar, e sabia convencer a terceiros.
Uma vez superada a vergonha inicial de ver-me forçada a aceitar e admitir minhas
limitações intelectuais, e que só sabia pensar de maneira superficial, me senti aliviada,
pronta para colocar-me sob a tutela dos feiticeiros e seguir o plano de estudos de Isidoro
Baltazar. Me desiludiu descobrir que tal plano não existia, e que sua única insistência era
que eu deixasse de estudar e ler ao ar livre, como era meu costume. Isidoro Baltazar
sustentava que o processo de pensar era um rito privado, quase secreto, que não podia
realizar-se em público. Comparou esse processo ao da levedura, que só fermenta dentro de
um recinto fechado.
“O melhor lugar para compreender algo é naturalmente a cama”, me disse certa vez. Se
estirou na sua, reclinou a cabeça contra várias almofadas, e cruzou sua perna direita sobre a
esquerda, descansando o tornozelo sobre o joelho elevado de sua perna esquerda. Não me
impressionou essa absurda posição para a leitura, mas a pratiquei sempre que estava só. Me
fazia cair num profundo sono, e dada minha sensibilidade e até minhas tendências à
insônia, gozava mais com o sono que com o conhecimento.
Às vezes, no entanto, sentia como se umas mãos se enroscassem ao redor de minha cabeça,
pressionando suavemente minhas têmporas. Então automaticamente olhava a página aberta
ainda antes de ter consciência do que estava fazendo, e captava parágrafos inteiros do
papel, cujas palavras bailavam ante meus olhos até fazer que conjuntos de conhecimento
explodissem dentro de meu cérebro semelhantes a revelações.
Ansiosa por desenterrar esta nova possibilidade que se abria diante de mim, insisti nela
como se me impulsionasse um professor desapiedado, e houve momentos em que este
esforço me esgotou tanto física como mentalmente. Nesses momentos perguntava a Isidoro
Baltazar acerca do conhecimento intuitivo, esse brilho de percepção interior e de
compreensão que se supõe cultivam os feiticeiros com preferência a todos os demais.
Nesses momentos costumava dizer-me que conhecer algo somente de maneira intuitiva não
tem valor algum. Essas centelhas de percepção interna, que comparava com visões de
fenômenos inexplicáveis, precisam ser transformadas em pensamentos coerentes. Tanto um
como outro se desfazem tão rápido como surgem, e se não são reforçados continuamente
sobrevêm à dúvida e o esquecimento, pois a mente é condicionada para ser prática e aceitar
unicamente o verificável e factível.
Explicou que os feiticeiros são homens de conhecimento antes que homens de razão, e
como tal estão adiantados em relação aos intelectuais do Ocidente, que assumem que a
realidade (frequentemente equiparada com a verdade) se conhece através da razão. Um
feiticeiro mantém que a única coisa que se pode conhecer mediante a razão são nossos
processos de pensamento, mas que é só mediante o ato de compreender nosso ser total, em
seu nível mais sofisticado e intrincado, que poderemos apagar os limites com os quais a
razão define a realidade.
Isidoro Baltazar me explicou que os feiticeiros cultivam a totalidade de seu ser, ou seja, que
não necessariamente fazem uma distinção entre os aspectos racionais e intuitivos do
homem. Utilizam ambos para chegar ao reino da consciência, que chamam de
“conhecimento silencioso”, o qual existe mais além da linguagem e mais além do
pensamento.
Uma e outra vez, Isidoro Baltazar ressaltou que para que alguém possa silenciar seu lado
racional, primeiro deve compreender os processos do pensamento em seu nível mais
sofisticado e complexo. Acreditava que a filosofia, começando com o pensamento clássico
grego, forneceu a melhor maneira de iluminar este processo. Nunca se cansava de repetir
que, seja como eruditos ou como leigos, somos membros e herdeiros da tradição cultural do
Ocidente, significando que, independente de nosso nível de educação e sofisticação, somos
prisioneiros dessa tradição e de sua maneira de interpretar a realidade.
Isidoro Baltazar sustentava que somente de maneira superficial estamos dispostos a aceitar
que aquilo que chamamos de realidade é algo culturalmente determinado, e o que
precisamos é aceitar, ao nível mais profundo possível, que a cultura é o produto de um
processo longo, cooperativo, altamente seletivo e desenvolvido, e por último, mas para ele
não menos importante, altamente coercitivo, que culmina num acordo que nos desvia e nos
afasta de outras possibilidades. Os feiticeiros procuram, de forma ativa, desmascarar o fato
de que a realidade é ditada e mantida por nossa razão: que as idéias e os pensamentos
surgidos da razão se convertem em regimes de conhecimento que ordenam a forma como
vemos e atuamos no mundo; e que todos estamos sujeitos à uma incrível pressão para
assegurar que certas ideologias nos sejam aceitáveis.
Ressaltou que os feiticeiros estão interessados em perceber o mundo de maneira diferente
ao culturalmente definido, e o culturalmente definido é que nossa experiência pessoal, mais
um acordo social compartilhado acerca do que nossos sentidos são capazes de perceber,
determinam o que percebemos. Qualquer coisa fora deste reino perceptual, sensorialmente
convencionado, é automaticamente encapsulado e posto de lado pela mente racional, e
desta maneira nunca se danifica o frágil manto das presunções humanas.
Os feiticeiros ensinam que a percepção ocorre em um lugar fora do reino sensorial; sabem
que existe algo mais vasto que o que nossos sentidos podem captar. Dizem que a percepção
tem lugar em um ponto fora de nosso corpo, fora dos sentidos, mas não é suficiente
acreditar meramente nesta premissa. Não é apenas questão de ler acerca disso, ou escutá-lo
da boca de terceiros. Para transformá-lo em algo corpóreo, a pessoa precisa tê-lo
experimentado.
Isidoro Baltazar disse que os feiticeiros lutam ativamente durante todas suas vidas para
quebrar esse débil manto das presunções humanas. Contudo, não mergulham cegamente na
escuridão. Estão preparados; sabem que quando se lançam ao desconhecido necessitam
dispor de uma bagagem racional bem desenvolvida. Somente então poderão explicar e dar
sentido ao que trouxerem de volta de suas viagens ao ignoto.
Acrescentou que eu não devia entender a feitiçaria através da leitura dos filósofos, e sim
compreender que tanto a filosofia como a feitiçaria são formas altamente sofisticadas de
conhecimento abstrato. Tanto para o feiticeiro como para o filósofo a verdade de nosso ser-
no-mundo não permanece impensada. Não obstante, o feiticeiro vai um passo além: atua à
base de seus achados que já estão, por definição, fora de nossas possibilidades
culturalmente aceitadas.
Isidoro Baltazar acreditava que os filósofos são feiticeiros intelectuais. Apesar disso, suas
buscas e ensaios ficam sempre em empenhos mentais. Os filósofos somente podem atuar no
mundo que tão bem entendem e explicam da maneira cultural já concordada. Eles se
somam a um já existente corpo de conhecimento. Interpretam e reinterpretam textos
filosóficos. Novos pensamentos e idéias resultantes deste intenso estudo não os mudam
exceto, talvez, num sentido psicológico. Podem chegar a converter-se em pessoas mais
compreensivas e boas, ou talvez em seu oposto. No entanto, nada do que façam
filosoficamente mudará sua percepção sensorial do mundo, pois os filósofos trabalham de
dentro da ordem social, à qual apóiam, ainda que intelectualmente possam não estar de
acordo com ela. Os filósofos são feiticeiros frustrados.
Os feiticeiros também constroem sobre um já existente conjunto de conhecimento.
Contudo, não o fazem aceitando o já provado e estabelecido por outros feiticeiros. Devem
provar de novo a si mesmos que aquilo que já se dá por aceitado na verdade existe, e se
submete à percepção. Para conseguir cumprir esta tarefa monumental, precisam de uma
extraordinária capacidade de energia, a qual obtêm apartando-se da ordem social sem
retirar-se do mundo. Os feiticeiros rompem a convenção que tem definido a realidade sem
destruir-se no processo de fazê-lo.
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
Por um momento permaneci na cama, recordando vagamente meu assombroso ensonho, tão
diferente de qualquer outro. Pela primeira vez tinha pleno conhecimento de tudo o que
havia feito.
—Nélida? — perguntei, ao escutar um suave murmúrio que chegava do outro extremo do
quarto. Tentei levantar-me, mas caí de novo sobre a cama. O quarto girava. Minutos depois
o tentei de novo. Fiquei de pé e ensaiei uns passos vacilantes, que terminaram quando caí
ao chão e dei com a cabeça contra a parede.
—Merda! — gritei. —Estou desmaiando.
—Não seja tão dramática — foi Florinda quem disse isso, e riu ao ver-me tão
desconcertada. Tocou primeiro minha testa, depois meu pescoço, e ao comprovar que não
tinha febre pronunciou sua sentença: —Não está desmaiando. O que precisa é repor sua
energia.
Perguntei por Nélida, e enquanto me ajudava a voltar para a cama, Florinda quis saber se
havia estranhado a ela.
—Está fraca porque está com fome — disse.
—Não tenho fome — a contradisse, mais por hábito que por convicção, sem duvidar de que
minha tontura se devia a não ter comido nada o dia todo, salvo o desjejum.
—Nos perguntamos por que não comeu — confessou Florinda, respondendo a meus
inexpressados pensamentos. —Havíamos lhe preparado um guisado tão delicioso.
—Quando chegou? — quis saber. —Tenho estado lhe chamando em silêncio durante dias.
Florinda semicerrou os olhos, e emitindo um som sussurrante, ao que parecia destinado a
ajudá-la a recordar, respondeu que acreditava estar a vários dias na casa.
—Acredita? — perguntei impaciente, perto de uma exteriorização de mau gênio que
consegui controlar. —Por que não me fez saber que estava aqui? — mais que ofendida me
intrigava não ter notado sua presença. —Como pude não me dar conta? — murmurei, mais
para mim que para seus ouvidos.
A curiosa expressão de seus olhos denotava que a Florinda lhe surpreendia meu
desconcerto, e sua sagaz resposta foi que, se tivessem me revelado sua presença, eu não
teria podido me concentrar em minha tarefa.
—Como bem sabe, em lugar de ocupar-se de seu ensaio, estaria pendente de nossas idas e
vindas. Toda sua energia estaria concentrada em averiguar o que nós fazíamos, não é
assim? Deliberadamente decidimos que você deveria trabalhar sem distrações — explicou,
para depois agregar que o cuidador me havia ajudado somente depois de ter comprovado
que o feito por mim até aquele momento era satisfatório, e que em ensonhos ele havia
encontrado a ordem inerente de minhas anotações.
—Eu também os achei em ensonho — confessei.
—Naturalmente — concordou Florinda. — Nós te fizemos ensonhar para que pudesse
trabalhar.
—Vocês me fizeram ensonhar? — repeti.
Sem dúvida sua declaração era chamativamente normal, mas não deixava de causar-me
apreensão. Me dominou a misteriosa sensação de estar por fim a ponto de compreender o
que significava o ensonhar desperto, embora sem conseguir captá-lo por completo, e
esforçando-me por ser clara, revelei a Florinda tudo o que aconteceu desde o momento em
que vi ao cuidador e ao cachorro no pátio.
Não me foi fácil ser coerente, pois eu mesma não conseguia decidir quando estive desperta
e quando adormecida, e aumentava minha confusão o fato de poder recordar o exato
contorno de meu trabalho tal como o vi, sobreposto ao texto original.
—Minha concentração era demasiado intensa para pensar que pudesse estar ensonhando —
resumi.
—É disso, precisamente, que se trata o ensonhar desperto. Por isso o lembra tão bem — e o
modo em que Florinda disse isto me lembrou uma professora impaciente, explicando algo
simples a uma criança retardada. —Já te disse que o ensonhar desperto não tem nada a ver
com dormir e sonhar.
—Tomei notas — acrescentei, como se isso pudesse invalidar o que ela acabara de dizer, e
ao ver que concordava com um movimento de cabeça, perguntei-lhe se encontraria algo
sobre a matéria, escrito de meu punho e letra, entre minhas notas.
—Sim — me assegurou —, mas antes terá que comer. — Ficando de pé, estendeu-me a
mão e me ajudou a se levantar.
Para ajeitar-me um pouco acomodou a camisa dentro de meus jeans e tirou os pedaços de
palha aderidos a meu suéter. Depois me afastou um pouco para inspecionar sua obra. Não
satisfeita, encarou o aspecto de meu cabelo, acomodando os fios esticados e rebeldes.
—Você fica horrível com o cabelo desgrenhado.
—Estou acostumada a uma ducha quente ao levantar-me — e saí atrás dela ao corredor. Ao
ver que se dirigia à cozinha lhe informei que antes precisava ir ao toalete.
—Te acompanho — ofereceu, e ao notar meu gesto de recusa, explicou que só desejava
assegurar-se de que eu não me desmaiaria e cairia pelo buraco.
Aceitei agradecida o apoio de seu braço, e quase cai de bruços ao sair ao pátio, não tanto
por causa de minha debilidade e sim pela surpresa que me causou comprovar o tarde que
era.
—O que acontece? — perguntou Florinda. —Se sente fraca?
Apontei o céu. Apenas sobrava um resto de luz.
—Não é possível que tenha perdido um dia — disse com voz apagada. Lutei por assimilar a
idéia de que haviam transcorrido toda uma noite e todo um dia, mas minha mente não o
aceitou. O fato de não poder calcular o tempo de acordo com os cânones normais me
desorientava.
—Os feiticeiros quebram o fluir do tempo — explicou Florinda, interpretando meus
pensamentos. —O tempo, tal como nós o medimos, não existe quando se ensonha como o
fazem os feiticeiros. Eles o estendem ou condensam à vontade, e não o consideram em
termos de horas ou minutos. Ao ensonhar despertos, aumentam suas faculdades perceptuais
— prosseguiu em tom paciente e medido. —Não obstante, com o tempo acontece algo por
intero distinto. A percepção do tempo não aumenta, e sim que fica totalmente cancelada. —
Acrescentou que o tempo é sempre um fator de consciência, ou seja, que sua percepção é
um estado psicológico, automaticamente transformado por nós em medidas físicas. É algo
que levamos tão gravado que, ainda quando não o percebamos, um relógio soa em nosso
interior, marcando subliminarmente o tempo.
—No ensonhar desperto — enfatizou — essa capacidade está ausente. Uma estrutura por
completo nova e nada familiar assume o controle; uma estrutura que de alguma maneira
não é para ser interpretada ou entendida como normalmente fazemos com o tempo.
—Ou seja, que tudo o que saberei conscientemente acerca do ensonhar desperto é que, com
relação ao tempo, ele poderá ter sido estendido ou comprimido — disse, procurando
entender à explanação.
—Compreenderá muito mais que isso — me assegurou com ênfase. —Quando for expert
em penetrar na consciência intensificada, como a chama Mariano Aureliano, terá
consciência de tudo o que deseje, pois os feiticeiros não estão envolvidos com medir o
tempo e sim em usá-lo, em estendê-lo ou comprimi-lo à vontade.
—A pouco você disse que todos me ajudaram a ensonhar — afirmei. —Neste caso, alguém
deve saber o quanto durou meu ensonho.
Florinda respondeu que ela e seus companheiros viviam permanentemente num estado de
ensonhar desperto, e que era precisamente seu esforço conjunto o que me fez ensonhar, mas
que jamais levavam conta de sua duração.
—Quer inferir que posso estar ensonhando desperta agora? — perguntei, sabendo de
antemão o que responderia. —Se é assim, o que fiz para alcançar este estado? Quais passos
tomei?
—Os mais simples imagináveis — respondeu Florinda. —Não se permitiu ser seu ser usual.
Esta é a chave que abre portas. Muitas vezes, e de diferentes maneiras, temos lhe dito que a
feitiçaria não é o que pensa que é. Dizer que não permitir-se ser seu ser usual é o segredo
mais complexo da feitiçaria; soa bobo mas não o é. É a chave ao poder, e portanto o mais
difícil que faz um feiticeiro; e não obstante, não é algo complexo, impossível de entender.
Não confunde a mente, e por tal razão ninguém pode sequer suspeitar sua importância ou
tomá-lo a sério. A julgar pelo resultado de sua última sessão de ensonhar desperta, posso
dizer que você acumulou suficiente energia mediante o ato de impedir-se ser seu ser usual.
Deu um tapinha em meu ombro e sussurrou.
—Te verei na cozinha.
A porta da cozinha estava entreaberta, mas nenhum som provinha do interior.
—Florinda? — perguntei em voz baixa.
Me respondeu um riso suave, mas não vi ninguém. Quando meus olhos se acostumaram à
penumbra divisei a Florinda e a Nélida sentadas a uma mesa, seus rostos estranhamente
vívidos nessa tênue luz, assim como seus olhos, cabelos, nariz e bocas. Diria-se que as
iluminava uma luz interior, e me impressionou comprovar o quanto eram exatas eram entre
si.
—Vocês duas são tão lindas que assusta — disse, aproximando-me.
Olharam-se uma à outra e soltaram um riso, francamente perturbador. Senti que um calafrio
percorria minha coluna, e antes que eu pudesse ensaiar comentário algum, ambas se
calaram, e Nélida me convidou a ocupar a cadeira vazia junto a ela.
Respirei fundo. “Precisa manter a calma”, me disse ao ocupar o assento. Havia em Nélida
uma secura e um tensionamento que me enervava. Da sopeira no meio da mesa me serviu
um prato de espessa sopa.
—Quero que coma tudo — disse, aproximando de mim uma cesta com tortilhas quentes, e
também a manteiga.
Eu estava morta de fome, e ataquei o que me deram como se não tivesse comido um só
bocado em muitos dias. Esgotei o conteúdo da sopeira, e acompanhei as tortilhas com três
canecas de chocolate quente. Saciada, me acomodei em minha cadeira. A porta que
conduzia ao pátio estava aberta de par em par, e uma brisa fresca reacomodou as sombras
que invadiam a cozinha. O crepúsculo parecia eterno, e no céu languideciam grossas capas
de cor: vermelhão, azul escuro, ouro e violeta, e tanto o ar, dotado de uma qualidade
transparente, parecia aproximar as montanhas distantes. Como impulsionada por uma força
interior a noite dava a impressão de surgir do chão, e o ensombrecido movimento das
árvores frutíferas, impulsionado pelo vento rítmico e cheio de graça, arrebatava a escuridão
e a elevava até o céu.
Esperanza entrou na cozinha portando uma lamparina de azeite que colocou sobre a mesa,
olhando-me sem piscar, como se tivesse problemas para enfocar a vista. Dava a impressão
de continuar preocupada por algum mistério de outro mundo, mas aos poucos seus olhos se
descongelaram, e sorriu, como sabendo que havia regressado de algum lugar muito
distante.
—Meu ensaio! — gritei, ao ver as folhas soltas e meu caderno sob seu braço. Com um
grande sorriso os entregou a mim.
Sem dissimular minha impaciência, examinei as folhas, rindo feliz ao poder constatar as
páginas do caderno cobertas de precisas e detalhadas instruções, a metade em espanhol e a
outra metade em inglês, sobre como proceder com meu trabalho, sendo a caligrafia
indiscutivelmente minha.
—Está tudo aqui! — exclamei muito excitada. —Assim o vi em meu ensonho — e de
pensar que poderia me livrar do curso de pós-graduação sem ter que esforçar-me em
excesso, esqueci toda minha ansiedade anterior.
—Não se escrevem bons ensaios recorrendo a atalhos — advertiu Esperanza. —Nem
sequer com a ajuda da feitiçaria. Deveria saber que sem as leituras prévias e a coleta de
notas, o fato de escrever e de revisar o escrito, nunca teria conseguido reconhecer a
estrutura e a ordem de seu trabalho em seus ensonhos.
Assenti sem falar. Ela havia dito isso com autoridade incontestável, deixando-me sem
palavras.
—E o que acontece com o cuidador? Foi professor em sua juventude?
Nélida e Florinda se viraram na direção de Esperanza, como se a ela coubesse responder.
—Isso não o saberia dizer — respondeu, de maneira evasiva. —Não te disse que era um
feiticeiro enamorado das idéias?
Manteve silêncio por um momento, para depois completar:
—Quando não cuida de nosso mundo mágico, como cabe a um cuidador, ele lê.
—Além de livros — ampliou Nélida — lê uma extraordinária quantidade de revistas
culturais. Fala vários idiomas, de modo que está atualizado com o último em tudo. Delia e
Clara são suas ajudantes. Ele as ensinou a falar inglês e alemão.
Perguntei se a biblioteca da casa pertencia a ele.
—É de todos — respondeu Nélida. —Contudo estou segura de que, tirando Vicente, ele é o
único que leu todos os livros que contêm as estantes — e ao observar minha expressão
incrédula me advertiu que o aspecto das pessoas desse mundo não deveria enganar-me. —
Para alcançar um certo nível de conhecimentos os feiticeiros trabalham o dobro do que o
fazem outros. Os feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo cotidiano
como ao mágico. Para conseguir isso devem ser muito preparados e sofisticados, tanto
mental como fisicamente.
—Durante três dias trabalhou em seu ensaio. Trabalhou duro, não é verdade? — aguardou a
que eu me manifestasse de acordo, e depois acrescentou que, enquanto ensonhava desperta,
lhe dediquei ainda maior esforço que estando desperta.
—Não estou de acordo — contradisse. —Tudo foi muito simples e carente de esforço — e
expliquei que a única coisa que fiz foi ver uma nova versão de meu trabalho sobreposta à
antiga, a qual copiei.
—Fazer isso demandou toda a força que você possuía — sustentou Nélida. —Enquanto
ensonhava desperta você canalizou toda sua energia em um só propósito. Toda sua
preocupação e esforço se destinaram a terminar seu trabalho. Nada mais importava.
Nenhum outro pensamento interferiu com sua meta.
—O cuidador ensonhava desperto quando leu meu ensaio? Viu o que eu vi?
Nélida ficou de pé e caminhou lentamente até a porta. Durante um longo tempo olhou para
fora, em direção à escuridão. Depois voltou à mesa, segredou algo com Esperanza, e tornou
a sentar-se. Esperanza riu quando me disse que o que o cuidador viu em meu trabalho era
diferente ao que foi visto e escrito por mim.
—E é natural que assim fosse, pois o conhecimento dele é muito mais vasto que o seu.
Você, guiada por suas sugestões, e de acordo com sua capacidade, captou como devia
parecer seu trabalho, e isso foi o que você escreveu.
Por sua vez Nélida explicou que enquanto ensonhamos despertos temos acesso a recursos
ocultos que de ordinário não empregamos. Disse que nem bem eu vi meu trabalho lembrei
dos pontos-chave que me havia fornecido o cuidador.
Ao notar que minha expressão incrédula persistia, lembrou o que foi dito pelo cuidador
sobre meu ensaio. “Demasiadas notas ao pé da página, citações demais e idéias
desenvolvidas com descuido.” Seus olhos irradiavam simpatia e um ar divertido ao
acrescentar que, dado que eu ensonhava e não era tão estúpida como alegava ser, de
imediato percebi toda sorte de enlaces e conexões não notados antes. Depois se aproximou
sorridente à espera de minha reação.
—É hora de que saiba o que te fez ver uma melhor versão de seu trabalho original. —
Esperanza me piscou um olho como para enfatizar que estava por revelar-me um segredo
retumbante.
—Quando ensonhamos despertas, nós temos acesso ao conhecimento direto.
Observou-me um longo período, e havia desencanto em seus olhos.
—Não seja tão densa! — Nélida me cutucou impaciente. —Ensonhar desperta deveria ter
lhe demonstrado que possui, como todas as mulheres, uma capacidade sem igual para
receber conhecimentos diretos.
Com um gesto Esperanza me indicou guardar silêncio e disse: —Sabia que uma das
diferenças básicas entre homens e mulheres é a maneira em que encaram o conhecimento?
Eu não tinha idéia do que queria dizer. De maneira lenta e deliberada arrancou uma folha
em branco de meu caderno e desenhou duas figuras humanas, uma das quais coroou com
um cone e disse que era um homem. Sobre a outra cabeça desenhou o mesmo cone, só que
invertido, e o declarou ser a mulher.
—Os homens constroem seu conhecimento passo a passo — explicou com o lápis
apontando à cabeça coroada pelo cone. —Tendem para cima, trepam em direção ao
conhecimento. Os feiticeiros dizem que os homens se estiram como um cone em direção ao
espírito, para o conhecimento, e este procedimento limita até onde podem chegar —
repassou com o lápis as linhas do cone da primeira figura. —Como poderá ver, os homens
só podem alcançar certa altura, e seu caminho termina no ápice do cone.
—Preste atenção — advertiu, apontando com o lápis à segunda figura. —Como poderá ver
o cone está invertido, aberto como um funil. As mulheres possuem a faculdade de abrir-se
diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte lhes chega de maneira direta, na base larga
do cone. Os feiticeiros dizem que a conexão das mulheres com o conhecimento é
expansiva, enquanto a dos homens é bastante restritiva.
“Os homens se conectam com o concreto — prosseguiu —, e apontam ao abstrato. As
mulheres se conectam com o abstrato, e contudo tratam de entregar-se ao concreto”.
—Por quê? — perguntei —, sendo as mulheres tão abertas ao conhecimento ou ao abstrato,
são consideradas como inferiores?
Esperanza me contemplou fascinada. Ficou de pé, esticou-se como um gato, fazendo estalar
todas suas articulações, e recuperou seu assento.
—Que sejam consideradas inferiores ou, no melhor dos casos, que suas características
femininas sejam consideradas complementares às dos homens, têm a ver com a maneira em
que uns e outros se aproximam do conhecimento. Em geral à mulher lhe interessa mais
dominar-se a si mesma que a outros, um tipo de domínio claramente ambicionado pelo
homem.
—Inclusive entre os feiticeiros — acrescentou Nélida para satisfação das mulheres.
Esperanza expressou sua crença em que originalmente as mulheres não consideravam
necessário explorar essa facilidade para unir-se direta e amplamente ao espírito. Não
achavam necessário falar ou intelectualizar acerca desta sua capacidade, pois lhes bastava
acioná-la para saber que a possuíam.
—A incapacidade do homem para unir-se diretamente ao espírito é o que os impulsionou a
falar do processo de alcançar o conhecimento — explicou. —Não pararam mais de falar
disso, e é precisamente essa insistência em saber como se esforçam por alcançar o espírito,
esta insistência por analisar o processo, o que lhes deu a certeza de que o ser racional é uma
conquista tipicamente masculina.
Esperanza explicou que a conceitualização da razão tem sido obtida exclusivamente pelos
homens, e isto lhes têm permitido minimizar os dons e as conquistas da mulher e, pior
ainda, excluir as características femininas da formulação dos ideais da razão.
—É claro que na atualidade a mulher acredita no que lhe tem sido fixado — enfatizou. —A
mulher tem sido criada para crer que só o homem pode ser racional e coerente, e agora o
homem é portador de um capital que o torna automaticamente superior, seja qual for sua
preparação ou capacidade.
—Como foi que as mulheres perderam sua conexão direta com o conhecimento? —
perguntei.
—Não a perderam — corrigiu Esperanza. —Ainda têm uma conexão direta com o espírito,
só que esqueceram como usá-la, ou melhor, copiaram a condição masculina de não possuí-
la. Durante milhares de anos o homem tem se ocupado de que a mulher o esqueça. Pegue a
Santa Inquisição, por exemplo: esse foi um expurgo sistemático para erradicar a crença de
que a mulher tem uma conexão direta com o espírito. Toda religião organizada não é outra
coisa que uma manobra muito exitosa para colocar à mulher no nível mais baixo. As
religiões invocam uma lei divina que mantém que as mulheres são inferiores.
Olhei-a assombrada, perguntando-me como podia ser tão erudita.
—Os homens necessitam dominar a outros, e a falta de interesse das mulheres por
expressar ou formular o que conhecem, e como o conhecem, tem constituído uma nefasta
aliança — continuou Esperanza. —Tem tornado possível que a mulher seja forçada, desde
seu nascimento, a aceitar que a plenitude encontra-se no lar, no amor, no casamento, em
parir filhos e negar-se a si mesma. A mulher tem sido excluída das formas dominantes de
pensamento abstrato e educada para a dependência. Têm sido tão bem treinadas para aceitar
que os homens devem pensar por elas que terminaram por não pensar.
—A mulher é perfeitamente capaz de pensar — disse.
Esperanza me corrigiu.
—A mulher é capaz de formular o que aprendeu, e o que tem aprendido tem sido definido
pelo homem. O homem define a natureza intrínseca do conhecimento, e dele tem excluído
tudo aquilo que pertence ao feminino ou, se o há incluído, é sempre de maneira negativa. E
a mulher o tem aceitado.
—Está atrasada em anos — objetei. —Hoje em dia a mulher pode fazer o que deseja. Em
geral têm aceso a todo centro de aprendizagem, e a quase todos os trabalhos que
desempenha o homem.
—Mas isso não tem sentido, a menos que possuam um sistema de apoio, uma base —
argumentou Esperanza. —De que serve ter aceso ao que possuem os homens, quando ainda
se as consideram seres inferiores, obrigadas a adotar atitudes e comportamentos masculinos
para conseguir o êxito? As que na verdade conseguem alcançar o êxito são as perfeitas
convertidas, e elas também depreciam às mulheres.
—De acordo com os homens o útero limita à mulher tanto mental como fisicamente. Esta é
a razão pela qual às mulheres, apesar de seu acesso ao conhecimento, não lhes tem sido
permitido determinar o que é este conhecimento. Pegue, por exemplo, aos filósofos —
propôs Esperanza. —Os pensadores puros. Alguns deles são encarniçadamente contra a
mulher. Outros são mais sutis, no sentido de que estão dispostos a admitir que a mulher
poderia ser tão capaz como o homem, se não fosse porque não lhe interessam as
investigações racionais, e no caso de estar interessadas, não deveriam estar. Pois lhe cai
melhor à mulher ser fiel à sua natureza: uma companheira nutriente e dependente do
macho.
Esperanza expressou tudo isto com inquestionável autoridade. No entanto, em poucos
minutos, a mim já me assaltavam as dúvidas. —Se o conhecimento não é outra coisa que
um domínio masculino, a quê se deve então sua insistência em que eu vá à universidade?
— perguntei.
—Porque você é uma bruxa, e como tal precisa saber o que te afeta, e como te afeta —
respondeu. —Antes de recusar algo deve saber por que o recusa.
“Sabe, o problema é que o conhecimento em nossos dias se deriva simplesmente de pensar
nas coisas, mas as mulheres têm um caminho distinto, nunca antes levado em consideração.
Esse caminho pode contribuir ao conhecimento, mas teria que ser uma contribuição que
nada tem a ver com pensar nas coisas”.
—Com o que teria que ver então?
—Isso é para que você o decida, depois de ter dominado as ferramentas do raciocínio e da
compreensão.
Minha confusão era muito grande.
—O que propõem os feiticeiros — continuou Esperanza — é que os homens não podem
possuir o direito exclusivo ao raciocínio. Parecem possuí-lo agora porque o terreno sobre o
qual o aplicam é um terreno onde prevalece o masculino. Apliquemos então a razão a um
terreno onde prevalece o feminino, e esse é, naturalmente, o cone invertido que te descrevi:
a conexão feminina com o próprio espírito.
Desviou apenas a cabeça, como decidindo o que estava por dizer.
—Essa conexão deve enfrentar-se com outro tipo de raciocínio, algo nunca antes
empregado: o lado feminino do raciocínio.
—E qual é o lado feminino do raciocínio, Esperanza?
—Muitas coisas; uma delas é definitivamente ensonhar. — olhou-me de maneira
questionante, mas eu nada tinha a dizer.
Sua profunda gargalhada me pegou de surpresa.
—Eu sei o que espera você dos feiticeiros: rituais e encantamentos, cultos raros,
misteriosos. Quer que cantemos. Quer fundir-se com a natureza; estar em comunhão com
os espíritos da água; quer paganismo, uma visão romântica do que fazemos. Muito
germânico.
“Para submergir-se no desconhecido precisam de coragem e mente. Somente com isso
poderá explicar a você mesma e a outros os tesouros que poderá encontrar.” — Esperanza
chegou perto de mim, ansiosa ao que parecia, por confiar-me algo. Coçou a cabeça e bufou
repetidas vezes, cinco vezes como o fazia o cuidador. —Precisa agir a partir de seu lado
mágico — disse.
—E isso o que é?
—O útero — e o disse com tanta calma, e em tom tão baixo, como se não lhe interessasse
minha reação, que quase não lhe ouvi. Depois, ao dar-me conta do absurdo de suas
palavras, me endireitei e olhei para as outras mulheres.
—O útero — repetiu Esperanza — é o órgão feminino fundamental, o que dá às mulheres
esse poder, essa força extra para canalizar sua energia.
Explicou que o homem, em sua busca pela supremacia, tem conseguido reduzir esse
misterioso poder, o útero, ao nível estrito de um órgão biológico cuja única função é
reproduzir, abrigar a semente do homem.
Como se obedecesse a um chamado, Nélida ficou de pé, rodeou a mesa e veio parar-se atrás
de mim.
—Conhece a estória da Anunciação? — murmurou quase pegado a meu ouvido.
—Não — respondi, rindo.
Com esse mesmo sussurro confidencial me disse que na tradição judaico-cristã os homens
são os únicos que escutam a voz de Deus. As mulheres, salvo a Virgem Maria, foram
excluídas deste privilégio. Nélida disse que um anjo sussurrando à Maria era, logicamente,
algo natural. Não o era em troca de que a Única coisa que pôde dizer-lhe foi que daria a luz
ao filho de Deus. O útero não recebeu conhecimento e sim, melhor dizendo, a promessa da
semente de Deus. Um deus masculino, que por sua vez gerava outro deus masculino.
Eu queria pensar, refletir acerca de tudo o que se havia dito, mas minha mente estava em
total confusão.
—E o que acontece com os feiticeiros homens? — perguntei. —Eles não têm útero e,
contudo, estão claramente conectados com o espírito.
Esperanza me olhou com uma satisfação que não tentou dissimular; depois olhou por cima
de seu ombro como temerosa de que alguém a escutasse. Num murmúrio, apenas disse:
—Os feiticeiros podem alinhar-se com o espírito pois abandonam o que especificamente
define sua masculinidade. Já não são homens.
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
O cuidador se encontrava cochilando sobre seu banco favorito à sombra do sapoti. Sua
atividade se havia reduzido a isso nos últimos dois dias. Já não varria os pátios nem
recolhia as folhas; em troca dedicava horas a dormitar ou contemplar os arredores, como se
tivesse um secreto entendimento com algo que só ele podia ver.
Tudo havia mudado na casa, e de maneira incessante me perguntava se não tinha sido um
erro de minha parte ter vindo visitá-los. Como de costume me sentia culpada e na
defensiva, e dedicava meu tempo a dormir durante horas. Não obstante, quando estava
desperta, me perturbava comprovar que já nada era igual, e percorria a casa sem um
propósito fixo. Mas tudo era inútil. Algo parecia ter fugido dessa casa.
Um prolongado e sonoro suspiro do cuidador interrompeu minhas reflexões, e já incapaz de
conter durante mais tempo minha ansiedade, deixei o livro que lia, fiquei de pé e,
aproximando-me, o convidei a recolher e queimar folhas. Minha pergunta pareceu
sobressaltá-lo, mas não respondeu a ela. Era impossível captar a expressão de seus olhos
devido aos óculos escuros que usava, e não soube se permanecia ali à espera de sua
resposta ou se me afastava, e temendo que tornasse a dormir, liberei minha impaciência
para perguntar-lhe se existia uma razão para ter abandonado a coleta e a queima das folhas.
Desviou minha pergunta com uma própria.
—Tem visto ou escutado cair uma folha nestes últimos dois dias? — e tirando as lentes
escuras me perfurou com o olhar.
Seu porte e a severidade com que me falou, antes que as palavras em si, que considerei
ridículas, me moveram a dar-lhe uma resposta negativa. Convidou-me a compartilhar seu
banco, e aproximando-se me sussurrou no ouvido:
—Estas árvores sabem exatamente quando devem desprender-se de suas folhas… — olhou
ao redor como se temesse ser escutado, e em seguida acrescentou: —E sabem que agora
não é necessário.
—As folhas secam e caem, apesar de tudo — anunciei pomposamente. —É uma lei da
natureza.
—Estas árvores são muito caprichosas — manteve, teimoso —, têm mente própria, não
respeitam as leis da natureza.
—E o que é que as levou a não descartar suas folhas?
—Essa é uma boa pergunta — sussurrou, coçando sua barbinha em atitude pensativa. —
Lamento ainda não conhecer a resposta; as árvores não me disseram pois, como já te falei,
estas são árvores temperamentais — e antes que eu pudesse responder me surpreendeu com
algo totalmente inesperado: —Já preparou sua comida?
A abrupta mudança de tema me desorientou. Admiti ter-me preparado o almoço, depois do
qual se apoderou de mim um humor quase desafiante, que me fez dizer:
—Não é que a comida me interesse tanto. Estou acostumada a comer o mesmo, dia após
dia, e se não fosse que o chocolate e as nozes me produzissem espinhas na cara, viveria
sempre disso… — depois abandonei toda precaução, e comecei a queixar-me. Disse ao
cuidador que desejava que as mulheres me falassem.
—Apreciaria de que me mantivessem a par do que está acontecendo, pois a ansiedade está
me matando — e ao descarregar-me me senti melhor, muito aliviada. —É verdade que se
vão para sempre?
—Já partiram para sempre — informou o cuidador, que ao ver minha expressão
desconcertada, acrescentou: — Mas você já sabia, não é? Está falando só para puxar
conversa, não é verdade?
Antes que eu conseguisse me refazer do choque, perguntou num tom de autêntica
perplexidade:
—Por que isso te afeta? — e respondeu a si mesmo após uma pausa: —Já sei! Já o tenho!
Está furiosa porque levaram a Isidoro Baltazar com eles. — Deu-me um tapa nas costas
como para enfatizar cada palavra, seu olhar me dizia que pouco lhe importava que eu
desembocasse em lágrimas ou em um de meus ataques de raiva.
Saber que carecia de público me serenou de imediato o ânimo.
—Isso eu não sabia — murmurei —, juro que não o sabia. — Senti meu rosto exausto, dor
nos joelhos e uma tremenda opressão no peito, e sentindo-me próxima de desmaiar, aferrei
ambas as mãos ao banco.
As palavras do cuidador me chegaram de muito longe: —Ninguém sabe se regressará, nem
sequer eu. Minha impressão pessoal é que se foi com eles temporariamente, mas voltará, se
não logo, então algum dia. Essa é minha opinião.
Tentei descobrir em seus olhos algum sinal de fingimento, mas seu rosto irradiava bondade
e honestidade, e seus olhos brilhavam sinceros como os de uma criança.
—Não obstante — advertiu o cuidador —, quando regressar, já não será Isidoro Baltazar, o
Isidoro Baltazar que você conheceu. Esse se foi, e sabe o que é o mais triste? — e de novo,
após uma pausa, respondeu sua própria pergunta. —Você o aceitou como algo tão natural
que nem sequer lhe agradeceu por seus cuidados, sua ajuda e seu afeto por você. Nossa
grande tragédia é a de ser bufões, indiferentes a tudo salvo nossa bufonaria.
Eu me sentia oprimida demais até para emitir palavra. Com um de seus usuais movimentos
abruptos, o cuidador ficou de pé e caminhou em direção ao caminho que conduzia à outra
casa. Diria-se que era como se estivesse envergonhado demais para permanecer comigo.
—Não pode me deixar aqui, sozinha! — gritei-lhe.
Virou-se para me fazer sinais com a mão, e depois começou a rir, com uma risada alegre
que ressoava no chaparral. Agitou sua mão pela última vez, e depois desapareceu como se
os arbustos o tivessem tragado.
Incapaz de segui-lo, aguardei seu regresso, ou uma de suas súbitas aparições para assustar-
me. Já estava me preparando para tal susto, intuído em meu corpo, mais que antecipado
mentalmente. Como já havia acontecido anteriormente, não vi nem escutei a Esperanza
aproximar-se, ainda que tenha percebido sua presença. Eu me virei, e ali estava, sentada no
banco sob o sapoti, e o simples fato de vê-la me encheu de alegria.
—Pensei que nunca te veria de novo — suspirei. —Quase me havia resignado a isso.
Pensei que havia partido.
—Santo Deus! — comentou com um toque jocoso.
—Você é na verdade Zuleica?
—Nem sonhe isso. Sou Esperanza. E você, o que faz? Está se pondo maluca, fazendo
perguntas às quais ninguém pode responder?
Jamais em minha vida estive tão perto de um colapso total como nesse momento. Senti que
minha mente não aguentaria tanta pressão, e que minha angústia e minha inquietação me
destruiriam.
—Força, garota — ordenou Esperanza com dureza —, ainda falta o pior, mas não podemos
ter piedade contigo. Parar a pressão porque está por vir abaixo não é coisa de feiticeiros.
Seu desafio é o de ser posta à prova hoje. Ou vive ou morre, e não o digo metaforicamente.
—Já não verei mais a Isidoro Baltazar? — perguntei através das lágrimas que me tornavam
difícil o falar.
—Não posso mentir para lhe evitar a dor. Não, nunca regressará. Isidoro Baltazar é só um
momento de feitiçaria. Um ensonho que passou depois de ser ensonhado. Isidoro Baltazar,
assim como o ensonho, já se dissipou.
Um leve sorriso, quase nostálgico, curvou seus lábios.
—O que ainda não sei é se este homem, o novo nagual, também se foi definitivamente.
Logicamente você entende que, mesmo se ele voltar, não será Isidoro Baltazar. Será outra
pessoa, que você terá que conhecer de novo.
—Será um desconhecido para mim? — perguntei não muito segura de querer sabê-lo.
—Não o sei, filha — respondeu com o desânimo próprio da incerteza. —Sinceramente não
o sei. Eu mesma sou um ensonho, como também o é o novo nagual. Ensonhos como nós
têm a marca de não ser permanentes, pois é nossa impermanência o que nos permite existir.
Nada nos retém exceto o ensonho.
Cegada por minhas lágrimas me era quase impossível vê-la.
—Para aliviar sua pena afunde-se em si mesma — aconselhou. —Sente-se com os joelhos
elevados, tomando seus tornozelos com os braços cruzados: o tornozelo direito com a mão
esquerda. Descansa sua cabeça sobre os joelhos e deixe que a pena se vá. Deixe que a terra
te acalme, que sua força curativa venha a ti.
Sentei-me no chão da maneira aconselhada, e num curto tempo minha tristeza havia se
dissipado, substituída por uma sensação corporal de bem-estar. Perdi a noção de mim
mesma, salvo em relação com o momento que estava vivendo. Desprovida de minha
memória subjetiva a dor não existia.
Com a mão, Esperanza assinalou o lugar junto a ela no banco, e assim que o ocupei, ela
pegou minha mão para esfregá-la um momento, como se a estivesse massageando. Depois
comentou que por ser uma mão tão ossuda até que tinha bastante carne. Virou a palma para
cima e a estudou com detenção, para terminar, sem dizer uma palavra, fechando-a num
punho. Permanecemos um longo período em silêncio. Caía a tarde, e nada se escutava, além
do rítmico som das folhas agitadas pelo vento. Observando-a, se apoderou de mim uma
estranha certeza: sabia que Esperanza e eu havíamos falado muito a respeito de minha
vinda à casa e da partida dos feiticeiros.
—O que está acontecendo comigo, Esperanza? Estou ensonhando?
—Bom… — rebateu, e com olhos chispantes me recomendou submeter o ensonho a uma
prova. —Sente-se no chão e comprove-o.
Assim fiz, mas a única coisa que senti foi o frio da rocha sobre a qual me sentei.
—Não estou ensonhando — assegurei — em tal caso, por que sinto que já falamos disso?
— e estudei seu rosto a procura de algum indício que resolvesse meu dilema. —Esta é a
primeira vez que te vejo desde minha chegada, mas sinto que temos estado juntas todos os
dias — disse, mais para consumo próprio que para ser escutada por Esperanza. —Já são
sete dias.
—Muito mais que isso — respondeu —, mas é algo que precisa resolver sozinha, com um
mínimo de ajuda.
Manifestei meu acordo. Era muito o quê queria perguntar, mas sabia e aceitava que falar
seria inútil. Sabia, sem saber como o sabia, que já havíamos tocado em todos esses temas, e
que me encontrava saturada de respostas. Esperanza me observou pensativa e duvidosa.
Depois, muito lentamente, enunciando suas palavras com cuidado, disse:
—Devo advertir-lhe que a consciência que tenha adquirido, não importa quão profunda e
permanente te possa parecer a ti, é só temporária, e logo regressará às suas bobagens. Essa
é a sina de nós, mulheres: ser singularmente difíceis.
—Acho que está equivocada — protestei. —Não me conhece em absoluto.
—É precisamente porque te conheço que digo isto — e após uma pausa acrescentou com
voz áspera e séria: —As mulheres são muito astutas. Lembre-se que, ao ser criadas para ser
serventes, elas se tornam extremamente furtivas e astutas — e seu riso explosivo apagou
qualquer desejo meu de protestar.
“O melhor que pode fazer é não dizer nada…” — disse, e tomando minha mão me ajudou a
pôr de pé, e sugeriu entrar na casa pequena para termos uma longa e muito necessária
conversa.
Não entramos na casa, e sim nos sentamos em um banco junto à porta principal. Ficamos
ali em silêncio quase uma hora, depois do qual Esperanza virou-se para mim. Parecia não
ver-me, e cheguei a perguntar-me se não haveria esquecido que eu tinha vindo com ela, e
que me encontrava sentada ao seu lado. Sem reparar em minha existência, ficou de pé para
afastar-se uns passos, olhar a outra casa, e depois de um longo período dizer:
—Vou te levar longe.
Não poderia dizer se foi a esperança, a excitação ou o temor o que me provocou uma
estranha sensação desagradável na boca do estômago. Sabia que ela não se referia à
distância em termos de milhas, e sim aludindo a outros mundos.
—Não me importa se é longe onde vamos — disse, bravata que estava longe de sentir.
Desesperadamente desejava saber, mas não me animava a perguntar qual seria o destino
final de nossa viagem.
Esperanza sorriu e abriu bem os braços, como para abraçar o sol poente que morria num
declínio em meio a um incêndio. As montanhas distantes eram de um púrpura escuro, e
uma leve brisa se infiltrava por entre as árvores fazendo mexer as folhas. Seguiu uma hora
silenciosa e depois tudo se deteve quando o encanto do crepúsculo imobilizou o mundo ao
redor. Cessaram todos os sons e cada movimento, e os contornos dos arbustos, das árvores
e das serras se viam definidos de maneira tão precisa que se diria que haviam sido
recortados contra o céu.
Me aproximei de Esperanza a medida que as sombras nos rodeavam, e o céu se desvanecia.
A visão da outra casa, silenciosa, com suas luzes brilhando como vaga-lumes na escuridão,
evocou em mim uma profunda emoção sepultada em meu interior, e não ligada a nenhuma
vivência de momento, e sim a uma vaga, triste e nostálgica lembrança juvenil.
Devo ter estado profundamente imersa em meus pensamentos, pois de repente me encontrei
caminhando junto a Esperanza. Meu cansaço e anterior ansiedade haviam desaparecido, e
cheia de uma nebulosa sensação de vigor, marchava em uma espécie de êxtase e de
felicidade silenciosa, meus pés impulsionados por algo superior à minha vontade.
Nosso caminho terminou abruptamente. O terreno era uma ladeira, e as árvores se
estendiam bem alto sobre nossas cabeças. Grandes rochas estavam esparramadas aqui e ali,
e de longe chegava o som de águas que corriam, som parecido a um suave e reconfortante
canto. Com um suspiro, repentinamente fatigada, recostei-me contra uma das rochas e
desejei que este fosse o final de nossa viagem.
—Não chegamos ainda ao nosso destino! — gritou Esperanza, que já, movendo-se com a
agilidade de uma cabra, havia escalado a metade de um trajeto rochoso. Não me esperou,
nem sequer voltou seu olhar para constatar se eu a seguia.
Meu curto descanso me havia despojado de minha última fortaleza, e apenas pude segui-la
com dificuldade, a respiração entrecortada, resvalando entre as pedras. Na metade do
caminho a trilha continuava contornando uma pedra enorme, e a vegetação seca e
quebradiça cedeu lugar a plantas frondosas, escuras na prematura luz crepuscular. Também
mudou o ar, agora úmido e para mim mais respirável. Esperanza se movia com segurança
pela estreita trilha cheia de sombras, silêncios e sussurros. Conhecia os sons misteriosos da
noite, e identificou em voz forte cada um de seus gritos, chamados, coaxares e assobios.
Uns degraus cortados na rocha, que conduziam a um oculto montículo de pedras,
interromperam nosso caminho.
—Recolha uma e guarde-a em seu bolso — ordenou.
À primeira vista todas as pedras pareciam iguais, lisas como as de um córrego, porém uma
inspeção mais detalhada revelava suas diferenças. Algumas eram tão lisas e brilhantes que
pareciam ter sido lustradas. Me tomou tempo escolher uma de meu gosto; pesada, mas que
encaixava com perfeição na palma de minha mão; de uma cor marrom claro, forma de
cunha e entrecruzada por veias leitosas quase translúcidas. Um ruído me sobressaltou e
quase soltei a pedra.
—Alguém nos segue — adverti em voz baixa.
—Ninguém está nos seguindo! — respondeu Esperanza, entre incrédula e divertida, e riu ao
ver que me refugiava atrás de uma árvore. —Possivelmente seja um sapo saltando entre o
matagal.
Teria querido dizer-lhe que os sapos não saltam na escuridão, mas não estava muito certa
disso, e me surpreendeu não tê-lo dito espontaneamente, e com absoluta certeza, como era
habitual em mim.
—Algo anda mal em mim, Esperanza — disse, alarmada. —Não sou a de sempre.
—Nada anda mal, querida — me assegurou. —Na verdade é mais você mesma que nunca.
—Me sinto estranha… — e minha voz se perdeu. Pela primeira vez desde minha chegada à
casa das bruxas começava a perceber uma configuração reconhecível no que estava me
acontecendo.
—É muito difícil ensinar algo tão insubstancial como ensonhar — disse Esperanza. —
Especialmente às mulheres, que somos tão preparadas e esquivas. Além do mais, temos
sido escravas toda a vida, e sabemos manipular muito bem as coisas quando não queremos
que nada transtorne aquilo pelo qual tanto temos trabalhado: nosso status quo.
—Quer dizer que os homens não fazem o mesmo?
—Eles o fazem, contudo são mais abertos. As mulheres lutam com subterfúgios. Sua
técnica preferida é a manobra do escravo: desconectar a mente. Escutam sem prestar
atenção, e olham sem ver. — Acrescentou que ensinar à mulher era tarefa digna de elogios.
—Nós gostamos da franqueza de sua forma de lutar, e temos muitas esperanças em ti. O
que mais tememos é à mulher agradável, que não se opõe ao novo e faz tudo o que lhe
pedem, para depois se recriminar assim que se aborrece da novidade.
—Acho que começo a compreender — respondi, um tanto insegura.
—Mas é claro que começou a compreender! — e sua segurança era tão comicamente
triunfalista que provocou risos em mim. —Inclusive começou a entender o que é o intento.
—Quer dizer que começo a ser uma feiticeira? — perguntei, e todo meu corpo se sacudiu
quando tratei de evitar o riso.
—Desde sua chegada tem estado, por momentos, ensonhando desperta. É por isso que você
dorme com tanta facilidade — e apesar de sorrir não havia em seu rosto sinal algum de
ironia ou condescendência.
Caminhamos um tempo em silêncio, e depois ela disse que a diferença entre um feiticeiro e
uma pessoa comum era que o feiticeiro podia voluntariamente entrar num estado de
ensonhar desperto. Tocou meu braço repetidas vezes, como para enfatizar suas palavras, e
então acrescentou num tom confidencial:
—E ensonha desperta porque, para ajudar-lhe a aguçar sua energia, criamos uma bolha em
torno de ti desde a primeira noite que chegou aqui.
Acrescentou que desde que me conheceram me haviam dado o sobrenome de fosforita. —
Você se queima rápido demais e de forma desnecessária. — Com um gesto me ordenou
tranquilizar-me, e opinou que eu não sabia enfocar minha energia.
—Você a desdobra para proteger e apoiar a idéia de ti mesma. — de novo seu gesto
ordenou silêncio, e disse que o que pensamos ser nosso eu pessoal é na realidade só uma
idéia, e manteve que a maior parte de nossa energia se consumia defendendo essa idéia.
As sobrancelhas de Esperanza se elevaram um pouco quando sorriu e disse:
—O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma idéia que pode ser
mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos. Quando se
afasta a idéia de eu, os feiticeiros têm a energia para alinhar-se com o intento, e ser mais do
que acreditamos constituir o normal.
—As mulheres, por possuir um útero, podem enfocar sua atenção com grande facilidade em
algo fora de seus ensonhos enquanto ensonham. Isso é precisamente o que você vem
fazendo todo este tempo sem sabê-lo. Esse objeto se converte em uma ponte que te conecta
com o intento.
—E qual objeto eu uso?
Captei um toque de impaciência em seus olhos. Depois disse que usualmente era uma
janela, uma luz ou ainda uma cama.
—É tão destra nisso que o consegue naturalmente — assegurou. —Por isso tem pesadelos.
Tudo isso eu lhe disse estando você num profundo estado de ensonhar desperta, e você
entendeu que, sempre e quando recuse enfocar sua atenção em qualquer objeto antes de
adormecer, conseguirá evitar os pesadelos. Está curada, não é mesmo?
É claro que minha reação inicial foi contradizê-la, mas depois de pensar um segundo não
pude fazer menos que estar de acordo. Após conhecer a esta gente em Sonora havia ficado
relativamente livre de pesadelos.
—Nunca estará verdadeiramente livre se persistir em ser a mesma de sempre — declarou.
—É óbvio que o que deveria fazer é explorar seus talentos para ensonhar de maneira
deliberada e inteligente. Para isso está aqui, e a primeira lição é que a mulher deve, através
de seu útero, enfocar sua atenção sobre um objeto. Não um objeto de ensonho em si, e sim
um objeto independente, pertencente ao mundo anterior ao ensonho.
—Contudo — complementou —, não é o objeto o que importa, e sim o ato deliberado de
enfocá-lo à vontade, antes e durante o ensonho. — Advertiu-me que apesar de parecer
simples, tratava-se de uma tarefa formidável, que poderia levar-me anos para dominá-la. —
O que normalmente acontece é que a pessoa desperta no instante em que enfoca sua
atenção num objeto externo.
—O que significa usar o útero? — perguntei. —E como se consegue?
—Você é mulher, e sabe sentir com o seu.
Desejava contradizê-la, dizer-lhe que não tinha a mais remota idéia, mas antes que pudesse
fazê-lo, ela explicou que na mulher o sentir emana do útero.
—No homem se origina no cérebro — e depois de dar-me um suave golpe no estômago me
recomendou pensar sobre isto. —A mulher é desapiedada exceto com sua prole, pois seus
sentimentos vêm do útero. Para enfocar sua atenção através do útero coloque um objeto
sobre seu estômago, ou esfregue-o com seu órgão oco — e riu com gosto ao observar a
expressão de meu rosto. Então, entre risos, me repreendeu: —E olha que não fui tão má.
Podia dizer-lhe que era necessário untar o objeto com suas secreções, mas não o fiz. Uma
vez estabelecida uma estreita afinidade com o objeto — continuou, agora séria —, sempre
estará presente para servir-lhe como ponte.
Caminhamos um trecho em silêncio, ela parecendo profundamente imersa em seus
pensamentos. Eu fervia por dizer algo, apesar de saber que nada tinha para dizer. Quando
Esperanza finalmente falou, seu tom era sério.
—Já não lhe sobra tempo para desperdiçar. É muito natural que devido à nossa estupidez
nós fodemos com as coisas, e isto os feiticeiros o sabem melhor que ninguém. Mas
igualmente sabem que não existem segundas oportunidades. Deve aprender controle e
disciplina, pois já não há margem para erros.
—Você fodeu a si mesma, sabia? — disse ela. —Nem sequer sabia que Isidoro Baltazar
havia partido.
O dique etéreo que continha a avalanche de sentimentos se desmoronou. Reapareceu minha
memória, e de novo me dominou a tristeza, fazendo-se tão intensa que nem me dei conta de
ter-me sentado e estar afundando-me no chão como se este fosse de esponja. Em última
instância o sólo me tragou. Não resultou ser uma experiência sufocante ou claustrofóbica,
pois a sensação de estar sentada na superfície coexistiu com a de ser tragada pela terra, uma
sensação dual que me fez gritar: “Estou ensonhando!”, e este anúncio em voz alta desatou
algo dentro de mim, uma nova avalanche de memórias diferentes me invadiu.
Cada noite, desde minha chegada, havia ensonhado o mesmo ensonho, o qual até esse
momento havia esquecido. Ensonhei que todas as feiticeiras vinham ao meu quarto para
instruir-me, e me diziam uma e outra vez que ensonhar era a função secundária do útero,
sendo a primeira a reprodução e tudo o relativo a ela. Me disseram que ensonhar era nas
mulheres uma função natural, um puro corolário de energia. Dotado de suficiente energia o
corpo da mulher, por si só, desperta as funções secundárias do útero, e a mulher ensonha
ensonhos inconcebíveis.
Não obstante, essa energia necessária se assemelha à ajuda a países subdesenvolvidos:
nunca chega. Algo na ordem geral de nossa estrutura social impede que essa energia se
libere para que as mulheres possam ensonhar. Segundo as feiticeiras, se essa energia fosse
liberada de uma forma clara e tangível, derrubaria a ordem “civilizada” das coisas. A
grande tragédia da mulher é que sua consciência social domina por completo a individual.
A mulher teme ser diferente, e não gosta de afastar-se por demais da comodidade do
conhecido. As pressões sociais às quais se vêem submetidas para não se afastar são
simplesmente fortes demais, e ao invés de mudar se rendem ao estabelecido: a mulher
existe para estar a serviço do homem, e portanto não pode ensonhar ensonhos de feiticeiros,
apesar de possuir a disposição orgânica para isso.
O feminismo tem destruído as oportunidades da mulher, e quer seja por seu apego religioso
ou científico, marca-as por igual com o mesmo selo: sua principal função é reproduzir, e
em última análise, pouco importa se a mulher tenha alcançado um nível de igualdade
política, social ou econômica.
As mulheres me repetiam isto cada noite, e quanto mais recordava e entendia suas palavras,
maior era minha tristeza; não só a título pessoal como por todas nós, uma raça de seres
esquizofrênicos aprisionada em uma ordem social que nos amarra às nossas próprias
incapacidades. Se conseguimos nos libertar, é somente por momentos, uma claridade
efêmera vivida antes de cair de novo, de forma involuntária ou deliberadamente, em um
poço de obscuridade.
Escutei uma voz que dizia “basta com essa faxina sentimental”, uma voz de homem que
percebi ser a do cuidador, que me olhava.
—Como chegou aqui? — perguntei, perplexa e um pouco confusa. —Você estava me
seguindo? — a qual, mais que uma pergunta, era uma acusação.
—Sim, eu venho seguindo a você em especial — e me presenteou com um de seus olhares
maliciosos.
Estudei seu rosto. Não acreditava nele; sabia que estava brincando, apesar do qual não me
aborrecia ou assustava essa intensa luz que irradiavam seus olhos.
—Onde está Esperanza? — perguntei ao comprovar que havia desaparecido. —Onde…? —
não pude superar o gaguejo. As palavras se recusavam a sair.
—Anda por aí — respondeu com um sorriso. —Não fique aflita. Eu também sou seu
mestre. Está em boas mãos.
Vacilante lhe estendi uma mão, e sem esforço algum ele me ajudou a trepar numa rocha
plana, situada sobre uma pequena lagoa ovalada, que era alimentada por um riacho de sons
relaxantes, vindo de algum ponto entre as trevas.
—E agora tire suas roupas — ordenou. —É hora de seu banho cósmico!
—Meu quê? — e certa de que se tratava de uma piada comecei a rir.
Não era piada. Me deu uma série de golpezinhos no braço, tal qual fazia Esperanza, e
repetiu a ordem. Antes que eu me desse conta de seus atos ele já havia desatado os cordões
de meu calçado.
—Não temos muito tempo — me admoestou, fixando-me com seu olhar frio, clínico e
impessoal, como se eu fosse o sapo ao qual havia aludido Esperanza.
A simples idéia de introduzir-me nessas águas frias e escuras, sem dúvida infestadas por
todo tipo de pestes viscosas, me horrorizava, e com ânimo de por fim a tão ridícula situação
me deslizei pela pedra e meti os dedos na água. —Não sinto nada! — gritei, retrocedendo
atemorizada. —O que acontece? Isto não é água!
—Não seja infantil. Naturalmente que é água, só que você não a sente.
Abri a boca para lançar um insulto, mas consegui me frear a tempo. Meu horror havia
desaparecido.
—Por que não sinto a água? — perguntei numa tentativa de ganhar tempo, apesar de saber
que esse era um truque inútil, e que terminaria metendo-me nessas águas, quer eu as
sentisse ou não. Contudo, não era minha intenção ceder com tanta facilidade. —É este
algum tipo de fluido purificador? — perguntei.
Após um longo silêncio, carregado de possibilidades ameaçantes, admitiu que poderia
chegar a dizer-se que se tratava de um líquido purificante.
—Não obstante — disse —, devo advertir-lhe que não existe ritual capaz de purificar a
ninguém. A purificação deve vir de dentro; é uma luta privada e solitária.
—Então por que quer que me meta nesta água que é viscosa, ainda que não a sinta? —
perguntei do modo mais irado possível.
Seus lábios se moveram num indício de riso, mas manteve a seriedade. Anunciou que
mergulharia comigo, e sem mais trâmites se desnudou por completo. Parou frente a mim, a
pouca distância, totalmente nu, e nessa estranha e indefinida luz pude reconhecer cada
centímetro desse corpo, cuja nudez não tentou dissimular. Ao contrário, parecia orgulhoso
ao extremo de sua masculinidade, a qual exibia com desafiante insolência.
—Apresse-se e tire as roupas. Não temos muito tempo — insistiu.
—Não farei isso. É coisa de louco!
—Você fará. É uma decisão que você mesma tomará — e se bem que o disse com
veemência, não demonstrou raiva. —Esta noite, neste mundo estranho, entenderá que só lhe
enquadra um tipo de comportamento: o dos feiticeiros.
Com um sorriso destinado a trazer-me tranquilidade, porém sem sucesso, me disse que o
mergulho me sacudiria, modificando algo dentro de mim.
—Esta mudança lhe servirá mais adiante, para entender o que somos e o que fazemos.
Um sorriso passageiro iluminou seu rosto quando se apressou a esclarecer-me que o
mergulhar nessas águas não me proporcionaria energia para ensonhar desperta por minha
conta. Preveniu-me que transcorreria muito tempo até que eu acumulasse e aguçasse minha
energia, e que talvez nunca chegaria a consegui-lo. —Não existem garantias no mundo dos
feiticeiros — disse, e depois concedeu que talvez a imersão desviasse minha atenção das
preocupações diárias, as esperadas de uma mulher de minha idade e de meu tempo.
—É este um lago sagrado? — perguntei.
Arqueou as sobrancelhas, revelando surpresa.
—É um lago de feiticeiros — explicou, olhando-me fixo. Ele deve ter percebido que minha
decisão já estava tomada, pois passou a desatar meu relógio de pulso para então colocá-lo
no seu. —Não é sagrado e nem o oposto — disse. —Agora olhe seu relógio. Tem sido seu
durante muitos anos. Sinta-o em meu pulso… — soltou uma gargalhada contida, ameaçou
dizer algo e preferiu se calar. —Bom, vamos, tire a roupa.
—Acho que vou entrar com roupa — murmurei.
Apesar de não ser nenhuma puritana, resistia à idéia de exibir-me desnuda ante ele.
Assinalou que eu precisaria de roupas secas para quando saísse da água.
—Não quero que pegue uma pneumonia — disse enquanto um sorriso malvado assomava
em seus olhos. —Isto é água de verdade, apesar a que não a sinta assim.
De má vontade tirei a camisa e os jeans.
—Suas calcinhas também — ordenou.
Caminhei pela borda do lago perguntando-me o que seria melhor, se atirar-me e acabar de
uma vez por todas com a questão, ou molhar-me aos poucos, recolhendo a água em minhas
mãos para deixar que se escorresse por meus braços, pernas e estômago, e por último sobre
o coração, tal qual havia visto fazer as velhas na Venezuela antes de meter-se ao mar.
—Aqui vou eu! — gritei, mas antes de saltar me virei para olhar ao cuidador.
Sua imobilidade me assustou. Parecia ter se convertido em pedra, tão quieto e ereto sobre o
penhasco. Apenas seus olhos pareciam ter vida, brilhando de maneira estranha sem haver
uma luz que o justificasse, e me surpreendeu, antes que entristeceu, ao ver lágrimas rolarem
por suas bochechas. Sem saber por que, eu também comecei a chorar em silêncio. Pensei
que suas lágrimas chegavam e se introduziam em meu relógio colocado em seu pulso. Senti
o atemorizante peso de sua convicção, e de repente, vencidos meu temor e minha indecisão,
me joguei na água.
Não era espessa, e sim transparente como a seda. Não senti frio, e tal qual aduziu o
cuidador, tampouco senti a água. Na verdade não senti nada. Era como se eu fosse uma
consciência incorpórea, que nadava no centro de um espelho aquático ao qual sentia ser
líquido mas não molhado. Percebi uma luz que emanava do fundo, e me impulsionei para
cima, como um peixe procurando ímpeto, para depois mergulhar em busca dessa luz.
Quando ressurgi necessitada de ar, perguntei:
—Que profundidade tem este poço?
—A mesma que ao centro da Terra — respondeu a voz clara e potente de Esperanza, com
tal segurança que, somente para ser fiel a mim mesma, a quis contradizer. Contudo, certa
inquietude que flutuava no ar me impediu: uma calma artificial, uma tensão de súbito
quebrada por um som raspante, um sussurro que advertia que algo estava errado.
De pé no exato lugar antes ocupado pelo cuidador se encontrava Esperanza, totalmente nua.
—Onde está o cuidador? — perguntei alarmada.
—Eu sou o cuidador — respondeu.
Convencida de que ambos me faziam vítima de uma horrenda piada, me aproximei, graças
a fortes braçadas, à rocha sobre a qual se encontrava Esperanza.
—O que está acontecendo? — perguntei, minha voz ainda frágil por causa do esforço
realizado.
Tranquilizando-me com um gesto, aproximou-se com esse andar desengonçado, tão
característico nela, e depois exibiu meu relógio.
—Sou o cuidador — repetiu.
Aquiesci automaticamente, mas em seguida, frente a mim, em lugar de Esperanza surgiu o
cuidador, despido como antes, assinalando meu relógio. Não olhei o relógio; minha atenção
se centrou em seus órgãos sexuais. Estendi minha mão para tocá-los, para descobrir se era
hermafrodita. Não o era. Segui tentando, e senti, mais que vi, como seu corpo se dobrou
dentro de si, e que o que eu tocava era uma vagina. Separei os lábios vaginais para
assegurar-me que dentro dela não estivesse oculto um pênis.
—Esperanza… — consegui dizer, e minha voz se desvaneceu quando algo se prendeu à
minha garganta.
Tive consciência de que as águas se abriam e que algo me atraía em direção às profundezas
da lagoa. Senti frio, não um frio físico, e sim algo mais como a sensação de falta de calor,
de luz e de som, nesse mundo misterioso do lago.
Me despertou um suave ronco; Zuleica dormia ao meu lado sobre uma esteira desdobrada
no chão. Estava bonita como sempre, jovem, forte, e ao mesmo tempo vulnerável, apesar da
harmonia e do poder que exalava, diferente das outras feiticeiras. A observei um momento
para depois levantar-me, quando os acontecimentos da noite me aturdiram. Queria sacudi-
la, despertá-la e exigir que explicasse o acontecido, quando notei que já não estávamos
junto à lagoa na montanha, e sim no lugar exato onde estivemos sentadas anteriormente,
junto à porta principal da casa das bruxas. Perguntando-me se tudo não havia sido mais que
um sonho, sacudi com suavidade seu ombro.
—Ah, já despertou… — murmurou.
—O que aconteceu? Tem que me contar tudo.
—Tudo? — repetiu, com um bocejo.
—Tudo o que aconteceu junto ao lago — rebati impaciente.
Bocejou de novo, riu, e estudando meu relógio (que continuava em seu pulso), disse que
algo em mim havia mudado mais além do antecipado.
—O mundo dos feiticeiros dispõe de uma barreira natural que dissuade as almas tímidas —
explicou. —Os feiticeiros necessitam de uma força tremenda para poder manejá-lo. Está
povoado por monstros, dragões voadores e seres demoníacos, que naturalmente não são
outra coisa que energia impessoal. Nós, impelidos por nosso medo, convertemos essa
energia em seres infernais.
—Mas o que houve com Esperanza e o cuidador? — interrompi. —Ensonhei que ambos
eram na verdade você.
—Eles são — respondeu, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. —Acabei de
lhe dizer. Você mudou mais do que eu antecipei, e entrou no que os ensonhadores chamam
ensonhar em mundos que não são este.
—Você e eu ensonhávamos em um mundo diferente, e por isso não sentia a água. Aquele é
o mundo onde o nagual Elías encontrou todas suas invenções. Nesse mundo se pode ser
homem ou mulher, e assim como o nagual Elías trouxe suas invenções a este mundo, eu
trago a Esperanza ou o cuidador, ou melhor, minha energia impessoal o faz.
Eu não conseguia traduzir meus sentimentos ou pensamentos em palavras: me dominava
uma incrível necessidade de fugir aos gritos, que não podia transformar em ação. Meu
controle motriz já não era voluntário, e em meu intento de pôr de pé e gritar, desabei.
A Zuleica não lhe comoveu nem preocupou minha condição. Seguiu falando como se meus
joelhos não tivessem cedido, como se eu não estivesse esparramada pelo chão igual a uma
boneca de trapo.
—É uma boa ensonhadora. Afinal de contas, passou a vida sonhando com monstros. Agora
é chegado o momento de adquirir a energia para ensonhar como o fazem os feiticeiros,
ensonhar com energia impessoal.
Desejava interrompê-la, dizer-lhe que não havia nada impessoal em meu ensonho de
Esperanza e o cuidador, e que na verdade aquilo havia sido pior que os monstros de meus
pesadelos, porém não podia falar.
—Esta noite seu relógio te trouxe de volta do ensonho mais profundo que já teve —
continuou Zuleica, indiferente aos sons raros que surgiam de minha garganta. —E tem a
rocha para prová-lo.
Chegou aonde eu me encontrava prostrada, observando-a boquiaberta, e procurou em meu
bolso. Estava certa, ali encontrou a rocha que peguei da pilha de pedras.
CAPÍTULO DEZENOVE
FIM
Este livro foi digitalizado para distribuição livre e gratuita através da rede.
Revisão e Edição Eletrônica de Hernán. / Rosário – Argentina. / 05 de Março de 2003 –
02:54
Tradução direta do espanhol, mantendo-se ao mais próximo do texto original.
(Outubro/2008)
NOTAS SOBRE A TRADUÇÃO
- A palavra “cuidador” foi mantida, ao invés de zelador (ou vigilante, sentinela, guardião,
tutor), por ser de fácil entendimento, e por diferenciação, como um nome em si, sem
contudo se utilizar letra maiúscula, por também designar sua função.
- Ponto de encaixe = ponto de aglutinação.
- Consciência acrescentada = consciência intensificada = ensonhar desperto.
- Irreprochable: impecável, irretocável, imaculável, irrepreensível.
“A referência ao mundo dos feiticeiros não é metafórica, já que ele existe numa posição do
ponto de encaixe. Ele existe junto ao mundo das pessoas, no mesmo lugar onde todos estão
e vivem, e só difere com relação às possibilidades de ação e percepção. No mundo comum,
a única referência a esse mundo está nas histórias em quadrinhos, e se fosse levado em
consideração estaria, ao invés disso, em livros de estudo. Quando se diz que um feiticeiro
vive neste mundo sem fazer parte dele é porque seu ponto de encaixe está alinhado ao
mundo dos feiticeiros, e não ao do mundo comum. Nessa posição de alinhamento, ele pode
agir como um bruxo, mas também lhe é exigido comportar-se de acordo, além de ser capaz
de lidar com os componentes próprios dessa posição, como a interação com seres
inorgânicos, uma percepção diferente de tempo e espaço, e suportar pressões diferentes das
do mundo comum. As pressões do mundo cotidiano são relativas a empregos, a
relacionamentos pessoais, e a auto-imagem. Para se aproximar de um desses mundos, a
pessoa precisa se afastar do outro, e é por isso que precisa escolher. Se está apegada aos
elementos de um, não vai conseguir se afastar para alcançar e viver no outro. O mundo dos
feiticeiros é uma posição de ensonho, e para se viver nele se precisa viver numa posição
permanente de consciência intensificada, de ensonho desperto.”
“A energia que se consegue é sentida como poder. Pode-se conseguir poder fazendo coisas
no mundo ou nos ensonhos. Quando se faz algo, e o fato de ter feito esse algo nos dá
confiança ou ímpeto para fazer outras coisas, então isso significa que conseguimos poder
pelo simples fato de ter feito esse algo. O simples fato de viver certas experiências nos
confere poder.”
“Só somos Superman quando estamos completamente limpos, livres de desejos, de ganas,
limpos de consciência, quando nossa energia não está fugindo, se projetando em busca de
‘quereres’, e quando temos apenas a alegria de um menino, que é capaz de fazer uma
travessura admirável e completamente inesperada pelos outros, sem esperar nada por fazer
isso, a não ser a alegria de ser livre e de poder estar fazendo isso.”
“Por que é que nós temos que querer sempre as coisas do nosso jeito? Por que é que não
nos contentamos simplesmente com as coisas do jeito que elas se apresentarem, ou
conforme aconteçam? Por que é que nos permitimos ser tão mimados, a ponto de se irritar e
não querer viver ou desfrutar de momentos, quando eles não são exatamente do jeito que
imaginamos que deveriam ser?
“Existem muitos conceitos a serem assimilados, e muitos levam anos até serem processados
e chegar a nos fazer sentido, na forma de uma sensação direta que já não precisa de ser
acompanhada de uma explicação para que possamos entendê-lo e senti-lo de forma clara
em nós mesmos, em todo o nosso ser.”
“Quantos bombons precisamos comer até chegar a realmente reconhecer seu sabor?
Teríamos que não só saber, mas sentir que a vida é rara, que é curta, e que cada coisa que
fazemos nela também é rara, para que bastasse um único bombom? Ou antes teríamos que
comer muitos, de muitos tipos, para poder comparar, ou também teríamos que passar um
tempo sem sequer poder sentir o cheiro de um, para que quando se voltasse a provar um,
saber o quanto é raro tanto a sua própria existência como um ser, como a existência do
bombom, e o fato de que os dois pudessem existir juntos num mesmo lugar e tempo, a
ponto de poderem entrar em contato? Uma vez que se saiba de tudo isso, bastará um
bombom, e não dez, para se conseguir apreciar o bombom e se sentir saciado em seu desejo
de querer mais, e satisfeito com o próprio fato, por saber quantas coisas precisaram estar
envolvidas para que esse fato acontecesse.”
- No filme Indiana Jones e a Última Cruzada, no final do filme, todos estão num templo, e
uma fenda se abre no chão, formando um abismo. O cálice (Graal) cai no buraco e fica
numa beirada. Uma mulher tenta pegá-lo, cai, e Indiana a segura pela mão, mas ela, na
ambição de tentar alcançar o cálice, se solta e cai no abismo. O mesmo acontece com
Indiana, que então é seguro por seu pai. Ele também tenta alcançar o cálice. No ápice da
situação, quando sua mão também está por se soltar, seu pai, que dedicou sua vida inteira
na busca desse cálice, olha para ele e diz calmamente: “Deixa”. Mesmo um cálice mágico e
único não valia tanta ganância.
- Toda a gana de possuir um objeto sagrado, com poderes mágicos, e o medo de se deixar
perder para sempre um objeto tão importante, precisa ser deixada de lado num instante de
desapego. Para a mulher que caiu, a aflição e loucura em se ter algo tão valioso foi maior
até que seu instinto de sobrevivência. E não é o mesmo que acontece conosco? Algumas
coisas brilham mais que o ouro aos nossos olhos, e nos agarramos com tanta força à idéia
de possuir tal coisa de deixamos todo o resto de lado. Deixamos de lado o bom senso, a
sobriedade, passando por cima de tudo e de todos para tentar conseguir nosso objeto
sagrado. Quase nunca ouvimos, ou damos atenção, à voz interior que nos diz: “Deixa”.
- É característica do ego possuir uma insatisfação sem fim. Ele é como um rei que, não
importa o que ou o tanto se faça por ele, ou quais presentes se possa lhe dar, ele nunca se
dará por satisfeito. O universo inteiro não seria suficiente. Ele é personificado no mito dos
vilões, que querem conquistar primeiro seu país, depois o mundo, ou até como Darth
Vaider, todo o Universo.
- Quando nos referimos ao espírito, sempre parece ser algo externo, mas o espírito é uma
coisa só. Ele é a soma total das energias. A porção de energia que está em nós, concentrada
em nosso ser, que nós chamamos de nosso espírito ou alma, não deixa de ser parte do
espírito total. Ouvir o espírito não é necessariamente ouvi-lo de fora. A porção de espírito
que está em nós é o que nos permite estar em contato com todo o resto. Os anseios do
espírito, diferentes dos do ego, se dão por satisfeitos quando são alcançados. Quando se fala
sobre as exigências ou requisitos do espírito, fica parecendo que temos que fazer coisas
para agradar algo fora de nós, a uma entidade que só nos permite continuar quando
cumprimos suas solicitações. Mas essas necessidades brotam diretamente em nós. É o que
chamamos de consciência. São aquelas necessidades de espírito que precisamos fazer ou
cumprir para estarmos em paz e satisfeitos conosco mesmos. E esta é a única satisfação real
e possível.
Trechos Compilados
(15) - “Ensonhar tem um propósito; os sonhos comuns não o têm. O ensonho sempre tem
um propósito prático, e serve ao ensonhador de maneira simples ou intrincada. Ele serviu a
você para superar seus pesadelos, serviu às bruxas que lhe fizeram a comida para conhecer
sua essência, e serviu a mim para fazer com que o guarda da fronteira, que lhe pediu seu
visto de turista, não estivesse consciente de mim. Você mesma, com pouco esforço, pode
entrar no que você chama de um estado hipnótico. Nós o chamamos ensonhar um sonho
que não é um sonho, mas um ensonho no qual podemos fazer quase tudo o que alguém
deseje.”
- “Não é uma mulher alta, mas tampouco é tão pequena como você a viu. Em seu ensonho
curativo, ela projetou sua pequenez para benefício seu e, ao fazê-lo, apareceu pequena. Essa
é a natureza da magia. Deve ser aquilo cuja impressão deseja dar.”
(18) - “Para mim, entender a filosofia dos feiticeiros (que a liberdade não significava ser o
eu que era meu ser) foi quase a morte. Ser eu mesma significava afirmar minha
feminilidade, e consegui-lo consumia todo meu tempo, esforço e energia. Ao contrário, os
feiticeiros entendem a liberdade como a capacidade para fazer o impossível, o inesperado;
ensonhar um ensonho que carece de base e de realidade na vida cotidiana. O excitante e
novo é o conhecimento dos feiticeiros, e imaginação é o que a mulher necessita para mudar
seu ser e converter-se numa ensonhadora.”
(23) - “Os ensonhadores se ocupam de ensonhos. Obtêm seu poder e sua sabedoria dos
ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com o mundo cotidiano, e
obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus semelhantes.”
(29) - “Meu pai nunca me disse que temos uma testemunha permanente, e não o fez porque
não o sabia. Estou me referindo a uma força, a uma entidade, uma presença que não é força,
entidade nem presença. Os feiticeiros chamam-no o espírito, nosso observador pessoal,
nossa testemunha permanente. Essa força não é Deus, nem tem nada a ver com a religião ou
a moral, e sim é uma força impessoal, um poder à nossa disposição para ser utilizado
somente se conseguíssemos nos reduzir a nada.”
(38) - “Seja você mesma, mas você mesma sob controle. O que não se deve fazer é fazer
algo e depois se arrepender.”
(43) - “Os acontecimentos de nossa vida cotidiana são fáceis de recordar. Temos muita
prática nela, mas os que vivemos em ensonhos são farinha de outro saco. Precisamos lutar
muito para recuperá-los, simplesmente porque o corpo os armazena em diferentes lugares.
Com mulheres que não possuem seu cérebro de sonâmbula, as instruções para ensonhar
começam por fazer com que desenhem um mapa de seus corpos, um trabalho cuidadoso
que revela onde as visões dos ensonhos são armazenadas. Esse mapa é traçado percorrendo
e investigando cada polegada do corpo. Recomenda-se um martelinho de madeira para
golpear o corpo e tatear somente as pernas e os quadris, pois muito raramente o corpo
armazena estas memórias no peito ou no ventre. O que se guarda no peito, costas e ventre
são as lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A única coisa que diz respeito a
você agora é que recordar ensonhos tem a ver com a pressão física sobre o ponto específico
onde está armazenada essa visão.”
(52) - “Caminhará mais aliviada quando se der completamente conta de que não pode voltar
à sua antiga vida. Regressará ao mundo, mas não ao seu mundo, à sua antiga vida. É muito
excitante fazer algo sem saber o porquê, e ainda o é mais, se você se decide a fazer algo
sem saber qual será o resultado.”
- “A liberdade causa muito temor. A liberdade requer atos espontâneos. Não tem idéia do
que significa o abandonar-se espontaneamente... seus atos de espontaneidade se devem
mais à sua falta de avaliação que a um ato de abandono. Um ato verdadeiramente
espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas só depois de uma
profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram devidamente levados em
conta e descartados, pois nem se espera nada nem se lamenta nada. Com atos dessa
natureza os bruxos convocam a liberdade.”
(59) - “Não é a mim a quem precisa convencer, e sim ao espírito. Deve fechar a porta atrás
de você, a que você mantém aberta, a que te permitirá escapar se as coisas não são de seu
agrado, ou não se encaixam em suas expectativas. Deserdar desse mundo fica entre o
espírito e você. Entrou neste mundo da mesma maneira que todos os outros. Ninguém teve
nada a ver com isso, e tampouco o terá se você ou qualquer outro decide se retirar.”
- “Sua decisão carecerá de poder se precisar ser encorajada cada vez que fraquejar ou
duvidar. Um guerreiro não é um escravo, e sim um servidor do espírito. Os escravos não
tomam decisões, os servidores sim. Sua decisão é servir impecavelmente. Esta é a premissa
básica desse mundo: nada se faz que possa ser catalogado como útil. Só se permitem atos
estratégicos. Assim me ensinou o nagual Juan Matus, e é assim como vivo. O feiticeiro
pratica o que predica. E no entanto nada se faz por razões práticas. Quando chegar a
compreender e praticar isto, terá fechado a porta atrás de você.”
(61) - “Uma mudança verdadeira não envolve mudança de ânimo, atitude ou ponto de vista,
e sim uma transformação total do ser. O tipo de mudança ao qual aludo não se consegue em
três meses, um ano ou dez. Toma toda a vida. É sumamente difícil converter-se em algo
diferente ao que alguém havia sido destinado a ser. O mundo dos feiticeiros é um ensonho,
um mito, e no entanto tão real como o mundo de todos os dias.”
- “Para perceber e funcionar nesse mundo devemos nos despojarmos da máscara cotidiana
que levamos aderida aos nossos rostos desde o dia em que nascemos, e colocarmos a
segunda, a que nos permite vermos a nós mesmos e a nosso entorno como realmente são:
acontecimentos extraordinários que florescem só uma vez, adquirem existência transitória e
nunca se repetem. Essa máscara você mesma terá que fazê-la. Isso se faz ensonhando seu
outro ser.”
- “A liberdade não se obtém gratuitamente; ela lhe custará a máscara que leva posta: essa
tão cômoda e difícil de descartar, não por ser cômoda, mas sim porque a tem estado usando
tanto tempo. Sabe o que é a liberdade? É a total ausência de preocupação acerca de si
mesma, e a melhor maneira de deixar de preocupar-se com sua pessoa é preocupando-se
por outros.”
- “Já é hora de que comece a modelar sua máscara, a que não tem a marca de ninguém mais
que não a sua. Precisa ser esculpida em solidão, se não for assim não servirá em você, e
haverá momentos em que a sentirá muito ajustada, muito solta, muito quente, muito fria…”
- “Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que já o fêz: deve agir nesse
mundo. Em seu caso deve ensonhar. Se não está ensonhando, então ainda não se decidiu.
Não está talhando sua máscara. Não está ensonhando seu outro ser. Os feiticeiros estão
comprometidos com seu mundo somente através de sua impecabilidade. Os feiticeiros não
têm interesse em converter a outros às suas idéias. Entre eles não há gurus nem sábios, só
naguais. Eles são os líderes, não por saber mais, ou ser melhores feiticeiros que os outros, e
sim por simplesmente possuir mais energia, e não me refiro necessariamente a força física,
e sim a certa configuração de seu ser que lhes permite ajudar a outros a quebrar os
parâmetros da percepção.”
(62) - “Não espere que tudo seja soletrado com precisão para seu benefício. Nada no mundo
dos feiticeiros era tão claro e preciso. As coisas se desenvolviam de maneira vaga e lenta.
Nesse mundo não existem regras nem regulamentos. Lembre-se sempre que só existem
improvisações.”
- “Nunca perca Isidoro Baltazar de vista. Suas ações te guiarão de maneira tão sutil que
nem sequer se dará conta disso. Ele é um guerreiro impecável e incomparável. Se o
observar cuidadosamente verá que ele não busca amor nem aprovação. Verá que permanece
impávido sob qualquer situação. Não pede nada, mas está disposto a dar tudo de si mesmo.
Aguarda permanentemente um sinal do espírito, na forma de uma palavra amável ou um
gesto apropriado, e quando o recebe, expressa seu agradecimento redobrando seus esforços.
Ele não julga. Se reduziu ele mesmo à nada para escutar e observar, para assim poder
conquistar e ser humilhado na conquista, ou ser derrotado e enaltecido na derrota. Se
observar com cuidado verá que Isidoro Baltazar não se rende. Podem vencê-lo, mas não se
renderá e, acima de tudo, Isidoro Baltazar é livre.”
(69) - “O nagual Isidoro Baltazar havia me advertido acerca da falácia das metas definidas
e das conquistas emocionalmente carregadas. Disse que careciam de valor, pois o
verdadeiro cenário de um feiticeiro é a vida cotidiana, e ali as motivações conscientes
superficiais não aguentam as pressões.”
(70) - “Quando tentava pedir-lhes ajuda recusavam fazê-lo. Seu argumento era que sem a
necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir-se, e não dispunham de tempo
para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas depois de um
tempo abandonei toda tentativa de indagá-las, e me dediquei a desfrutar de sua presença e
de sua companhia. Cheguei assim a aceitar sua razão para não querer jogar nosso jogo
intelectual predileto, esse de pretextar interesse nas assim chamadas perguntas profundas,
que usualmente nada significam para nós pela verdadeira razão de que não possuímos a
energia para utilizar com proveito a resposta que possamos receber, exceto para estar ou
não de acordo com ela.”
(72) - “Isidoro Baltazar acreditava que os filósofos são feiticeiros intelectuais. Apesar disso,
suas buscas e ensaios ficam sempre em empenhos mentais. Os filósofos somente podem
atuar no mundo que tão bem entendem e explicam da maneira cultural já concordada. Eles
se somam a um já existente corpo de conhecimento. Interpretam e reinterpretam textos
filosóficos. Novos pensamentos e idéias resultantes deste intenso estudo não os mudam
exceto, talvez, num sentido psicológico. Podem chegar a converter-se em pessoas mais
compreensivas e boas, ou talvez em seu oposto. No entanto, nada do que façam
filosoficamente mudará sua percepção sensorial do mundo, pois os filósofos trabalham de
dentro da ordem social, à qual apoiam, ainda que intelectualmente possam não estar de
acordo com ela. Os filósofos são feiticeiros frustrados.”
(76) - “Se deseja receber forças do mundo dos feiticeiros já não pode trabalhar com essas
premissas. Em nosso mundo mágico os motivos ulteriores não são aceitáveis. Se quer
graduar-se, deve se comportar como um guerreiro, não como uma mulher treinada para
agradar, pois você, ainda quando se põe bestialmente desagradável, procura agradar. Agora,
no que se refere a escrever, já que não foi treinada para isso, quando o fizer, deverá adotar
uma nova modalidade: a modalidade do guerreiro. Deve lutar consigo mesma, a cada
centímetro do caminho, e precisa fazê-lo com tal arte e inteligência que ninguém notará sua
luta.”
(79) - “Para alcançar certo nível de conhecimentos os feiticeiros trabalham o dobro do que
o fazem outros. Os feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo cotidiano
como ao mágico. Para conseguir isso devem ser muito preparados e sofisticados, tanto
mental como fisicamente.”
- “Enquanto ensonhava desperta você canalizou toda sua energia em um só propósito. Toda
sua preocupação e esforço se destinaram a terminar seu trabalho. Nada mais importava.
Nenhum outro pensamento interferiu com sua meta.”
(80) - “Os homens constroem seu conhecimento passo a passo. Tendem para cima, trepam
em direção ao conhecimento. Os feiticeiros dizem que os homens se estiram como um cone
em direção ao espírito, para o conhecimento, e este procedimento limita até onde podem
chegar. Como poderá ver, os homens só podem alcançar certa altura, e seu caminho termina
no ápice do cone. No caso das mulheres o cone está invertido, aberto como um funil. As
mulheres possuem a faculdade de abrir-se diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte
lhes chega de maneira direta, na base larga do cone. Os feiticeiros dizem que a conexão das
mulheres com o conhecimento é expansiva, enquanto a dos homens é bastante restritiva”.
“Os homens se conectam com o concreto, e apontam ao abstrato. As mulheres se conectam
com o abstrato, e contudo tratam de entregar-se ao concreto”
(82) - “Por você ser uma bruxa, precisa saber o que te afeta, e como te afeta. Antes de
recusar algo deve saber por que o recusa.”
(85) - “Você experimentou duas transições: uma, do estado de estar normalmente desperta
ao de ensonhar desperta, e a outra de ensonhar desperta a estar normalmente desperta. A
primeira foi suave e quase imperceptível, a segunda um pesadelo. Isso é normal, e todos a
experimentamos dessa maneira.”
- “O normal é começar a ensonhar dormindo numa rede ou algum utensílio similar,
pendurado em alguma viga, ou em uma árvore. Assim suspendidos não temos contato com
o chão. O sólo nos captura, não esqueça disso. Suspendido assim, um ensonhador novato
aprende como a energia muda de estar desperto a ensonhar, e de ensonhar um ensonho a
ensonhar desperto. Tudo isto, como já lhe disse Florinda, é questão de energia. Assim que a
tem, você voa.”
(86) - “Na segunda atenção encontramos continuidade e fluidez, assim como na vida diária.
Em ambos estados domina o prático, e atuamos eficientemente neles. No entanto, o que não
podemos conseguir na segunda atenção é esmiuçar nossa experiência para manejá-la, e com
isso nos sentirmos seguros para então tentar entendê-la.”
(88) - “Nossa grande tragédia é a de ser bufões, indiferentes a tudo salvo nossa bufonaria.”
- “Para aliviar sua pena afunde-se em si mesma. Sente-se com os joelhos elevados, tomando
seus tornozelos com os braços cruzados: o tornozelo direito com a mão esquerda. Descansa
sua cabeça sobre os joelhos e deixe que a pena se vá. Deixe que a terra te acalme, que sua
força curativa venha a ti.”
(90) - “Você se queima rápido demais e de forma desnecessária”. Disse que eu não sabia
enfocar minha energia. “Você a desdobra para proteger e apoiar a idéia de ti mesma”.
“Disse que o que pensamos ser nosso eu pessoal é na realidade só uma idéia, e manteve que
a maior parte de nossa energia se consumia defendendo essa idéia.”
- “O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma idéia que pode ser
mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos. Quando se
afasta a idéia de eu, os feiticeiros têm a energia para alinhar-se com o intento, e ser mais do
que acreditamos constituir o normal.”
(96) - “Para viver no mundo dos feiticeiros deve-se ensonhar amplamente. A maioria das
pessoas não possui a engenhosidade nem a estatura espiritual necessária para ensonhar. Não
podem evitar ver o mundo como algo ordinário. E sabe por quê? Porque se você não luta
para evitá-lo o mundo é na verdade ordinário. A maioria das pessoas vive tão preocupada
consigo mesmas que se idiotizaram, e os idiotas não desejam lutar para evitar a
ordinariedade.”
Factótum: faz-tudo
Falda: saia
Flanquar: ladear
Frazada: cobertor, manta
Ocaso: declínio
Ominoso: agourento, mau presságio
Oquedad: buraco, cavidade, oco, vazio
Zambullir: mergulhar
Zanjó: escavou
http://www.babylon.com/definition
http://www.diccionarioweb.org/p/ES/desco
http://www.wordreference.com
http://www.woxikon.com.br/espanhol/
http://pt.wiktionary.org/wiki/
http://www.plantamed.com.br/glossario/index.html
(Plantas medicinais, descrição de doenças e usos de cada planta para tratamento)
http://www.jardineiro.net
Al fin y al cabo: (quando tudo é dito e pronto) afinal; no fim das contas.
A la par de: junto com, assim como, ao mesmo tempo que.
Tirando a: tendendo a, viés (tirando a pequeños - de médio a pequenos).
Fade: desbotar, fazer desaparecer a cor e o brilho; esvair-se; murchar; encarquilhar;
desaparecer; amortecer; perder a força.
Sanseacabó: ponto final, fim de papo, assunto encerrado (expressão coloquial).
Brinco: salto, pirueta, pulo.
A sus anchas (locução adverbial - coloquial). (Pág. 24) Me puso tan a mis anchas: deixou-
me tão à vontade, tão cheia de si.
- Con entera liberdad. Se usa com: estar, quedarse, sentirse y vivir. “Cuando ao fin todos se
fueron, ella se quedó a sus anchas.”
- Orgulloso, ufano. Se usa mais com: estar, ponerse y quedarse. “Le insultó y se quedó tan
ancho.”
“Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que já o fêz: deve agir nesse
mundo. Em seu caso deve ensonhar.”
- Quais são as atividades do mundo dos feiticeiros? As Cinco Preocupações. Juntar-se a
esse mundo é fazer suas coisas.
“Uma pessoa pode não se dedicar a ler os indícios do espírito, temendo que eles mostrem
um caminho pelo qual não se gostaria de seguir, temendo que eles mostrem aquilo que não
se quer ver, por diferir de suas metas e desejos pessoais.”
Cortesia:
http://www.salves.com.br
Este é um trabalho de divulgação de livros encontrados por mim na internet para que possa
proporcionar o benefício de um acesso àqueles que não teriam um outro meio para tal.
Segundo a filosofia budista existem quatro formas de generosidade:
- Partilhar os ensinamentos que geram paz interior da forma adequada à mente e à cultura das
pessoas, sem esperar pagamento ou recompensa.
- Oferecer coisas materiais, como nosso corpo e nossos recursos.
- Oferecer proteção, consolo e coragem. Podemos proteger os outros de perigos
e outros humanos, de não-humanos e dos elementos.
- Oferecer amor (oferecer incondicionalmente aos outros nosso tempo, apoio emocional, energia
positiva e boas vibrações).
Após sua leitura considere, dentro do possível, a possibilidade de adquirir o original, pois assim você
estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.