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Boletim Academia Paulista de Psicologia, São Paulo, Brasil - V. 39, nº97, p.

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Algumas ideias de Winnicott sobre o


trauma e suas manifestações na clínica
Some of Winnicott’s ideas about trauma and its clinical manifestations
Algunas ideas de Winnicott sobre el trauma y sus manifestaciones clínicas

Maria Regina Cocco1
Rosa Maria Tosta2

Resumo: A proposta é refletir sobre a contribuição winnicottiana acerca do chamado trauma sutil decorrente de falhas
inevitáveis do analista e do manejo clínico das reações defensivas manifestadas na clínica de pacientes, cujas dificulda-
des são oriundas de fases iniciais do amadurecimento. O trauma sutil apresenta-se como uma nova versão do trauma
original e a reação a ele vem acompanhada de uma organização defensiva primitiva, constituída quando da ocorrência
do trauma original. Em alguns casos de revivência analítica do trauma através do mecanismo de delírio paranoide, o
ódio aparece, não como ódio dirigido ao objeto e, sim, como o indivíduo sendo odiado pelo objeto. Em outros casos, a
reação ao trauma sutil pode ocorrer pelo mecanismo de clivagem do eu/aniquilamento expresso nas vivências do setting
analítico e ou no conteúdo manifesto do sonho regressivo. O manejo das manifestações clínicas de reação ao trauma
sutil apoia-se na confiabilidade da ambiência analítica, na sustentação da regressão à dependência e na ligação psíquica
das vivências traumatizantes.

Palavras-chave: trauma sutil, sonho regressivo, delírio paranoide, manejo clínico, D.W. Winnicott.

Abstract: The proposal is to reflect on the Winnicott’s contribution to the so-called subtle trauma, resulting from the
analyst’s inevitable flaws, and from the clinical management of the defensive reactions manifested in the clinic of pa-
tients, which difficulties come from the initial stages of maturation. Subtle trauma presents itself as a new version of
the original trauma and the reaction to it comes accompanied by a primitive defensive organization constituted when
the original trauma occurred. In some cases of analytic reliving of trauma through the mechanism of paranoid delirium,
hatred appears not as hatred directed at the object but rather as the individual being hated by the object. In other cases,
the reaction to subtle trauma may occur by the cleavage mechanism of the self / annihilation expressed in the experien-
ces of the analytical setting and / or the manifest content of the regressive dream. Management of the clinical manifes-
tations of reaction to subtle trauma is based on the reliability of the analytical environment, on the support of regression
to dependence and on the psychic connection of traumatic experiences.

Keywords: subtle trauma, regressive dream, paranoid delirium, clinical management, D.W. Winnicott.

Resumen: La propuesta es reflexionar sobre la contribución winnicottiana acerca del llamado trauma sutil, derivado de
fallas inevitables del analista y del manejo clínico de las reacciones defensivas manifestadas en la clínica, de pacientes
cuyas dificultades son oriundas de fases iniciales de la maduración. El trauma sutil se presenta como una nueva versión
del trauma original y la reacción a el viene acompañada de una organización defensiva primitiva constituida cuando
ocurre el trauma original. En algunos casos de revivencia analítica del trauma a través del mecanismo de delirio paranoi-
de, el odio aparece, no como odio dirigido al objeto y, sí, como el individuo siendo odiado por el objeto. En otros casos, la
reacción al trauma sutil puede ocurrir por el mecanismo de clivaje del yo / aniquilamiento expresado en las vivencias del
setting analítico y en el contenido manifiesto del sueño regresivo. El manejo de las manifestaciones clínicas de reacción
al trauma sutil se apoya en la confiabilidad del ambiente analítico, en la sustentación de la regresión a la dependencia y
en la conexión psíquica de las vivencias traumáticas.

Palabras clave: trauma sutil, sueño regresivo, delirio paranoide, manejo clínico, D.W.Winnicott.

1
Maria Regina Cocco é Psicóloga, psicoterapeuta, especialização em crianças e adolescentes pelo CAISM – Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental - Santa
Casa de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Filiada à Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana. Atua em consultório particular. Endereço
para correspondência: Rua Gandavo, 188- 92A – CEP 04023-000. Telefone: (11) 90840-5622, e-mail: reginacocco@yahoo.com.br. ORCID 0000-0003-4364-3703.
2
Rosa Maria Tosta é Psicóloga, psicoterapeuta, supervisora e orientadora. Doutora em Psicologia Clínica, professora do Programa de Estudos pós-graduados em
Psicologia Clínica da PUC/SP, Especialização em Psicologia Clínica, Psicologia Hospitalar e Psicossomática. Membro do Espaço Potencial Winnicott (EPW) do Insti-
tuto Sedes Sapientiae, SP. Endereço: Rua Monte Alegre 984, sala T52– CEP 05014-901. Telefone: (11) 3670-8320 - e-mail: rosamariarmt@terra.com.br; romtost@
pucsp.br, ORCID 0000-0003-1166-3398.
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Introdução papel adaptativo da mãe em prover o bebê em suas


duas fases: a ilusão e a desilusão. Na fase da ilusão,
O presente trabalho visa refletir sobre algu- a tarefa materna e da família consiste em uma adap-
mas manifestações clínicas decorrentes de traumas tação ativa às necessidades do bebê, propiciando-lhe
ocorridos nas fases iniciais do desenvolvimento condições para vivenciar a experiência da ilusão de
emocional, bem como quando emergem em sonho onipotência, e.g., a ilusão da onipotência na experi-
regressivo, associando-as ao manejo clínico propos- ência da amamentação. No início, o bebê não sabe de
to por D. W. Winnicott. Para explicar o conceito de si e nem da mãe. Ele é atravessado por uma urgência
trauma, Winnicott reafirma a ideia de que o trauma instintual e sai em busca de algo, mas não sabe o que
envolve fatores externos, além de estar intrinseca- buscar e nem tem repertório para alucinar. A mãe co-
mente implicado ao nível da dependência do indiví- loca o seio no lugar e no momento exato ao gesto e
duo do seu meio ambiente. E isto porque, no início à necessidade do bebê. Do ponto de vista do bebê,
da vida, para que o bebê possa continuar a ser, a se ele criou o objeto, emergindo daí um sentimento de
constituir e integrar-se numa unidade, ele depende potência: ele é poderoso, pode criar. Todavia, o bebê
necessariamente da sustentação e dos cuidados ma- não sabe que o objeto já estava lá para ser encontra-
ternos, familiares e/ou ambiental. Em outras pala- do. Temos então um paradoxo: para o bebê só tem
vras, o bebê precisa ser recebido e cuidado por outro sentido o objeto criado por ele, mas o objeto precisa
ser humano devotado3 a ele e, gradativamente, com a estar lá para ser encontrado e criado. A contribuição
constituição do eu, a dependência vai diminuindo em essencial da mãe é a de prover que o objeto adequa-
função da conquista de recursos que o preparam para do esteja lá para ser encontrado. Na repetição dessa
uma dependência relativa e, sucessivamente, com a experiência, o gesto e a necessidade do bebê ganham
aquisição de novos recursos psíquicos, segue rumo realidade, consolida-se no bebê o sentimento de real,
à independência relativa. Importa assinalar que, na de ser real e viver num mundo real. Ao mesmo tem-
perspectiva winnicottiana, o trauma relaciona-se po, a mãe ao identificar a necessidade do bebê e ao
ao fracasso do ambiente à adaptação e sustentação atendê-la na medida exata, nem mais nem menos,
da dependência do bebê, da criança e do indivíduo. torna-se confiável. Esta confiabilidade no ambiente
De tal modo, o significado e os efeitos do trauma embasa um viver criativo ao longo da vida do indiví-
variam de acordo com a sua ocorrência na fase do duo. Na clínica, a conquista da confiabilidade na pes-
desenvolvimento emocional em que se encontram. soa do analista e na ambiência do contexto clínico é
Ao mesmo tempo, precisamos evidenciar que, na clí- ponto fundamental para que toda e qualquer análise
nica winnicottiana, o termo manejo refere-se tanto venha a se realizar. Se o trauma e/ou o fracasso da
aos cuidados do analista e sua semelhança com os ambiência materna ocorre nessa fase da dependên-
da maternagem que uma mãe suficientemente boa cia absoluta, então, o bebê vivencia um colapso na
oferece ao seu bebê, como também às ações terapêu- área da confiabilidade ambiental e precisa desenvol-
ticas pertencentes à ambiência do contexto analítico ver precocemente um ego que faça as vezes do cuida-
no atendimento à singularidade das necessidades do de si. Aqui podemos localizar o trauma original,
do amadurecimento do paciente. Em seu artigo De- qual seja: aquele que, em função da sua ocorrência
pendência no cuidado do lactente, no cuidado da criança operar na fase da dependência absoluta, o seu efeito
e na situação psicanalítica (1963/1983), Winnicott é extremamente maligno, pois provoca uma quebra
apresenta várias denominações de trauma, a saber: na linha de continuidade de ser do bebê. A reação do
original, grosseiro, sutil, benigno e analítico. Contu- bebê a este trauma é um estado confusional e de de-
do, para melhor precisarmos o trauma e seus efeitos sesperança, um sofrimento de qualidade agônica, le-
segundo as fases do amadurecimento, prender-nos vando-o a uma organização defensiva contra a agonia
-emos aos traumas que ocorrem junto ao processo de do que lhe é ainda impensável, pois ainda não possui
ilusão e desilusão, que se envolvem com as fases ini- recursos mentais e psíquicos que lhe ajude a tolerar
ciais do desenvolvimento denominadas dependência o trauma. O resultado é um fracasso na constituição
absoluta e relativa. No processo de ilusão e desilu- do si mesmo e na organização do ego do bebê/indiví-
são, Winnicott (1965) afirma a essencialidade do duo interferindo ou mesmo impedindo a conquista
3
Para Winnicott, a mãe, devido ao período de gestação, pode ser a pessoa mais das relações objetais. Quando as coisas correm bem,
preparada para esta função, mas não necessariamente. De qualquer forma, é
importante que haja uma pessoa com presença viva exercendo o cuidado. Para
e o processo de ilusão pode ser vivido, o segundo pas-
simplificar usaremos aqui o termo “mãe” e não “cuidador principal”. so da função materna é a de possibilitar a desilusão,
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ou seja, a de diminuir gradativamente a adaptação riscos aos quais uma criança pode estar sujeita no
ativa ao bebê, segundo a capacidade crescente d’ele seu ambiente social, o que o leva a dizer da proteção
em lidar com o fracasso adaptativo e em tolerar os da família. Em seu texto, o trauma grosseiro ilustrado
resultados da frustração. Com essa gradual separa- é provocado por um agente externo da família. Toda-
ção da mãe em relação ao seu bebê, ajustada às suas via, isto não quer dizer que esse tipo de trauma não
necessidades e às suas condições psíquicas, a função possa ser provocado por um membro familiar. Outro
materna vai introduzindo a criança ao mundo com- aspecto a assinalar é o de que esse tipo de trauma,
partilhado. Do ponto de vista do bebê, se tudo corre embora grosseiro, sob o olhar do adulto, pode não ser
bem, este processo não é sentido como separação, reconhecido pela criança nem do que se trata e nem
pois pode usar os objetos e fenômenos transicionais do seu efeito maligno, impedindo-a de elaborar a si-
nesta passagem. Nessa fase de desadaptação, diz tuação sem a ajuda de um adulto. Em função de seu
Winnicott (1965), que a mãe está sempre “trauma- efeito maligno ao desenvolvimento, o trauma grossei-
tizando”, se assim se pudesse dizer, mas o resultado ro pode levar à interrupção do amadurecimento.
destas pequenas falhas ou desadaptações não é como Para ilustrar o trauma grosseiro o autor descreve
o do trauma, em face da capacidade da mãe de sen- o caso de uma menina, ainda pré-púbere, e que se
tir a capacidade do bebê, momento a momento, de encontrava internada em um hospital. Um “perver-
empregar novos mecanismos mentais. Nas pequenas tido” adulto andava visitando a enfermaria durante
frustrações onde a reação é de raiva ou ódio e se estes a noite, assustando as crianças que, tal como ela, es-
se mostram apropriados, o fracasso ambiental não tavam internadas na ala infantil. Frente a esse trau-
se situou para além da capacidade do indivíduo de li- ma grosseiro, diz o autor, a primeira reação daqueles
dar com a sua reação. Na psicopatologia, se a fase da que cuidam da criança é a denegação do acontecido
ilusão foi natural e sadiamente vivenciada, o trauma e/ou uma frenética atividade reativa. De início, os
que ocorre na fase da desilusão, então, é um trauma envolvidos tendem a acreditar tratar-se mais de uma
original e seu efeito é também maligno ao desenvol- alucinação e/ou de fantasia da criança do que da pos-
vimento. Na fase da desilusão, o trauma resulta na sibilidade de um pervertido invadir uma ala hospita-
destruição da espontaneidade da experiência indivi- lar infantil.
dual, em função de uma demasiada intrusão súbita Winnicott acompanhou a menina durante todo
ou impredizivel de fatos reais. Nesses casos, muitas o período de internação, de modo que os desenhos
vezes a geração de ódio no indivíduo, isto é, o ódio ao produzidos por ela nas sessões fizeram com que ele
objeto bom é vivenciado não como ódio, mas deliran- pudesse reafirmar a veracidade do relato e ajudá-la
temente, como sendo odiado. Em tal situação trau- na integração do acontecido. Diz o autor: “Se pode-
matogênica, que atravessa as defesas incipientes do ria dizer que apenas esta menina entendeu o perigo;
bebê, o objeto pode tornar-se um perseguidor. E isto todas as outras trataram o assunto ficando excitadas
porque, o ódio reativo do bebê ou da criança divide de modo geral, com medo de fantasmas ou esperan-
o objeto idealizado o qual pode ser experienciado do que todo barulho significasse um homem a entrar
em termos de um delírio de perseguição por parte de pela janela” (1965/1994, p. 103). Para essa criança
objetos bons. Na fase da desilusão, Winnicott (1965) em questão, esse trauma não causou maiores estra-
entende que “[...] o trauma é aquilo que rompe a ide- gos pelo fato de ela estar intimamente em contato
alização de um objeto pelo ódio do indivíduo, reativo com o seu analista, “[...] uma pessoa profissional-
ao fracasso desse objeto em desempenhar sua função” mente envolvida, alguém em quem, havia descober-
(1965/1994, p. 113). O seu efeito implica também to, que podia confiar por maneiras grosseiras quanto
uma quebra da fé, da confiança. Winnicott (1965) cha- sutis” (1965/1994, p. 103). Somado a isto, Winnicott
ma também a atenção dos analistas para a função da acrescenta: “[...] o fato de ela possuir sua própria fa-
família de proteger a criança dos traumas ‘grosseiros’ mília e confiar absolutamente em todos os membros
o que, em geral, ela faz cotidianamente e, de maneira dela foi o fator constante que a capacitou a acreditar
peculiar, com cada membro do grupo familiar. em mim e utilizar-me” (p. 103). Como vimos, a con-
De maneira geral, podemos chamar de traumas fiabilidade no ambiente torna-se fator fundamental
grosseiros aqueles que são invasivos, intrusivos ao processo analítico, sendo este o primeiro passo a
e molestadores e com efeitos malignos ao bebê, à ser conquistado para a realização da análise.
criança e/ou a um indivíduo ao longo de sua vida. No manejo clínico, o autor mostra claramente
Com o termo ‘grosseiro’ Winnicott parece indicar os como um adulto, no caso ele como analista, pode
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tornar-se um ego auxiliar e ajudar na elaboração do para usar e sei (pela experiência passada) que,
ocorrido. Na indisponibilidade do cuidado ambien- se falar, acabarei por perturbá-la. Digo, mal
tal, a criança não tem como entender o perigo e, sem importa o quê: - Você precisa que eu fique sob
seu controle, como se uma parte de você.... An-
recursos egóicos, acaba ficando excitada, com medo
tes que vá mais longe ela já se acha frenetica-
de fantasmas ou de que todo barulho signifique um mente perturbada. Enrosca-se e se retrai e fica
homem a entrar pela janela. O fato de a criança po- inconsolável. Chora e está, claramente, profun-
der usar Winnicott na análise para experienciar os damente ferida. Há agora um fator tempo en-
traumas grosseiros, fez com que os efeitos do perigo volvido, de maneira que não posso parar até
do pervertido não fossem devastadores. que a fase passou; tem-se de permitir que es-
Diferentemente do trauma grosseiro, o trauma ta chegue a uma conclusão natural (1965/1994,
sutil é explicado por Winnicott como uma nova ver- p. 104).
são do trauma original. Esse tipo de trauma advém Aqui o manejo clínico, diz Winnicott, tem a haver
de falhas pequenas ou sutis, todavia, a reação senti-
com a chamada ‘transferência delirante’. Neste tipo
da pela criança ou pelo indivíduo manifesta-se com
de transferência, à semelhança da psicose de trans-
a intensidade e a organização defensiva que foram
ferência, conforme Naffah Neto (2010), a figura do
constituídas quando do trauma original. Na clínica,
analista é inteiramente eclipsada, o que faz com que
Winnicott associa os traumas sutis àquelas falhas
ele seja experienciado unicamente como objeto sub-
inevitáveis do analista, como uma viagem, uma do-
jetivo. Nesse contexto, a interpretação não ganha
ença. Outras vezes, a falha vem do fato de o analista
espaço, já que não há nada a ser discriminado e/ou
não estar exatamente adaptado como exige o contro-
le onipotente de determinado tipo de paciente, tal diferenciado, nem no nível dos tempos envolvidos,
como manter-se de tal certa maneira, além de sus- nem no nível dos objetos implicados. “[...] Necessária
tar qualquer barulho ou perturbação no ambiente. aí é tão somente a sustentação da transferência, para
Diante de uma pequena falha do analista, a reação que o paciente possa reviver a situação traumatogê-
do paciente pode ser desproporcional à situação vi- nica diante de um ambiente mais acolhedor e assim
venciada, exatamente porque ele está se defenden- retomar experiências que, na história real, não pude-
do da ameaça de sofrimento provocado pelo trauma ram se realizar ou ficaram truncadas” (Naffah Neto,
original. Este é um ponto fundamental que deve ser 2010, p. 88).
reconhecido pelo terapeuta, pois o manejo clínico Como vimos, o ódio pelo objeto bom é experien-
permitirá que o paciente faça uso terapêutico da si- ciado não como ódio, mas delirantemente, como
tuação de falha compartilhada pela dupla analítica. sendo odiado. O ódio reativo do bebê ou da criança
No contexto clínico, com o adequado manejo, o trau- divide o objeto idealizado e isto pode ser experien-
ma sutil pode ser chamado de trauma analítico, cujo ciado em termos de delírio de perseguição por parte
efeito pode ser tão benigno quanto ao das pequenas de objetos bons. Na sessão, descreve Winnicott: “[...]
desadaptações maternas necessárias ao processo de dentro do âmbito de uma poderosa transferência po-
desilusão. O trauma analítico provoca mudanças que sitiva, a menina fica ferida e tenta atingir a aflição
permitem a retomada do amadurecimento que havia e o choro a que não pode chegar por si própria. Ao
sido interrompido pelo trauma original. final, a fase se resolve e a paciente torna-se capaz de
Para ilustrar o trauma sutil, o autor descreve uma dizer: “Você pareceu estar zangado comigo quando
das sessões da análise dessa criança acima mencio- disse...” (1965/1994, p. 104). Para melhor explicitar
nada. essa experiência, Winnicott assinala que a paciente
A paciente reclinou-se no divã como de costu- estava emergindo de um episódio paranoide, com a
me e falou muito suavemente disto e daqui- seguinte configuração:
lo. Eu precisava ficar (como era usual com ela)
muito próximo a fim de conseguir ouvir. Nesses Eu estava me encaixando com sua ideia de uma
momentos, ela fica muito sensível a qualquer pessoa que se acha em seu controle onipotente,
mudança na sala e tenho de evitar perturbá quase parte dela.
-la fazendo mudanças descuidadas. Por muitas “Movimentei-me” muito ligeiramente e de ime-
maneiras, a paciente precisa ter-me sob o seu diato fiquei fora de seu controle.
controle e tenho de lhe dar atenção plena. [...]. A parte seguinte era inconsciente; ela me odiava.
Estando as condições quase perfeitas, ela come- Ela sabia que eu era um perseguidor;
ça a querer que eu fale, mas não existe material Ela percebeu que isto tinha sido um delírio.
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Tornou-se então capaz, de maneira muito redu- se rompeu por um fio, especialmente pelo manejo
zida, de tentar alcançar (3) o ódio de mim (em clínico de acolhimento e sustentação pela analista da
que confiava) por minha minúscula excursão situação vivenciada. De outro lado, a comunicação
fora da área de sua onipotência (1965/1994, p.
104). advinda dos sentimentos angustiantes e dos ataques
da paciente ajudaram muito a paciente e a analista
A primeira tarefa de Winnicott foi a de cooperar no norteamento da análise. Como sua desorganiza-
com o processo de sua idealização pela criança. De- ção atingia seus relacionamentos externos, fez com
pois, a de partilhar o ônus da responsabilidade pelo que ela tivesse uma importante discussão com a mãe.
rompimento da idealização, através do ódio da crian- Nessa discussão, na tentativa de explicar-se com a
ça, ódio que lhe viria como um delírio de o analista filha, a mãe lhe conta que após o seu nascimento,
estar zangado com ela. Por esta maneira, a criança al- ela sofreu uma depressão pós-parto, que se agravou
cança a ambivalência, ainda que apenas um pouco. A quando Denise contava com três meses de idade e ela
criança reage a uma nova versão do trauma original, precisou morar na casa de seus pais por uns quatro
todavia agora, em função da confiabilidade no ana- meses. Nesse período, Denise ficou aos cuidados do
lista e em situação especializada do setting analítico, pai e de uma empregada da casa. A mudança física
a experiência assemelha-se às falhas maternas que do consultório era uma versão da mudança da mãe
levam ao crescimento. Muitas e variadas situações para a casa dos avós, quando a mãe ainda não era
mobilizadas por falhas inevitáveis do analista podem percebida como ambiente. A ausência materna foi o
ser vivenciadas como uma versão do trauma original trauma original ocorrido ainda na fase da lactação.
em especial na clínica com pacientes esquizoide, bor- Nesse caso, não podemos dizer de frustrações, mas
derline, falso self, entre outros, cujas dificuldades são de aniquilamento.
oriundas das fases iniciais do amadurecimento. Em seu texto, O conceito de trauma em relação
Denise tinha 24 anos4 quando procurou a análise ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família
logo após submeter-se a uma cirurgia bariátrica, pela (1965/1994), Winnicott acentua o papel do ambien-
qual acreditava que curaria também suas intensas te na formação e desenvolvimento do bebê. Diz o au-
angústias, solidão e dificuldades em relacionamen- tor: “[...] se o uso do objeto pelo bebê se transforma
to. O fato destas questões persistirem, levou-a a um em algo, então tem de ser o começo da formação, na
estado confusional e depressivo, uma vez que, con- mente ou na realidade psíquica pessoal do bebê, de
trariando sua crença, suas dificuldades emocionais uma imagem do objeto” (1967/1975, p. 135). Mas,
não eram advindas de sua obesidade. Após um ano tanto a imagem como a imago, para se manterem vi-
e meio de análise, tivemos que mudar o consultório vas e significantes, dependem do reforço trazido pela
de endereço. Apesar de todos os esforços e trabalho presença real da mãe, viva e concreta, juntamente
de preparação para a mudança, inclusive na manu- com o cuidado infantil. O autor explicita:
tenção dos móveis e na disposição dos mesmos na
nova sala, a primeira sessão ali realizada poderia ser [...] o sentimento de que a mãe existe dura x mi-
nutos. Se a mãe ficar distante mais do que x mi-
descrita como um caos, que por pouco não pôs a aná-
nutos, então a imago se esmaece e, juntamente
lise a se perder. com ela, cessa a capacidade do bebê de utilizar
Ao adentrar a sala, Denise sentou-se em sua o símbolo de união. O bebê fica aflito, mas es-
poltrona costumeira e rapidamente levantou-se di- sa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna
zendo que havia sido trocada. Aquela não era a sua em x + y minutos. Em x + y minutos, o bebê não
poltrona, pois era menor e sentia-se mal acomoda- se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê ficou
da. Queixou-se da estante, que ficava atrás da analis- traumatizado. Em x + y + z minutos, o retorno
da mãe não corrige o estado alterado do bebê
ta, que fora lixada e não tinha mais o mesmo cheiro (1967b/1975, p. 136).
anterior. Examinou os objetos na sala e dizia que
só faltava terem mexido no puff que ficava junto à Em seu extremo, a ausência materna produz uma
poltrona dela. Nada que a analista fizesse poderia ruptura na continuidade de vida do bebê e defesas
ajuda-la em seu desconforto angustiante. Por várias primitivas são organizadas contra o retorno da ago-
sessões, a paciente inquietou-se e seus ataques pas- nia impensável ou do estado confusional próprio da
saram a focar a própria analista. O ponto principal desintegração da estrutura do ego, ainda incipiente.
do estrago ocorrido foi relativo à confiança, que não A morte psíquica da mãe é também vivenciada
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Nome e idade fictícios como a morte de parte do bebê. Esta é a explicitação
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que torna compreensível o estado de angústia e con- instintuais serão conquistados gradativamente ao
fusional de Denise frente à mudança no ambiente longo das fases do desenvolvimento. O autor afirma
analítico, pois a continuidade física da sala permitia- a instintualidade, mas não a concebe como fundan-
lhe manter seu controle onipotente sobre o ambiente. te da personalidade. Em primeiro, porque postula
Essa experiência proporcionou um aprofunda- que nos primórdios do amadurecimento, à época
mento da análise instalando-se a necessária regressão da dependência absoluta do apoio do ego materno,
à dependência, levando-a a descobrir a complexidade o comportamento do ambiente faz parte integrante
das defesas manifestadas na sua relação consigo e do desenvolvimento do bebê. Em segundo, porque
com o mundo. o bebê ainda não alcançou por ele próprio um reco-
Após um mês da discussão com a mãe, Denise nhecimento e repúdio do não eu, condição que lhe
passa a acompanhar freneticamente o assassinato da capacitaria aos mecanismos de introjeção e projeção.
criança Isabela, repercutido exaustivamente na mí- Nas fases mais iniciais do desenvolvimento impor-
dia impressa e televisiva. Denise ora se identificava ta considerar que, segundo Winnicott, o sonho tem
com a madrasta e ora com a criança. Dizia-se explo- suas raízes na elaboração imaginativa das funções
siva como a madrasta e ao mesmo tempo acredita- corporais e está intrinsecamente relacionado à cria-
va que após a morte a criança estava num estado de tividade originária e ao espaço potencial5, ambos
anestesiamento até que toda comoção familiar e so- conquistados e constituídos nas fases mais iniciais
cial se acalmasse e ela pudesse continuar sua jorna- do amadurecimento. Isto nos leva a assinalar o as-
da. Era assim, dizia, que se sentia anestesiada diante pecto referente ao grau de superposição advindo da
da fragilidade materna frente às explosões paternas fantasia e do trabalho operado pelos recursos psí-
e que conturbavam o ambiente familiar. quicos na produção e elaboração do sonho. Nas fa-
Na realidade, a paciente havia experienciado, na ses mais iniciais, essa superposição é mínima, como
transferência delirante, a perseguição que constitui diz Winnicott, uma vez que ainda não podem contar
um passo necessário no sentido da experiência do com funções e mecanismos psíquicos mais comple-
ódio de um objeto bom, sendo este o estofo da desi- xos e especializados.
lusão. Nos meses seguintes, através de vários sonhos Segundo Winnicott, nas fases iniciais do desen-
regressivos, a paciente pode reconhecer o delírio que volvimento ‘o sonho é explicito em si próprio e o
se achava no centro do episódio relativo à mudança afeto é verdadeiro’, expressão esta que pode ser en-
do consultório e de seus relacionamentos externos. contrada em seus textos na ilustração de vários so-
Vejamos com o relato de um de seus sonhos, a nhos de pacientes, cujas dificuldades são oriundas
reação ao trauma sutil e o uso analítico do sonho re- de fases iniciais e/ou de psicóticos. Ou ainda quan-
gressivo. Inicialmente, importa assinalar que na li- do afirma que os sonhos de psicóticos têm um grau
teratura psicanalítica, o aspecto regressivo do sonho menor de distorção do que os de pacientes neuró-
está ligado à natureza primitiva da fonte indutora ticos. Por exemplo, no fragmento clínico de Memó-
de ansiedade no conteúdo do sonho manifesto. No rias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade
sonho regressivo, assim denominado por Winnicott, (1949/2000), Winnicott faz a seguinte observação:
em Dependência no cuidado do lactente, no cuidado “[...] este sonho tem uma superposição sofisticada
da criança e na situação psicanalítica (1963/1983), a muito menor do que nos sonhos da Srta. H., pois a
fonte indutora é da ordem da agonia impensável e paciente é psicótica e não neurótica. Por esse motivo
sua característica principal no manejo é a regressão o afeto é evidente” (p. 268).
à dependência. No uso analítico do sonho temos o Denise teve um sonho que pode ser chamado de
pressuposto freudiano de que os recursos psíqui- regressivo, pois trata de situações vivenciadas em
cos, necessários ao sonho relativo ao inconsciente fase inicial do amadurecimento. Na sessão, relata o
reprimido, tais como os mecanismos de projeção e sonho que dizia ser recorrente desde sua adolescên-
introjeção, condensação e deslocamento, a fantasia cia, no qual a cena vinha pronta: de repente se via
inconsciente, o simbolismo, bem como os conflitos muito pequenina dentro de uma caixa de fósforos e
instintuais já fazem parte do psiquismo do indiví-
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Criatividade originária e espaço potencial são dois conceitos nucleares da pro-
duo desde seu nascimento. De tal modo, a interpre- posta winnicottiana. Para que a criatividade possa ser vivida é preciso que a mãe
tação é o instrumento mor para tornar consciente o possibilite a experiência da ilusão de onipotência. Na esteira da ilusão de onipo-
tência surge o espaço potencial que é um espaço criado entre a mãe e o bebê e
inconsciente. Diferentemente, Winnicott parte da resultante da confiabilidade materna. Esse espaço é localizado por Winnicott na
ideia de que tais recursos psíquicos e os conflitos área do viver e torna-se a fonte da cultura, da arte e da religião.
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essa caixa era uma casa, em miniatura, sem telhado “trauma analítico”, ou “trauma benigno”, explicita-
e toda aberta em cima. Ela estava lá dentro muito dos por Winnicott. Talvez esta fosse a primeira vez
pequenininha e tinha em cima da caixa uma bola de que Denise pode chegar a uma mudança nas defesas
tamanho normal, mas em relação à Denise e à caixa originalmente organizadas com relação à ausência
de fósforos, a bola era enorme. E dali de dentro ela materna, seja pela depressão pós-parto seja por sua
tinha que conseguir tirar um pedacinho daquela bola súbita mudança para a casa paterna. Denise pode
e levar para a mãe, mas ela não conseguia porque elaborar e integrar o acontecido, que estava disso-
aquela bola lhe deformava a boca, a língua ia estu- ciado. O que era sentido como loucura agora tinha
fando, asfixiava e ela não conseguia respirar. Ela só sentido e um lugar para ser guardado.
sabia que sua mãe estava lá, mas não dava para ver
onde. Quando retornava desse sonho, que parecia
um flash, ela ficava muito angustiada. Era tão forte Considerações finais
que muitas vezes, em casa, acordava à noite com a
sensação da boca toda deformada, com a língua es- De importância para a tarefa analítica está a com-
tufada e asfixiada. Relata que era horrível, e ela pen- preensão de que “[...] a agonia primitiva não pode
sava: por que sua mãe não estava lá tomando conta da cair no passado, a menos que o ego possa primeiro
bola e por que não era ao contrário ela tirando um pe- reuni-la dentro de sua própria e atual experiência
dacinho da bola para lhe dar? Mas, o desesperador é temporal e do controle onipotente de agora” (Win-
que ela acabava achando que era pura loucura, mas nicott,1963/1994, p. 73). Na clínica, diz Winnicott:
nessa noite, pela primeira vez, foi diferente, ela es- “É esta integração do ego que me interessa [...] a ca-
tava na caixa de fósforos, mas aquela bola enorme pacidade crescente do paciente de reunir tudo dentro
não estava mais lá. Até sentiu um formigamento na da área de sua onipotência pessoal, incluindo até os
boca, mas sem nenhuma angústia de asfixia. Pode verdadeiros traumas” (1965d/1983, p. 154).
ver que tinha móveis, era uma casa, o sofá, tinha até Além disto, a avaliação da força egóica do indiví-
um quadro, tudo em miniatura. E finaliza dizendo: duo é um dos aspectos essenciais para a possibilida-
Sei lá, não sei te explicar, tive a sensação de que eu tinha de de uma interpretação adequada e oportuna. Como
regredido... e aí até pensei tenho que falar com a minha diz o autor, de nada adianta interpretar quando o pa-
analista que agora também dei de ficar regredida. ciente não tem condições de integrar egoicamente o
A comunicação desse sonho apontava para a ex- material apontado. A insistência de interpretações
periência da mudança do consultório e a revivência fora do alcance egóico do paciente muitas vezes se
da falha materna em sua tenra idade. A regressão à torna apenas um apelo ao uso do intelecto. A tarefa
dependência é dolorosa e traz grandes riscos, mas na clínica winnicottiana consiste em ajudar o pacien-
permitiu que a paciente pudesse reviver no setting te a ter condições de chegar o mais próximo possível
analítico a falha inicial e receber o atendimento às de fazer a interpretação por si próprio.
suas necessidades que lhe faltou quando ainda na Na clínica, há uma grande variedade de situações
fase da lactação. traumáticas que poderão ser expressas em sonhos,
Um aspecto importante do manejo clínico é que por mecanismo delirante, entre outras. Entretanto,
pudemos fazer a ligação entre a mudança do consul- quando estas ocorrem nas fases iniciais do desenvol-
tório e a falha materna. Mas, sobretudo, foi a própria vimento, o norteamento do uso analítico do sonho
paciente que chegou à interpretação da loucura ma- e/ou do manejo das necessidades e dificuldades do
nifestada por um sonho recorrente que muitas vezes paciente será ditado pelo reconhecimento das prin-
lhe aparecia como um flash quando acordada, trazen- cipais tarefas da elaboração imaginativa das funções
do-lhe grande angústia. Por outro lado, foi também corporais a serviço da integração e constituição do
a paciente que chegou à interpretação de que estava indivíduo. O mesmo se dá com relação às tarefas que
regredida. foram interrompidas, das que estão em andamento
Em termos de manejo clínico, qualquer interpreta- e da preparação do terreno às tarefas de fases pos-
ção dessa loucura em momento anterior da análise se- teriores. O trauma sutil traz também a caraterística
ria invasiva e inoportuna diante da fragilidade da força de um trauma benigno, que decorre das falhas ma-
egóica de Denise. O resultado teria sido devastador. ternas que vivenciadas no processo da desilusão.
A respeito desse fragmento clínico, podemos Convém ressaltar que essas falhas de acordo com a
dizer que a paciente experienciou o seu primeiro capacidade de tolerância do bebê são estritamente
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necessárias ao crescimento e amadurecimento do in- consideravelmente a realização dessas tarefas e cau-


divído. Da mesma forma, no contexto analítico, com sam os mais graves estragos na constituição da per-
as falhas inevitáveis do analista, o paciente poderá sonalidade. O momento da ocorrência do trauma
experienciá-las e usá-las em benefício do seu próprio assume prioridade na compreensão do paciente, pois
amadurecimento. expressará tanto as tarefas que foram interrompidas
O aspecto saudável dos sonhos regressivos está e/ou prejudicadas, bem como os recursos psíquicos
no acesso às experiências mais primitivas, muitas que nortearam a organização defensiva para fazer
das quais nem mesmo se constituíram em memória, frente à agonia vivenciada. Importa ainda atentar
para que, então, pudessem cair no esquecimento. No que os traumas sutis se repetem continuamente na
caso cliníco descrito, foi com seu sonho que a pacien- esperança da revivência da situação traumatogêni-
te conseguiu comunicar a agonia vinculada à mais
ca em um ambiente especializado de acolhimento
primitiva das organizações defensivas, a clivagem
e sustentação. Independente do tipo e/ou modo de
que a acompanhava desde a tenra infância. Na com-
manisfestações às reações contra o trauma original
preensão diagnóstica e no manejo das manifestações
ocorrido nas fases iniciais do amadurecimento, o
de reações a um trauma original é preciso atentar
manejo estará implicado com a sustentação do con-
para o fato de que elas podem se apresentar de várias
texto analítico à regressão à dependência e na adap-
maneiras e por várias defesas.O elo que podemos
evidenciar do trauma sutil entre o sonho regressivo tação aos cuidados ambientais que não foram vividos
e o mecanismo delirante, ilustrados neste trabalho, para que o paciente possa elaborar e apropriar-se da
está em considerarmos que nas fases iniciais do ama- situação traumatogênica original e retomar seu ama-
durecimento estão as primeiras e principais tarefas, durecimento. Finalmente, da contribuição winnicot-
dependentes absolutamente do cuidado ambiental, tinna, podemos assinalar a importância substancial
a saber: a integração no tempo e no espaço, o aloja- do conhecimento do analista sobre o processo do
mento da psique no corpo, o início do contato com os amadurecimento emocional tanto para a compreen-
objetos e a constituição do si mesmo primário. Nessas são diagóstica quanto para o manejo e utilização dos
fases, o trauma original interrompe e/ou prejudica traumas sutis no norteamento da análise.

Referências
Naffah Neto, A. (2010). As funções da interpretação psicanalítica em diferentes modalidades de transferência: as contribuições de
Winnicott. Jornal da Psicanálise. São Paulo, v. 43 (78).
Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: Winnicott, D. W.O brincar e a realidade. (13-44). Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1953).
Winnicott, D. W. (1983). Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação analítica. In: Winnicott, D. W. O
ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. (pp. 225-233). Porto Alegre: Art-
med. (Trabalho publicado originalmente em 1963).
Winnicott, D. W. (1994). O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família. In: Winnicott, C.;
Shepherd, R. & Davis, M. (1994). Explorações psicanalíticas: D.W.Winnicott. (pp. 102-115) Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho
original publicado em 1965).
Winnicott, D. W. (2000). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In: D. W. Winnicott. Da pediatria à psicanálise:
obras escolhidas. (pp. 255-276). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1949).

Recebido: 27.02.2019 / Corrigido: 02.08.2019 / Aprovado: 07.08.2019

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