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Belo Horizonte
2015
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CDD:940.1
CDU:930.9(08)
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FICHA TÉCNICA
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AGRADECIMENTOS
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SUMÁRIO
“NO SERMON MUI GRAN GENTE QUE Y ERA”: OS FRADES PREGADORES NAS
CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII)............................................................................ 18
Bárbara Dantas
Prof. Dr. Ricardo da Costa
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RESUMO
ABSTRACT
The Christianity religiosity in the medieval period is strongly linked to using images for
teaching, remember or bring to a spiritual ascension, as Pope Gregory would remember in a
letter to an iconoclast bishop of the VII century. In our research, we'd like to rise
considerations about the presence of images in of Basilica Saint Francis of Assisi, building
that began on 1228, that didn't limit itself by being only the house of all Franciscans, but a
political cultural project of the construction of image of Saint of Assisi and the guiding
principle of the Order. The Basilica had been taken care by great names of the Italian painting
like Cimabue, Giotto and Pietro Lorenzetti and within the images that compose the walls of
the Basilica, painted in almost all your totality, we find three big categories: ornament-
images, narrative images and cult images. Within the narratives, are well known the works
that analyze the narrative of the life of the Saint of Assisi (in the upper Basilica) as the builder
of the definitive image of Francis, in this work we'd like to enlarge those limits and create
considerations about the presence and recurrence of these categories of images.
KEYWORDS: Basilica of Saint Francis. Medieval Image. Franciscan Order.
1 Introdução
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Graduando em História da Universidade Estadual de Londrina.
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Professora adjunta ao departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.
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O próprio sumo pontífice não somente honrou o santo a quem amara sumamente
enquanto [este] vivia, canonizando-o de maneira maravilhosa, mas também
enriqueceu com sagrados presentes e preciosíssimos ornamentos a igreja construída
em sua honra, em cujo fundamento o mesmo senhor papa colocou a primeira pedra.
[...] Mandou para a mesma igreja uma cruz de ouro, ornada com pedras preciosas, na
qual estava engastado o lenho da cruz do Senhor, como também ornamentos, vasos e
muitas coisas pertinentes ao ministério do altar com muitas alfaias preciosas e
solenes (3S, 72).
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Uma cruz de ouro, pedras preciosas, alfaias preciosas, riqueza. A Questão Franciscana
centraliza vários dos debates no primeiro século da Ordem dos Frades Menores e não ocupa
menor lugar na Basílica. Se ela não é rica em ouro, como serão, por exemplo, os riquíssimos
templos barrocos, o trabalho das pinturas da Basílica não valia menos: Giotto, Cimabue,
Pietro Lorenzetti, e outros que lá trabalharam “valiam ouro” na pintura italiana. Para
Gianfranco Malafarina, a pequena quantidade de relatos milagrosos dentro da faustosa
Basílica foi interpretada pelos frades contemporâneos como a não satisfação do Santo para
com a Basílica e todo o investimento nela (MALAFARINA, 2011: 12).
A Basílica de Assis é dupla. A Igreja Inferior abriga o túmulo do santo, foi projetada
especialmente para que fosse um grande sarcófago, recebendo os peregrinos e especialmente
os frades menores, por muito tempo o acesso ao túmulo foi restrito. A Igreja Superior, ampla
e alta funcionava como Basílica Papal, acolhia as grandes celebrações e os capítulos gerais.
Ambas, superior e inferior são ricamente pintadas em quase sua totalidade: paredes,
colunas, abóbodas, todas são preenchidas por narrativas, imagens de santo, estrelas, etc., aqui
realizamos somente considerações iniciais sobre as imagens figuradas no edifício, passamos
então para a sugestão da divisão desse grande corpus documental em três categorias: imagens
narrativas, imagens ornamento e imagens devocionais.
3 Imagens Narrativas
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Figura 1: Basílica Superior. Afrescos dos Ciclos de Cenas do Antigo e Novo Testamento (cima) e Ciclo da Vida
de Francisco (baixo)
As atribuições quanto à autoria destes ciclos são muito questionáveis: Vasari atribui o
grande ciclo de Cenas do Antigo e Novo Testamento à Cimabue, mas há registro neste ciclo,
por exemplo, da atividade de Jacopo Torriti e de outro artista, Mestre de Isaac. Quanto ao
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ciclo de Cenas da Vida de Francisco, a atribuição a Giotto e sua oficina é bem aceita no meio
dos historiadores. (MALAFARINA, 2011; WOLF, 2007; LUNGHI, 1996; NESSI, 1994).
O famoso ciclo de Giotto é formado por vinte e oito cenas consideravelmente bem
conservadas – se levarmos em conta os dois grandes terremotos de 1997 – e ocupa uma
sequência linear iniciando próximo do altar, ao lado direito da igreja, como assinala
Francastel:
das vinte e oito cenas, apenas três ilustram virtudes propriamente franciscanas. As
outras composições exaltam sete vezes milagres espetaculares, oito vezes cenas
honoríficas da vida do santo, seis vezes aspectos da mística oficial romana
(FRANCASTEL, 1973: 337).
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Figura 2: Abóbada: Tríade Franciscana e Francisco em Glória
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Assim com as igrejas góticas se abrem as multidões que se agrupam para ouvir os
sermões, as imagens apresentam-se com um caráter público, de disseminação em
escala maior. Afinal, o crente pode acompanhar o acontecido: a hagiografia[...] na
medida em que a vida do santo é ambientada com direito a testemunho em tempo
‘real’ (VISALLI, 2011: 229).
4 Imagens Ornamento
[...] os valores decorativos [ornamentais] são percebidos apenas en passant, sem que
o olhar se detenha especialmente sobre eles [...] Ele se inscreve, por excelência, na
dinâmica dos rituais, nos quais ele é um intensificador ao mesmo tempo sensorial e
motor [...] todo ambiente de culto recebia uma decoração, por menor que ela fosse
(BONNE, 2009:. 44).
No latim, a família do termo ornamento, ornare, não remete somente a uma decoração
superficial, secundária e dispensável, mas é essencial para que um equipamento cumpra
plenamente sua função. Uma imagem ornamento, na lógica da imagética medieval, só faz
sentido e oferece toda a sua percepção atrelada ao espaço em que se encontra. Vale lembrar,
que é a noção moderna de arte, do Renascimento, com suas pinturas em tela que
desterritorializam em muito a noção de imagem: uma tela não é fixa, pode ocupar uma sala de
estar, um restaurante, uma igreja, um museu, etc.
Dentro das imagens ornamento na Basílica pensamos em quatro grandes motivos que
tendem a se repetir: geométrico, natureza, céu estrelado e bustos de personagens.
Linhas retas, vértices, quadrados, a basílica decorada com vários ângulos. Essas
pinturas geométricas (Figura 3) dão a ilusão de que as paredes são ainda mais altas, de que
existem mais colunas, assim a repetição geométrica em muito faz a Basílica parecer mais
imponente.
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Figura 3: Ornamento com motivos geométricos. Igreja Inferior.
Figuras naturais, motivos florais e o céu estrelado lembram o fiel do espaço sagrado: o
espaço do templo precisava ser como um pedaço da esfera celeste na terra. As folhagens
(Figura 4), flores, não só embelezam esteticamente mas lembram o paraíso, o Jardim do Éden
“perdido” por Adão e Eva. O céu estrelado, nas abóbodas mais altas da Igreja Superior em
muito lembram as construções góticas, altíssimas, que queriam “tocar o céu”. Essa técnica, de
preencher os tetos com estrelas é característica da oficina de Giotto. A Capella degli
Scrovegni, em Pádua, recebeu o mesmo cuidado de céu azul estrelado.
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Figura 4: Ornamentos com motivo de natureza. Igreja Inferior.
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Figura 5: Abóbada ornamentada com personagens celestes. Igreja Superior.
5 Imagens Devocionais
Imagens devocionais estão atreladas ao culto. Essas imagens possuem maior caráter de
ser do que coisa. Jean-Claude Schmitt as chamou de imagens-corpo (1996), Jérôme Baschet
as chama de imagem-objeto (2006). Daniel Russo prefere o conceito mais abrangente, de
imagem-presença (2011).
Em suma, esses conceitos, imagem-corpo, objeto ou presença, referem-se a imagens
que têm seu pleno sentido não em si próprias, mas atreladas a locais e práticas. Não bastam
apenas seus aspectos iconográficos, mas outros documentos que relatam a prática dos fiéis
com relação a essas imagens, que nos permitem compreender seus usos e funções. Os relatos
de milagres em torno da imagem acrescentam práticas ligadas à mesma, ao mesmo tempo, a
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possibilidade, por exemplo, de movê-la a faz ter possibilidades diferentes de uso, como a de
procissão, o que não acontece com os afrescos. Imagens devocionais têm sua importância
crucial garantida não pelo fato de serem alguém, mas carregarem a possibilidade de, através
de uma manifestação sobrenatural, vir a ser alguém.
O Museu do Sacro Convento testifica a existência de uma grande quantidade de
imagens devocionais móveis na Basílica, entretanto, ao delimitarmos essa pesquisa em
imagens nas paredes o número diminui consideravelmente. Comum é, seja na Superior ou na
Inferior, umas como espécies de retábulo pintados nas paredes, figurando principalmente a
Virgem, Francisco e um terceiro personagem, por vezes o encomendador da obra.
O difícil acesso e produção de um levantamento completo das imagens na Basílica têm
restringido em muito uma análise maior dessas imagens devocionais, contudo, notamos que
são mais recorrentes na Basílica Inferior e encontramos principalmente imagens da Virgem
que lembram os ícones móveis, as Virgens entronizadas e/ou com o menino e uma ou outra
imagem do santo ao qual cada capela se dedica (Figura 6).
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Figura 6: Virgem com o Menino entre São João Batista e São Francisco. Capela de São João Batista. Igreja
Inferior.
Essas imagens nos oferecem chaves para pensar a Ordem como um jogo de poder, ou
ainda, desde um ponto de vista cultural, a devoção daqueles que a freqüentavam: do Papa e os
frades menores ao pobre fiel penitente.
6 Considerações finais
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pioneira de Chiara Frugoni completou apenas 30 anos. Ainda assim insistimos na importância
da Basílica para o período, para a Ordem e para a devoção.
Ao propor três grandes categorias de imagens não queremos engessar as possibilidades
de visão sobre essas imagens, mas, observações inicias tem demonstrado a boa funcionalidade
destas grandes categorias. Dependemos do acesso a documentação escrita, contratos com os
pintores e outras documentações para pensar várias das questões da Basílica, como por
exemplo, a famosa pintura de Cimabue na Basílica Inferior da Virgem entronizada com
quatro anjos e Francisco, essa imagem foi de tal forma apropriada que definiu a imagem do
santo, entretanto, é necessário para pensar a imagem saber o que havia ao redor dela, as atuais
pinturas ao redor foram pintadas por Giotto sobre essas imagens anteriores, entre as quais se
encontra esta de Cimabue, porque, por exemplo, apenas esta imagem foi mantida da pintura
primeira da parede? Questões a serem pensadas. Com olhar mais atento, sabemos que não há
imagem na Basílica totalmente dissociada das outras categorias: elas se completam. Imagens
que narram, ornam, levam à ascese espiritual, legitimam poder, reforçam as escolhas
espirituais da ordem, enfim, a rica e extensão figuração da Basílica certamente não preenche
todas as possibilidades de uso da imagem no Medievo, mas manifesta grande parte delas.
REFERÊNCIAS
BONNE, Jean Claude. Arte e environnement: entre arte medieval e arte contemporânea. In:
FONSECA, Celso Silva; RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; COELHO, Maria Filomena
(orgs.). Por uma longa duração: perspectivas de estudos medievais no Brasil. VII Semana de
Estudos Medievais. Brasília: Universidade de Brasília, 2010.
FRANCASTEL, Pierre. A arte italiana e o papel pessoal de São Francisco. In: A realidade
figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 323-340.
LUNGHI, Elvio. The Basilica of St. Francis at Assisi. London: Thames and Hudson, 1996.
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SCHMITT, Jean Claude. La culture de l’imago. Annales. Historie, Sciences Sociales, 51e
année. n. 1, 1996. p. 3-36.
TEIXEIRA OFM, Frei Celso Márcio (org.) Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis/RJ:
Editora Vozes, 2008.
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“NO SERMON MUI GRAN GENTE QUE Y ERA”: OS FRADES PREGADORES NAS
CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII)
Bárbara Dantas1
Prof. Ricardo da Costa2
RESUMO
ABSTRACT
With the gradual enrichment of medieval society in the Central Middle Ages, the vices also
are widespread. Avaritia, superbia, luxuria... The Septenary grew up. If the XI and XII
centuries were characterized by the dominance of the monks who lived for the ora et labora
from their cloister in rural monasteries, distinct was the XIII century. In the Medieval West,
swarmed the orders of preaching friars who, from the urban cathedrals, of the agglomerates
cities, have become masters of the intellectuality, but especially, dedicated and humble
disseminators of the Word of Christ and the teachings of the Bible. With the exempla (short
sermons with a simple and repetitive narrative Mnemotechnic in order to convince the
audience), Dominicans and Franciscans strove selflessly to win minds and spirits to the
practice of a more pious Christianity, nearest Vita Christi, from the poverty and simplicity of
the first apostles. Our thematic survey of the Cantigas, beyond our understanding-historical
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Graduanda de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista/UFES do Projeto
interinstitucional de pesquisa (UFES-UNESP/Marília) Manifestações estéticas da Arte Românica na
Península Ibérica Medieval (sécs. XI-XIII). E-mail: <babicovre@gmail.com>.
2
Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Site: <www.ricardocosta.com>.
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method (translate them directly from the original and realize an iconographic description of
two illuminations of 103 songs and 266), brought us interesting questions about the
relationship between text and context, between image and support, between Art and History.
Without Art, without Culture, you cannot think, rethink and recreate the Past, especially the
Middle Ages, fertile period in which so many artistic manifestations.
KEYWORDS: Medieval iconographic. Medieval Songs. Preaching Friars.
1 Introdução
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Figura 1: Margem inferior de uma página da Bíblia de Abbey. Bolonha, Itália (c. 1250-1262). Jean Paul Getty
Museum, Ms. 107, folio 224r. Têmpera e folha de ouro sobre pergaminho.
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2 O exército de Deus
As paredes da nave da Basílica na Figura 2 estão decoradas com frescos que contam a
história do Poverello, o monge mendigo, Francisco de Assis (1182-1226). A partir da entrada
do santuário, somos rodeados pela genialidade de Giotto. Os frescos cobrem as paredes
inferiores e, na parede superior, juntam-se aos vitrais do clerestório para narrar, de forma
plástica, os principais eventos da vida do santo em diversos quadros com iconografia
historiada (WOLF, 2007: 7). A dramaticidade das cenas não está presente apenas nas
expressões faciais dos personagens – característica estilística que alçou Giotto ao grau de
excelência na História da Arte –, mas também no panejamento das roupas, na movimentação
dos corpos e nas curvas arquitetônicas que indicam, retrospectivamente, uma perspectiva pré-
renascentista que ali nascia. Na imagem, São Francisco luta contra sete forças diabólicas,
possivelmente uma personificação dos sete pecados capitais. Sua espiritualidade e abnegação
deram-lhe forças para cumprir seu papel no combate aos vícios que o diabo incitava a
Humanidade a praticar.
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Figura 2: Giotto di Bondone (1267-1337). São Francisco expulsa o Diabo de Arezzo, c. 1296/97. Basílica
superior de São Francisco de Assis, Itália. Detalhe do afresco.
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3 O monarquismo ocidental
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Figura 3: Le Mont Saint Michel. Normandia, França. “Maravilha do Ocidente”. Século VIII.
A abadia da Figura 3 está no centro de uma imensa baía invadida pelas marés altas das
praias da Normandia. Construída e consagrada como igreja em homenagem ao arcanjo
Miguel, chefe da milícia celestial, no ano de 709. Uma comunidade de beneditinos se
estabeleceu no santuário em 966 e a igreja pré-românica foi construída antes do ano mil. No
século XI, a abadia (em estilo românico) foi fundada sobre um conjunto de criptas, no cume
da rocha e os primeiros edifícios monásticos foram construídos na parede norte. No século
XII, os edifícios do mosteiro foram ampliados. Após a conquista da Normandia, no séc. XIII,
o rei Filipe Augusto (1165-1223) mandou executar as obras de ampliação e ornamentação de
dois edifícios no estilo gótico (MICHEL, 2014). Sobreposição de estilos. No decorrer da
Idade Média, grande parte dos santuários, ao invés de serem substituídos por outros, sofreram
alterações, ampliações, ornamentações (DUBY, 1997: 71). Variações de contextos políticos e
estéticos. Evolução das técnicas e da riqueza dos materiais, em uma estrutura na qual a
religiosidade, soberana, imperava.
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3 Um novo tempo
Cristo e assim trazer para a salvação os que estão perdidos e em pecado. O gesto de São
Domingos, com a mão direita a admoestar os presentes, chamam-nos às obrigações como
militantes de Cristo.
Figura 4: Fra Angelico (1417-1455). A morte de São Domingos, 1434-1435, painel do retábulo da Coroação da
Virgem do altar do convento de São Domingos, Florença, Itália. Museu do Louvre, Paris.
O século XII foi um tempo de estupefação. Substanciais mudanças nas práticas das
ordens monásticas aconteceram. Não mais a clausura e os trabalhos manuais absorveriam
integralmente as forças dos pios monges. Eram novos tempos. A fome recuou. As cidades
cresciam. O comércio florescia e a riqueza começava a se propagar. Para os religiosos mais
conservadores, esta mesma riqueza começava a corromper e degradar a alma e, por fim,
induzir os fiéis ao pecado. A partir de então, a luta contra as forças diabólicas precisaria mais
do que orações solitárias e homilias suplicantes. Exército de Deus na terra, os monges
precisariam sair para enfrentar a vida secular, o mundo (DUBY, 1979: 170).
Maior ordem religiosa do século XI, Cluny foi invadida pela riqueza. Um luxo em prol
da magnificência do Paraíso. Suas abadias e mosteiros foram as mais majestosas obras de seu
tempo, pois se difundiram pelos campos de todo o Ocidente Medieval. Talvez por isso mesmo
é que alguns monges cluniacences tenham sido acusados de glutonaria e serem mais afeitos a
disputas políticas que a uma vida em prol da oração e da caridade. Talvez. A decadência da
vida monástica já se insinuava (DUBY, 1979: 122).
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Figura 5: Andrea da Firenze (1343-1415). Detalhe de O Triunfo da Igreja (c. 1367). Igreja de Santa Maria
Novella, Florença, Itália.
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Figura 6: El Greco (1541-1614). São Francisco em oração diante do crucificado (1587-1596), óleo sobre tela.
105 x 86 cm. Bilbao, Museu de Belas Artes.
Nas Cantigas de Santa María, os homens da igreja são representados com seus
atributos: tonsura e trajes litúrgicos, monásticos ou de frades. Sofrimento e fé. Voto de
pobreza. Desapego. A tonsura era um corte de cabelo no qual o topo da cabeça era raspado
para formar uma coroa, prática iniciada pelos religiosos da Igreja Católica ainda no séc. V.
Identificava, principalmente, os monges e frades (LEVENTON, 2009: 90-93).
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Figura 7: Cantigas de Santa María. Rei Afonso X de Leão e Castela. Séc. XIII. Códice de Florença. Cantiga
266: Como Santa Maria de Castroxerez guardou a gente que siia na ygreja oy[n]do o sermon, dũa trave que
caeu de çima da ygreja sobr' eles (METTMANN, 1989, v. III: 23).
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demônios e recolocou sua cabeça no corpo para que pudesse fazer a confissão. Os frades
reuniram uma grande multidão e o homem fez a sua confissão perante todos. Em seguida, a
cabeça se separou do corpo e o homem morreu. As pessoas, então, louvaram a Virgem
(OXFORD, 2014).
Na Cantiga 109, cinco demônios uniram forças para atormentar um homem. Ele partiu
para Salas (Santa Maria de Salas, Itália), mas os demônios o impediram de continuar sua
jornada. Dois franciscanos vieram e levaram-no para a igreja. Aquel ome, segund´aprendi, ta
que dous frades vẽeron y mẽores, que o levaron dali aa eigreja logo sem falir (METTMAN,
1989, v. II: 34). Os demônios tentaram recuperar o domínio sobre o infeliz com a intervenção
de um judeu, que, segundo eles, era seu servo – ca meus sodes e punnades de me servir (a
relação “demoníaca” com o povo eleito não era nova no imaginário cristão medieval (COSTA
e DANTAS, 2013: 507-514). No entanto, o judeu fugiu e os demônios saíram do homem
possesso. Todos deram graças à Virgem (OXFORD, 2014).
A Cantiga 123 mostra como Santa Maria guardou um frade mẽor dos diabos na ora
que quis morrer, e torcia-sse todo com medo deles. Um franciscano, que se juntou à ordem
quando criança e viveu uma boa vida, aproximou-se da morte. Bem com´em Bitoria guariu
hũa vez a um frade mẽor (METTMAN, 1989, v. II: 70). Moribundo, seu corpo tornou-se
contorcido e preto, incrivelmente feio. Outro frade acendeu uma vela em homenagem à
Virgem e colocou-a na mão do agonizante. A cor preta desbotou e o rosto do monge ficou
branco. No entanto, para a tristeza de seus confrades, ele morreu em poucos dias. A seguir, o
frade morto apareceu a dois irmãos. Explicou que, antes de morrer, o seu rosto estava preto
porque ele viu demônios, e que as velas fizeram os demônios fugir (OXFORD, 2014).
A Cantiga 239 relata o milagre ocorrido na cidade de Murcia. Um homem
atormentado por uma dor lancinante convocou um franciscano e fez sua confissão, mas não
mencionou seu engano: guardou, mas não devolveu o dinheiro que lhe confiaram. Chamade
um prest´, a quen sse confessou, deste mẽores un frade (METTMAN, 1989, v. II: 326).
Repetiu a mentira ante a imagem da Virgem. Imediatamente seu queixo caiu. Ele sentiu uma
dor lancinante e não conseguiu falar. Estava assim em tal tormento, pensando que morreria,
quando chamou o franciscano uma vez mais. Desta vez, ele admitiu que fez confissão falsa.
Perjúrio. Pediu ao frade para reembolsar o homem a quem ele devia dinheiro e, após três dias,
morreu (OXFORD, 2014).
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Figura 8: Livro de Horas com calendário, litanias e orações. O Sonho do papa Inocêncio III. Inglaterra, século
XIV. Abrigado na British Library3. Folio 8 verso. Iluminura de página inteira.
Na Figura 8, uma fina folha de ouro é o pano de fundo ideal para uma imagem
sagrada. Circunscrita ao limite marginal quadrilobado, há a representação do papa Inocêncio
III (c. 1160-1216) dormindo. O mundo onírico sempre esteve presente na História, na Arte
(COSTA, 2013). Em seu sonho, o papa suporta o colapso da basílica de São João de Latrão.
Em seu auxílio, dois dominicanos seguram os pináculos que desmoronam. Sustentáculo de
uma instituição que corria grave perigo, as ordens mendicantes foram fundamentais para a
expansão da Igreja. Sem pompa nem riqueza, ofereciam aos espíritos e aos corações dos
gentis homens o ideal de uma vida devota a Jesus.
Este papa notabilizou-se por sua luta pelo primado da Igreja Católica frente ao poder
secular e o combate às heresias. Em 1210, aprovou a criação da Ordem dos Frades Menores
(Ordo Fratrum Minorum). Os propósitos do IV Concílio de Latrão (1215) soaram como
música para os ouvidos de Domingos de Gusmão (c. 1170-1221), fundador da Ordem dos
Pregadores (Ordo Prædicatorum) (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 668). Ao instalar-se na
cidade de Toulouse, Domingos estabeleceu ali uma comunidade de clérigos. Sob sua
orientação, deveria formar religiosos mais devotos à salvação das almas, à conversão.
Domingos estreitou amizade com o bispo local, Fulco. Este, em 1215, aprovou a fundação da
Ordem dos Pregadores. Ambos então se dirigiram ao IV Concílio de Latrão para obterem a
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Disponível em:
<http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/record.asp?MSID=8850&CollID=8&NStart=2356>.
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caminho da salvação e 3) lutar contra os vícios”. Sua obra está dividida em cinco dos sete
dons do Espírito: temor, piedade, ciência, força e conselhos (BERLIOZ, 1994: 277-282).
6.1 A Ordem dos Pregadores nas Cantigas de Santa Maria: Cantiga 103
Figura 9: Uma das cópias das Cantigas de Santa María está abrigada na Biblioteca do complexo de El Escorial,
Madri – Espanha com o nome de “Códice Rico” 4. A imagem mostra a Cantiga 74: Como Santa Maria quiser
deffender, non lle pod´o demo niun mal fazer (METTMAN, 1989, v. I: 242). 1. Notações musicais; 2. Texto da
cantiga; 3. Iluminura historiada de página inteira; 4. Verso do fólio; 5. Frente do fólio; 6. Letra capitular
ornamental; 7. Número da cantiga em algarismos romanos; 8. Letra capitular; 9. Título da cantiga; 10. O refrão
da cantiga se repete nos textos em vermelho.
Nas Cantigas de Santa María todo relato de milagre ou louvor é acompanhado por
uma iluminura historiada de página inteira, na qual o texto é representado iconograficamente
(LEÃO, 2008: 09). A estrutura, a forma e o estilo variam em poucos detalhes. Manteve-se a
mesma norma para a composição de todas as imagens do códice. A estrutura é formada por
seis vinhetas que representam a história de cima para baixo, da esquerda para a direita. As
formas ornamentais são compostas por margens com figuras em formato de cruz grega ou flor
quadrilobada, separadas por imagens heráldicas dos reinos de Castela e Leão (Castelo e Leão)
e do Sacro Império Romano Germânico (águia). O estilo gótico francês está presente nos
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A PUC-Minas adquiriu um fac-símile de toda a série documental deste manuscrito (LEÃO, 2008: 07).
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Figura 10: Rei Afonso X de Leão e Castela. Século XIII. Biblioteca de San Lorenzo, Complexo de El Escorial,
Madri, Espanha. Cantiga 103: Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da
passarỹa, porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso (METTMANN,
1989, v. II: 16).
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Nele, notemos que o princípio máximo da ordem, salvar almas em Cristo, está
textualmente representado, pois, uma alma salva, viveria no Paraíso, na Jerusalém Celeste.
Quimera de todo cristão, sobretudo de um dedicado dominicano, ver, viver no Paraíso seria
uma maravilhosa e maior recompensa por sua vida abnegada e dedicada a aumentar o rebanho
de Deus.
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Figura 117: São Boaventura. Lenda e vida de São Francisco de Assis. Florença, Itália. Abrigado na British
Library5. Folio 26, frente. Detalhe da iluminura. Letra capitular historiada.
Rodeado de rostos angelicais, São Francisco de Assis surge dos céus para o seu mais
renomado biógrafo, São Boaventura (1221-1274) na IMAGEM 11. Sua biografia, a Legenda
Major, foi a única aceita pela Igreja, a partir de 1266 (VAUCHEZ, 1994: 246). Com a mão
direita, e através de um facho de luz, Francisco conduz suas palavras à boca do escritor,
extasiado com sua visão celestial. Já nomeado cardeal, Boaventura está vestido com um
refinado manto solene sobre sua veste de frade franciscano. Sua mitra6 – insígnia de sua
condição de sacerdote – pode ser apreciada em uma das prateleiras. Como um elo entre os
dois espaços sagrados, Santo Tomás de Aquino (1225-1274), frade dominicano, irrompe na
sala. É seguido por outro dominicano e um franciscano. São Boaventura e Santo Tomás de
Aquino têm, em torno de suas cabeças, halos de luz dourada, símbolos de suas santidades.
A força das duas principais Ordens Mendicantes da Idade Média vinha do respeito
mútuo e do trabalho em prol de uma Igreja Católica forte e libertadora. Com sua força
expansionista, franciscanos e dominicanos reescreveram a história do ocidente. Em vários de
seus aspectos e matizes. Com eles, a Europa ganhou o mundo. Por eles, o Cristianismo
triunfou Modernidade adentro.
Cantiga 264. “E por este miragre deron grandes loores todos comũalmente, maoyores
e mẽores, aa Virgen bẽeita, que aos peccadores acorr´ e a coitados nas coitas noit´ e dia”
(METTMAN, 1989, v. III: 18).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Disponível em:
<http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/record.asp?MSID=8290&CollID=8&NStart=3229>.
6
Mitra: chapéu cônico, nas cores branca e dourada, fendido na parte superior, com duas fitas pendentes.
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39
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REFERÊNCIAS
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Globo, 2006.
BOUCHER, François. A Europa dos séculos XII a XIV. In: História do Vestuário no
Ocidente. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 137-151.
COSTA, Ricardo da. Las difeciones de las siete artes liberales y mecánicas em la obra de
Rámon Llull. Anales del Seminario de la Historia de la Filosofia. v. 3. Madrid: 2006. p.
131-164.
______. Las traducciones en el siglo XXI de los clásicos medievales – tensiones, problemas y
soluciones: el Curial e Güelfa. eHumanista/IVITRA, 3 (2013)
University of California at Santa Barbara, USA, p. 325-346. Disponível em:
<http://www.ricardocosta.com/artigo/las-traducciones-en-el-siglo-xxi-de-los-clasicos-
medievales-tensiones-problemas-y-soluciones>. Acesso em: 19 mar 2014.
______ & DANTAS, Bárbara. 'A falsidade dos judeus é grande': uma representação de judeus
nas Cantigas de Santa Maria (séc. XIII). Atas do X Encontro Internacional de Estudos
Medievais (EIEM) da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) – Diálogos
Ibero-americanos. Brasília: ABREM/PEM-UnB, 2013, p. 507-514. Disponível em:
<http://www.ricardocosta.com/artigo/falsidade-dos-judeus-e-grande-uma-representacao-de-
judeus-nas-cantigas-de-santa-maria-sec>. Acesso em: 15 mai 2014.
DUBY, Georges. História artística da Europa: a Idade Média. Tomo I. São Paulo: Paz e
Terra, 1995.
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40
!
LEÃO, Angela Vaz. Novas leituras, novos caminhos: Cantigas de Santa Maria de Afonso X,
o Sábio. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008.
METTMANN, Walter. Cantigas de Santa Maria. Vol. I, II, III e IV. Madri: Castalia, 1989.
MORRISON, Elizabeth. Far from marginal: images in the margins of the Abbey Bible.
Disponível em: <http://blogs.getty.edu/iris/far-from-marginal-images-in-the-margins-of-the-
abbey-bible>. Acesso em: 20 mar 2014.
SÃO BENTO DE NÚRSIA. Regra de São Bento (480-547). Trad.: Dom João Evangelista
Enout, OSB). Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/regra-de-sao-
bento-c-530>. Acesso em: 17 abr 2014.
SCHMITT, Jean Claude. Dicionário temático do ocidente medieval. Vol. I e II. Bauru:
Edusc, 2006.
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41
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RESUMO
A presente comunicação tem como finalidade tratar sobre a relação entre a ordem de Cluny e
as peregrinações a Santiago de Compostela. Buscaremos ao longo de nossa apresentação
evidenciar que a ordem de Cluny foi uma importante promotora das peregrinações a Santiago
de Compostela. Além disso, nota-se também que a respectiva ordem encontrou na Hispânia
cristã um espaço propício para o seu desenvolvimento, principalmente, através das rotas de
peregrinação, dentre essas, o chamado caminho de Santiago onde então Cluny fundou
hospitais e mosteiros para acolher os peregrinos. Logo, a ordem de Cluny utilizou-se da
peregrinação a Santiago de Compostela como uma fonte de prestigio e dessa forma, buscou
promovê-la na Cristandade.
PALAVRAS-CHAVE: Cluny, peregrinação, caminho de Santiago.
ABSTRACT
The present communication intends to deal with the relationship between the Order of Cluny
and the pilgrimages to Santiago de Compostela. Along our presentation we will seek to evince
that the Order of Cluny was an important promoter of the pilgrimages to Santiago de
Compostela. Furthermore, it is also noticed that the respective order found in Christian
Hispania a propitious space for its development, specially through pilgrimage routes, among
which was the so called Route of Santiago, where the Order of Cluny founded hospitals and
monasteries to shelter pilgrims. Therefore, the Order Of Cluny made use of the pilgrimage to
Santiago de Compostela as a prestige source and thus sought to promote it in Christianity.
KEYWORDS: Cluny, pilgrimage, route of Santiago.
1 Introdução
Portanto, ao longo de nossa pesquisa notamos que a ordem de Cluny teve importante
participação na difusão do mito de Santiago, assim como Cluny encontrou na Hispânia cristã
espaço profícuo para o seu desenvolvimento. Logo, o intuito de nossa comunicação é
apresentar essa relação entre a Ordem de Cluny e as peregrinações a Santiago.
partir do século VIII, ou seja, após a conquista da península Ibérica pelos mouros e com o
desenvolvimento da Guerra de Reconquista que os escritos que fazem menção à Santiago se
tornaram recorrentes e podemos afirmar que foi entre os séculos XI e XII que o mito de
Santiago se consolidou na Cristandade.
Dessa forma, os peregrinos estrangeiros, ou seja, aqueles provindos de fora das
fronteiras da Península Ibérica começaram a visitar Compostela com maior assiduidade a
partir do século XI (MARTINEZ DIEZ, 2003: 207). Portanto, é necessário assinalar que até
então os fiéis que visitavam Compostela eram, principalmente, os próprios hispanos e que a
disseminação do culto ao apóstolo fora das fronteiras da Hispânia está relacionada à
promoção do mito de Santiago pela Igreja e monarcas hispânicos. Conforme apresentamos na
Introdução, além desses elementos é importante enaltecer o papel desempenhado por Cluny
no que diz respeito à promoção das peregrinações, por exemplo, a proteção oferecida aos
peregrinos por parte dos hospitais e mosteiros que foram criados ao longo das rotas de
peregrinação por Cluny, é um indício dessa relação entre a Ordem e o Caminho de Santiago.
Quanto ao apoio dos monarcas às peregrinações podemos afirmar.
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45
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região da Hispânia. Segundo o Guia do Peregrino4, “Castela está cheia de tesouros, abunda
em ouro e prata, tecidos e cavalos fortíssimos e é fértil em pão, vinho, carne, peixe, leite e
mel” (LE GUIDE, 1969: 63).
Quanto aos milagres realizados por Santiago relatados no Livro dos milagres (um dos
livros que compõe o LSJ), nota-se que estão relacionados às curas milagrosas, ressurreição e
libertação de prisioneiros. Além disso, observamos que os contemplados com tais milagres
em geral eram pessoas de origem humilde como peregrinos pobres e camponeses. Aliás, a
própria condição dos peregrinos é relatada no LSJ.
E com sua mulher e dois meninos, montados em sua égua chagaram até a cidade de
Pamplona. Mas ali faleceu sua mulher e o injusto estalajadeiro ficou injustamente
com os recursos que o cavaleiro e sua esposa haviam trazidos consigo. Desolado
pela morte dela e despojado totalmente do dinheiro e de égua a qual levava os
meninos, continuou a sua marcha com muito sacrifício (LIBER SANCTI JACOBI,
1998: 121).
Esses episódios onde os peregrinos eram roubados eram recorrentes, tanto que com o
decorrer do tempo e o desenvolvimento das peregrinações, os monarcas, a ordem de Cluny e a
própria Igreja de Compostela (a mando de seu bispo, Diego Gelmirez) fundaram hospitais ao
longo dos caminhos de peregrinação para abrigar os peregrinos de forma mais adequada e
com isso também promover as peregrinações.
Por fim, após esta breve exposição sobre as peregrinações a Santiago de Compostela
devemos discorrer sobre outra questão fundamental e inerente a esse trabalho que é a ordem
de Cluny e sua participação no que diz respeito ao apoio a essas peregrinações.
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48
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cristãos buscavam uma aproximação com o restante da Europa. Somando-se a isso, Cluny
teve um importante papel no que diz respeito à substituição do rito moçárabe pelo romano5.
Em relação à participação de Cluny na Reconquista, Derek Lomax, afirma que Cluny
foi responsável em difundir entre os cristãos que viviam além das fronteiras hispânicas, a
Reconquista (LOMAX, 1984: 79). Ainda sobre esta questão Paul Rousset, ressalta: ”Desde o
início do século XI, o papado e a feudalidade francesa, auxiliados e incentivados por Cluny
vieram em socorro da Espanha” (ROUSSET, 1980: 29). Em síntese, segundo esses
historiadores, Cluny teria desempenhado função vital na Reconquista, que foi incentivar os
cristãos a participarem da guerra contra os muçulmanos na Hispânia.
No entanto, trabalhos historiográficos mais recentes trazem outra perspectiva acerca
da importância de Cluny na Guerra de Reconquista. “Antigamente, os historiadores davam
grande importância ao papel de Cluny na reconquista espanhola e na formação do conceito de
guerra santa” (FLORI, 2011:277).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Em meados do século XI quando a Igreja romana iniciou seu projeto de reformas, a situação da referida
instituição na região da Península Ibérica era similar às demais da Cristandade. Ou seja, por mais que a Igreja
da Hispânia apresentasse algumas peculiaridades em relação à romana (como seguir uma liturgia distinta), na
Hispânia a Igreja também era corrompida por uma crise interna, assim como contava com a intervenção do
mundo laico em seus assuntos. Logo, o programa de reformas iniciado em Roma, que acarretaria numa série
de consequências para a Cristandade medieval, também contribuiu para importantes mudanças na região da
Península Ibérica. Dentre as principais mudanças podemos citar a introdução da liturgia romana em alguns
reinos em substituição ao moçárabe (visigótico). De acordo com nossa pesquisa de mestrado, a introdução do
rito romano foi possível devido a um jogo de interesses entre os monarcas hispânicos que almejavam com
isso apoio do papado para a Guerra de Reconquista e a Igreja romana buscava ampliar sua esfera de
influência sobre aquela região da Cristandade.
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contexto (meados do século XI e início do XII) que pessoas ligadas a Cluny começaram a
ocupar cargos tanto na Igreja de Compostela quanto na Santa Sé. Logo, é importante observar
que as realizações do bispo Diego Gelmirez à frente da Igreja de Compostela tiverem grande
apoio de Cluny. O capítulo da Historia Compostelana que trata da viagem de Diego Gelmirez
a Roma para receber a dignidade do Pálio em 1104 ilustra essa relação entre os monges e o
bispo de Compostela.
Ainda sobre a relação entre Cluny e a Igreja de Compostela, Francisco Singul assinala
que a própria dignidade do Pálio recebida por Gelmirez em 1104 contou com o apoio de
Cluny e destaca que o Papa que fez tal concessão era ligado à Cluny.
Outro consenso no que diz respeito aos interesses de Cluny, Gelmirez, e os monarcas
cristãos no que se refere às peregrinações jacobeias, foi a proteção oferecida aos peregrinos.
A hospitalidade é um dos fundamentos essenciais da regra criada no século VI por São Bento,
pois, tal exercício é um atributo inerente a todo cristão, “que todos que ali chegarem, que
sejam recebidos como Jesus Cristo”. (VÁSQUEZ DE PARGA, L., LACARRA, J.M. e URÍA
RÍU, J, 1948: 283). Além disso, devemos nos atentar para a seguinte questão, o que fez de
Compostela um dos maiores centros de peregrinação do Ocidente medieval ou mesmo na
atualidade é: “A carinhosa e proverbial hospitalidade do caminho de Santiago, protagonizada
tanto pelos poderosos, como pelos humildes, é um dos aspectos que sustentam o fenômeno da
peregrinação jacobeia” (SINGUL, 1999: 84).
A partir do exposto fica evidente que Cluny teve grande influência na história da
Hispânia cristã entre os séculos XI e XII. Dessa forma, uma das razões que tornaram
Compostela um importante centro de peregrinação, segundo nossas hipóteses foi em
decorrência das ações da ordem de Cluny que ao promover as peregrinações acabou
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Vou, com a ajuda de Deus, enviado ao papa Calixto pelo bispo de Compostela para
exaltar a igreja de Santiago, para que a condição de metrópole de Braga ou Mérida
seja transferida para a igreja de Santiago. Ademais, suplicarei ao papa Calixto por
minha sede, a igreja do Porto, a qual os bispos de Braga e Coimbra roubam
paróquias da própria diocese, e para que com justiça devolvam essas paróquias que
injustamente foram arrebatadas (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:322).
Quero que a partir desse momento o abade de Cluny seja o meu mais importante
amigo e que os monges cluniacenses sejam meus amigos íntimos. Os assuntos mais
importantes da igreja romana, que tiverem de ser resolvidos nessas regiões, serão
resolvidos principalmente com os vossos conselhos [...] (HISTÓRIA
COMPOSTELANA, 1994:326).
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6
A rainha Urraca (1109-1126), mãe de Alfonso VII (1126-1157), não permitiu que Diego visitasse o
pessoalmente o papa Calixto II (1119-1124). A justificativa dos autores da Historia Compostelana era que a
rainha temesse que Diego fosse à França entregar o reino de “Espanha” aos parentes de Alfonso, pois, o Papa
Calixto era tio de Alfonso. Entretanto, a justificativa utilizada por Urraca é que naquele momento
Compostela não poderia ficar sem o seu bispo devido à ameaça dos muçulmanos que estavam se
aproximando da cidade. Nessa mesma época Hugo, bispo da Igreja do Porto, estava de passagem pela cidade
de Compostela e foi incumbido de levar tal solicitação junto ao papa que na época encontrava-se em Cluny.
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antiga solicitação de Diego Gelmirez. A falta deste último seja no concílio em Reims ou agora
em Cluny mais uma vez foi utilizada como desculpa para que o papa não realizasse o desejo
do bispo compostelano. Porém, agora o abade de Cluny interveio diretamente em tão nobre
causa.
[...] sem dúvida o pacto de caridade selado entre Calixto e o abade de Cluny
favoreceu nossa causa e produziu frutos benéficos para nossa igreja. O abade de
Cluny ao escutar as razões do bispo do Porto, se apresentou ao papa Calixto e disse:
“Oro suplico, pai santíssimo, a sua majestade em exaltar a igreja de Santiago e
aceitar o justo desejo de seu bispo e amigo seu. O que os seus antecessores, Pascual,
Gelasio, teriam realizado se não houvesse faltado tempo e oportunidade, faça você
mesmo com a ajuda de Deus. O próprio Santiago lhe solicita a metrópole, ao menos
realize o desejo de Santiago. Ademais, a igreja de cada um dos apóstolos, em
qualquer lugar onde esteja, tem poder e, é elogiada com dignidade eclesiástica.
Apenas a igreja de Santiago, escondida na parte ocidental, se contenta apenas com o
episcopado. E assim se não está em sua mente transferir a metrópole de Braga para a
igreja compostelana ou o arcebispado, que faz algum tempo, na época do rei godo,
Teodomiro esteve na igreja de Lugo, ao menos conceda para sempre a igreja de
Santiago a metrópole da igreja de Mérida que assolada pela força dos sarracenos,
perdeu o culto da fé cristã e assim enalteça a igreja do Apóstolo com a dignidade de
arcebispado. (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:328, 329).
Após dizer essas palavras ao papa, o abade, juntamente com o bispo Hugo e as demais
pessoas ali presentes, como alguns nobres que conheciam a importância do apóstolo e da
Igreja de Santiago assim como de seu bispo, se baixaram aos pés de Calixto e pediram por
misericórdia que honrasse a Igreja de Santiago com a transferência do arcebispado da Igreja
de Mérida para Compostela.
Quem seria tão duro que não concedera a tão dignos desejos do abade de Cluny,
bispo do Porto e tão importantes príncipes borgonheses que se encontravam
prostrados no chão? Também os mesmos cardeais rogaram com insistências suplicas
ao Papa que a metrópole de Mérida fosse transferida para a igreja de Compostela.
Então o Papa tomando a palavra disse: “Levantem-se, queridos filhos de Cristo,
levantem-se. O importante que o que pediram é digno que consigas, a igreja de
Compostela, mediante a Deus será honrada com a dignidade metropolitana da igreja
de Mérida (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:329, 330).
Assim, pois, para maior veneração do apóstolo Santiago com cujo glorioso corpo
vossa igreja se honra e por especial amor a sua pessoa, pelas suplicas de nosso
sobrinho Alfonso, rei da Espanha, dos nossos irmãos Hugo, bispo do Porto, e Poncio
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4 Considerações finais
REFERÊNCIAS
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RESUMO
ABSTRACT
Contemplating cristomorfismo and his constituency in the history of images, this paper
proposes a reflection about the concepts of time, image and movement-internal and external-
starting from the look of paintings, frescoes, reliefs and icons and its ramifications for the
hierarchy of the divine powers and the paralysis of the images.
KEYWORDS: Images. Movement. Cristomorfism.
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1
Professora Associada I do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes, pesquisadora sobre memória,
imagens e pedagogia visual.
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1 Do Uno ao Trio
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2
Do grego plasma.
3
Concilio de Niceia, em 325.
4
Evangelho de São João, 1: 14. Para todos os textos bíblicos aqui citados, escolhi a Bíblia de Jerusalém,
edição brasileira de 2002.
5
TERTULIANO. Adversus Praxean.
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fórmula esta que coloca as três pessoas num plano de igualdade, porém nomeando-as na
ordem que coloca o Pai o primeiro lugar, sem, no entanto, diminuir a unidade dos três. Deste
versículo deriva a parte sacramental do batismo, que vem completado com uma tríplice
imersão. O batismo é o lugar primordial da transmissão da fé trinitária dos cristãos.
Finalizando, o Novo Testamento contém uma série de afirmações sobre a relação de Jesus e
Deus como: “Eu e o Pai somos uma coisa só” (João 10: 30) e o breve anúncio do kerigma6
com dois ou três termos: fórmula binária – Eu creio em Deus Pai e seu único filho, Jesus
Cristo – e fórmula ternária – Creio em Deus Pai, seu filho Jesus e no Espírito Santo.
A palavra “trindade” (trinitas ou triunitas ou trina deitas) aparece em Tertuliano por
volta do ano 220 no seu Contro Prasea, no início do século III. Santo Agostinho usará
habitualmente a expressão Deus Trinitas. Os teólogos gregos, outrossim escrevem “santa
tríade” (e hagia Trias). O termo trias, aplicado a Deus surge pela primeira vez em Teófilo de
Antiochia, ao final do século II, mas o uso do termo difunde-se somente depois de Atanásio
(295-373) entre os padres capadócios. Porém é Irineu de Leão (130-40 a 202-8) talvez o
primeiro padre católico que oferece uma exposição exaustiva sobre a fé trinitária. Distingue
dois níveis expositivos, o da teologia – que considera Deus em si e seu mistério - e o nível da
economia- que considera Deus e suas relações com a criação e sua história. Irineo vê em
Deus o autor de um plano de salvação para a humanidade e, em consequência, ocupa-se de
sua ação no tempo, de suas aparições (teofania) e das missões das pessoas divinas (encarnação
do Verbo, emanações do Espírito). De Irineu provem o adágio que contém a melhor expressão
daquilo que podemos definir como “a regra do cristomorfismo da representação de Deus” na
arte (capítulo III, Conclusões): “O Pai é o Invisível do Filho e o Filho é o Visível do Pai”.
Este adágio não se refere absolutamente aos pintores e queria dizer que, em primeiro lugar,
Jesus Cristo, enquanto filho, revelado visível através da encarnação, revela o Pai – que não
encarnou, portanto continua invisível; por outro lado, a visibilidade de Jesus não diz tudo dele
nem mostra tudo do Pai. Esta fórmula estabeleceu uma ligação entre a teologia cristã da
história da salvação – que assegura que tudo que Deus pretende dar aos homens o faz através
de Jesus Cristo e o problema da representação cristã de Deus na arte.
No primeiro Concílio de Nicéia, em 325, foram definidos e promulgados como
ortodoxia (fe retta), a divindade de Jesus Cristo. Nos Concílios ecumênicos sucessivos, e
depois nos Sínodos de Toledo (sobretudo no quarto em 633 e no décimo primeiro em 675), no
Concílio de Laterano IV (1215) e nos “Concílios de União” (Lyon II, 1274 e Ferrara-Florença
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
Do grego kerux: arauto, é o coração do anúncio dos Evangelhos, que precede a uma revelação
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Restam poucas imagens que mostram a trindade triândrica, ou seja, imagens que
representam a trindade como três homens distintos, que dividem o mesmo plano da cena e
gesticulam de forma semelhante. Estas imagens são idênticas e olham à frente para o presente
ou por vezes as duas figuras laterais olham ligeiramente para a figura central. Estão
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59
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circunscritas no mesmo tempo, como unidades identicas que contemplam o eterno instante
dos acontecimentos. Consubstanciais, estão assentadas para expressar que, juntas, formam um
único deus: é a obrigação protocolar da frontalidade hierárquica. Assim, o tempo contíguo do
movimento da figura única que ocupa espacialmente o mesmo plano é um abarcar lento de
passado, presente e futuro, quando é evocada junto à imagem seu poder de cura e do plano de
salvação. O movimento também ondeja, modifica-se e toma velocidade se entendermos o
tempo como uma fração do espaço. Assim percebendo as tríades triândricas, entendemos
quando Agostinho (1964: XI, 28,1) escreve:
Mas como o futuro, que ainda não existe, pode diminuir ou esgotar-se? Como o
passado que não existe mais pode aumentar, senão porque no espírito, autor dessas
transformações, se realizam três ações: o espírito espera, está atento e se recorda. O
objeto de sua espera passa pela atenção e se transforma em lembrança.Com efeito:
quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Contudo, a espera do futuro já está
no espírito. E quem poderá contestar que o passado já não existe? Contudo, a
lembrança do passado ainda está no espírito.
Regidas pelas concepções aristotélicas, estas imagens existem sob a égide da definição
de tempo, pois “o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois”
(ABBAGNADO, 2003). Nas trindades com três faces que vemos aqui, há o alinhamento, num
fio condutor cronológico do instante presente ad aeternum. Movem-se em si e entre si, no
espaço linear da aparição tinitária.
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60
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Figura 1: Cristo com três faces. Escola holandesa. 1500
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Figura 2: Antônio Martini di Atri. Duomo di Atri. 1350.
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Figura 6: Trindade. Igreja de São Nicolau. Abside. Giornico, Suíça. Século XIII.
REFERÊNCIAS
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Rafael Bosch1
RESUMO
Em 1131, Bernardo de Claraval fez uma visita oficial ao Paracleto, abadia sob influência
direta de Pedro Abelardo. Nesta visita, Bernardo mostrou-se preocupado com a liturgia ali
praticada. Em resposta a essa preocupação, Abelardo enviou-lhe uma carta, na qual discute o
binômio tradição e novidade no ambiente monástico, sobretudo na então jovem ordem
cisterciense. O conflito entre ambos é um tema ainda muito discutido, sobretudo em seu
aspecto teológico, no que concerne às interpretações sobre a Trindade e o perdão. Esta
comunicação, no entanto, pretende discutir uma faceta da dimensão monástica desse conflito.
PALAVRAS-CHAVE: Pedro Abelardo. Bernardo de Claraval. Monaquismo. Ordem
Cisterciense.
ABSTRACT
In 1131, Bernard of Clairvaux made an official visit to the Paraclete, abbey under the direct
influence of Peter Abelard. On this visit, Bernard was concerned with the liturgy practiced
there. In response to this concern, Abelard sent him a letter, in which he discusses the
binomium tradition and novelty in the monastic environment, aiming particularly the young
Cistercian order. The conflict between them still is a highly debated topic, especially on its
theological aspect, regarding interpretations of the Trinity and forgiveness. This
communication, however, aims to discuss a facet of the monastic dimension of this conflict.
KEYWORDS: Peter Abelard. Bernard of Clairvaux. Monasticism. Cistercian Order.
1 Introdução
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Mestrando em História Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. E-mail para
contato: <rafael.bosch@outlook.com>.
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se nos atermos à lista de heresias que Bernardo imputou a Abelardo perceberemos que elas
versam justamente sobre isso2. No entanto, raramente se menciona que ambos tinham
concepções distintas a respeito do monaquismo.
É exatamente sobre esse ponto que essa comunicação buscará se aprofundar. Para isso,
analisaremos uma carta que Abelardo enviou à Bernardo em que discutiu acerca de inovações
e tradições no ambiente monástico. Trata-se de um texto que sobreviveu apenas em um
manuscrito (BnF lat. 13057) e deve ter sido escrito não muito depois de 28 de novembro de
1131, data que voltaremos a ver. Ele foi pouco estudado pela historiografia e o que se sabe até
o momento é que Bernardo, infelizmente, não o respondeu. No entanto, a partir de outros
textos produzidos no período, é-nos possível supor como a epístola de Abelardo foi recebida.
Nossa análise consistirá, dado ao tempo limitado que dispomos, de uma simples leitura
do documento em questão, buscando realizar uma análise semântica de termos chaves e
pensa-lo em seu contexto de produção. Portanto, comecemos por esse para, enfim,
adentrarmos à análise da carta de Abelardo.
2 Antecedentes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Sobre a lista de heresias e à sua formulação, remetemos a: MEWS, 2005: 226-250.
3
Para uma análise mais atenta ao cisma em questão, remetemos a: RUST, 2011: 301-369.
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68
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(ABAELARDUS, 1983: 239)8. Para Bernardo, Abelardo, mentor da abadia, poderia ser visto
como um inovador nesses assuntos (ABAELARDUS, 1983: 239)9. É este comentário que
motiva a carta de Abelardo a Bernardo, nela ele buscará justificar a sua opção litúrgica e ainda
discute sobre a natureza da inovação e da tradição no ambiente monástico. É nela que nos
deteremos agora.
Nos parece possível dividir a carta em duas partes bem definidas. Uma primeira parte
em que Abelardo justifica a alteração na liturgia praticada no Paracleto, do qual ele era
responsável, e uma segunda em que se discute a natureza da inovação e da tradição no
ambiente monástico.
Mas que alteração é essa que incomodou Bernardo e motivou Abelardo a escrever uma
carta? Abelardo ordenou a Heloísa que a oração Pai-Nosso fosse alterada de modo que a
passagem “o pão nosso de cada dia” fosse substituída para “o pão substancial”. A justificativa
dessa alteração é simples. Segundo Abelardo, essa oração nos chegou por duas vias: Mateus e
Lucas. O primeiro, um apóstolo e evangelista, esteve presente na primeira vez que a prece foi
dita. O segundo foi discípulo de Paulo e, por isso, não a ouviu dos lábios de Cristo. Sendo
assim, para Abelardo, está claro que a versão de Mateus é mais completa e correta do que a de
Lucas. E na sua versão há “o pão substancial” ao invés de “o pão nosso de cada dia”10
(ABAELARDUS, 1983: 240-241).
Em sua defesa, Abelardo sustentou que não é uma questão de acusar Lucas de
falsidade, mas sim que a palavra “substancial” expressa melhor a excelência do pão na
oração. Além disso, os gregos – que para Abelardo, se baseando em santo Ambrósio, possuem
mais autoridade – sabiamente ainda utilizavam a versão de Mateus. Deste modo, Abelardo
afirmou que “se eu não estou enganado, eu devo ser acusado de restauração ao invés de
inovação, e não devo ser censurado por presunção, já que neste assunto eu estou seguindo
tanto o Senhor quanto os apóstolos e a manifesta sabedoria dos gregos” (ABAELARDUS,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
“aliquantulum commotum esse, quod in oratorio illo oratio Dominica non ita ibi in horis quotidianis sicut
alibi recitari soleret”.
9
“et cum hoc per me factum crederetis, me super hoc quasi de novitate quadam notabilem uideri”.
10
Segundo o evangelho de Mateus, o trecho da oração é: panem nostrum supersubstantialem da nobis hodie
(MATEUS, 6:11). Já no evangelho de Lucas, a oração é apresentada da seguinte maneira: panem nostrum
cotidianum da nobis hodie (LUCAS, 11: 3) [destaques nossos].
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70
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1983: 242-243)11. E ainda se defendeu dizendo que não estava ordenando ou pedindo para que
alguém o seguisse. “Deixe que cada um siga seu próprio entendimento, mas que se lembre,
seja lá quem for, que a prática comum não deve ser posta antes da razão e que o costume não
é preferível à verdade” (ABAELARDUS, 1983: 243)12.
Notemos como a novitas foi aqui interpretada. Em primeiro lugar, Bernardo teria
ficado commutatum com ela, incomodado ou perturbado. Em seguida, ao saber que poderia
ser visto como um inovador, Abelardo se viu na necessidade de escrever uma excusatio, uma
desculpa ou justificativa, para reparar a offensatio, crítica ou incômodo, de Bernardo.
Podemos concluir aqui que a novidade era algo pejorativo. Giles Constable já notara que a
novidade era algo que os reformadores lutavam contra, em particular Bernardo que defendia
uma liturgia baseada preceitos tradicionais e autênticos (CONSTABLE, 1996: 143).
Tendo isso em mente, é interessante notar como Abelardo desenvolve a segunda parte
de sua carta. Após se proclamar um restaurador e defensor da verdade em relação ao costume,
Abelardo se voltou à, então jovem, ordem cisterciense. Em uma argumentação direta, afirmou
que se tratava de uma ordem que seguia uma liturgia distinta do costume de todas as outras
igrejas.
Vocês [cistercienses] que são recém-surgidos e que tiram grande proveito de
novidades, estabeleceram, por meio de alguns novos decretos, que vocês realizariam
os ofícios divinos de uma maneira diferente, contrária a todo costume que há muito
foi estabelecido e que ainda permanece entre monges e clérigos (ABAELARDUS,
1983: 244-245)13.
Mas vocês não acham que devam ser censurados por isso. Se essa inovação ou a
singularidade de vocês diferem dos antigos costumes seguidos pelos outros, então
vocês acreditam que ela está muito mais em harmonia com a razão e o sentido da
Regra. Vocês não se preocupam o quanto os outros possam se maravilhar ou
reclamar, desde que sigam em conformidade com sua própria razão
(ABAELARDUS, 1983: 245)14.
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11
“His itaque, ni fallor, tam rationibus quam auctoritatibus uetustatis potius quam nouitatis arguendus uideor
et minus de praesumptione censendus, qui tam Dominum quam apostolos et manifestam Graecorum
prouidentiam in hoc praecipue sequor”.
12
“Nemini tamen praecipio, nemini persuadeo, ut me in hoc sequatur et a communi recedat usu. Habundet
unusquisque in sensu suo. Illud tamen, quieunque est ille, attendat nee usum rationi nec consuetudinem
praeferendam esse ueritati”.
13
“Vos quippe quasi nouiter exorti ac de nouitate plurimum gaudentes, praeter consuetudinem omnium tam
clericorum quam monachorum longe ante habitam et nunc quoque permanentem, nouis quibusdam decretis
aliter apud uos diuinum officium instituistis agi”.
14
“Nec tamen inde uos accusandos censetis, si haec uestra nouitas aut singularitas ab antiquitate recedat
aliorum, quoniam rationi plurimum et tenori regulae creditis concordare, nec curatis quantacumque
admiratione super hoc alii moueantur ac murmurent, dummodo uestrae quam putatis, rationi pareatis”.
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71
!
Para satisfazer a todos, eu repito o que eu disse antes, deixe que cada um aja
conforme seu entendimento. Deixe-nos dizer essa prece como desejarmos. Eu não
estou pedindo que ninguém me siga nesse assunto, deixe que nós mudemos a
palavra de Cristo como quisermos. Mas eu manterei, o quanto puder, essas palavras
em seu significado inalterado (ABAELARDUS, 1983: 247)18.
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15
“Quorum ut pauca commemorem pace uestra, hymnos solitos respuistis et quosdam apud nos inauditos et
fere omnibus ecclesiis incognitos ac minus sufficientes introduxistis. Unde et per totum annum in uigiliis tam
feriarum quam festiuitatum uno hymno et eodem contenti estis, cum ecclesia pro diuersitate feriarum uel
festiuitatum dinersis utatur hymnis, sicut et psalmis uel caeteris quae his pertinere noscuntur, quod et
manifesta ratio exigit. [...] Preces quae post supplicationem et orationem Dominicam ab ecclesia ubique
celebrantur et ea quae suffragia sanctorum dicuntur, omnino a uobis fieri interdixistis, quasi uel precibus
uestris mundus uel uos suffragiis sanctorum minus egeatis. Et quod mirabile est, cum omnia oratoria uestra
in memoria matris Dominicae fundetis, nullam eius commemorationem, sicut nec caeterorum sanctorum ibi
frequentatis.”
16
“Non enim uocum nouitates, sed profanas tantum et fidei contrarias Apostolus interdicit”.
17
“Qui ergo omnium linguarum generibus praedicari uoluit, ipse diuersis officiorum modis uenerari decreuit.”
18
“Denique, ut omnibus satisfatiam, nunc etiam ut superius dico, abundet unusquisque in sensu suo dicat eam
quomodo uoluerit. Nemini persuadeo ut me in hoc sequatur. Variet uerba Christi prout uoluerit. Ego autem
sic illa, sicut et sensum, quantum potero, inuariata seruabo.”
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72
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Como já dissemos anteriormente, sabe-se que essa carta nunca foi respondida. No
entanto, isso não impediu que os historiadores se questionassem a respeito do modo que ela
foi interpretada. Mary Martin McLaughlin apontou que há dois posicionamentos gerais sobre
isso: aquele que vê a carta como um texto amigável e reconciliatório; enquanto outros a
interpretam como um texto irônico e bastante agressivo (MCLAUGHLIN, 2009: 272-273).
Posicionamo-nos nesta segunda categoria. Porque mais do que elencar as novidades trazidas
pela ordem cisterciense, Abelardo pontuou o quão pobre era a liturgia desta ordem – crítica já
um tanto comum no período (CONSTABLE, 1996: 209-216) – e deixou bem claro que eles
haviam se esquecido de seu papel para com a sociedade.
Mais do que isso, parece-nos que Bernardo não a recebeu muito bem. O que nos
possibilita dizer isso é a própria relação entre ambos. Após menos de um ano, Abelardo
escrevia em sua Historia Calamitatum que Bernardo se vangloriava de ter ressuscitado a vida
dos monges, e que ele, juntamente com Norberto de Xanten – fundador da ordem dos
premonstratenses –, viajavam pelo mundo
Por outro lado, temos, aproximadamente sete anos depois, uma carta que Bernardo
enviou ao cardeal Ivo de Chartres. Esta se inicia da seguinte forma:
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19
“Hi praedicando per mundum discurrentes et me impudenter quantum poterant corrodentes, non modice tam
eclesiasticis quibusdam quam saecularibus potestatibus contemptibilem ad tempus effecerunt, et de mea tam
fide quam vita adeo sinistra disseminaverunt, ut ipsos quoque amicorum nostrorum praecipuos a me
averterent [...] hoc ipsi modis omnibus metu illorum dissimularent”.
20
“Magister Petrus Abaelardus, sine regula monachus, sine sollicitudine praelatus, nec ordinem tenet, nec
tenetur ab ordine. Homo sibi dissimilis est, intus Herodes, foris Joannes; totus ambiguus, nihil habens de
monacho, praeter nomen et habitum.”
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73
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REFERÊNCIAS
Biblia Sacra iuxta vulgatam Clementinam. Ed. Michaele Tveedale. Londres: CBCEW,
2006.
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
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74
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MCLAUGHLIN, Mary Martin. The letters of Heloise and Abelard: A translation of their
collected correspondence and related writings. New York: Palgrave MacMillan, 2009.
MEWS, Constant. Abelard and Heloise. New York: Oxford University Press, 2005.
MURRAY, Victor. Abelard and St. Bernard: A study in twelfth century “modernism”.
Manchester: Manchester University Press, 1967.
RUST, Leandro Duarte. As colunas de São Pedro: a política papal na idade média central.
São Paulo: Annablume, 2011.
Sancti Bernardi Opera. Ed. Jean Leclerq et al. 8 vols. (Rome, 1956-77).
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75
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RESUMO
Este trabalho tem por objetivo trazer reflexões sobre as normativas acerca da prática da
pregação na Ordem dos Frades Menores presentes na Regra Bulada e não Bulada. Ao longo
desta exposição buscaremos tratar de alguns aspectos presentes nestes documentos, que
tinham o intuito de orientar a pregação dos religiosos. A análise destes textos será somada ao
estudo do que outras fontes e a historiografia apresentam sobre o desenvolvimento desta
prática entre os franciscanos na primeira metade do século XIII. Queremos discutir em qual
medida as características propostas para a pregação nestes documentos normativos foram
preservadas, modificadas ou adaptadas diante das exigências da Igreja Papal e do processo de
clericalização da mesma ordem.
PALAVRAS-CHAVE: Franciscanismo. Pregação. Normatização.
ABSTRACT
This work aims to bring reflections about the practice of preaching in the Order of Friars
Minor present in the normative Rule Bulada and not Bulada. Throughout this exposition seek
to address some aspects present in these documents, which had the aim of guiding the
preaching of the religious. The analysis of these texts will be added to the study than other
sources and the historiography about the development of this practice among the Franciscans
in the first half of the thirteenth century. We want to discuss to what extent the characteristics
proposed for preaching in these normative documents were preserved, modified or adapted to
the demands of the Church and the Papal and the clericalizing process the same order.
KEYWORDS: Franciscan. Preaching. Normatization.
A proposta dos Frades Menores, aprovada pela cúria romana no ano 1209, assim como
a dos movimentos de Vida Apostólica2 contemporâneos, previa um modo de vida itinerante,
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1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
sob a orientação da Professora Dra. Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva. Integrante do projeto de
pesquisa coletivo Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade desenvolvido no âmbito do
PEM (Programa de Estudos Medievais). Esta pesquisa conta com o auxílio financeiro por meio de uma bolsa
de mestrado da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior).
2
Entendemos por movimentos de Vida Apostólica, comunidades de fiéis que desejavam viver o evangelho de
forma radical, renunciando às riquezas e pregando a penitência (Cf. VAUCHEZ, 1995: 82-83). Esta nova
forma de manifestação religiosa traz de volta a pregação popular, que não se restringia apenas ao espaço dos
templos. Estas exposições, feitas majoritariamente por leigos, muito mais que apresentar um caráter
catequético, sinalizavam para a adoção de uma vida de austeridade, renúncias e radicalidade evangélica. De
certa forma, a emergência desta forma de pregar entrava em conflito com os parâmetros metódicos da
instituição eclesiástica, que procurava restringir este ministério ao clero. Provenientes desta experiência
religiosa, grupos considerados heréticos surgidos neste mesmo período passaram a se dedicar a este
ministério. Eles pautavam suas exposições em elementos concretos da sociedade de seu tempo,
diferentemente dos discursos teológicos e eruditos feitos pelos clérigos, muitas vezes distantes da realidade
dos fiéis. Os ditos hereges também traduziam textos da Sagrada Escritura para o vernáculo, fazendo
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76
!
bem como a prática da pregação. Porém, bem diferentes dos frades pregadores ou
dominicanos, que também surgiram no século XIII, cujo principal objetivo era o de converter
os considerados hereges, os franciscanos, nos primeiros anos que se seguiram à sua fundação,
dedicaram-se a uma pregação do cunho penitencial, isto é, fazer exortações simples, que
propiciassem o cultivo de virtudes e uma vida de oração, com uma mensagem essencialmente
de paz evangélica (IRIARTE, 1985: 166). A pregação franciscana, inicialmente, não possuía
um caráter erudito, pelo fato da maioria dos primeiros religiosos não possuir formação
teológica.
André Miatello salienta que a pregação de cunho simples que Francisco e os frades
inicialmente proferiam era na verdade aquela que não estabelecia relações profundas com
temas bíblicos, tal qual a pregação erudita. Era uma exposição desprovida de quaisquer
sutilezas ou recursos retóricos, de cunho muito mais exortativo do que catequético
(MIATELLO, 2013: 104).
Segundo Kajetan Esser, cronistas de fora da ordem testemunham a presença dos frades
em diversas ocasiões em cidades e em aldeias camponesas (ESSER, 1972: 242). Os religiosos
saiam em grupos, entre dez a sete irmãos, com o intuito de pregar nestes locais. Além disso,
segundo tais testemunhos, o discurso dos frades era eficaz, pois seu exemplo de vida de
pobreza e austeridade era bem visto pelos fiéis.
Para Carlo Delcorno, a pregação do fundador, Francisco, também possuía um caráter
político, ao falar de paz na região da Península Itálica, onde, em algumas regiões,
predominavam conflitos entre instâncias do governo comunal. Além das disputas entre o
Papado e o Império Germânico pelo controle político da região. Simultaneamente, a pregação
de cunho penitencial dos primeiros religiosos, embora inicialmente próxima daquela proferida
pelos movimentos de Vida Apostólica, também estava vinculada a política de Inocêncio III,
cujo objetivo era uma reorganização não apenas eclesial, mas também social, uma vez que,
adotando a ortodoxia católica, fomentava uma vida regrada de acordo com a doutrina
eclesiástica no âmbito urbano (DELCORNO, 1977: 138)3.
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exposições de forma compreensível ao seu público, formado, sobretudo, pelos habitantes dos centros
urbanos. Estas iniciativas apontavam para um anseio predominante na sociedade medieval expressado pelos
movimentos de vida apostólica, que buscavam revisitar e reviver as experiências relatadas no Novo
Testamento, cujo acesso ainda permanecia inacessível aos leigos. (BÉRIOU, 2002: 113)
3
A Igreja Romana, no contexto da chamada Reforma Papal, passou a utilizar-se da pregação como meio de
garantir sua hegemonia política e religiosa no âmbito da sociedade medieval, na qual a própria figura do
pregador adquire autoridade e status social. À medida que o papado, sobretudo entre os séculos XII e XIII,
consolida suas diretrizes centralizadoras e o estabelecimento de regras em relação ao clero e a vida dos
leigos, esta atividade adquire dois objetivos principais: o primeiro seria, por meio da persuasão, converter os
considerados hereges ou mesmo impedir que os leigos aderissem suas doutrinas, consideradas, na visão da
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Uma vez que Inocêncio III, em 1209, havia consentido que os franciscanos
proferissem pregações penitenciais, inicialmente, todos os religiosos eram pregadores e não
havia prerrogativas dentro da fraternidade quanto a este ministério. Assim, todos os frades
deveriam exercer esta atividade por meio de suas palavras, de suas obras e exemplo de vida
(IRIARTE, 1985: 167). Porém, nos anos que se seguiram, além das mudanças ocorridas
quanto à organização institucional e a missão a ser desempenhada pelos frades, observamos
transformações expressivas em relação às diretrizes sobre a pregação destes religiosos.
No decorrer do século XIII, clérigos entram na Ordem e simultaneamente a Igreja
Romana passa a estabelecer critérios e objetivos precisos para esta prática. A partir do
momento em que os religiosos passam a desempenhar um papel expressivo em missões, como
a contenção das chamadas heresias, a pregação em cruzadas, além da administração do
próprio sacramento da confissão4, os documentos normativos elaborados dentro da instituição
começam, de certa forma, a atender a estas novas exigências.
Uma das primeiras mudanças que apontam para uma paulatina absorção da
fraternidade em relação às diretrizes da Igreja Romana foram as primeiras expedições entre os
muçulmanos, onde, por volta de 1215, os primeiros religiosos minoritas sofreram o martírio
por parte dos sarracenos no Marrocos. Os frades assim como outros religiosos da cristandade,
por meio das diretrizes papais em relação as Cruzadas, passaram a se lançar em expedições
rumo a Terra Santa5.
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cúria, errôneas e nocivas para a unidade da Igreja Romana; o segundo seria fomentar uma vida sacramental
regrada, principalmente com a prática da confissão e da eucaristia por parte dos fiéis, elementos que foram
estabelecidos nas atas do III e no IV Concílios do Latrão. Sobre a pregação como meio de centralização
política ver: RUSCONI, Roberto. De lá predicacion à la confission: transmission et contrôle de modèles de
comportement au XIIIe siècle. In: CROIRE, Faire (org). Modalités de la diffusion et de la réception des
messages religieux du XIIe au XVe siècle. Roma: École Française de Rome, 1981. p. 67-85.
4
Entre os séculos XII e XIII, diretrizes pastorais propostas pelo papado, sobretudo nos concílios lateranenses,
procuraram estabelecer a confissão individual como norma, em detrimento da confissão pública
predominante na estrutura rural alto medieval. Roberto Rusconi elucida que, desde o IX século, o ritual de
imposição das cinzas na quarta-feira da primeira semana da Quaresma marcava o início de um período de
penitência, que culminaria necessariamente com uma confissão individual, em vista de se receber a
comunhão pascal. Porém, em finais do século XII, a fim de melhor regulamentar esta prática, cria-se o
costume de preceder o ato da confissão com uma pregação. Logo, pregação e confissão estabelecem uma
ligação estreita, uma vez que os discursos proferidos pelos frades, às vésperas das festividades pascais,
assumiram um cunho moralizante e penitencial. Na quaresma predominavam exposições de natureza
exortativa, apontando os vícios e virtudes e as diretrizes para uma conduta cristã considerada ideal. Assim, os
pregadores deveriam levar os seus ouvintes a refletirem a respeito de possíveis faltas cometidas e de sua
vivência em relação aos ensinamentos evangélicos e a doutrina da Igreja. (RUSCONI, 1981: 68)
5
O cânone 71 do IV Concílio do Latrão previa a presença de religiosos em expedições no contexto de cruzada
para a Terra Santa no intuito de pregar aos cavaleiros e garantir-lhes a administração dos sacramentos. No
caso dos mendicantes existia também o desejo de pregar no intuito de converter os sarracenos à fé católica.
Este tipo de pregação refletia à ideia de embate entre a fé cristã católica entendida pelos religiosos como
verdadeira, frente ao islã e os muçulmanos classificados pelos cristãos do Ocidente como infiéis. Ver:
BACHRACH, David S. The friars go to war: mendicant military chaplains, 1216- C. 1300. The Catholic
historical review. New York, v. 90, n. 4, p.617-633, 2004.
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6
Embora segundo algumas fontes, como a própria Vida Prima de Celano, Francisco tenha solicitado um
cardeal para o auxílio no governo da Ordem, a presença de um prelado que servia quase que como um tutor
para as ordens religiosas foi uma das diretrizes estabelecidas pelo IV Concílio do Latrão (Cf. BOLTON,
1983: 129-130).
7
“E assim acalmados de imediato os agitadores, com o favor de Deus, ele reformou a Ordem segundo seus
estatutos. E vendo o bem-aventurado Francisco que Frei Cesário era erudito nas Sagradas Escrituras,
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79
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mesmo recolhendo cartas e outros escritos do mesmo. O próprio Francisco incentivava aos
destinatários que transcrevessem estes documentos, a fim de memorizar e praticar os preceitos
por ele deixados (TEIXEIRA, 2008: 14). O fato de haver uma prática de transcrições por parte
dos religiosos fez com que houvesse diversas coletâneas dos escritos do Poverello.
Uma das primeiras tentativas de reunir todos estes documentos se deu em 1623, pelo
frade Lucas Wadding, tendo como título Opuscula. Esta edição foi impressa em latim. O
religioso, porém, não teve o cuidado de distinguir na obra quais seriam os textos produzidos
pelo santo daqueles que seriam simplesmente atribuídos ao mesmo (TEIXEIRA, 2008: 15).
No início do século XX, edições críticas dos escritos de Francisco buscaram fazer esta
distinção, além disso, tentavam na medida do possível reconstruir os textos em sua versão
original, a fim de apontar as adições feitas pelos copistas.
A mais recente edição crítica dos escritos de Francisco é de 1976, organizada por
Kajetan Esser a partir do códice 338 da Biblioteca Comunal de Assis. Nela, o frade conseguiu
transcrever a maioria dos manuscritos do século XIII que traziam consigo mensagens e
orações do assisense. Tal edição foi feita a partir de comparações entre manuscritos presentes
na Biblioteca Comunal de Assis. Porém, segundo Teixeira, o próprio Esser sinalizou para
alguns problemas em relação à suposta autenticidade destes textos pelos seguintes fatores:
alguns deles não foram escritos de próprio punho pelo santo e eram geralmente proferidos em
língua vulgar, mas elaborados em latim por secretários, como é o caso das próprias regras
(TEIXEIRA, 2008: 15).
Além disso, observam-se diferenças na escrita, pois enquanto em alguns trechos se
constata um estilo erudito e um latim rebuscado, já em outros se observa um caráter mais
simples. Por isso, Esser estabelece a distinção entre autenticidade e originalidade, pois, na
visão do frade, mesmo que os textos tenham sofrido intervenções dos secretários no intuito de
torná-los mais claros e gramaticalmente corretos, é provável que o santo os lesse e, ao assiná-
los, os reconhecia como seus, visto que os mesmos transmitiam a essência de seu pensamento
(TEIXEIRA, 2008: 16).
Quanto à Regra não Bulada, vemos nas primeiras recomendações quanto à pregação
dos frades: “nenhum irmão pregue contra a forma e as diretrizes da Santa Igreja e se não lhe
tiver sido concedido pelo seu ministro. E cuide o ministro para não concedê-lo a ninguém
sem discernimento” (RNB, Cap. XVII)13.
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13
Doravante RNB. A versão do documento em latim foi extraída do site do centro franciscano da província dos
capuchinhos de Piracicaba: <http://www.centrofranciscano.org.br/>. Acesso em 12 fev 2014: “Nullus frater
praedicet contra formam et institutionem sanctae ecclesiae et nisi concessum sibi fuerit a ministro suo”.
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14
O IV Concílio do Latrão dentre outras medidas, reiterou a condenação da heresia de forma ainda mais
incisiva, porém Inocêncio III havia demonstrado maior aceitação em relação aos grupos leigos inseridos nas
características da Vida Apostólica. Além dos franciscanos em 1209, o papa já havia aprovado outros
movimentos de penitentes, permitindo-lhes a pregação de caráter penitencial. Percebemos que a aprovação de
tais grupos e a permissão de pregar em língua vulgar demonstra, por parte da Igreja Romana na figura de
Inocêncio III, a ideia de que tal prática poderia ser um instrumento eficaz de reforma. Todavia, a Igreja passa
a exigir maior instrução teológica e retórica mesmo daqueles que havia sido permitida a pregação simples e
penitencial (BOLTON, 1983: 126).
15
Segue o texto latino: “Omnes tamen fratres operibus praedicent. Et nullus minister vel praedicator
appropriet sibi ministerium fratrum vel officium pradicationis, sed quacumque hora ei iniunctum fuerit, sine
omni contradictione dimittat suum officium”.
16
Os designados deverão visitar os povoados e eles confiados quando os bispos não o puderem fazer por eles
mesmos, deverão igualmente instruir com sua palavra e exemplo, dispensar-lhes, se forem ministros, os
auxílios necessários de maneira que a privação destes meios não obrigue a suspensão da obra empreendida
(Cânone 10). Segue o texto latino: “Assumant potentes in opere et sermone qui plebes sibi commissas vice
ipsorum cum per se idem nequiverint sollicite visitantes eas verbo ædificent et exemplum. Quibus ipsi cum
indiguerint congrue necessaria ministrent ne pro necessariorum defectu compellantur desistere ab incoepto”
(CONCILIUM LATERANENSE IV, 2007: 14).
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83
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houvesse uma relativa preocupação de Francisco e do governo geral quanto à formação dos
frades.
Não é coincidência que do mesmo período, ou seja, entre 1223 e 1224, exista um
documento, cuja autoria é atribuída a Francisco e é endereçado a Antônio de Lisboa/Pádua,
solicitando que o lisboeta ensinasse teologia aos frades:
Eu, Frei Francisco, [desejo] saúde a Frei Antônio, meu bispo. Apraz-me que ensine
a sagrada teologia aos irmãos, contanto que, nesse estudo, não extingas o espírito de
oração e devoção, como está contido da Regra (FRANCISCO DE ASSIS, 2008:
107).
No trecho da Regra não Bulada, Francisco destaca que o ministério da pregação não é
propriedade dos frades e que estes, se necessário ou, sob obediência, deveriam abandoná-lo.
Este elemento sugere que a prédica não deveria ser utilizada pelos frades como uma forma de
obter visibilidade e ascensão dentro da Ordem e da Igreja Romana, por isso a autoridade do
ministro em destituir um pregador; logo, o documento reforça o princípio da humildade. O
fragmento que vem a seguir dá continuidade a esta questão, fazendo uma verdadeira
exortação aos frades:
Por isso, na caridade que é Deus, suplico a todos os meus irmãos que pregam, que
rezam e que trabalham, tanto aos clérigos quanto aos leigos, que se esforcem por
humilhar-se em tudo e por não se gloriar nem regozijar consigo mesmos nem exaltar
interiormente das boas palavras e obras, e menos ainda, de nenhum bem que Deus
muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles, segundo diz o Senhor: Não vos
alegreis, no entanto, porque os espíritos se vos submetem. E saibamos firmemente
que nada vos pertence, a não ser os vícios e pecados (RNB, cap. XVII, 5-7)17.
Marie Paolo Bolieu salienta que a grande maioria da sociedade medieval era iletrada,
sendo o letramento muitas vezes restrito aos clérigos, logo, a palavra proferida oralmente
ganhava maior receptividade e eficácia para a transmissão da doutrina cristã. Assim, a
pregação reunia, nas principais datas do calendário litúrgico da Igreja Romana, fiéis em torno
da palavra de Deus em busca de salvação, ao mesmo tempo em que estabelecia de forma
hierárquica uma distinção entre locutores e ouvintes, sendo estes respectivamente clérigos e
leigos (BOLIEU, 2009: 367).
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17
Segue o texto latino: “Unde deprecor in caritate, quae Deus est, omnes fratres meos praedicatores, oratores,
laboratores, tam clericos quam laicos, ut studeant se humiliare in omnibus, non gloriari nec in se gaudere
nec interius se exaltare de bonis verbis et operibus, immo de nullo bono, quod Deus facit vel dicit et operatur
in eis aliquando et per ipsos, secundum quod dicit Dominus: ‘Verumtamen in hoc nolite gaudere, quia
spiritus vobis subiciuntur’. Et firmiter sciamus, quia non pertinent ad nos nisi vitia et peccata”.
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Um fator de tensão pode ser percebido no trecho em que se fala sobre a “sapientia
mundi” e o recurso retórico da carta paulina sobre “letra e espírito”; a citação de certa forma
está vinculada ao cultivo do estudo e da ciência por parte dos religiosos. Sabemos que, já em
1221, teólogos e outros intelectuais ingressavam dentro do movimento franciscano,
provenientes de centros universitários europeus. Atendendo as exigências da Igreja Romana,
era provável que estes frades desempenhassem com maior frequência a prática da pregação,
que ganha um caráter cada vez mais erudito19. Porém o cultivo dos estudos em uma sociedade
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18
Segue o texto latino: “Omnes ergo fratres caveamus ab omni superbia et vana gloria; et custodiamus nos a
sapientia huius mundi et a prudentia carnis; spiritus enim carnis vult et studet multum ad verba habenda, sed
parum ad operationem, et quaerit non religionem et sanctitatem in interiori spiritu, sed vult et desiderat
habere religionem et sanctitatem foris apparentem hominibus. Et isti sunt, de quibus dicit Dominus: ‘Amen
dico vobis, receperunt mercedem suam’”.
19
A constante dedicação dos frades a esta atividade levou a investimentos por parte do governo destas ordens
em estudos, manuais dentro do modelo das Artes predicandi, conventos mais amplos e equipados de
manuscritos com textos bíblicos, dos santos padres, além de filósofos clássicos, perpetuando assim, como já
destacamos, os recursos retóricos construídos ao longo dos séculos do cristianismo. Nos grandes centros
universitários, onde os religiosos mendicantes também possuíam cátedras de teologia, através de seus
grandes mestres, procurou-se dar formação sólida aqueles que desejavam exercer tal ministério (BÉRIOU,
2002: 119).
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85
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cuja maioria era formada de iletrados dava aos clérigos status social, que era ainda mais
expressivo em sua dedicação ao ministério da pregação.
O que se percebe no capítulo 17 da Regra não Bulada é uma tensão entre pregação,
exemplo e estudo, embora, como já destacamos, o santo possivelmente via a necessidade de
formação ao menos elementar para os religiosos. As exortações feitas no documento, a partir
de textos bíblicos, revelam este conflito e apontam para o crescente distanciamento entre
clérigos e leigos, a partir do momento em que existe um critério para o desempenho da
função. No capítulo 9 da Regra Bulada algumas destas recomendações são omitidas,
resumindo o texto sobre a pregação em apenas um parágrafo:
Não preguem os irmãos na diocese de algum bispo, quando este lhes tiver proibido.
E absolutamente nenhum dos irmãos ouse pregar ao povo, se não tiver sido
examinado e aprovado pelo ministro geral desta fraternidade e se não lhe tiver sido
concedido pelo mesmo o ofício da pregação (RB. Cap. IX, 2-3)20.
Por que a questão do estudo e da ciência não é tratada no documento aprovado pelo
papado? Possivelmente, Hugolino já via nos frades um importante instrumento de reforma,
por isso era necessário o cultivo da instrução e da erudição de alguns religiosos. Além disso,
para o papado também era necessário que os frades se dedicassem a teologia e ao estudo
universitário para exercer este ministério e concretizar os objetivos centrais almejados pela
instituição eclesiástica.
No início do nono capítulo da Regra percebemos a adição de mais uma instancia na
norma sobre a pregação: o bispo que não havia sido mencionado no primeiro documento.
Desta forma, o texto entra em concordância de forma mais plena com o cânone de número 10
do IV Concílio do Latrão, que estabelece o bispo como o primeiro responsável pela pregação
dentro de sua diocese21. Assim, mesmo que os frades devessem obediência diretamente ao
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
20
Segue o texto latino: “Fratres non praedicent in episcopatu alicuius episcopi, cum ab eo illis fuerit
contradictum. Et nullus fratrum populo penitus audeat praedicare, nisi a ministro generali huius
fraternitatis fuerit examinatus et approbatus, et ab eo officium sibi praedicationis concessum”.
21
A tradução da edição espanhola dos cânones lateranenses de Raymunda Foreville é nossa: Todos sabemos
que, entre muitas coisas relativas à saúde do povo cristão, a palavra de Deus é um dos alimentos mais
necessários. Assim como o corpo tem necessidade de um alimento material, a alma tem de um alimento
espiritual, pois “o homem não vive somente de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. Não é
raro que os bispos, como consequência de suas múltiplas ocupações, de suas enfermidades físicas, dos
ataques de pessoas inimigas, incluindo eventualidades diversas – para não mencionar a ignorância em toda a
parte digna da mais severa condenação –, que deverá tolerar no futuro, não podem dedicar-se a proclamar a
palavra de Deus, especialmente nas grandes dioceses e de população dispersa. Em consequência,
estabelecemos, por uma ordem geral, que os bispos designem pessoas capacitadas, ricas em palavras e
exemplo, para cumprir convenientemente o ofício da santa pregação. Segue o texto latino: “Inter cætera quæ
ad salutem spectant populi christiani pabulum Verbi Dei permaxime sibi noscitur esse necessarium quia
sicut corpus materiali sic anima spirituali cibo nutritur eo quod non in solo pane vivit homo sed in omni
!
86
!
papa, a realização desta atividade, no nível diocesano, pelos frades, deveria passar pela
aprovação do poder episcopal.
O texto continua reafirmando o princípio da simplicidade elucidado pela Regra não
Bulada:
Admoesto também e exorto os mesmos irmãos a que, na pregação que fazem, seja
sua linguagem examinada e casta, para a utilidade e edificação do povo, anunciando-
lhe, com brevidade de palavra, os vícios e as virtudes, o castigo e a glória; porque o
Senhor sobre a terra, usou de palavra breve (RB. Cap. IX: 4-5)22.
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verbo quod procedit de ore Dei. Unde cum sæpe contingat quod episcopi propter occupationes multiplices
vel invaletudines corporales aut hostiles incursus seu occasiones alias ne dicamus defectum scientiæ quod in
eis est reprobandum omnino nec de cætero tolerandum per se ipsos non sufficiunt ministrare populo Verbum
Dei maxime per amplas dioeceses et diffusas generali constitutione sancimus ut episcopi viros idoneos ad
sanctæ prædicationis officium salubriter exequendum” (CONCILIUM LATERANENSE IV, 2007: 14).
22
Segue o texto latino: “Moneo quoque et exhortor eosdem fratres, ut in praedicatione, quam faciunt, sint
examinata et casta eorum eloquia, ad utilitatem et aedificationem populi, anuntiando eis vitia et virtutes,
poenam et gloriam cum brevitate sermonis; quia verbum abbreviatum fecit Dominus super terram”.
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87
!
Além disso, na Regra não Bulada, as primeiras recomendações são: “Nenhum irmão
pregue contra a forma e as diretrizes da Santa Igreja...”. Este elemento, para nós, gera ainda
mais exigências quanto à pregação dos frades, pois afinal, em que medida as diretrizes da
Igreja eram conhecidas de forma clara por grande parte dos frades? Lembremos que os
primeiros religiosos e o próprio Francisco eram leigos, logo, em que grau, no contexto do
século XIII realmente, conheciam a doutrina católica? O confronto dos frades com os
considerados hereges ou mesmo o cuidado para que os franciscanos não fossem confundidos
com estes grupos dissidentes, exigia que os mesmos tivessem ao menos uma formação
teológica elementar.
A partir das regras, constatamos: a crescente distinção entre os frades que tinham ou
não a permissão de pregar; o princípio da obediência em relação à Igreja Romana, bem como
a presença da ortodoxia dos religiosos em suas exortações; a ideia da pregação como um
ofício, isto é, uma forma de trabalho, assim como outras atividades desenvolvidas pelos
frades, sob obediência e não motivada por iniciativa pessoal e vanglória; a preocupação em
relação às obras e o testemunho daqueles que tivessem tal ministério; o cuidado de
caracterizar a pregação franciscana como um discurso simples e breve de caráter penitencial,
a fim de distanciá-lo do modelo erudito, que entra em tensão com as exigências sobre a
instrução teológica por parte da instituição eclesiástica.
Embora a Regra exigisse simplicidade na predica dos frades e que os mesmos fossem
breves, ou seja, que suas exortações fossem muito mais de caráter penitencial que teológico,
comparando o documento elaborado pela ordem com as normativas lateranenses, é
perceptível a presença de certa dissonância entre as duas diretrizes: enquanto no primeiro
documento se exige cada vez mais a instrução dos pregadores, no segundo tenta-se preservar
o caráter simples da mesma, a partir do princípio de pobreza e humildade, próprios da forma
de vida proposta pelo Poverello.
Embora nas regras transpareça a preocupação de Francisco com o estudo como uma
possibilidade de engrandecimento e soberba, como já apontamos, ao longo do século XIII a
formação teológica será uma exigência cada vez maior para aqueles que exercessem a
atividade de pregador. Assim, tornava-se quase que impossível aos frades, diante de sua
inserção no âmbito da instituição eclesiástica, a observância das recomendações do santo. O
próprio Antônio, um dos primeiros teólogos que ingressou na Ordem, em seus sermões
demonstrava erudição e conhecimento nos textos bíblicos.
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88
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REFERÊNCIAS
1 Fontes
FRANCISCO DE ASSIS. Carta a Santo Antônio. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (coord).
Fontes franciscanas e clarianas. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p. 107.
JORDÃO DE JANO. Crônica. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e
clarianas. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 1263-1294.
REGRA BULADA. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e clarianas.
Petrópolis: Vozes, 2008. p. 157-158.
REGRA NÃO BULADA. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e
clarianas. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 165-186.
VIDA DE GREGÓRIO IX. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e
clarianas. Petrópolis: Vozes, 2008. p.1439.
2 Bibliografia
BACHRACH, David S. The friars go to war: mendicant military chaplains, 1216- C. 1300.
The Catholic historical review. New York, v. 90, n. 4, 2004. p. 617-633
BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 129-130.
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89
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MERLO, Grado Giovanni. Em nome de São Francisco. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
MIATELLO, André Luis Pereira. Santos e pregadores nas cidades medievais italianas:
retórica cívica e hagiografia. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
ROBERTS, Phyllis B. ROBERTS, Phyllis B. The Ars Preandicandi and the medieval sermon.
In: MUESSIG, Carolyn (Ed) Precher, sermon and audience in the Middle Ages. Brill:
Boston, 2002. p. 41-61.
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RESUMO
Nos últimos anos, estudiosos da história política têm buscado novas abordagens,
lançando o olhar em outras dimensões das relações políticas. Fala-se de um retorno do
político2. Os estudos do campo do político, por meio da análise do papel das emoções no
interior da vida política, podem ser vistos como uma das possíveis tendências dessas novas
abordagens do político. Temos visto o surgimento de historiadores que se debruçam sobre a
escrita de uma História das emoções, tendo como objeto de estudo os sentimentos nos mais
diversos períodos históricos. A medievalista norte-americana Barbara Rosenwein é a grande
representante dessa tendência. Ela que realizou importantes trabalhos sobre o papel das
paixões na vida política da Alta Idade Média, tem proposto métodos e teorias para realizar os
estudos das emoções sob o ponto de vista histórico.
Uma das principais propostas de Rosenwein (2001: 319) é compreender as emoções
como construções sociais de uma determinada sociedade. Portanto, as emoções fazem parte
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1
Aluno de graduação e iniciação científica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do
Laboratório de estudos medievais – LEME/UFMG. E-mail: <wandersonhenriquep@hotmail.com>.
2
Sobre esse retorno: REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p 13-36.
Ver também: ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial,
2010. p. 11-35.
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91
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3
As discussões sobre o Construcionismo social atentam na importânciaque a sociedade exerce no processo de
formação social dos sujeitos. Ver a discussão Kenneth Gergen:Gergen, K. J. (1983, Setembro). Movimento
do Construcionismo social na psicologia moderna. (E. J. S. Filho, trad.).
4
São chamados assim por defenderem a visão de que as emoções do presente são as mesmas do passado e
continuarão a ser as mesmas no futuro. Entre os defensores dessa visão estão o psicólogo Paul Ekman e o
sociólogo norte-americano Jonathan Turner.
5
ROSENWEIN Barbara. Émotions en politique: Perspectives de médiéviste. Hypothèses., 2001/1. p. 315-324
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6
O conceito de homens de saber foi utilizado na obra de Jacques Verger (1999:13-19) para definir os homens
que possuíam o domínio de certo tipo de conhecimento nos últimos séculos de Idade Média.
7
Segundo Le Goff (2010: 362) essa academia política, também chamada de Escola de São Luís, desenvolveu-
se no convento de são Tiago, pertencente Ordem dos Dominicanos. São Luis teria pedido a Humbert de
Romams, o mestre da ordem no período de 1234 a 1263 que convocasse uma equipe para a redação desses
escritos. Assim foram reunidos importantes teóricos com esse objetivo de produzir esse tipo de literatura
política.
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93
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definição, vemos que historicamente o conceito de affectus tem vários problemas quanto ao
seu valor semântico. Na própria visão de Elredo, o affectus pode assumir dois sentidos
opostos.
No primeiro sentido mobilizado por de Elredo, o affectus é entendido como a
capacidade de amor ordenado e comandado pela caridade fraterna. Nesse caso, o movimento
amoroso do qual o affectus deve ser inclinado é a caritas, que é considerada como a mãe de
todas as virtudes cristãs. Portanto a relação do affectus com a caritas é um ponto
fundamental na compreensão das relações afetivas na Idade Média. Segundo Anita Guerreau-
jalabert (2000: 34-44), a caritas se mostra como a virtude suprema na Idade Média,
funcionando como o valor social que cimenta todas as outras relações sociais no seio da
Ecclesia, ou seja, é o vinculo social que congrega os homens em sociedade. O homem só se
tornava um ser social, o que hoje chamamos de cidadão, quando recebia por meio do batismo,
a marca sacramental da caritas, proporcionando a capacidade de adquirir essa virtude,
entendida como o instrumento primordial para a convivência em sociedade. Dessa forma,
vemos que o affectus pode ser movimentado pela virtude que ordena todas as outras virtudes,
o que coloca o affectus em uma posição de importância nas relações entre os homens da
sociedade medieval ocidental.
No outro sentido, completamente oposto a esse primeiro, o affectus pode ser entendido
como um movimento egoísta. Nesse caso é orientado pelas paixões da alma e é qualificado
como uma perturbação. Quando é interpretado dessa forma o affectus se distância da noção de
caritas e se aproxima da noção da cupiditas (concupiscência) e de todos os sentimentos
contrários a caritas, como por exemplo, odium (ódio), superbia (soberba) e avaratia
(avareza).
dos homens de fazer o que realmente querem, assim, tem-se a necessidade de um poder
soberano que os conduza ao bem querer, um poder disciplinador. É defendido por alguns
pensadores medievais11 que Antes do pecado original, não existia uma autoridade política
coercitiva (Dominatio), o que havia era um poder de comando do superior sob inferior
(Dominium), sem qualquer ato punitivo. Esse poder foi instituído na Graça original, assim,
Adão o exercia na caridade, sua vontade estava em conformidade com a caridade e em tudo
era obediente ao seu criador. A generosidade de Adão ao governar, fazia com que seus súditos
o obedecessem voluntariamente, o que proporcionava a paz e o bem comum (utilitas
publicas). No entanto, o poder de Adão teria mudado de natureza quando em uma atitude
egoísta desejou governar independente da graça divina, tendo a vontade de coagir os outros
(KRITSCH, 2010: 404-409).
A partir dessa dramaturgia do pecado, o homem não teria mais a capacidade de seguir
sozinho, ele caiu em uma servidão. Por isso se fez necessário que os homens fossem
conduzidos pelos reis, que podiam usar até mesmo da violência caso fosse preciso. Segundo
os teóricos do poder na Idade Média, dentre eles o próprio Gilberto de Tournai, essa função
coercitiva sobre os homens é pertencente exclusivamente aos reis, que receberam das mãos da
Igreja a espada capaz de ferir o corpo, já que o poder eclesiástico não teria a capacidade de
exercer essa função, indigna dos religiosos que tem a função de exorta pela palavra. Portanto,
os reis são aqueles que conduzem homens, suas ações políticas estão dirigidas aos homens.
Esse ato de conduzir é a característica essencial da prática que ficou conhecida como governo
do tipo pastoral.
Michel Foucault foi o grande teorizador das práticas do governo pastoral, definindo-o
como uma técnica de condução tipicamente cristã. Ao estudar as formas de governo do
Ocidente, ele coloca a prática do pastorado como uma técnica de governo que teria surgido no
processo de institucionalização do “cristianismo”. Foucault (2008: 200) nos aponta que o
primeiro a definir o pastorado como uma arte ou ciência de governar homens foi Gregório de
Nazianzo, chamando essa prática de tékhne tékhnôn (artes das artes) e epistémê epistemôn
(ciências das ciências), o que posteriormente vai ser conhecido por ars artium (regime das
almas) e regimen animarum (governo das almas).
Dentro dessa técnica de governo, a figura do Pastor é essencial. Os conduzidos só
existem em função da presença da figura do pastor. No entanto, o que significaria ser um
pastor? Qual a função dessa figura? Vejamos a resposta que Foucault deu a essa pergunta:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
Segundo Kritsch (2010: 405), Essa idéia de que não havia autoridade política coercitiva antes do pecado
original era defendida por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Egidio Romano.
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96
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Ser pastor quer dizer, em primeiro lugar, ser o único pastor num rebanho. Nunca há
vários pastores por rebanho. Um só. E, por outro lado, a propósito das formas de
atividade, percebe-se que o pastor é alguém que deve fazer urna porção de coisas.
Deve garantir a alimentação do rebanho, Deve cuidar das ovelhas mais jovens. Deve
tratar das que estão doentes ou feridas. Deve conduzi-las pelos caminhos dando-lhes
ordens ou eventualmente tocando música. Deve arranjar as uniões para que as
ovelhas mais vigorosas se mais fecundas dêem os melhores cordeiros. Portanto um
só pastor e toda uma série de funções diferentes. (FOULCAULT: 190).
esse conceito é mobilizado como um valor fundamental dentro das práticas de governo.
Vejamos uma citação do frade:
Por essa afeição da caridade (caritatis affectu), os reis e príncipes comparam-se aos
santos espíritos chamados de serafins, que, tendendo para Deus pelo movimento do
amor e levam os súditos para ele, a fim de proporcionalmente serem inflamados por
amor semelhante [...] é preciso que o afeto de piedade (affectu pietatis) seja próprio,
sobretudo, do homem que, entre outras coisas, é chamado de animal social. Todavia,
entre os homens, esse afeto (affectus) convém especialmente aos reis e aos príncipes.
(GILBERTO: 139-140).
com que um pastor conduz suas ovelhas. Nessa ocasião o rei é exaltado como aquele que ama
e deseja ser amado pelos seus súditos. Para Le Goff, São Luís teria sido um modelo perfeito
desse tipo de rei amoroso:
Enfim, a bonitas se une ao amor, o que produza compaixão e a piedade que São Luís
manifesta em relação ao próximo. São Luís ama seus súditos e a propaganda
monárquica da qual ele é o grande e primeiro modelo se esforça por fazê-lo amado
reciprocamente por seus súditos, durante a vida e depois da morte. (LE GOF: 614).
Já que, por causa do devido afeto [affectu] segue-se que os príncipes devem dar
proteção aos súditos, os reis e os príncipes devem fazer isso a fim de assim
protegerem os que lhes estão sujeitos para que vivam na unanimidade da paz as
populações que lhes estão sujeitas [...] vejamos a origem e o princípio da unidade, da
qual procede à paz, preserva-se a unidade nos reinos e floresce a unanimidade nos
súditos. (GILBERTO: 144).
!
99
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assumido por ele, de protetor dos religiosos das Ordens Mendicantes. Os frades mendicantes
eram declaradamente os prediletos do rei, que demonstrava uma profunda afeição por esses
homens. Nos assuntos de condução do reino, muitos deles eram seus principais conselheiros e
cooperadores. Le Goff (2010: 296) nos aponta que Luís IX e os mendicantes tinham os
mesmos objetivos, o uso do poder para promover uma reforma moral e religiosa naquela
sociedade, o que poderia ser visto como uma reforma política. Posto isso, percebemos que o
modelo de rei idealizado no espelho de Gilberto é profundamente marcado pelos ideais dos
mendicantes.
Apesar de tratarmos do pastorado régio, não podemos deixar de tratar de outra imagem
da qual Gilberto faz questão de aproximar o rei. Ao afirmar que o rei deve sentir um afeto
natural (affectu naturae)13 pelos súditos do mesmo modo que ele sente por seus filhos
biológicos, o frade faz uma aproximação da figura régia com a figura paterna. Essa associação
tem certa frequência no tratado e tem como objetivo o fortalecimento do laço afetivo entre o
rei e seus súditos. É importante ressaltar que a relação pai e filho, caracterizada pelos gestos
de afeição paternal, era muito valorizada no cotidiano e nos rituais da Idade Média, sobretudo
no século XIII, em que a intimidade corporal entre pai é filhos fica cada vez mais acentuada.
Portanto, Em Gilberto o rei é aconselhado a sentir pelos seus filhos adotivos (os súditos) o
que chamou de paternus affectus, um apego construído no amor paternal. Nesse sentido, o rei
teria as funções típicas de um bom pai, como por exemplo, promover a educação moral dos
filhos, corrigi-los quando necessário, protegê-los dos perigos da vida e ser o modelo perfeito
de virtudes para que eles possam se espelhar.
São Luís sempre foi representado como a imagem perfeita do bom pai, um pai amoroso
que cuida de cada um de seus filhos, oferecendo-lhes uma educação moral e política. Segundo
seus biógrafos, antes de dormir, São Luís sempre se dirigia aos filhos e lhes contava as glórias
e vitórias dos bons reis e imperadores, para que os jovens príncipes tivessem bons exemplos a
imitar. O exemplo mais evidente dessa educação paterna teria sido à elaboração dos
Ensinamentos de São Luís entre 1267 a 1268, que o rei teria escrito com o objetivo de ensinar
a moral e os caminhos do bom governo ao seu filho Felipe III, o sucessor do trono. Nesse
texto, Luís IX demonstra-se um pai afetuoso, utilizando uma linguagem carregada de
expressões afetivas, como por exemplo, a utilização da evocação “Querido filho”. Nessa obra
o rei aconselha o filho a amar a Deus e a proteger à igreja; amar seu povo, cumprir retamente
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
O affectus natureo é entendido como um tipo de affectus responsável pelo apego espontâneo que liga os seres
do mesmo sangue. Segundo Elredo de Rievaulx, foi graças à manifestação desse tipo de affectus que
Salomão pôde descobrir qual das duas mães era a verdadeira no episódio narrado nas Escrituras em que duas
mães disputavam a maternidade biológica de uma criança (BOQUET, 1999: 139-140).
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100
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suas funções de rei e a ter um coração compassivo com os pobres, dentre outros ensinamentos
mais específicos. Portanto, tendo em vista a aproximação da figura paterna com figura do rei
em Gilberto, vimos o fortalecimento da ideia de paternidade régia. Podemos pensar que o rei
pastor deve conduzir suas ovelhas (súditos) com afabilidade e o cuidado de pai.
Tanto na categoria de pai ou de pastor, o rei sempre exige de seus súditos a
obediência. No governo pastoral a obediência assume um lugar de destaque. Para Foulcault
(2008: 230) o pastorado criou o que ele chamou de ‘‘instância de obediência pura’’ uma
obediência que tem a razão de ser nela mesma. Na condução pastoral, há uma submissão
integral das ovelhas em relação ao seu condutor. Assim, a obediência deve ser praticada
durante todos os instantes da condução pastoral. As ordens do pastor devem ser acatadas
independentes do seu teor. Na relação rei/súditos, principalmente na realeza capetíngia, a
obediência ocupou um lugar de destaque. Para Jacques Chiffoleau (1998: 18-19), a obediência
aparece como um valor essencial, começando a superar até mesmo a ideia de fidelidade. Essa
valorização da obediência é uma exigência do rei da França, que ocupa o papel de suserano se
mantendo no topo da hierarquia do sistema feudal. O rei também assume o título de
majestas14. Nesse sentido, a figura régia é vista como a imagem da majestade divina na terra.
Assim, a desobediência a ele é condenada como um crime de lesa-majestade, um sacrilégio
contra a imagem da majestade de Deus.
Objetivando a conquista da obediência por parte dos súditos, Gilberto nos apresenta
uma estratégia emocional que tende a suscitar um afeto (affectus) que leva a obediência a
figura régia. Para que essa estratégia tenha sucesso é necessária que a imagem do rei seja a
mais fiel representação das virtudes, que ele seja reconhecido pelos súditos como um rei
temente a Deus, inclinado à misericórdia, um rei próximo do seu povo e detentor de uma
profunda afeição pelos súditos, afeto que deve ser demonstrado por meio de suas ações.
Seduzidos por essa imagem, os súditos reconheceram no rei uma figura digna do seu afeto e
ficaram constrangidos a desobedecê-lo. Nessa estratégia emocional, o súdito é colocado em
uma espécie de prisão afetiva, ficando preso na obrigação de retribuir o afeto do monarca.
Para Gilberto essa retribuição é manifestada no amor que os súditos sentem pela figura
régia, amor que favorece a sujeição destes ao rei e que contribui para a paz e a ordem do
reino. Já que o frade afirma que o súdito só atingirá a tranquilidade, isto é, a realização plena
da paz, quando o súdito se sentir profundamente amado, neste caso, ele jamais se revoltará
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
A Majestas que podemos traduzir por majestade é uma antiga concepção romana que vinha sendo recuperada
pelos reis no século XIII dentro de um ponto de vista da teologia cristã. Essa concepção está ligada a ideia de
soberania. Para Le Goff, (2010: 600) a magestas é o termo que melhor exprime a soberania do rei no século
XIII.
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contra o rei. Dessa forma, se aproximando ainda mais da figura do pastor, o monarca e seus
defensores exigem a obediência de seus conduzidos. Na relação rei/súdito essa obediência é
conquistada com o uso de um discurso emocional criado em torno da figura do rei,
contribuindo para o sucesso da política régia.
Nas teorias do governo pastoral, a figura do pastor é aquele que tem a obrigação de
cuidar de suas ovelhas, Ele deve ser uma vigília constante, obrigado a se preocupar com as
necessidades básicas de cada uma delas, como por exemplo, a garantia da boa alimentação,
com a medicação das ovelhas doentes, com localização de pastagens seguras e propicia a boa
alimentação. Por meio dessas ações o pastor demonstra o zelo e a afeição por suas ovelhas.
Nesse sentido a figura de Luís IX é um exemplo espetacular, já que é sempre representado
como um rei que se preocupava com as necessidades básicas de seus súditos. Le Goff (2010:
579) chega a chamar Luis IX de rei alimentador, colocando em destaque uma de suas ações
caritativas mais marcantes, que é a prática da doação de esmolas, que deve ser direcionada,
sobretudo aos pobres (pauperes). É importante ressaltar que a prática da esmola no século
XIII foi sistemática.
A esmola é uma das mais significativas demonstrações de caritas, é uma atitude
típica da sociedade cristã desde sua origem. Em seu reinado, São Luís não hesitou em
instituir a esmola como uma das funções da casa real, criando um sistema de captação e
distribuição de esmolas, transformando essa prática em uma função da política régia dos
capetíngios. Em Gilberto, o rei deve ser generoso e distribuir suas riquezas aos súditos.
Podemos ver no ato de distribuir, uma demonstração da utilitas publica, sendo um ato de
contraposição a atitude da pessoa privada do rei. Vejamos uma citação de Gilberto.
É útil que o rei seja rico, mas de forma que considere pertencente ao povo as suas
riquezas, que as possua em nome alheio, já que por amor privado, a ele próprio não
deva pertencer, mas por dilatada afeição do coração, ele pertence a todos os súditos.
Como medida, ele deve imitar a munificência daquele rei que faz nascer seu sol
sobre os bons e maus, conforme está escrito: Dá a todo aquele que te pede (Lc 6,
30), tanto o afeto (affectus) da mente como o favor da caridade. (GILBERTO: 49-
50).
Gilberto nos mostra a imagem de um rei que deve estar atento em suprir as
necessidades dos súditos, já que não é atitude de um rei virtuoso pensar apenas em si, ou seja,
ele não deve ser egoísta inclinando-se ao amor privado (privato amore), mas deve ter como
propósito a realização do bem comum, manifestando aos súditos o que Gilberto chamou de
dilatato cordis affectu (dilatada afeição do coração), isto é, uma afeição que atinja a todos e
que venha da sensibilidade do coração. Uma das formas de demonstrações desse movimento
!
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afetivo acontece por meio das ações caritativas praticadas pelo rei. Uma das práticas mais
evidente é justamente a distribuição de esmolas, que deve ter como alvo, principalmente os
mais pobres (pauperes)15. É importante perceber que os pobres assumem um lugar importante
nessa obra. Gilberto mobiliza um discurso que tende a denunciar a atitudes de certos homens,
sobretudo de alguns oficiais do reino (bailios, prebostes, funcionários de corte), qualificados
pelo frade como os opressores e exploradores dos pobres. Diante dessa situação o rei é
aconselhado a assumir o papel de advogado dos pobres, não é sem razão que o frade utiliza a
expressão: pai dos pobres (pater pauperum) para se referir ao rei que exerce as ações
caritativas aos mais necessitados. Podemos perceber que nessa comunidade política, onde a
prática da caritas é entendida como uma obrigação social, os pobres tendem a serem vistos
como os receptores por excelência das ações caritativas. Isso nos mostra que tal categoria
tinha sua funcionalidade social bem definida dentro da sociedade, o que colabora com os
interesses da política regia capetíngia.
5 Conclusão
Percebemos que a utilização dos afetos, principalmente o termo affectus é uma das
características ou estratégia do discurso político de Gilberto. A representação de um rei
afetuoso se torna mais contundente quando associada à idéia de um rei que conduz seu povo
na observância da caritas, exercendo atitudes caritativas como a proteção oferecida aos
súditos e a distribuição de esmola, está última associada à alimentação dos pobres, uma forma
de garantir uma necessidade básica de seus súditos. Posto isso, o rei é semelhante a um pastor
cujo oficio é cuidar de suas ovelhas, garantindo-lhes as necessidades básicas na terra, para que
possam seguir com segurança à eternidade. Portanto, apesar das descontinuidades entre o rei
representado por Gilberto e o rei real, a representação gilbertina do rei está em conformidade
com certas atitudes de São Luís, construindo a imagem de um rei que conduz amando, um
pastor amoroso.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Os pobres (pauperes) na Idade média, pode ser vista como uma categoria social. Os considerado pobres
poderiam ser os deficientes alimentares (famelicus), os leprosos (Leprosus), os doentes (infirmus), os órfãos
(orphanus), as viúvas ( viduae), os cegos ( caecus), os injustiçados dentre outras categorias.
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