Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
16
RESUMO
Este artigo tem como objetivo compreender e analisar os principais
Camila Meneghini
Dezotti desafios e limites da clínica psicanalítica de orientação winnicottiana a
UPM respeito da maternagem e a condição borderline. Para a compreensão
da condição borderline recorreu-se à teoria do desenvolvimento
Victoria Santoro emocional de Donald Winnicott e para a compreensão do manejo
UPM clínico foram executadas entrevistas semi-dirigidas com duas
psicanalistas de orientação winnicottiana, a fim de que estas
pudessem discorrer a respeito de seu exercício clínico com pacientes
borderline que vivenciam a maternidade, destacando as possibilidades
e as dificuldades no setting terapêutico. As informações coletadas
foram analisadas de acordo com o método psicanalítico. Destaca-se
a importância do manejo clínico com pacientes borderline, de acordo
com suas particularidades, exigindo grande plasticidade por parte do
analista para a solidificação do vínculo e a continuidade da análise.
Como uma das maiores dificuldades pode- se destacar a diferenciação
do desejo e da necessidade do paciente borderline. Ressalta-se a
importância do setting terapêutico constituir um ambiente facilitador
para a mãe borderline para que esta possa ampliar sua capacidade de
maternagem em consonância com o próprio acolhimento que recebe.
Por se tratar de pesquisa qualitativa, os resultados alcançados não
são passíveis de generalização.
Winnicott; Maternagem.
10.37885/200400175
1. INTRODUÇÃO esperar que passe pelo processo de identificação
na preocupação materna primária, descrito por Win-
A partir da literatura psicanalítica a respeito da nicott, e faça o papel do ambiente suficientemente
maternidade é possível notar que, apesar das cons- bom? O que está ao alcance da clínica psicanalíti-
tantes observadas em relação aos sentimentos que ca, entre maiores desafios e os limites, na situação
a gestação despertam nas mulheres, cada gravi- descrita?
dez é única em seu significado e deve ser olhada Buscamos com este trabalho compreender a relação
a partir de seu contexto e da perspectiva histórica entre o ser mãe e o transtorno de personalidade
da mulher em particular (STERN, 1997). Mas de borderline, e, a partir disto, compreender os desa-
forma geral a gravidez pode ser considerada como fios e os limites terapêuticos na clínica de orienta-
um período de expectativas e ensaios do filho que ção winnicottiana. Recorreremos a obra de Donald
está por vir. O bebê existe antes de ser concebido Winnicott com vistas a descrever a forma com que
através dos desejos e expectativas dos pais. o autor compreendia o Transtorno de Personalida-
Winnicott (1983) diz que, ao ter o bebê, a mãe passa de Borderline à luz da Teoria do Desenvolvimento
por um processo de identificação denominada de Emocional e os principais desafios ligados ao mane-
“preocupação materna primária”, o que seria a sensi- jo clínico desses pacientes, especialmente naquilo
bilidade que leva a mãe notar e suprir as necessida- que toca às condições de maternagem e buscamos
des de seu bebê. Ele utiliza o termo “mãe devotada analisar os desafios inerentes à prática clínica com
comum” para designar aquelas que naturalmente se esses pacientes a partir de entrevistas semi- dirigi-
adaptam sensivelmente às necessidades do bebê, das com psicanalistas de orientação winnicottiana.
que num primeiro momento são absolutas (WINNI- Foram selecionados dois profissionais que tenham
COTT, 1988). À medida que a capacidade do bebê atendido pacientes mulheres diagnosticadas com
de ver, ouvir ou se mover, provocam respostas na Transtorno de Personalidade Borderline e com a
mãe, ele rapidamente aprende a interpretá-la e as vivência da maternagem. Para o levantamento de
interações passam a ser recíprocas (NÓBREGA; dados bibliográficos, foram utilizados sites de busca
FONTES; PAULA, 2005). Entretanto, se a mãe, ou acadêmico, SciElo, PePsic, Google Acadêmico e
a pessoa responsável por seu papel, tiver passado quaisquer outros meios eletrônicos de divulgação
por uma infância com complicações, ela enfrentará de artigos sob orientação psicanalítica winnicottiana.
dificuldades em cuidar sozinha de seu filho pois ela A fim de aprimorar nosso levantamento de dados,
ainda precisa ser cuidada em virtude do sentimento também serão realizadas entrevistas semi- dirigidas
de desamparo, o que Winnicott (1988) caracterizou com profissionais da área que trabalham o TPB.
como confronto de desamparos.
Além disso, as dificuldades maternas podem surgir 1.1 TRANSTORNO DE PERSONALI-
por conta de transtornos psíquicos da mãe, o que DADE BORDERLINE
gera no bebê a experiência de desintegração (WIN-
O termo borderline foi utilizado pela primeira vez por
NICOTT, 1988). O bebê defende-se das sensações
Adolf Stern (1938) para definir um grande número
da desintegração que o distanciamento materno
de pacientes que não se enquadravam nas cate-
suscita recolhendo- se em si mesmo e dessa forma
gorias de neurose nem psicose e que dificilmente
não entra em contato com sua essência nem vive as
se beneficiavam dos procedimentos psicanalíticos
experiências de criatividade e espontaneidade, mas
habituais. Stern descreve alguns sintomas clínicos
desenvolve a capacidade de reconhecer os desejos
característicos, como: narcisismo, hipersensibilidade
da mãe em relação a ele e submete-se a eles para
desordenada, rigidez psíquica e corporal, reações
agradá-la, o que Winnicott denominou de falso self.
terapêuticas negativas, sentimentos de inferioridade
Pensando as dificuldades da maternidade, com to- enraizados na personalidade do paciente, masoquis-
das suas complexidades naturais, pode-se pensar mo, estado de profunda insegurança ou ansiedade
na questão da maternidade de uma mulher com o orgânica, o uso de mecanismos de projeção, dificul-
transtorno ou organização borderline. Hegenberg dades em testar a realidade (particularmente nas
(2007) reúne algumas menções que Winnicott fez ao relações pessoais). Em 1953, Robert Knight agregou
borderline em seus trabalhos, porém sempre voltado à definição de Stern através de um estudo sobre os
à formação do self. Segundo o autor, Winnicott en- estados borderline, utilizando essa expressão para
tende o borderline como alguém que não tem o self classificar pacientes muito comprometidos psiquica-
constituído, e consequentemente vive sensações mente mas que não podiam ser considerados como
de vazio e falta de sentido de vida. psicóticos. Os critérios de Knight para o estado li-
mítrofe, acompanhados de descrição fraqueza do
Se a mãe, a maior responsável pela constituição do ego, forneceram uma base para clínicos e teóricos
self de seu bebê, não tem um self constituído, como para investigarem a natureza da condição ao longo
3.DISCUSSÃO
Pensando a questão da classificação do trans-
causada pela sensação de impregnação do outro
no próprio eu pela busca por proteção dentro de
si mesmo, com a preservação da integridade egó-
torno, vemos a partir da teoria winnicottiana que ica. Para se defender do excesso pulsional, Green
o psicanalista inglês não trabalhou com estruturas (1988) afirma que o sujeito retira seu investimento
propriamente ditas. Apesar de Winnicott nomear as dos objetos, retraindo-se sobre si mesmo e criando
patologias em seus estudos, da psicose a neurose, assim uma carapaça narcisista. Esse desinvestimen-
as considera apenas pontos de parada num contí- to é uma resposta radical e defensiva diante de uma
nuo, que podem ser retomados para que o desen- situação traumática.
volvimento continue de onde foi interrompido. O fun-
A partir dessa ideia podemos compreender melhor
damental na clínica winnicottiana é ouvir e acolher a
as falas das entrevistadas sobre as mães: “Elas não
necessidade que o sujeito leva para a sessão, mais
sabem nem quem é o bebê direito [...]” (E1) e “[...]ela
que interpretar, uma vez que o analista fará o papel
(a mãe) não consegue se diferenciar do filho, não
do ambiente que o sujeito não teve (DIAS, 2000).
consegue reconhecer as necessidades dele como
Ambas as entrevistadas destacaram que priorizam
diferentes da dela[...]”, uma vez que o investimento
sustentar o ambiente a pensar em um diagnóstico
pulsional fica direcionado a si próprio na condição
propriamente dito, em consonância com a teoria do
narcísica. Piera Aulagnier (1985/2001), psicanalista
psicanalista. Green (1988) reforça a importância da
italiana, ressalta “ser necessário que a mãe separe
sustentação do ambiente principalmente com pa-
do corpo real do bebê o representante pré-forjado
cientes fronteiriços que tendem a preservação da
em sua mente durante a experiência gestacional”, ou
integridade egóica.
seja, uma mãe que já apresenta falha no ambiente,
Já em relação às maiores dificuldades ao lidar na maternagem, não distingue mãe-bebê. Acrescen-
com um paciente borderline, um estudo feito em ta que existe diferença entre “o desejo de ser mãe”,
2007, intitulado ‘Adesão ao tratamento clínico no quando a mulher observa o filho como uma extensão
transtorno de personalidade borderline’ (TANESI), dela, não lhe permitindo ser diferente da mesma,
identificou que características como impulsividade, enquanto “o desejo de ter um filho” implica em ver a
manipulações e agressividade interferem na adesão criança como alguém com desejos e características
ao tratamento dos pacientes borderline. Ambas as próprias, podendo ser diferente de si mesma. Po-
entrevistadas compactuam com a visão sobre as demos considerar que as características borderline
características citadas do borderline como empeci- não possibilitam a diferenciação necessária da mãe
lhos no processo terapêutico, quando não o impos- e de o bebê, portanto o bebê se torna uma extensão
sibilita. Ainda no estudo sobre adesão, foi levantada da mãe, como citou E2.
a hipótese de que familiares saudáveis podem ser
É possível relacionar a regressão citada por E1 com
muito importantes para a adesão ao tratamento, as-
o momento da falha suportado pelo ambiente citado
semelhando-se à fala de E1 sobre as limitações do
pela E2. Apesar da divergência na nomenclatura,
psicólogo caso não exista um ambiente que suporte
ambas parecem se referir ao mesmo processo da
o paciente fora do setting terapêutico. E2 não abor-
teoria winnicottiana. A regressão mencionada pela
dou essa ideia diretamente, mas reforçou diversas
entrevistada 1 refere-se à volta ao momento do con-
vezes a importância do ambiente suportivo.
gelamento do desenvolvimento causado por falhas
E2 ressaltou a sedução dos pacientes borderline ambientais. O papel do analista é levar o paciente a
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
REIRA, 1980). Pensando assim, é impossível ga-
rantir a ausência de complicações futuras mas é
possível criar um ambiente propício visando evitar Este trabalho buscou tecer considerações a
danos maiores. Baseando-se na teoria winnicotiana respeito da clínica psicanalítica de orientação win-
e considerando a importância do ambiente, prepa- nicottiana em relação a maternidade de mães com