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Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu

Comer para existir: trauma, oralidad y contornos del Yo


Eat to exist: trauma, orality and Self`s bondaries

Perla Klautau*
Monah Winograd**
Flávia Sollero-De-Campos***
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo por la ingestión de dulces y por hablar. Este puede ser


un recurso utilizado frente a experiencias traumáticas en
Nosso objetivo é investigar formas de organização do eu las que se rompe la capa protectora y, consecuentemente,
derivadas do atravessamento de situações traumáticas. los límites del yo. Para aplacar la angustia provocada
O ponto de partida foi o atendimento de uma jovem que, por la sensación del yo fragmentado, comer puede fun-
após ter sofrido traumatismo crânio-encefálico (TCE), cionar como una tentativa de existir, o sea, de construir
desenvolveu uma compulsão por ingerir doces e falar. contornos capaces de proporcionar consistencia al yo.
Este pode ser um recurso utilizado diante de experiências Palabras clave: trauma, Yo, oralidad, compulsión
traumáticas que rompem a camada protetora e, conse-
quentemente, os contornos do eu: sem barreiras de con- Abstract
tenção, a integração pessoal encontra-se comprometida.
Para aplacar a angústia provocada pela sensação de eu Our objetctive is to investigate forms of organization of
despedaçado, comer pode funcionar como uma tentati- the self derived from the experience of crossing trauma-
va de existir, em outras palavras, de construir contornos tic situations. The starting point was the treatment of a
capazes de proporcionar consistência ao eu. young woman that, after having suffered cranioencepha-
Palavras chave: trauma, Eu, oralidade, compulsão lic trauma, developed compulsion for eating sweets
and talking. This can be a resource in face of traumatic
Resumen experiences that break a protecting layer and, thus, the
contours of the self. To reduce anguish derived from the
Nuestro objetivo es investigar formas de organización sensation of a broken self, eating can be an attempt to
del yo derivadas de la experiencia de situaciones trau- exist, in other words, to construct boundaries capable of
máticas. El punto de partida fue el tratamiento de una providing consistency to the self.
joven que después de haber sufrido un traumatismo Keywords: trauma, self, orality, compulsion
craneoencefálico (TCE), desarrolló una compulsión

* Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Pós-doutoranda em Psicologia Clínica PUC-Rio (Bolsista Faperj),
pklautau@uol.com.br. Rua Marquês de São Vicente 225, sala 201L, Gávea - Rio de Janeiro – RJ, CEP: 22453-900. E-mail: pklautau@uol.
com.br
** Psicanalista, Professora do Programa de Pós graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio, winograd@uol.com.br
*** Professora do Programa de Pós graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.

Para citar este artículo: Klautau, P., Winograd, M., & Campos, F. S. (2013). Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu. Avances
en Psicología Latinoamericana, 31 (3), 522-531.

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Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu

Classicamente, o termo “oralidade” designa a fase com base na sensibilidade perceptiva e na res-
mais precoce do desenvolvimento libidinal pré- sonância e sintonia afetivas. Dito de outro modo,
genital, na qual o prazer sexual derivaria predomi- quando o uso de formas primitivas de organização
nantemente da excitação da cavidade bucal e dos da oralidade passam a fazer parte do repertório de
lábios. Ligada, inicialmente, à função de nutrição e defesas de um paciente, é possível observar quer
ao investimento do objeto correspondente, nesta fa- a atualização, quer a experiência, acompanhadas
se se sustentaria o objeto pulsional originário inau- da falta de representação, de situações traumáticas
gurador do processo psicossexual. Sua precocidade nos estágios precoces do desenvolvimento infantil.
faz dela o protótipo da relação de objeto fantasmá- Na condução destes casos, é necessário que o ana-
tico, na medida em que expressa o modelo ideal lista assuma uma postura diferente da comumente
de fusão com o objeto (o seio materno). Também adotada no tratamento clássico das neuroses, rea-
chamada de fase canibalística, tende à incorporação lizado em torno ao domínio da representação e da
do objeto pela atividade da nutrição: eis o modelo significação.
da identificação e da introjeção, caracterizado como O que motivou a elaboração deste artigo foi o
um tipo de regressão ao mecanismo da fase oral. atendimento de uma jovem que, após ter sofrido
Trocando em miúdos, em sentido literal, consumir traumatismo crânio-encefálico (TCE), desenvol-
o objeto permanecerá o modelo fantasmático de to- veu compulsão (neurologicamente injustificada) a
da relação de objeto. Daí ser possível abordar deste ingerir doces e falar. Nosso objetivo não consiste
modo a significação das patologias da oralidade, em fornecer uma análise minuciosa do caso em
não somente quando a função nutritiva é afetada questão: pretendemos tão somente utilizá-lo como
de modo patente, mas também quando se observa ponto de partida para a formulação e o desenvol-
a regressão no plano do objeto e dos mecanismos vimento de certas questões referentes à articulação
de introjeção. entre estruturação do Eu e experiências traumáti-
Na clínica –por excelência, o locus da inves- cas. O caso apresentado foi atendido no âmbito
tigação psicanalítica–, quando um paciente lança das pesquisas “Do cérebro à palavra: a clínica com
mão de recursos ligados à oralidade, os momen- pacientes neurológicos” e “Aspectos subjetivos do
tos iniciais da estruturação do psiquismo podem adoecimento neurológico”, realizadas na PUC-Rio
ser investigados. Importa notar que a maior parte com o apoio da FAPERJ (Prêmio Jovem Cientista
das marcas deixadas pelas fases iniciais da vida do Nosso Estado/2010 e E_10 - PAPDRJ - Apoio à
psíquica permanece inscrita em um plano de difí- Pós-Doutorado - Parceria CAPES/FAPERJ - 2011).
cil acesso através da palavra, da memória verbal O eixo clínico de ambas as pesquisas envolve o
e, consequentemente, da interpretação. Formam atendimento psicanalítico a pacientes neurológicos
parte de um imenso território psíquico inscrito na e se desenvolve três etapas: a primeira consiste no
memória corporal e governados por mecanismos acolhimento dos pacientes adultos portadores de
inconscientes dificilmente acessíveis por meio de doenças neurológicas e na realização da primeira
intervenções verbais, pois sua inscrição é anterior entrevista, na qual são contemplados: a assinatura
à emergência do sujeito linguisticamente organi- do consentimento informado (Resolução do CFP
zado. Trata-se de uma memória e de uma forma nº 016/2000), a identificação da queixa, da deman-
de conhecimento de si e do mundo de natureza da de tratamento psicoterapêutico e o encaminha-
procedural, ou seja, não mediadas pelos conceitos mento para avaliação neuropsicológica. A segunda
e significados que a linguagem tornará possível etapa comporta a realização de sessões regulares de
mais adiante na vida. Para que se tenha acesso psicoterapia psicanalítica durante 18 a 24 meses,
a esse plano da experiência subjetiva, é preciso nas quais são abordados aspectos psicodinâmicos
contar com modos de conhecimento e de inte- dos sujeitos e testadas variações no enquadre. E a
ração que não dependam exclusiva e simplesmente última etapa consiste na análise dos dados coleta-
de operações verbais e que permitam a aproxi- dos, enriquecidos com elementos fornecidos pelas
mação e o entendimento do sentido da experiência avaliações neuropsicológicas.

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Perla Klautau, Monah Winograd, Flávia Sollero-De-Campos

Corpo perdido: um Eu despedaçado mim. Eu já estava assim, desse jeito: gordinha,


falante e muito comilona. Eu sou alegre, gosto de
Maria, uma jovem de 21 anos, procurou atendimen- sair, de me arrumar. Me sinto bonita. As pessoas re-
to psicológico seis anos após ter sofrido trauma- clamam que eu como demais e que eu falo demais.
tismo crânio-encefálico na região parietal direita, Vejo que incomodo na sala. Não gostam de fazer
decorrente de acidente de motocicleta. Além das trabalho comigo, tenho duas amigas que gostam de
sequelas cognitivas e motoras deixadas pelo trau- mim e me ajudam. Só elas. Os outros não se aproxi-
matismo –afasia, epilepsia, incontinência urinária mam, sei que é porque falo sem parar”.
e hemiprasia esquerda– que não podem ser negli- A analista interrompeu seu fluxo acelerado:
genciadas, Maria relatou ter se afastado dos ami- “você está fazendo a mesma coisa aqui comigo.
gos, se atrasado em seus estudos e perdido o corpo Até agora não consegui me aproximar de você,
magro que havia conquistado na adolescência. Sua não encontrei espaço para fazer sequer uma per-
queixa principal dizia respeito ao elevado peso ad- gunta”. Maria atropelou: “eu sei. Sinto isso. Mas
quirido e à compulsão a ingerir doces e falar: “fui não consigo me controlar, como e falo sem parar.
na Santa Casa procurar um tratamento com uma Toda moedinha que cai na minha mão vira um do-
nutricionista e ela me mandou para cá. Acho que o ce”. Sem dar brechas, prosseguiu célere até o final
problema está no meu corpo mas a médica diz que da primeira entrevista. Avisada de que o tempo de
está na cabeça”. atendimento terminou, pediu mais: “ainda tenho
Na entrevista inicial, sua primeira comunicação muita coisa para falar. Preciso que você saiba de
foi feita de forma não verbal: abriu a bolsa, pegou tudo para me ajudar a emagrecer”. Pela segunda
um álbum de fotografias e mostrou como era antes vez, a analista interrompeu: “não tenho dúvidas de
do acidente. O corpo magro da adolescente do retra- que a equipe de nutricionistas te encaminhou para
to contrastava com a imagem da menina verborrá- cá para que você falasse. Sei que você tem muito
gica, apressada e obesa diante da analista. Após fol- o que dizer, mas não precisa ser tudo de uma vez.
hear o álbum, mostrando veloz e vertiginosamente Você pode me dizer aos poucos, em outros encon-
fotografia por fotografia, disse: “eu era assim antes tros”. Maria concordou, mas, antes de partir, pediu
de cair da garupa da moto do meu namorado”. Sem para mostrar a fotografia da qual mais gostava pa-
dar tempo para a analista tecer qualquer comentá- ra que a analista guardasse na memória como ela
rio ou esboçar reação, Maria continuou: “quando gostaria de ficar.
criança, eu era bem gordinha, mas não como ago- Já nesta primeira entrevista, pode-se perceber
ra. Eu fui crescendo e não queria ser gorda, todo que Maria buscava, não só o corpo que perdera,
mundo me chamava de bola, baleia, bolo fofo. Me mas também (e talvez, sobretudo) as coordenadas
esforcei muito, fiz regime, emagreci, fiquei com o subjetivas que estruturavam a coesão de seu Eu.
corpo que eu sonhava. Aí veio o acidente. Fiquei Coordenadas fornecidas pelo corpo magro e pelo
um ano de cama. Fiquei muito magra, só de coma lugar ocupado em seu grupo de amigos: de criança
foram três meses, demorei para me recuperar. Mas gorda, Maria tornou-se uma adolescente deseja-
consegui. No início, meus amigos iam me visitar, da e admirada por características que atribuía a
mas aí fui melhorando e eles pararam de ir. Quan- sua imagem corporal, mas, sem um corpo magro,
do voltei a estudar, eles já tinham saído da escola. encontrava-se com seu Eu em pedaços.
Todos já estavam na faculdade. Fiquei para trás. Eu
não era mais como antes. Voltei a fazer as coisas Trauma e experiência subjetiva de
sozinhas, a estudar e a sair. Nesta época comecei a adoecimento neurológico
comer mais. Tive que fazer outros amigos. Também
arrumei outro namorado. Ele gostava de mim do No vocabulário de Psicanálise (Laplanche & Pon-
jeito que eu era. Mas meu pai implicava com ele, talis, 1982/2001), os termos trauma e traumatismo
não deixava eu namorar. Mandava sempre alguém compõem um único verbete, tendo sido ambos
estar por perto, tinha medo dele se aproveitar de importados da medicina, mais especificamente, da

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Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu

prática cirúrgica. A etimologia da palavra trauma nova teoria da angústia, teria feito o acento recair
remete ao termo grego indicativo de ferida –por sobre a ligação entre traumatismo e relação de
sua vez, derivado do grego traumatós (furar)– e objeto, revelando o início de um recuo da teori-
seu significado pode ser descrito como uma ferida zação freudiana aos primórdios da constituição do
com efração. Já a palavra traumatismo estaria mais psiquismo e, portanto, do terceiro momento, cuja
ligada às consequências do trauma no conjunto coroação teria se dado em 1939.
do organismo, resultantes da violência externa. Assim, o termo trauma, por sua vez, seria re-
Além dos dois termos tratados com sinônimos no presentativo deste terceiro momento, segundo o
verbete, existe um terceiro, comumente associado qual as experiências traumáticas originariamente
a eles: traumático. Este deve ser compreendido constitutivas da organização e do funcionamento
como um acontecimento impactante em função da psíquicos (anteriores ao pleno estabelecimento da
incapacidade do sujeito de reagir a ele. Durante sua capacidade de simbolização) seriam concebidos
montagem ao longo da obra freudiana e devido aos como podendo engendrar feridas precoces no Eu.
remanejamentos efetuados, o conceito psicanalítico Como consequência, tais perturbações e reforços
de trauma englobou o campo semântico brevemen- das primeiras operações defensivas (negação, cli-
te descrito acima. Bokanowisky (2002, 2005) pro- vagem, projeção etc.) poderiam engendrar zonas
põe uma sistematização do conceito freudiano em psíquicas mortas devido à ausência de represen-
três momentos, cada um deles articulado com um tação, figuração ou simbolização. De tal modo
dos sentidos descritos. O primeiro período seria de que o termo trauma designaria o que é relativo às
1895 à 1920, o segundo, de 1920 à 1939 e o terceiro categorias de primário e originário, articuladamente
concentrar-se-ia em 1939. às categorias edipianas clássicas.
Traumatismo nomearia o primeiro momento: Sem entrar na discussão sobre a precisão dos
intimamente relacionado à teoria da sedução e à períodos identificados por Bokanowski, é certo que,
lógica do trauma em dois tempos, este período in- em função de suas gravidade e sequelas, não raro
cluiria também o remanejamento teórico segundo o um TCE resulta em trauma psíquico nos sentidos
qual seria o fantasma (e não mais a sedução) o fator acima descritos –a grosso modo, choque violento
traumático prínceps que presidiria a organização da com efração do para-excitação e com consequên-
neurose. Assim, as situações traumáticas paradig- cias sobre o conjunto da organização psíquica–,
máticas estariam ligadas às fantasias originárias e desestabilizando a sensação de identidade e de
às angústias aferentes (de sedução, de castração, continuidade na existência. Os danos ocasionados
cena primitiva, complexo de Édipo etc.). De modo pelo TCE são experimentados, geralmente, como
que o traumatismo teria relação com a força das um sentimento de perda de uma parte de si, pois,
pulsões sexuais e com a luta do Eu. além de prejudicar, por exemplo, a capacidade de
Já o termo traumático representaria o segun- locomoção ou de realizar tarefas sozinho, afeta a
do momento, cujos operadores principais seriam capacidade perceptiva e representacional dos sujei-
os conceitos de desamparo e de efração do para- tos traumatizados. Os sujeitos em questão encon-
excitação e no qual o conceito de trauma seria em- tram-se desprovidos da possibilidade de apoiarem-
blemático (e metafórico) das aporias econômicas se sobre suas percepções e suas representações
do aparelho psíquico. Com destaque para o fator para elaborarem o traumatismo experimentado, de
econômico, a ideia central deste período seria a tal modo que o TCE é vivido como um golpe que
ligação entre o fator traumático e o narcisismo: divide a sensação de existência subjetiva entre an-
experiências traumáticas durante a estruturação tes e depois do trauma. Como consequência, neste
do psiquismo produziriam feridas narcísicas. O tipo de caso, o início do atendimento psicanalíti-
desamparo seria, assim, o paradigma da angústia co é marcado por um pedido de restauração e de
por transbordamento quando a angústia-sinal não reconstrução do que foi perdido a partir da crença
permitiu ao Eu se proteger da efração quantitativa de que é preciso e possível recuperar o que existia
(interna ou externa). Contudo, a partir de 1920, a antes para que os prejuízos derivados do TCE sejam

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diluídos. Entendemos que esta sensação de “não ser a ideia, corrente em psicanálise, de que experiên-
mais como era antes” seja a expressão subjetiva da cias vividas nas fases mais precoces da constituição
instalação dos efeitos psíquicos patogênicos provo- do psiquismo imprimem marcas decisivas na sub-
cados pelo adoecimento neurológico, pois, além de jetivação do indivíduo, participando da moldagem
alterações nas funções cognitivas, também a sen- de suas inclinações, suas preferências, suas formas
sação de individualidade e de apreensão da própria de gozar e sofrer, de agir no mundo, de sentir e res-
personalidade encontram-se lesionadas. Em outras ponder às injunções da vida.
palavras, os danos no self são inegáveis. Desde os trabalhos de Hartmann (1958/1995)
Embora muito utilizado pelos psicanalistas de –sem entrarmos no mérito de todas as discussões e
língua inglesa, o termo self, traduzido para o por- ressalvas que a Psicologia do Ego suscitou e ainda
tuguês como si-mesmo, não possui uma definição suscita–, fomos levados a considerar a importância
consensual compartilhada. É possível encontrar das funções cognitivas na economia psíquica em
algumas versões para o uso deste termo reflexivo: geral e, para a problemática que nos interessa aqui,
pode designar a totalidade resultante do processo nos processos defensivos. É certo que variações e
de amadurecimento (Winnicott), o conjunto das danos nas funções cognitivas interferem nas moda-
instâncias psíquicas (Kohut), a organização nar- lidades defensivas das quais o sujeito pode lançar
císica do psiquismo (Hartmann) ou ainda a parte mão. De modo que trabalhamos com a hipótese
consciente do psiquismo que permite ao sujeito se de que, em função da extensão das sequelas do
reconhecer como uma consciência reflexiva. Ape- adoecimento neurológico e dos modos de estrutu-
sar das variações, todas as versões referem-se ao ração psíquica de cada sujeito, o recurso a defesas
termo em relação ao reconhecimento da totalidade primárias é bastante frequente nestes casos.
de si. Na experiência subjetiva de adoecimento neu-
rológico, é justamente este tipo de reconhecimento Continuidade na existência e trauma
que encontra-se comprometido: o dano causado no cumulativo
self, ou seja, a dificuldade de reconhecer-se como
ser uno ao longo do tempo e de encontrar apoio nas Sabemos que, na constituição do Eu, ambiente,
próprias percepções e representações acerca de si mãe e cuidados maternos devem ser considerados
e do mundo, deriva de fissuras no Eu em função, equivalentes. Ou seja, a mãe (função materna)
entre outros, do comprometimento das capacidades funcionaria, tanto biológica quanto psiquicamen-
cognitivas. te, como o primeiro ambiente para o bebê, o qual
Em 1920, na elaboração da segunda tópica do seria completamente dependente de seus cuida-
aparelho psíquico, Freud (1920/1995) definiu o Eu dos para sobreviver. Diante de tal dependência,
como a instância cujas funções gerais são: (1) me- Winnicott (1945/2000) supôs haver um estado de
diação e regulação interna do aparelho psíquico e indiferenciação entre Eu/não-Eu, de tal modo que
(2) mediação entre o psiquismo e a realidade. Sabe- a unidade não seria o bebê mas, sim, o conjunto
mos que a função regulatória depende necessaria- ambiente-indivíduo. Assim, para que o Eu possa
mente de processos cognitivos tais como a atenção, adquirir existência como unidade, é necessário que
a percepção, a memória, o raciocínio, o juízo, a a criança se separe subjetivamente dos cuidados
imaginação, o pensamento e a linguagem. Seis anos desempenhados pela mãe. Esta separação efetua-se
antes, em 1914, no artigo sobre o narcisismo, Freud de maneira gradual, introduzindo perdas no esta-
afirmou que “uma unidade comparável ao Eu não do de fusão Eu-objeto, ou seja, perdas graduais da
pode existir no indivíduo desde o começo; o Eu tem unidade ambiente-indivíduo só possíveis quando
que ser desenvolvido” (Freud, 1914/1995, p. 93). a mãe falha na tarefa de atender as necessidades
Evidentemente, esta célebre afirmação freudiana do bebê em momentos específicos e circunscritos,
envolve as funções cognitivas, as quais também se atendendo-as somente depois de algum tempo.
desenvolvem no contexto de relações estabelecidas Nesta situação, o fator temporal desempenharia
com outros seres humanos — o que se articula com papel importante na introdução da ausência ma-

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terna, a qual, deve ser bem dosada para permitir a medida em que toma conta do Eu, deixando-o sem
diferenciação Eu/não-Eu. defesas e provocando uma ruptura que interrom-
Uma vez consolidada, tal separação implicaria peria a continuidade da existência. De modo que o
uma perda dupla na unidade mãe-bebê: a mãe deixa trauma pode ser entendido como um fracasso rela-
de alimentar uma parte de si (o bebê) e o bebê deixa tivo à dependência: sem o suporte euóico da mãe,
de se alimentar num seio que, até então, era parte o bebê seria forçado a se defender e proteger por
dele. Ou seja, quando se diferencia dos cuidados conta própria, reagindo às intrusões do ambiente
maternos, o bebê perderia o seio, ou seja, perderia e passando a desempenhar funções para as quais
sua mãe. Para remediar tal perda e para que a falta ainda não estaria preparado.
materna não se estabeleça como dominante, algo Fortemente influenciado por Winnicott, Masud
seria encontrado e elevado pela criança ao esta- Khan (1963/1984) propôs o conceito de trauma
tuto de objeto ou fenômeno transicional. Assim, cumulativo para designar os efeitos de falhas repe-
os objetos e fenômenos transicionais podem ser tidas da mãe em sua função de atender às necessi-
entendidos como o que seria produzido para que dades euóicas do bebê. Para sustentar sua argumen-
o espaço entre o bebê e a mãe permaneça perma- tação, Khan (1963/1984) propôs uma aproximação
nentemente potencial, isto é, para que este espaço com a famosa metáfora do escudo protetor, forjada
nunca se constitua realmente como uma falta e não por Freud em 1920:
estabeleça, portanto, uma descontinuidade na expe-
riência de dependência primitiva. Dito em outros Proponho-me aqui a examinar a função da mãe no seu
termos, uma das funções do objeto transicional no papel de escudo protetor. Esse papel de escudo prote-
desenvolvimento emocional é garantir o sentimen- tor constitui ‘o ambiente normal que se pode esperar’
to de continuidade de existência do Eu. Por isso, (Hartmann, 1939) para as necessidades anaclíticas
o conceito de trauma pode e deve ser usado para do bebê. Meu argumento é que o trauma cumulativo
designar as quebras neste tipo de sentimento. Nas resulta das fendas observadas no papel da mãe como
famosas palavras de Winnicott: escudo protetor durante todo o curso do desenvolvi-
mento da criança, desde a infância até a adolescên-
O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. cia – isto é, em todas as áreas de experiência onde a
Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então criança precisa da mãe como Eu auxiliar para sustentar
a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a suas funções de Eu, ainda imaturas e instáveis. (Kahn,
capacidade do bebê utilizar o símbolo da união. O 1963/1984, p. 62)
bebê fica aflito mas essa aflição logo é corrigida, pois
a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos, Estas fendas não seriam traumáticas no mo-
o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê mento em que se instalam, só adquirindo valor de
ficou traumatizado. Em x + y + z minutos, o retorno trauma cumulativa e retrospectivamente. Ou seja,
da mãe não corrige os estado alterado do bebê. O trau- o caráter traumático não seria dado pelos aconte-
ma implica que o bebê experimentou uma ruptura na cimentos no momento de sua ocorrência, isto é, na
continuidade da vida, de modo que defesas primitivas abertura das fissuras, mas se instalaria pela repe-
agora se organizam contra a repetição da ‘ansiedade tição e pelo acumulo de pequenos sulcos, silenciosa
impensável’ ou contra o retorno do agudo estado con- e invisivelmente. Constituído pelo somatório das
fusional próprio da desintegração da estrutura nascente fendas acumuladas no Eu ao longo do tempo, o fa-
do Eu. (Winnicott, 1967/1975, p. 135) tor traumático só seria percebido como tal após a
instalação dos efeitos patogênicos das rachaduras
É importante ressaltar que o termo “ansiedade acumuladas.
impensável” foi utilizado para assinalar um tipo de Não é difícil perceber a articulação entre trauma
angústia que não deveria ser experimentada pelo e experiência subjetiva de adoecimento neuroló-
bebê, pois causa a sensação de aniquilação do Eu. gico. Ao longo do adoecimento, o sujeito gradual-
Esta sensação seria vivida como uma intrusão, na mente acumula feridas, impressas pela a percepção

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inicial das perdas cognitivas, pela percepção da Como vimos, a ideia de trauma cumulativo
permanência das perdas no tempo e pelas conse- remonta à etiologia das defesas contra invasões
quências destas perdas. A reunião destas feridas resultantes das tensões geradas pela falha da mãe
ao longo do tempo comprometeria a capacidade no papel de escudo protetor. Além dos efeitos pa-
do sujeito de se relacionar com o ambiente, deses- togênicos, Khan (1963/1984) ressaltou que, diante
truturando seu Eu e seu self e, consequentemente, das tensões, a criança também disporia de certo
abalando sua possibilidade de reconhecer-se como grau de adaptabilidade que a tornaria capaz de
ser uno no tempo e de encontrar apoio nas próprias usar as invasões como alimento para crescer e se
percepções e representações construídas acerca reestruturar. Quando criança, Maria recorria a co-
de si e do mundo. O caso de Maria é exemplar de mida para remediar e, ao mesmo tempo, se adaptar
como, frente ao trauma, certos sujeitos recorrem ao vazio deixado pelo desamparo proporcionado
a modos primários de defesa para, tal qual Sísifo, pelo ambiente: “todas as tardes pareciam que não
tentar sustentar os contornos de um Eu em pedaços. terminavam, demorava muito para a noite chegar.
Eu lembro que chegava do colégio, almoçava e de-
Comer para existir: construção dos pois ficava vendo televisão, comendo biscoito, bala
contornos do Eu e frutas para a hora passar mais rápido. Demorava
muito para minha mãe chegar em casa”. Após seu
Já nas entrevistas iniciais e tendo em vista as diver- acidente, no final de sua adolescência, ao comer e
sas sequelas do TCE sofrido, foi possível tecer a hi- falar em demasia, Maria empreendia uma nova ten-
pótese de que a voracidade e compulsão em comer tativa de obturar as fendas abertas na organização
e falar de Maria fossem tentativas de aplacar an- euóica após a instalação do traumatismo.
gústias primitivas suscitadas pela desestabilização Dito de outro modo, para reconstruir os contor-
da integração do Eu anteriormente alcançada. Em nos do Eu, depois do acidente, Maria recorria ao
outras palavras, a voracidade e a compulsão seriam mesmo conjunto de defesas utilizado nos primór-
seus meios disponíveis para dar conta da angústia dios da constituição do psiquismo. Se era assim,
derivada do desarranjo causado pelo traumatismo. neste caso, ao invés de supormos uma regressão
Diante do corpo (magro) perdido, a sensação de aos pontos de fixação da libido, devemos conside-
Eu despedaçado: comer e falar funcionavam como rar uma regressão às fendas abertas no período em
tentativas de existir. E para existir, era preciso jun- que o bebê é totalmente dependente do ambiente.
tar os pedaços, costurar, enfim, construir contornos De acordo com Khan (1963/1984), as fendas vão
capazes de proporcionar uma estrutura para o Eu. se acumulando, “vão-se fixando até formarem os
Antes do TCE, Maria havia deixado para trás a traços específicos de determinada estrutura de ca-
criança gorda que tanto a incomodava ser: cresceu, ráter” (p. 63). Seguindo este raciocínio, é possível
emagreceu, conquistou o corpo que sonhava ter e, afirmar que os traços erigidos referentes a um de-
consequentemente, um lugar que ressaltava seus terminado tipo de estrutura de caráter revelam as
atributos físicos diante de seu grupo de amigos e distorções do Eu derivadas, por sua vez, às falhas
de seu namorado. Depois do acidente e da alta hos- de recursos ambientais.
pitalar, percebeu que “havia ficado para trás”, pois Em 1937, no artigo “Analise terminável e aná-
não tinha mais namorado e seus amigos pararam lise interminável, Freud examinou, sob uma ótica
de procurá-la. Sem os referências fornecidos pelo diferente da que o orientava até então, as alterações
seu corpo e pelas relações pessoais que havia cons- no Eu resultantes do uso dos mecanismos de de-
truído, o Eu de Maria encontrava-se em pedaços, fesa. Ora, sabemos que o Eu infantil, a serviço do
pois a jovem não possuía mais as coordenadas que princípio de prazer, tem a tarefa de exercer uma
orientaram sua transição de menininha gorducha mediação entre as exigências do Isso e do mundo
para jovem mulher atraente. O que lhe restava era o externo. Além de mediar as relações entre essas
repertório de defesas acumulado durante os primei- duas instâncias, cabe também ao Eu proteger o
ros relacionamentos estabelecidos com o ambiente. psiquismo dos perigos. Durante esse processo, o

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Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu

Eu infantil adota uma posição defensiva, não só mos de defesa. Este terreno se distancia do domínio
com relação aos perigos externos, mas também em da representação e da significação, pois, quando o
relação aos perigos internos, isto é, às exigências do material em jogo diz respeito às alterações do Eu
Isso, se defendendo de um do mesmo modo como (caráter), os desejos sexuais recalcados e as fanta-
se defenderia do outro. Um dos procedimentos uti- sias inconscientes encontram-se em segundo plano.
lizados pelo Eu é alterar a si próprio, adaptando-se Escreve Andrè Green:
à situação de perigo.
O trauma, não só se desloca da esfera da sexualidade
Os mecanismos de defesa servem ao propósito de man- para a do Eu, mas perde sua dimensão dramática e
ter afastados os perigos. Não se pode discutir que são punctiforme para inserir-se num tecido de microtrau-
bem sucedidos nisso, e é de duvidar que o Eu pudesse matismos cujas sequelas se parecem menos com uma
passar inteiramente sem esses mecanismos durante cicatriz de um ferimento que com um processo de
seu desenvolvimento. Mas é certo também que eles esclerose que estrangula o desenvolvimento do Eu.
próprios podem transformar-se em perigos. Às vezes Não se conclua daí que o analista deva dedicar-se à
se vê que o Eu pagou um preço alto demais pelos ser- reparação. (Green, 1974/1984, p. 7)
viços que eles lhe prestam. O dispendido dinâmico
necessário para mantê-los, e as restrições do Eu que Diferentemente das situações em que o esforço
quase invariavelmente acarretam, mostram ser um pe- principal seria trazer à consciência o inconsciente
sado ônus sobre a economia psíquica. Ademais, esses recalcado através da técnica interpretativa, em ca-
mecanismos não são abandonados após terem assistido sos como o de Maria, o acento recaí sob o manejo
o Eu durante os anos difíceis de seu desenvolvimento. de mecanismos de defesa muito primitivos. Não
Nenhum indivíduo, naturalmente, faz uso de todos os se trata de instituir uma clínica reparadora com o
mecanismos de defesa possíveis. Cada pessoa não intuito de oferecer ao paciente o que não lhe foi
utiliza mais do que uma seleção deles, mas estes se dado pelo ambiente. Pelo contrário, o que está em
fixam em seu Eu. Tornam-se modalidades regulares questão é um manejo clínico cuja direção visa o
de reação de seu caráter, as quais são repetidas durante estabelecimento de uma provisão ambiental capaz
toda vida, sempre que ocorre uma situação semelhante de fornecer suporte para a integração das experiên-
à original. (Freud, 1937/1995, p. 270) cias traumáticas.
Se recorrermos às teorizações de Winnico-
A diferença entre o que Freud (1937/1995) des- tt a respeito de casos que escapam à lógica de
creveu em relação às alterações do Eu e o que Khan funcionamento das neuroses clássicas, é possível
(1963/1984) detalhou como distorções do Eu reside adotar como medida técnica para este tipo de ma-
no papel desempenhado pelo meio ambiente. Mas, nejo clínico a regressão à dependência. Winnicott
em ambos, ao fixarem-se no Eu, os mecanismos (1954a/2000) vê na regressão a possibilidade do
de defesa tornam-se parte do caráter individual de paciente reviver, através da situação de dependên-
cada um, de tal modo que o Eu adulto continua se cia, as falhas de adaptação sofridas nos primeiros
defendendo do perigo existente na realidade atual momentos da vida. Desta forma, a análise que in-
à moda antiga. clui a regressão como medida técnica no processo
de cura não é incompatível com a análise clássica
Sobre a técnica: considerações finais freudiana. Pelo contrário, deve ser considerada
parte integrante do processo: o importante é saber
Se deslocarmos estas considerações para a prática precisar o momento adequado para fazer uso desta
clínica, é possível afirmar que o analisando repete medida técnica.
modalidades de reação inscritas em seu caráter du- Para isso, Winnicott (1954b/2000) identifica três
rante o estabelecimento da relação transferencial. tipos de paciente, cada qual com uma necessidade
De modo que, para atingir as alterações do Eu, é que requer uma intervenção específica. Em primei-
necessário que se empreenda a análise dos mecanis- ro lugar encontram-se aqueles que tiveram em sua

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Perla Klautau, Monah Winograd, Flávia Sollero-De-Campos

história primitiva uma quantidade de falhas am- sustentação e a adaptação empática do analista às
bientais insuficientes para constituir a instalação de necessidades do paciente regredido.
um traumatismo. Estes pacientes obtiveram apoio
do ambiente para a integração das experiências É correto falar dos desejos do paciente; por exemplo
inaugurais a ponto de estabelecerem uma organi- o desejo de ficar quieto. Com o paciente regredido,
zação euóica e funcionarem como pessoas inteiras. porém, o termo desejo revela-se inadequado. Em seu
Apresentando dificuldades nos relacionamentos lugar, usamos a palavra necessidade. Se um paciente
interpessoais, a medida técnica mais apropriada regredido precisa de silêncio, nada se poderá fazer
consiste em uma análise clássica, baseada no uso se este não for conseguido. Quando a necessidade
da interpretação como ferramenta principal. Outro não é satisfeita, a consequência não é raiva, mas uma
tipo é composto por pacientes cuja personalidade reprodução da situação original de falha que interrom-
se integrou há pouco tempo. As dificuldades, nes- peu o processo de crescimento do Eu. (Winnicott,
tes casos, estão relacionadas à aquisição do status 1954b/2000, p. 385)
de unidade. Para este tipo de pacientes, a análise
clássica continua sendo a medida técnica mais Nos termos de Khan (1963/1984), seria esta
apropriada, desde que a atenção do analista recaia falha proveniente do não atendimento das necessi-
sob o manejo da relação transferencial. Há ainda, o dades do bebê por parte do ambiente a responsável
terceiro tipo formado por casos cujas análises tem pela abertura de fendas na organização euóica que,
a função de se ocupar dos estágios do desenvolvi- quando acumuladas ao longo do tempo, consti-
mento emocional anteriores ao estabelecimento do tuem-se como trauma. Para este autor, na situação
status de unidade. Com estes pacientes, a situação transferencial, caberia ao analista ir ao encontro das
de regressão à dependência no contexto da situação necessidades do paciente regredido e efetuar uma
analítica consiste na medida técnica adequada. leitura destas de acordo com sua capacidade contra-
Desta forma, o uso clínico da regressão faz parte transferencial. Neste sentido, o conceito de contra-
do processo de cura. transferência não deveria ser restringido à reação
Genericamente, a noção de regressão expressa a inconsciente do analista em relação ao analisando,
ideia de recuo, ou melhor, de movimento retrógra- mas entendido como a qualidade da presença do
do. Classicamente, diferenciam-se três formas de analista no processo terapêutico, incluindo todo o
regressão: tópica, temporal e formal, todas referen- seu funcionamento mental e envolvendo mudanças
tes a alterações nas modalidades de funcionamento de sensibilidade, de atenção e de percepção. Com
psíquico. Freud (1901/1995) propôs que, diante de esta ampliação de sentido, os processos percep-
um acontecimento traumático, o progresso seria tuais e cognitivos do analista tornar-se-iam parte
interrompido: o desenvolvimento recuaria em di- do processo de integração das experiências do pa-
reção aos pontos de fixação da libido. Desta forma, ciente regredido. Assim, o funcionamento psíquico
o sujeito passaria a lançar mão de mecanismos de do analista tornar-se-ia parte fundamental para a
defesas não compatíveis com seu estado atual de análise dos mecanismos de defesa, fornecendo ao
desenvolvimento libidinal. De acordo com este ra- paciente regredido a provisão ambiental necessária
ciocínio, os pontos de fixação corresponderiam aos para a construção de um espaço analítico capaz de
pontos de origem dos diversos tipos de patologia. propiciar a elaboração e integração das experiên-
A diferença entre as concepções de Freud e Win- cias traumáticas.
nicott não reside no fato de designarem a regressão O pedido de recuperação do corpo magro feito
como um mecanismo de defesa que recuaria em por Maria encobria a perda dos referências que
direção aos estágios iniciais do desenvolvimento, estruturavam a unidade de seu Eu. Com o Eu des-
mas, sim, no entendimento de Winnicott de que a pedaçado, Maria buscava a percepção de si-mesma
regressão não seria impeditiva para a análise, mas ancorada no corpo conquistado durante sua adoles-
parte da capacidade do paciente de se curar. Neste cência. A sensação de perda de uma parte de si vi-
sentido, o que estaria em jogo seria a constância, a vida durante o adoecimento neurológico atualizou

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Comer para existir: trauma, oralidade e contornos do Eu

o repertório de defesas utilizado contra a sensação Freud, S. (1920/1995). Além do princípio do prazer.
de desamparo experimentada na infância. Comer ESB, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.
passou a ser uma medida protetiva para continuar Freud, S. (1937/1995). Análise terminável e intermi-
existindo diante das angústias suscitadas pelo pe- nável. ESB, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago.
rigo de desaparecer. Um dos maiores desafios da Green, A. (1974/1984). O outro e a experiência de self.
condução do caso de Maria consistiu em ampliar o In M. Khan (1963). O conceito de trauma cumula-
repertório de defesas utilizadas diante de situações tivo. Psicanálise: Teoria, técnica e casos clínicos.
que se configuram como perigos para a sua existên- Rio de Janeiro: Francisco Alves.
cia pessoal. Ao invés de tentar frear ou extinguir a Hartmann, H. (1958/1995). Ego psychology and the
compulsão e a voracidade, era preciso ser capaz de problem of adaption. Connecticut: IUP.
enfrentar as situações traumáticas com o estabeleci- Khan, M. (1963/1984). O conceito de trauma cumulati-
mento modos de funcionamento que ampliassem o vo. In Psicanálise: Teoria, técnica e casos clínicos.
repertório de defesas restringido pela organização Rio de Janeiro: Francisco Alves.
do caráter oral. Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (1982/2001). Vocabulário
de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
Referências Winnicott, D. W. (1945/2000). O desenvolvimento emo-
cional primitivo. In Da pediatria à psicanálise.
Bokanowisky, T. (2002). Traumatisme, traumatique, Rio de Janeiro: Imago.
trauma. Revue Française de Psychanalyse, 66 Winnicott, D. W. (1954a/2000). Retraimento e regres-
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Bokanowisky, T. (2005). Variations sur lr concept de Imago.
traumatisme: traumatisme, traumatique, trauma. Winnicott, D. W. (1954b/2000). Aspectos clínicos e
Revue Française de Psychanalyse, 69 (3), 891- metapsicológicos da regressão no contexto psi-
905. canalítico. In Da pediatria à psicanálise. Rio de
Freud, S. (1901/1995). Sobre os sonhos. ESB, vol.V. Rio Janeiro: Imago.
de Janeiro: Imago. Winnicott, D. W. (1967/1975). A localização da expe-
Freud, S. (1914/1995). Sobre o narcisismo: uma intro- riência cultural. In O brincar e a realidade. Rio
dução. ESB, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago. de Janeiro: Imago.

Fecha de recepción: 7 de febrero de 2013


Fecha de aceptación: 11 de junio de 2013

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