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CAPÍTULO

16

MATERNIDADE E ORGANIZAÇÃO BORDERLINE: DESAFIOS


E LIMITES DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

RESUMO
Este artigo tem como objetivo compreender e analisar os principais
Camila Meneghini
Dezotti desafios e limites da clínica psicanalítica de orientação winnicottiana a
UPM respeito da maternagem e a condição borderline. Para a compreensão
da condição borderline recorreu-se à teoria do desenvolvimento
Victoria Santoro emocional de Donald Winnicott e para a compreensão do manejo
UPM clínico foram executadas entrevistas semi-dirigidas com duas
psicanalistas de orientação winnicottiana, a fim de que estas
pudessem discorrer a respeito de seu exercício clínico com pacientes
borderline que vivenciam a maternidade, destacando as possibilidades
e as dificuldades no setting terapêutico. As informações coletadas
foram analisadas de acordo com o método psicanalítico. Destaca-se
a importância do manejo clínico com pacientes borderline, de acordo
com suas particularidades, exigindo grande plasticidade por parte do
analista para a solidificação do vínculo e a continuidade da análise.
Como uma das maiores dificuldades pode- se destacar a diferenciação
do desejo e da necessidade do paciente borderline. Ressalta-se a
importância do setting terapêutico constituir um ambiente facilitador
para a mãe borderline para que esta possa ampliar sua capacidade de
maternagem em consonância com o próprio acolhimento que recebe.
Por se tratar de pesquisa qualitativa, os resultados alcançados não
são passíveis de generalização.

Palavras-chave: Transtorno de Personalidade Borderline;

Winnicott; Maternagem.
10.37885/200400175
1. INTRODUÇÃO esperar que passe pelo processo de identificação
na preocupação materna primária, descrito por Win-
A partir da literatura psicanalítica a respeito da nicott, e faça o papel do ambiente suficientemente
maternidade é possível notar que, apesar das cons- bom? O que está ao alcance da clínica psicanalíti-
tantes observadas em relação aos sentimentos que ca, entre maiores desafios e os limites, na situação
a gestação despertam nas mulheres, cada gravi- descrita?
dez é única em seu significado e deve ser olhada Buscamos com este trabalho compreender a relação
a partir de seu contexto e da perspectiva histórica entre o ser mãe e o transtorno de personalidade
da mulher em particular (STERN, 1997). Mas de borderline, e, a partir disto, compreender os desa-
forma geral a gravidez pode ser considerada como fios e os limites terapêuticos na clínica de orienta-
um período de expectativas e ensaios do filho que ção winnicottiana. Recorreremos a obra de Donald
está por vir. O bebê existe antes de ser concebido Winnicott com vistas a descrever a forma com que
através dos desejos e expectativas dos pais. o autor compreendia o Transtorno de Personalida-
Winnicott (1983) diz que, ao ter o bebê, a mãe passa de Borderline à luz da Teoria do Desenvolvimento
por um processo de identificação denominada de Emocional e os principais desafios ligados ao mane-
“preocupação materna primária”, o que seria a sensi- jo clínico desses pacientes, especialmente naquilo
bilidade que leva a mãe notar e suprir as necessida- que toca às condições de maternagem e buscamos
des de seu bebê. Ele utiliza o termo “mãe devotada analisar os desafios inerentes à prática clínica com
comum” para designar aquelas que naturalmente se esses pacientes a partir de entrevistas semi- dirigi-
adaptam sensivelmente às necessidades do bebê, das com psicanalistas de orientação winnicottiana.
que num primeiro momento são absolutas (WINNI- Foram selecionados dois profissionais que tenham
COTT, 1988). À medida que a capacidade do bebê atendido pacientes mulheres diagnosticadas com
de ver, ouvir ou se mover, provocam respostas na Transtorno de Personalidade Borderline e com a
mãe, ele rapidamente aprende a interpretá-la e as vivência da maternagem. Para o levantamento de
interações passam a ser recíprocas (NÓBREGA; dados bibliográficos, foram utilizados sites de busca
FONTES; PAULA, 2005). Entretanto, se a mãe, ou acadêmico, SciElo, PePsic, Google Acadêmico e
a pessoa responsável por seu papel, tiver passado quaisquer outros meios eletrônicos de divulgação
por uma infância com complicações, ela enfrentará de artigos sob orientação psicanalítica winnicottiana.
dificuldades em cuidar sozinha de seu filho pois ela A fim de aprimorar nosso levantamento de dados,
ainda precisa ser cuidada em virtude do sentimento também serão realizadas entrevistas semi- dirigidas
de desamparo, o que Winnicott (1988) caracterizou com profissionais da área que trabalham o TPB.
como confronto de desamparos.
Além disso, as dificuldades maternas podem surgir 1.1 TRANSTORNO DE PERSONALI-
por conta de transtornos psíquicos da mãe, o que DADE BORDERLINE
gera no bebê a experiência de desintegração (WIN-
O termo borderline foi utilizado pela primeira vez por
NICOTT, 1988). O bebê defende-se das sensações
Adolf Stern (1938) para definir um grande número
da desintegração que o distanciamento materno
de pacientes que não se enquadravam nas cate-
suscita recolhendo- se em si mesmo e dessa forma
gorias de neurose nem psicose e que dificilmente
não entra em contato com sua essência nem vive as
se beneficiavam dos procedimentos psicanalíticos
experiências de criatividade e espontaneidade, mas
habituais. Stern descreve alguns sintomas clínicos
desenvolve a capacidade de reconhecer os desejos
característicos, como: narcisismo, hipersensibilidade
da mãe em relação a ele e submete-se a eles para
desordenada, rigidez psíquica e corporal, reações
agradá-la, o que Winnicott denominou de falso self.
terapêuticas negativas, sentimentos de inferioridade
Pensando as dificuldades da maternidade, com to- enraizados na personalidade do paciente, masoquis-
das suas complexidades naturais, pode-se pensar mo, estado de profunda insegurança ou ansiedade
na questão da maternidade de uma mulher com o orgânica, o uso de mecanismos de projeção, dificul-
transtorno ou organização borderline. Hegenberg dades em testar a realidade (particularmente nas
(2007) reúne algumas menções que Winnicott fez ao relações pessoais). Em 1953, Robert Knight agregou
borderline em seus trabalhos, porém sempre voltado à definição de Stern através de um estudo sobre os
à formação do self. Segundo o autor, Winnicott en- estados borderline, utilizando essa expressão para
tende o borderline como alguém que não tem o self classificar pacientes muito comprometidos psiquica-
constituído, e consequentemente vive sensações mente mas que não podiam ser considerados como
de vazio e falta de sentido de vida. psicóticos. Os critérios de Knight para o estado li-
mítrofe, acompanhados de descrição fraqueza do
Se a mãe, a maior responsável pela constituição do ego, forneceram uma base para clínicos e teóricos
self de seu bebê, não tem um self constituído, como para investigarem a natureza da condição ao longo

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dos próximos anos. pensar um conceito geral de “borderline”, como se
todos os pacientes fossem iguais. Por este motivo,
Otto Kenberg (1975) optou por utilizar o termo
alguns psicanalistas, como Winnicott, não se preo-
“organização borderline de personalidade”, o que
cuparam em realizar esforços de classificação psi-
transcende o quadro específico do Transtorno de
copatológica, buscando mais uma compreensão do
Personalidade Borderline definido no DSM. O au-
self do que uma divisão nosológica (HEGENBERG,
tor baseia-se em três critérios para o diagnóstico:
2000).
Difusão da identidade caracterizada pela falta de
integração do self; A organização defensiva, que no Armony (2010) afirma que, assim como o neurótico
neurótico baseia-se recalcamento, é centrada na é o paradigma do homem moderno, o borderline
clivagem; O teste de realidade é mantido, diferente- ocupa um lugar cada vez maior na clínica e no pen-
mente do psicótico. Além disso, Kenberg (1975) res- samento psicanalítico, podendo ser considerado o
salta que a organização borderline de personalidade paradigma do homem hipermoderno. Enquanto o
apresenta fraqueza do ego e patologia do superego, neurótico vivia um momento em que o dever e a
o que acarreta na falta de controle do impulso, falta disciplina eram rigorosos, o borderline se vê em um
de tolerância à frustração e ansiedade, a exigências momento livre das amarras da repressão da socie-
morais internas contraditórias e relações objetais dade para fazer suas escolhas, pagando, porém, o
crônicas e caóticas, consequência da difusão de preço da instabilidade. Segundo o autor, podemos
identidade e da predominância de operações de- classificar o borderline em patológico (pesado) e não
fensivas. A difusão da identidade revela-se através patológico (brando), que seria correspondente ao
de sentimentos crônicos de vazio, de percepções perfil do homem hipermoderno. Tanto o patológico
do self contraditórias, na instabilidade no âmbito quanto o não patológico possuem sentimentos crô-
dos relacionamentos afetivos e, frequentemente, nicos de vazio e demonstram uma busca constante
nos comportamentos autodestrutivos ameaças de por identificações. Para o autor, enquanto no neu-
suicídio. rótico o mecanismo predominante é o recalque, no
borderline é a clivagem, o que acarreta em variados
No Vocabulário de Psicanálise, Laplanche e Pontalis
aspectos da personalidade: razão e emoção, mo-
(2001) descrevem de forma breve a patologia bor-
dos de ser masculinos e femininos, múltiplos “eus”,
derline. Utilizam a expressão “caso-limite ou limítro-
desejos, onipotência e limites, etc.
fe” e explicam se tratar de uma psicopatologia limite
entre psicose e neurose, como uma esquizofrenia
latente com uma série de sintomas neuróticos. 1.2 TEORIA DO DESENVOLVIMENTO
Foi a partir do DSM que o termo deixou de ser uma EMOCIONAL DE DONALD WINNI-
acepção vaga entre estados intermediários de neu- COTT
rose e psicose e passou a ser um distúrbio espe-
Donald Winnicott desenvolveu sua psicanálise a par-
cífico de personalidade. No Manual Diagnóstico e
tir da relação entre bebê-ambiente, reconhecendo
Estatístico de Transtornos Mentais, o transtorno de
que, nos primeiros estágios de vida, o bebê não
personalidade borderline é caracterizado por um
reconhece a si mesmo nem os outros à sua volta,
“padrão difuso de instabilidade das relações inter-
não sendo considerado uma unidade, mas, sim, um
pessoais, da autoimagem e dos afetos e de impulsi-
indivíduo não integrado que precisa do ambiente
vidade acentuada que surge no início da vida adulta
para desenvolver-se. Todo indivíduo tem uma “ten-
e está presente em vários contextos”. (APA, 2013,
dência a integrar- se”, em maior ou menor quan-
p. 663). Indivíduos com o transtorno apresentam um
tidade (ABRAM, 2000; DIAS, 2008; WINNICOTT,
padrão de relacionamentos instável e intenso e são
2000), e o principal fator responsável para tornar
propensos a mudanças drásticas e repentinas na
esse potencial real é o ambiente, “é como o óleo
sua maneira de enxergar os outros e a si mesmo,
no qual as engrenagens se constituem”, como disse
podendo acarretar em uma perturbação de identi-
um paciente de Winnicott certa vez (WINNICOTT,
dade. Cerca de 75% dos casos diagnosticados são
1988, p. 150). Neste estágio inicial, o bebê vive a
do gênero feminino (APA, 1004).
fase de dependência absoluta do ambiente (mãe), o
As Classificações Internacionais das Doenças Men- responsável por apresentar-lhe o mundo enquanto
tais, como o CID e o DSM, são apenas descritivas, suas experiências são de natureza primitiva, anterior
elas não se preocupam com a compreensão do sin- à linguagem verbal e simbólica. É necessário que a
toma, afastando-se portanto da psicanálise. Mas, mãe se adapte às necessidades do bebê para ofe-
por outro lado, permitem uma linguagem comum, recer processos indispensáveis para o desenvolvi-
fundamental para o campo da pesquisa e para se mento psíquico saudável, como o holding, o suporte
saber de qual paciente se fala. Corre-se o risco de psíquico, e o handling, que se trata do cuidado e
desconsiderar a singularidade de cada indivíduo ao manejo físico do bebê. A adaptação da mãe ao bebê

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permite que ele “venha a ser o que ele é. Esse pro- ter um filho é não mais o ter. O ódio imaginário surge
cesso auxilia na integração das experiências vividas, da impossibilidade da fusão mãe/filho, ódio que se
ou seja, contribui para a integração do self. Quando adianta ao amor. Para a autora, mãe e filho devem
o ambiente não tem a capacidade de oferecer os viver o processo de luto de um e de outro para que,
recursos necessários para o desenvolvimento do progressivamente, a ilusão que os acomete de se-
bebê, ele é submetido a um lugar de não-experi- rem um só se perca e prepare a criança para a
mentação do mundo externo, o que o leva a viver capacidade de estar só.
uma invasão ambiental e a aceitar as exigências do
meio (ABRAM, 2000). Porém, Winnicott ressalta:
1.3 BORDERLINE E A MATERNIDADE
Não se deve concluir que todos os bebês sensivel-
mente alimentados e orientados por uma dedicada A vivência da maternidade para uma mulher bor-
mãe estejam necessariamente fadados a desenvol- derline é complexa, uma vez que a função materna
ver uma completa saúde mental. Mesmo quando suficientemente boa exige uma disposição interna
as experiências iniciais são boas, tudo o que foi para adaptação e doação afetiva ao bebê. Pessoas
conquistado tem de ser consolidado com o decorrer com transtorno de personalidade borderline enfren-
do tempo. Nem se deve concluir que todos os be- tam dificuldade em reconhecer as necessidades do
bês criados numa instituição, ou por uma mãe sem outro como distintas das suas, o que afeta sua pre-
imaginação ou demasiado assustada para confiar ocupação materna e a identificação da mãe com
em seu próprio discernimento, estão destinados a seu bebê. Além disso, a instabilidade para lidar com
uma clínica mental ou a um reformatório. As coisas suas próprias emoções afeta sua capacidade de
não tem essa simplicidade. (1964, p. 120) lidar com os diferentes estados afetivos de seu filho.
(NEWMAN, STEVENSON, 2005).
Num segundo momento do desenvol- Não é incomum essas mães terem dificuldades nas
vimento, conhecido como dependência práticas diárias de cuidado parental. De acordo com
relativa, o bebê já está em condições Newman e Stevenson (2005), terapeutas notaram
de reconhecer objetos e pessoas como que muitas mães com o transtorno não conseguiam
parte da realidade externa. A função da manter rotinas simples com seus filhos, como por
mãe é desligar-se gradativamente, in- exemplo alimentação em horários fixos ou a regula-
troduzindo as “falhas de adaptação” e ridade na hora de ir para a cama. Outra observação
permitindo que o bebê evolua. Nesta feita pelos autores é que normalmente essas mães
fase surge a ambivalência, ou seja, possuem pouca tolerância para estar presente com
quando o bebê vive uma relação gra- seus filhos.
tificante, ama sua mãe; quando vive Em 2003, foi realizado um estudo com mães border-
uma relação frustrante, a odeia, e teme line e seus filhos de dois meses de idade (CRAN-
que sua agressividade a machuque. O DELL, PATRICK e HOBSON, 2003) que evidenciou
amor e o ódio passam a coexistir no que mães com o transtorno tendem a ser ‘intrusi-
seu mundo interno e torna-o capaz de vamente insensíveis’ na relação com seus filhos.
experimentar o sentimento de culpa. A Mesmo aos dois meses de idade há sinais de que
sobrevivência da mãe ao ódio do bebê essas crianças manifestam respostas sócio-emocio-
permite que ele supere as angústias nais atípicas para o estresse interpessoal. Segundo
predominantemente depressivas, viva os autores é necessário atentar-se a possibilidade
suas experiências instintivas e sinta-se de serem precursores do transtorno.
reparado. A medida que o bebê gradu-
almente se volta para o mundo exte-
rior, ele passa a suportar a desilusão 1.4 RELAÇÃO TERAPÊUTICA
de abandonar sua onipotência.
Winnicott (1993) pontua que o manejo do setting
é o principal recurso no tratamento de pacientes
Por outro lado, para a mãe o bebê é tanto um ob-
muito regredidos. O autor reconhece o manejo como
jeto fonte de prazer, e por isso amado, quanto de
um elemento importante e facilitador de mudanças
desprazer, já que sua existência demanda grande
psíquicas no paciente. Na clínica winnicottiana, o
dispêndio de energia libidinal. (FREUD, 1915). Be-
manejo ocorre de acordo com as condições psíqui-
nhaim (2004) diz em seu livro “Amor e Ódio: A Am-
cas e clínicas em que cada paciente se encontra,
bivalência da Mãe” que a experimentação do ódio
ou seja, não apenas como uma concepção teórica
materno ocorre logo que se dá a vida ao bebê. Su-
e técnica, mas também uma concepção particular
põe-se um luto não somente da criança no útero,
de clínica. Para o psicanalista é fundamental base-
mas também daquela que acaba de nascer, ou seja,

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ar seu trabalho terapêutico de acordo com o diag- ansiedade intolerável em função da qual as defesas
nóstico, visando a elaboração de um diagnóstico foram organizadas.”(WINNICOTT, 1961/2005, p.60).
individual e social, ao longo de todo o processo de Embora seja esperado a prevalência do verbal na
tratamento, pois, assim procedendo, é possível fazer análise, existe o nível de comunicação não verbal
uma adaptação no setting se a situação emocional que pode sustentar, negar ou impedir o trabalho ana-
do paciente naquele momento assim requerer. lítico. O manejo da transferência, para Winnicott,
não objetiva o controle a interpretação, é o meio
O conteúdo trazido pelo paciente no contexto tera-
pelo qual o trabalho terapêutico acontece. Além dis-
pêutico não diz respeito às necessidades instintivas
so, Winnicott alerta que a interpretação basedada
ou a busca de prazer, mas à necessidade de ser e
conhecimento aculumado por parte do analisando
continuar sendo, o que depende da adaptação am-
ao longo das sessões são inúteis ao paciente, pois,
biental (WINNICOTT, 1958). O espaço terapêutico é
apesar da admiração que o paciente pode expres-
responsável por proporcionar uma segunda oportu-
sar, a interpretação não é sua e se torna traumática.
nidade para o desenvolvimento e deve oferecer um
(WINNICOTT, 1960/1983, p.50)
ambiente facilitador, que possibilite o crescimento e
o desenvolvimento maturacional e promova a sus-
A análise não é apenas um exercício
tentação “suficientemente boa” ausente na infância.
As falhas da do ambiente na vida do indivíduo pro- técnico. É algo que nos tornamos capa-
duzem um estado de congelamento da situação de zes de fazer quando um certo estádio
fracasso, portanto o trabalho do psicanalista é recriar na aquisição de uma técnica básica é
o processo inicial da vida para que o paciente con- atingido. O que nos tornamos capazes
siga regredir a fase de dependência e ao momento de fazer permite que cooperemos com
do congelamento, possibilitando o desenvolvimento. o paciente no andamento do processo,
Sendo assim, o terapeuta é responsável por com- aquilo que, para cada paciente, tem seu
pensar a falha ambiental e levar o paciente a atribuir próprio ritmo e segue seu próprio curso
um novo sentido ao self. O processo terapêutico se (Winnicott, 1954/1978a, p. 459).
dá a partir da transferência, e para que ela flua o
analista deve assumir o papel de objeto. Laplanche
e Pontalis definem o termo transferência como:

“...o processo pelo qual o infantil se


2.ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
A primeira questão do roteiro de entrevista vi-
presentifica no encontro com o analista sou a compreensão breve dos motivos que levaram
através de um investimento da repeti- as entrevistadas a seguir a linha winnicottiana. E1
ção, que deve possibilitar a rememora- teve o primeiro contato com a teoria durante a fa-
ção dos conflitos e permitir a elabora- culdade e desde então se interessou pela teoria da
ção das pulsões narcísicas e objetais. tendência antissocial de D. Winnicott. Formada há
10 anos, terminou os estudos no IBPW e mencionou
A transferência coloca em ação, no co-
interesse pela Fenomenologia e a arteterapia como
ração do tratamento analítico, o infantil
escolhas iniciais logo após concluir a graduação.
com todo seu potencial traumático de
desejos, expectativas e frustrações.” E2 também entrou em contato com a teoria de
(1967/1996, p.492) winnicott no período da faculdade e contou que já
se interessava pela questão mãe/bebê, mas só foi
Winnicott (1968a/2005) afirma que um dos papéis mais afundo depois de formada quando começou a
do analista é ser usado pelo paciente, pois este não trabalhar na área de obstetrícia. Após uma grande
apenas transfere como também usa criativamente identificação com a teoria de D. Winnicott e com
o analista. Este uso vai além da projeção, é um as questões iniciais do bebê, iniciou a formação no
fenômeno ambiental, e o analista portanto exerce IBPW (Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicot-
a função de objeto e de ambiente, mas para isso tiana), há dois anos.
é necessário que o paciente tenha desenvolvido a Deu-se início ao assunto do trabalho a partir da
capacidade de usar objetos (princípio de realidade). questão sobre as maiores dificuldades ao lidar com
Na perspectiva da psicanálise clássica, a interpre- um paciente borderline. Sobre o termo borderline,
tação é utilizada como principal técnica de trabalho E1 logo destacou que: “[...] a gente não separa tan-
e instrumento de mudança estrutural. Já Winnicott to assim, a gente sabe quem está mais psicótico
entende que o sucesso da análise “depende não e quem não está, quem tem chances, quem não
da compreensão, pelo paciente, do significado das tem. A gente não categoriza tanto, porque se você
defesas, mas sim de sua capacidade, através da começa a se aprofundar na área todo mundo vai
análise e na transferência, de reexperienciar esta para um nucleozinho mais desintegrado.”

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E2 também mostrou não dar grande relevância ao alidade, não tem ninguém separado”. Disse ainda
termo e ao diagnóstico em si: “eu considero que que, segundo suas impressões e intuições, “talvez
mais importante que o diagnóstico é conseguir re- uma mãe border transfira a loucura para o filho” (E1)
conhecer o momento da falha e suportar o ambiente e relata que quando atendeu filhos de mães com
para o desenvolvimento”. o transtorno notou uma certa inveja, por parte da
mãe, do cuidado que o filho recebia no processo,
Entre as dificuldades citadas por E1, a instabilidade
o que para ela também pode significar uma defesa
na frequência à terapia decorrente da resistência,
do ‘enlouquecimento’ próprio. Essa inveja pode ser
foi tida um dos maiores empecilhos no processo
comparada à ‘competição’ presente na fala de E2
terapêutico. Para ela, estes pacientes exigem uma
sobre ter uma mãe borderline: “[...] é muito difícil
grande disponibilidade, inclusive fora do consultório
para o filho, ele perde o espaço e se torna quase
em momentos de surto, e considera importante não
como uma competição.”
limitar o horário da sessão como forma de manejo,
chegando a prolongar as sessões quando julga ne- A busca por apoio em um relacionamento externo
cessário. Ressaltou que o psicólogo não trabalha esteve presente nas falas das duas entrevistadas.
sozinho e que a rede de apoio do paciente borderline E1 acredita que “[...] o border sempre vai procurar
é de extrema importância pois “não ter ninguém e alguém pra cuidar dele lá fora (no externo).” e E2
estar muito enlouquecido são duas coisas que cami- “[...] mulher border sempre se relaciona com um
nham juntas; se existe um amparo familiar a loucura cara ‘capacho’ que faz tudo para ela, é incrível [...]”.
não é tão grande, o ambiente sustenta.” E1 acredita ainda que quando a mulher borderline
está envolvida em um relacionamento é mais raro
E2 também citou a instabilidade adesão ao proces-
procurar ajuda do processo terapêutico por já estar
so, mas acredita que a maior dificuldade está rela-
recebendo atenção e sendo cuidada como gostaria.
cionada à sedução do paciente borderline. Ela afirma
que eles gostam de estar no controle e de chocar e, As entrevistadas destacaram a importância da exis-
caso não consigam, se revoltam. Mas para ela, não tência de um ambiente suportivo para sustentar tan-
ceder à todas as vontades do paciente e não fazer to o filho quanto a mãe. No caso da criança, E2 diz
tudo o que espera faz parte do processo terapêutico, “[...] se a criança tiver um suporte, como a gente
e diferente de E1, não abre mão da rigorosidade do vê na teoria winnicottiana, outra pessoa pode fazer
tempo da sessão e mantém contato restrito fora do esse papel, aí ela vai ter um desenvolvimento matu-
consultório. Além disso, E2 destacou a dificuldade racional mais saudável.” mas lembra que “só dessa
em lidar com um paciente borderline pelo fato de mãe fazer terapia, comparecer, estar no processo,
o diagnóstico não excluir a grande abrangência de já é um grande avanço e provavelmente alguma
possibilidades características destes. mudança ela encara e isso reflete na convivência
familiar.”
Apenas E1 mencionou a importância da medicali-
zação nos casos boderline e a resistência por par- Já E1 afirma “[...] se você não apoia uma mãe bor-
te dos pacientes em tomar a medicação de forma derline, o filho vai enlouquecer. Ou se a família não
correta. apoia, porque de repente tem uma tia maravilhosa,
ou um marido maravilhoso, alguém que sustente
Na questão referente a como a maternagem de uma
essa mãe, uma escola boa, uma boa babá, uma boa
mãe borderline é afetada pelo transtorno foi possível
empregada, tem muitas questões.” e “Uma “mãe
traçar ressonâncias dos conteúdos das entrevista-
border” pode ser muito boa se ela tiver um bom
das. As duas compartilham a opinião que uma mãe
ambiente, porque ela vai regredir e se identificar
com o transtorno dificilmente enxerga além de si e
com a criança”.
consequentemente não reconhece as necessidades
do filho além das próprias. E1 afirma que “[...]o que Sobre o manejo clínico em relação a organização
tem em comum entre as mães borders é a conexão borderline e a maternagem, E1 ressalta que é coisa
com o bebê. Elas não sabem nem quem é o bebê mais importante na clínica winnicottiana e que ele
direito. E o bebê às vezes suprindo as necessidades varia de acordo com as necessidades específicas
dela, ela se submetendo”. E2 pareceu apresentar a de cada paciente. É necessário entender o que o
mesma ideia ao dizer que “ela (a mãe) não conse- paciente está comunicando e enxergar o que ele não
gue se diferenciar do filho, não consegue reconhecer tem condições de ver sobre si mesmo, quando exis-
as necessidades dele como diferentes da dela, ele te um “si mesmo”. E1 nomeia esse processo como
é como uma extensão dela.” uma compreensão de uma história clínica. Para ela,
não há uma regra para o manejo e ele é aprendido
E1 relatou também que muitas vezes a família in-
na prática com a criatividade e a percepção do te-
teira perde a individualidade: “[...] é muito comum
rapeuta. Diz ainda que o ponto principal da terapia
quando chega família colada, a mãe é border, o
é regredir: “Fazer análise é enlouquecer, se permitir
pai é border e a criança está ali, não tem individu-

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regredir, viver o que você não viveu, porque toda tenha muita dificuldade. A única forma de prevenção
mãe falha, né? Umas mais, outras menos, depende citada por E2 foi a terapia da criança o quanto antes.
da vida, depende do ambiente, depende da época,
A última questão do roteiro aborda os possíveis limi-
ninguém está querendo culpar as mães por isso.”
tes do manejo clínico com pacientes borderline, es-
(E1) e associa a regressão com o ser mãe: “[...]
pecialmente em relação a maternagem, e surgiram
acho que ser mãe é regredir. Esse limite da loucura
pontos sobre limitações também. Ambas concordam
e da realidade, quando você vai para um estado
sobre a dificuldade em estabelecer limites no início
puerperal, você vai para um lado meio assim, até
da carreira acreditam que é algo que se adquire
para poder se identificar com o seu bebê.”
com experiência. Apesar de E1 ser mais flexível no
E2 explica que o manejo é muito diferente e único tempo da sessão e na atenção fora da clínica com
com cada paciente, mas que quando se trata de pacientes borderline, as duas entrevistadas acham
pacientes borderline é ainda mais único e complexo, que estes pacientes testam os limites do profissional
pois não se sabe nada do caminho a ser percorrido. e que é necessário saber impô-los. Para E2, “ [...] a
Ressalta a importância de “[...]conseguir reconhe- questão do limite é algo que você precisa colocar,
cer o momento da falha e suportar o ambiente para e se você não coloca eles vão te testando, vendo
o desenvolvimento independente de diagnósticos até onde podem ir e até onde você aceita. Pode
psiquiátricos” (E2). ser algo revoltante de início, mas se eles sentem
segurança que você vai estar lá toda semana, no
E1 focou na importância do tratamento da mãe ex-
mesmo dia, no mesmo horário, pronta para acolher,
plicando que “se você não trabalha os pais, é muito
isso acalma e constrói o setting.”, não excluindo o
mais difícil dar conta da criança”. E2 também fa-
olhar mais atento e a possibilidade de ser mais fle-
lou da importância do tratamento da mãe, mas deu
xível em casos mais graves, como risco de suicídio.
grande importância ao tratamento da criança: “[...]
os filhos sofrem desde o começo da infância com E1 concorda que não se deve ceder à todas as von-
a falta de olhar dessa mãe, mas talvez seja mais tades do paciente e explica: “Às vezes ele quer que
fácil tratar esse filho diretamente enquanto ainda é você faça o que ele quer, e você precisa falar ‘não,
criança. É muito importante trabalhar com a mãe e aqui é pra você se cuidar, não vou fazer o que você
suportar o ambiente como eu disse, mas a criança quer’. Você tem que ver o que é regredir, não é fazer
com certeza vai precisar de um cuidado também.” o que o paciente quer, é fazer o que ele precisa e
às vezes ele não tá podendo.” (E1)
A questão da prevenção surgiu quando E1 relatou o
caso de uma paciente borderline, que sofreu agres- Outro ponto em que a opinião das entrevistadas
sões na infância de uma mãe borderline, e buscou converge é a dificuldade da criação do vínculo com
terapia justamente por conta da vontade de ter um o paciente borderline. Ambas reconhecem que é ne-
filho e do medo de ser como sua mãe: “Ela queria ter cessário que o paciente queira estar no processo e
um bebê e veio para o consultório para ter o bebê, que não há o que possa ser feito caso o paciente
porque ela tinha muito medo de enlouquecer. É um não leve com seriedade ou abandone o tratamento,
caso em que a gente usa muito a prevenção. Isso o que faz parte das limitações do trabalho. E1 contou
não quer dizer que as falhas não vão acontecer, que inicialmente tinha dificuldade em encarar essas
mas elas acontecem menos porque você susten- limitações. Quando atendeu seu primeiro paciente
ta.” A entrevistada 1 conta como ajudou a paciente borderline, chorou ao se deparar com a precarie-
e construir um ambiente para sustentar as possí- dade do ambiente e ao perceber que seu trabalho
veis falhas:“Ajudei ela a preparar o ambiente. Tinha dependia de outros fatores e não somente de sua
uma babá e mais uma empregada, porque ela vai disposição. “[...] depende de um ambiente, depende
precisar de alguém que faça por ela não ter condi- da sociedade, depende do estado, do governo”. E1
ções. [...] Ela criou, mesmo enlouquecida, porque a abordou também a resistência ao processo: “[...] ali-
criatividade é humana, e quando você está enlou- ás eu acho que o border pode ter muita resistência
quecida você as vezes ta mais criativo que quando a terapia porque quando a pessoa vai pra regressão
ta adaptado, então as coisas são muito relativas.” ela nao ta mais no limite, ela ta indo pro caminho
Acrescentou ainda que “Por ela ter tido uma mãe da saúde.”
border, ela sabia tudo aquilo que ela não podia fazer,
Ambas ainda ressaltaram a importância de reco-
tudo que a mãe dela fez com ela. E a partir daí ela
nhecer os limites pessoais como psicóloga, para
criou um ambiente, muito mais mental, tanto que ela
saber reconhecer situações que não conseguem
fala “Eu morro de medo de ficar igual minha mãe,
lidar. A agressividade do borderline foi mencionada
eu preciso sair daqui”, mas a filha começou a dar
pelas duas entrevistadas como uma característica
um corpo para ela.” E1 relatou estar encantada com
do borderline delicada que exige muito manejo.
o quanto essa paciente está percebendo sua filha
e o quanto, ao percebe-lá, ela se resgata, embora O roteiro termina com considerações finais pessoais

142 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 2


das entrevistadas sobre o tema. E2 quis retomar a para a conquista da atenção desejada como a maior
teoria winnicottiana para explicar a ideia que o filho dificuldade no acompanhamento psicológico. O DS-
de uma mãe borderline possivelmente apresentará M-IV apresenta a manipulação psicológica para ob-
alguma falha no desenvolvimento caso não haja ou- tenção de carinho uma das características comum
tra figura que suporte o ambiente: “a mãe é a pessoa entre os borderlines, porém não existe comprova-
que apresenta o mundo para o bebê, que passa ção sobre a manipulação levar a mal-entendidos na
segurança e ajuda a construir a noção do eu. Com sessão nem sobre ser um empecilho no tratamento
toda a instabilidade, a impulsividade, a dificuldade do transtorno.
de se diferenciar do outro, o bebê possivelmente
Sobre a maternagem da mãe com organização bor-
não consegue fazer essa diferenciação também.” E1
derline, tanto E1 como E2 abordaram a ausência
expressou a mesma opinião anteriormente ao res-
do olhar dessa mãe para o bebê. Essa ausência de
saltar que é necessário que essa mãe receba apoio
olhar pode ser relacionada à característica narcísi-
ou que a criança tenha outras figuras na família que
ca mencionada por Hegenberg (2007) como uma
façam o papel do ambiente, pois caso contrário o
das características comuns no quadro do transtor-
filho enlouquecerá.
no. Green (1979) explica que o indivíduo borderli-
ne encontra-se numa ameaça de aniquilação de si,

3.DISCUSSÃO
Pensando a questão da classificação do trans-
causada pela sensação de impregnação do outro
no próprio eu pela busca por proteção dentro de
si mesmo, com a preservação da integridade egó-
torno, vemos a partir da teoria winnicottiana que ica. Para se defender do excesso pulsional, Green
o psicanalista inglês não trabalhou com estruturas (1988) afirma que o sujeito retira seu investimento
propriamente ditas. Apesar de Winnicott nomear as dos objetos, retraindo-se sobre si mesmo e criando
patologias em seus estudos, da psicose a neurose, assim uma carapaça narcisista. Esse desinvestimen-
as considera apenas pontos de parada num contí- to é uma resposta radical e defensiva diante de uma
nuo, que podem ser retomados para que o desen- situação traumática.
volvimento continue de onde foi interrompido. O fun-
A partir dessa ideia podemos compreender melhor
damental na clínica winnicottiana é ouvir e acolher a
as falas das entrevistadas sobre as mães: “Elas não
necessidade que o sujeito leva para a sessão, mais
sabem nem quem é o bebê direito [...]” (E1) e “[...]ela
que interpretar, uma vez que o analista fará o papel
(a mãe) não consegue se diferenciar do filho, não
do ambiente que o sujeito não teve (DIAS, 2000).
consegue reconhecer as necessidades dele como
Ambas as entrevistadas destacaram que priorizam
diferentes da dela[...]”, uma vez que o investimento
sustentar o ambiente a pensar em um diagnóstico
pulsional fica direcionado a si próprio na condição
propriamente dito, em consonância com a teoria do
narcísica. Piera Aulagnier (1985/2001), psicanalista
psicanalista. Green (1988) reforça a importância da
italiana, ressalta “ser necessário que a mãe separe
sustentação do ambiente principalmente com pa-
do corpo real do bebê o representante pré-forjado
cientes fronteiriços que tendem a preservação da
em sua mente durante a experiência gestacional”, ou
integridade egóica.
seja, uma mãe que já apresenta falha no ambiente,
Já em relação às maiores dificuldades ao lidar na maternagem, não distingue mãe-bebê. Acrescen-
com um paciente borderline, um estudo feito em ta que existe diferença entre “o desejo de ser mãe”,
2007, intitulado ‘Adesão ao tratamento clínico no quando a mulher observa o filho como uma extensão
transtorno de personalidade borderline’ (TANESI), dela, não lhe permitindo ser diferente da mesma,
identificou que características como impulsividade, enquanto “o desejo de ter um filho” implica em ver a
manipulações e agressividade interferem na adesão criança como alguém com desejos e características
ao tratamento dos pacientes borderline. Ambas as próprias, podendo ser diferente de si mesma. Po-
entrevistadas compactuam com a visão sobre as demos considerar que as características borderline
características citadas do borderline como empeci- não possibilitam a diferenciação necessária da mãe
lhos no processo terapêutico, quando não o impos- e de o bebê, portanto o bebê se torna uma extensão
sibilita. Ainda no estudo sobre adesão, foi levantada da mãe, como citou E2.
a hipótese de que familiares saudáveis podem ser
É possível relacionar a regressão citada por E1 com
muito importantes para a adesão ao tratamento, as-
o momento da falha suportado pelo ambiente citado
semelhando-se à fala de E1 sobre as limitações do
pela E2. Apesar da divergência na nomenclatura,
psicólogo caso não exista um ambiente que suporte
ambas parecem se referir ao mesmo processo da
o paciente fora do setting terapêutico. E2 não abor-
teoria winnicottiana. A regressão mencionada pela
dou essa ideia diretamente, mas reforçou diversas
entrevistada 1 refere-se à volta ao momento do con-
vezes a importância do ambiente suportivo.
gelamento do desenvolvimento causado por falhas
E2 ressaltou a sedução dos pacientes borderline ambientais. O papel do analista é levar o paciente a

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 2 143


regredir para esse momento e sustentar o ambiente rar esse ambiente não exclui as possibilidades de
no momento da falha, como disse E2, para então falhas, mas da uma sustentação maior.
possibilitar a continuidade do desenvolvimento.
Segundo Kernberg (1975), pacientes borderline
Pensando na questão do manejo clínico com bor- tendem a apresentar um prejuízo no processo de
derline, Hegenberg (2007) diz que o analista deve internalização de uma imagem materna tranquiliza-
estar atento a movimentos transferenciais associa- dora, tendo em vista a instabilidade presente. Dessa
dos ao medo de ser invadido (desintegração) pois o forma, confirma-se que o envolvimento da mãe com
paciente pode receber algumas observações como seu bebê depende da sua auto-imagem (processo
ataque ao seu self não constituído. A agressividade narcísico), e da relação com aqueles que estão à
no processo terapêutico citada pelas entrevistadas sua volta, especialmente dentro do círculo familiar
pode estar relacionada ao medo do paciente de ser (WINNICOTT, 1993). Assim, por não tolerarem a
invadido, como forma de defesa. As duas entrevis- separação, não são capazes de ficar muito tempo
tadas enxergam o manejo como algo único com sozinhos, pois os períodos de solidão são tão an-
cada paciente e reconhecem a delicadeza do caso gustiantes quanto o temor em ser abandonado pelas
borderline, concordando com a visão de Hegenberg pessoas significativas. E1 diz, [...] “aliás eu acho que
(2007) que é necessário respeitar o tempo singular o border pode ter muita resistência a terapia porque
de cada paciente sem invadi-lo, acompanhando-o quando a pessoa vai pra regressão ela nao ta mais
na construção de sua subjetividade, por meio da re- no limite, ela ta indo pro caminho da saúde. Então
gressão a um estado que permita essa constituição. eu acho que o border sempre vai procurar alguém
A busca por um parceiro ou alguém que sustente o pra cuidar dele lá fora (no externo)”. [...]
paciente fora do consultório pode ser explicada pela
Como abordado no capítulo “relação terapêutica”,
vontade de integrar- se.
Winnicott (1958) diz que os conteúdos que apare-
Alguns pacientes, dependendo de sua posição na cem na sessão estão ligados a necessidade de ser
regressão, exigem do analista grande plasticidade e continuar sendo, o que depende de uma adapta-
na acomodação e na tolerância. Winnicott (1958) ção ambiental. O espaço terapêutico deve oferecer
pontua a importância de conseguir distinguir o “de- um ambiente facilitador para o desenvolvimento
sejo” da “necessidade” para melhor compreender maturacional saudável, promovendo uma susten-
o uso da interpretação e adequação em termos de tação “suficientemente boa”. Neste contexto, ambas
ambiente e manejo. Para o autor, a noção de manejo compactuam sobre a importância da sustentação
está diretamente ligada às necessidades do pacien- do ambiente para um processo maturacional mais
te, pois a necessidade está ligada à necessidades saudável, assim como o esperado por seguirem a
vitais que são, ou não, providas pelo ambiente e linha psicanalítica winnicottiana. E1 enfatiza “[...] A
sem as quais o ego não chega a se estruturar: “uma gente sempre vai trabalhar a regressão né, mesmo
necessidade obtém ou não resposta, e o efeito é num deprimido, num neurótico, num antissocial.
diferente da satisfação e frustração do impulso do Então, tem condições pra regredir? Como ta esse
id” (1958n, p.493). E1 parece estar se referindo a ambiente?”
importância dessa diferenciação em sua fala: “[...]
Apesar de E1 ser mais flexível no tempo da sessão
Você tem que ver o que é regredir, não é fazer o que
e na atenção fora do setting terapêutico com pacien-
o paciente quer.”
tes borderline, as duas entrevistadas acham que
Não há um consenso sobre a questão da prevenção estes pacientes testam os limites do profissional e
na psicanálise, apresentada por E1. Segundo Miller que é necessário saber impô-los. Para E2, “ [...] a
(1999) o psicanalista sabe que a equação da história questão do limite é algo que você precisa colocar,
natural da doença (ou do processo saúde-doença) e se você não coloca eles vão te testando, vendo
não dá conta do padecimento do paciente, pois as até onde podem ir e até onde você aceita. Pode
necessidades humanas não são puramente biológi- ser algo revoltante de início, mas se eles sentem
cas, e o padecimento pode resultar das complexas segurança que você vai estar lá toda semana, no
relações e interações de cada sujeito ao longo da mesmo dia, no mesmo horário, pronta para acolher,
vida. Prevenir é dispor com antecipação, preparar isso acalma e constrói o setting.”, não excluindo o
ou antecipar-se, dispor de maneira que evite dano olhar mais atento e a possibilidade de ser mais fle-
ou mal, dizer ou fazer antes que outro diga ou faça, xível em casos mais graves, como risco de suicídio.
realizar antecipadamente, ir ao encontro de (FER-

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
REIRA, 1980). Pensando assim, é impossível ga-
rantir a ausência de complicações futuras mas é
possível criar um ambiente propício visando evitar Este trabalho buscou tecer considerações a
danos maiores. Baseando-se na teoria winnicotiana respeito da clínica psicanalítica de orientação win-
e considerando a importância do ambiente, prepa- nicottiana em relação a maternidade de mães com

144 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 2


organização borderline. A pesquisa do conteúdo bi- tende-se que a psicanálise pouco pode fazer pela
bliográfico em companhia das entrevistas de duas prevenção, uma vez que não existe garantia que
profissionais de orientação psicanalítica winnicot- alguma intervenção seja de fato preventiva. Entre-
tiana nos trouxe luz acerca do tema, principalmente tanto, a partir da teoria do desenvolvimento de Win-
sobre o manejo terapêutico. nicott podemos pensar na importância do ambiente
na primeira infância e, por conseguinte, pensar em
Consideramos de suma importância o acompanha-
formas de sustentá-lo, na tentativa de aproximá-lo
mento psicoterápico com pacientes borderline, tra-
de ambiente suficientemente bom. Podemos consi-
tamento de primeira escolha para lidar com TPB
derar o tratamento da mãe com o transtorno no pro-
de acordo com American Psychiatric Association
cesso psicoterápico como uma tentativa de prevenir
(2001). Pensando no transtorno ligado à mater-
e preparar o ambiente para seu filho.
nagem, entendemos que ao estar inserida em um
ambiente facilitador, a mãe tem a chance de fazer o
mesmo por seu filho. Ambas entrevistadas concor- REFERÊNCIAS
daram sobre a importância de um ambiente fora do
setting que sustente essa mãe, tanto para adesão ABRAM, J. A linguagem de Winnicott: Dicio-
ao tratamento quanto para auxiliá-la na questão da nário das palavras e expressões utilizadas por
maternidade. Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro, RJ: Re-
Sabemos que em todo processo terapêutico deve- vinter Ltda. 2000.
-se respeitar o tempo e a singularidade de cada
paciente, mas ao levar em consideração algumas American Psychological Association (APA).
características do paciente borderline, como o medo Publication Manual of the American Psycho-
do aniquilamento e de ser invadido, o analista deve logical Association (5th ed.). Washington, DC:
estar ainda mais atento para não ser invasivo e cau- Author. 2001.
sar um conflito desencadeando defesas excessivas
e até impossibilitando o processo. É necessário que ARAÚJO, C. A. S. Winnicott e a etiologia do
haja delicadeza e grande plasticidade por parte do autismo: considerações acerca da condição
analista para que seja possível a solidificação do emocional da mãe. Estilos da Clínica, São Pau-
vínculo e a continuidade da análise, não excluindo lo, 2003.
a necessidade do verdadeiro interesse no processo
por parte do paciente. ARMONY, N. Borderline: uma outra normali-
dade (2a ed.). Rio de Janeiro: Revinter, 2010.
As manifestações do transtorno de personalidade
borderline possuem particularidades que geralmente ARMONY N. O homem transicional: para além
são frutos da formação do paciente como sujeito do neurótico & borderline. São Paulo: Zago-
na sociedade em que está inserido. É fundamental doni, 2013.
observar e compreender as particularidades de cada
paciente para um manejo clínico mais efetivo. Enten- BENHAÏM, M. Amor e Ódio: A ambivalência
demos o manejo clínico como a parte fundamental da mãe. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2007.
para tratar estes pacientes.
Retomando Winnicott (1958), é essencial que o te- BOWLBY, John. Formação e rompimento dos
rapeuta saiba distinguir o desejo da necessidade. laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes,
A noção de manejo está diretamente ligada às ne- 2006 a.
cessidades vitais e mais primitivas do paciente; já
o desejo está diretamente relacionado às fantasias CRANDELL, L. E., PATRICK, M. P. H., HOB-
que surgem apenas em momentos posteriores do SON, R. P. ‘Still-face’ interactions between
desenvolvimento emocional. O manejo clínico deve mothers with borderline personality disorder
sustentar essas necessidades para estruturação do and their 2-month-old infants. Br J Psychiatry
ego, para posteriormente lidar com os desejos da V. 183, 2003.
analisanda. Deve-se ainda estar atento para não
ceder aos seus desejos perdendo-se no foco do DIAS, Elsa Oliveira. A teoria winnicottiana do
processo, fato que ambas as entrevistadas concor- amadurecimento como guia da prática clínica.
daram sobre não ser tarefa fácil. Nat. hum., São Paulo, v. 10, n. 1. jun. 2008.
Devemos ainda destacar, tal como citou uma das DSM-III (APA). Diagnostic and Statistical Ma-
entrevistadas, a respeito da prevenção ao tratar uma nual of Mental Disorders, 3rd ed.. Washington,
gestante com organização borderline, ajudando-a
DC, American Psychiatry Association, 1980.
a preparar o ambiente com mais apoio afetivo. En-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 2 145


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