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Ordens religiosas na Idade Média (séc.XII-XV). Concepções de poder e


modelos de sociedade

Presentation · October 2018

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1 author:

Felipe Augusto Ribeiro


Federal University of Minas Gerais
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ORDENS RELIGIOSAS NA IDADE MÉDIA: CONCEPÇÕES DE PODER E


MODELOS DE SOCIEDADE (SÉCULOS XII-XV)

Atas do congresso internacional promovido pelo


Laboratório de Estudos Medievais, entre os dias
26 e 29 de maio de 2014, na Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais.

Belo Horizonte
2015
!

O65 Ordens religiosas na Idade Média (séc. XII-XV)


[recurso eletrônico]: concepções de poder e modelos de
sociedade: atas do congresso realizado nos dias 26 a 29 de
maio de 2014 na Universidade Federal de Minas Gerais /
[Aléssio Alonso Alves ... [et al.] org.]; Laboratório de Estudos
Medievais/UFMG - Belo Horizonte: LEME/UFMG,
2015.

1 recurso on-line (121 p.)


Inclui bibliografias.
ISBN:!978-85-62707-69-8.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

1. História Medieval . 2. Idade Média. 3.!Ordens


monasticas e religiosas. I. Laboratório de Estudos Medievais.
II. Universidade Federal de Minas Gerais.

CDD:940.1

CDU:930.9(08)
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FICHA TÉCNICA

Reitor da UFMG Organização

Prof. Dr. Jaime Arturo Ramirez Aléssio Alonso Alves


Alexsandra França
Diretor da FAFICH Clara Pernambuco Amaral
Felipe Augusto Ribeiro
Prof. Dr. Fernando de Barros Filgueiras Gabriel Oberdá Leão
Henrique dos Santos Grandinetti de Barros
Chefe do Departamento de História Letícia Dias Schirm
Olga Pisnitchenko
Profª. Drª. Ana Carolina Vimieiro Gomes Pamela Emilse Naumann Gorga
Pedro Henrique Barbosa Montandon de
Coordenador do curso de pós-graduação Araújo
em História Raquel Marques Soares
Ronaldo Romualdo Reis
Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta Ulli Christie Cabral
Wanderson Henrique Pereira
Comissão realizadora do congresso
Comissão editorial das atas
Coordenação
Editoração e montagem
Prof. Dr. André Luis Pereira Miatello
Prof. Dr. Bruno Tadeu Salles Aléssio Alonso Alves
Felipe Augusto Ribeiro
Comissão científica
Capa
Prof. Dr. André Luis Pereira Miatello
Prof. Dr. Bruno Tadeu Salles Letícia Dias Schirm
Profª. Drª. Claudia Regina Bovo
Prof. Dr. Francisco de Paula Souza de A correção gramatical e ortográfica dos textos,
bem como a sua adequação às normas da ABNT,
Mendonça Júnior
ficou a cargo de seus respectivos autores.

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AGRADECIMENTOS

O Laboratório de Estudos Medievais (LEME), núcleo UFMG, agradece a todos os que


se prestaram a fazer acontecer o congresso internacional Ordens religiosas na Idade Média:
concepções de poder e modelos de sociedade (séculos XII-XV).
Agradecemos aos órgãos que financiaram a iniciativa do Laboratório: o Departamento
e o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, nas
pessoas dos professores Drª. Ana Carolina Vimieiro Gomes e Dr. Luiz Carlos Villalta,
respectivamente.
Expressamos nossa gratidão aos que se dispuseram a trabalhar na árdua organização
desse evento e, especialmente, aos que contribuíram com o seu objetivo científico
apresentando comunicações sobre suas pesquisas acadêmicas, em vários níveis. Somada à
presença bastante participativa do público ouvinte que prestigiou nossas conferências e
mesas-redondas, tais contribuições certamente fizeram desse congresso uma excelente
oportunidade para o intercâmbio intelectual.
Relevamos também a contribuição que vários dos comunicadores fizeram para a
publicação destas atas, cedendo-nos os textos de suas comunicações orais, que agora
compõem mais uma publicação do LEME/UFMG.
Por todos os participantes, o Laboratório fica orgulhoso em oferecer à comunidade
científica brasileira mais esta publicação.

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SUMÁRIO

RECORRÊNCIA E TEMÁTICA DAS IMAGENS NA BASÍLICA


DE SÃO FRANCISCO .............................................................................................................. 4
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
Profa. Dra. Angelita Marques Visalli
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“NO SERMON MUI GRAN GENTE QUE Y ERA”: OS FRADES PREGADORES NAS
CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII)............................................................................ 18
Bárbara Dantas
Prof. Dr. Ricardo da Costa

A ORDEM DE CLUNY E AS PEREGRINAÇÕES A SANTIAGO DE COMPOSTELA .... 41


César Augusto da Silva Foga
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IMAGENS DE DEUS: TEMPO E MOVIMENTO NA TRINDADE TRIÂNDRICA ........... 54


Maria do Céu Diel de Oliveira
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ENTRE VETUSTAS E NOVITAS: O CONFLITO ENTRE BERNARDO DE CLARAVAL E


PEDRO ABELARDO SOBRE O MONAQUISMO................................................................ 66
Rafael Bosch
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A PREGAÇÃO FRANCISCANA FACE ÀS REGRAS BULADA E NÃO BULADA NA


PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIII .............................................................................. 75
Victor Mariano Camacho
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O PASTOR AMOROSO: A MOBILIZAÇÃO DO CONCEITO DE AFFECTUS NAS


PRÁTICAS DO PASTORADO RÉGIO (SÉC. XIII) .............................................................. 90
Wanderson Henrique Pereira

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RECORRÊNCIA E TEMÁTICA DAS IMAGENS NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO

André Luiz Marcondes Pelegrinelli1


Profa. Dra. Angelita Marques Visalli (orientadora)2

RESUMO

A religiosidade cristã no período medieval é fortemente atrelada ao uso de imagens para


ensinar, recordar ou levar à ascese espiritual, como recordaria o Papa Gregório em uma carta
a um bispo iconoclasta no século VII. Neste nosso estudo pretendemos levantar considerações
sobre a presença de imagens na Basílica de São Francisco, Assis, construção essa iniciada em
1228 e que não se limitou somente a ser casa-mãe de todos os franciscanos, mas um projeto
político cultural de construção da imagem do santo de Assis e dos princípios norteadores da
Ordem. A Basílica recebeu os cuidados de grandes nomes da pintura italiana como Cimabue,
Giotto e Pietro Lorenzetti e dentre as imagens que compõe as paredes da Basílica, pintadas
em sua quase totalidade, encontramos três grandes categorias: imagens-ornamento, imagens
narrativas e imagens de culto. Dentre as narrativas, bem conhecidos já são os trabalhos que
analisam a narrativa da vida do Santo de Assis (na Basílica Superior) como construtora
definitiva da imagem de Francisco, nesse estudo pretendemos alargar estes limites e levantar
considerações sobre a presença e recorrência dessas outras categorias de imagem.
PALAVRAS-CHAVE: Basílica de São Francisco. Imagem Medieval. Ordem Franciscana.

ABSTRACT

The Christianity religiosity in the medieval period is strongly linked to using images for
teaching, remember or bring to a spiritual ascension, as Pope Gregory would remember in a
letter to an iconoclast bishop of the VII century. In our research, we'd like to rise
considerations about the presence of images in of Basilica Saint Francis of Assisi, building
that began on 1228, that didn't limit itself by being only the house of all Franciscans, but a
political cultural project of the construction of image of Saint of Assisi and the guiding
principle of the Order. The Basilica had been taken care by great names of the Italian painting
like Cimabue, Giotto and Pietro Lorenzetti and within the images that compose the walls of
the Basilica, painted in almost all your totality, we find three big categories: ornament-
images, narrative images and cult images. Within the narratives, are well known the works
that analyze the narrative of the life of the Saint of Assisi (in the upper Basilica) as the builder
of the definitive image of Francis, in this work we'd like to enlarge those limits and create
considerations about the presence and recurrence of these categories of images.
KEYWORDS: Basilica of Saint Francis. Medieval Image. Franciscan Order.

1 Introdução

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1
Graduando em História da Universidade Estadual de Londrina.
2
Professora adjunta ao departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.
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A data de três de outubro de 1226 marca a morte de Francisco de Assis, na pequena


Capela Santa Maria dos Anjos, Porciúncula. Velado e sepultado na Igreja de São Giorgio,
atual Capela do Santíssimo Sacramento na Basílica de Santa Clara. Quatro anos depois, o
corpo foi retirado de seu sepulcro e transladado até a majestosa Basílica de São Francisco,
igreja-mãe de toda a Ordem e que teve sua construção iniciada no mesmo ano da canonização
do poverello, 1228.
A igreja-mãe franciscana não se justificava apenas enquanto espaço de reunião ou
túmulo do padroeiro, mas foi um grandioso projeto político, ora refletindo o projeto papal,
dos espiritualistas, dos conventualistas, etc. Considerando que a expansão de fronteiras
documentais pela Nova História Cultural levou os historiadores a explorar o terreno das
imagens, pretendemos levantar considerações sobre as imagens que estão nessa Basílica.
Identificamos três grandes grupos imagéticos na Basílica: imagens narrativas, imagens
ornamento e imagens devocionais.

2 A Ordem, a basílica, o poder

Após voltar da missão ao Oriente, Francisco encarrega a direção da Ordem à Frei


Pedro Cattani (????-1221), o novo vigário guia a Ordem por muito pouco tempo, morreu um
ano depois. O Capítulo Geral de 1221 nomeia um novo ministro geral Frei Elias (1180-1253).
Esse será o responsável por guiar a Ordem nos delicados anos que seguem a morte de
Francisco, Elias acompanhou com proximidade o processo de canonização de Francisco e foi
responsável pela encomenda do projeto inicial da Basílica de Assis.
Junto ao cuidado de Elias, nesse projeto inicial, uniu-se o apreço de Gregório IX para
com o Santo e sua Basílica, de caráter papal, ou seja, que recebia interferência direta do
pontífice e era dotada do caráter de oficialidade quando da visita do papa. Diz-nos a Legenda
dos Três Companheiros:

O próprio sumo pontífice não somente honrou o santo a quem amara sumamente
enquanto [este] vivia, canonizando-o de maneira maravilhosa, mas também
enriqueceu com sagrados presentes e preciosíssimos ornamentos a igreja construída
em sua honra, em cujo fundamento o mesmo senhor papa colocou a primeira pedra.
[...] Mandou para a mesma igreja uma cruz de ouro, ornada com pedras preciosas, na
qual estava engastado o lenho da cruz do Senhor, como também ornamentos, vasos e
muitas coisas pertinentes ao ministério do altar com muitas alfaias preciosas e
solenes (3S, 72).

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Uma cruz de ouro, pedras preciosas, alfaias preciosas, riqueza. A Questão Franciscana
centraliza vários dos debates no primeiro século da Ordem dos Frades Menores e não ocupa
menor lugar na Basílica. Se ela não é rica em ouro, como serão, por exemplo, os riquíssimos
templos barrocos, o trabalho das pinturas da Basílica não valia menos: Giotto, Cimabue,
Pietro Lorenzetti, e outros que lá trabalharam “valiam ouro” na pintura italiana. Para
Gianfranco Malafarina, a pequena quantidade de relatos milagrosos dentro da faustosa
Basílica foi interpretada pelos frades contemporâneos como a não satisfação do Santo para
com a Basílica e todo o investimento nela (MALAFARINA, 2011: 12).
A Basílica de Assis é dupla. A Igreja Inferior abriga o túmulo do santo, foi projetada
especialmente para que fosse um grande sarcófago, recebendo os peregrinos e especialmente
os frades menores, por muito tempo o acesso ao túmulo foi restrito. A Igreja Superior, ampla
e alta funcionava como Basílica Papal, acolhia as grandes celebrações e os capítulos gerais.
Ambas, superior e inferior são ricamente pintadas em quase sua totalidade: paredes,
colunas, abóbodas, todas são preenchidas por narrativas, imagens de santo, estrelas, etc., aqui
realizamos somente considerações iniciais sobre as imagens figuradas no edifício, passamos
então para a sugestão da divisão desse grande corpus documental em três categorias: imagens
narrativas, imagens ornamento e imagens devocionais.

3 Imagens Narrativas

A Basílica de Francisco é acima de tudo um projeto político, de poder, e para bem


cumprir este fim, a Basílica foi amplamente preenchida por imagens com caráter narrativo.
Não queremos correr o risco de simplificar as funções da imagem medieval a uma “bíblia dos
iletrados”, fórmula ultrapassada, surgida da interpretação equivocada da carta do Papa
Gregório Magno à Serenus de Marselha, ano 600, e que não dá conta das suas reais funções.
Apesar disso, nota-se claramente nas pinturas narrativas uma função pedagógica que se
desenrola através da memória e instrução. Um ciclo narrativo não era venerado, tampouco
possuía apenas a função de colaborar na ascese espiritual, mas, ordenar, por exemplo, a
infância de cristo em cinco cenas – como fez Giotto na Basílica Inferior – implica em criar
uma narração que recorda as descrições evangélicas e as ensina.
A Igreja Inferior, em seu primeiro projeto possuía dois grandes ciclos narrativos: a
Vida de Cristo à esquerda e a Vida de Francisco, à direita, o Mestre de São Francisco, artista
do qual não conhecemos muito, projetou um paralelismo entre os ciclos à fim de criar uma

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identidade e correspondência entre a Vida de Cristo e a Vida de Francisco, apresentando-o


como um alter christus.
A abertura das capelas laterais destruiu boa parte desses ciclos paralelos, mas, em
contraponto, as capelas que foram abertas possuem ciclos referentes aos santos padroeiros,
são elas – as capelas e os ciclos: Santo Antonio Abade, Santa Catarina, Santo Stefano, Santo
Antonio de Pádua, Maria Madalena, São Martinho, São Pedro Alcantara, São Nicolau de Bari,
São João Batista – além destes ciclos, que estavam nas capelas, destacamos também o ciclo da
Infância de Cristo e da Vida de Cristo, respectivamente atribuídos a Giotto e a Pietro
Lorenzetti.
A Igreja Superior recebeu dois grandes ciclos: Cenas da Vida de Francisco e Cenas do
Antigo e Novo Testamento, o primeiro ocupando a parte inferior das paredes, mais próxima
do olhar dos fiéis e a segunda ocupando a parte de cima, dividindo o espaço com vitrais
(Figura 1):

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Figura 1: Basílica Superior. Afrescos dos Ciclos de Cenas do Antigo e Novo Testamento (cima) e Ciclo da Vida
de Francisco (baixo)

As atribuições quanto à autoria destes ciclos são muito questionáveis: Vasari atribui o
grande ciclo de Cenas do Antigo e Novo Testamento à Cimabue, mas há registro neste ciclo,
por exemplo, da atividade de Jacopo Torriti e de outro artista, Mestre de Isaac. Quanto ao

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ciclo de Cenas da Vida de Francisco, a atribuição a Giotto e sua oficina é bem aceita no meio
dos historiadores. (MALAFARINA, 2011; WOLF, 2007; LUNGHI, 1996; NESSI, 1994).
O famoso ciclo de Giotto é formado por vinte e oito cenas consideravelmente bem
conservadas – se levarmos em conta os dois grandes terremotos de 1997 – e ocupa uma
sequência linear iniciando próximo do altar, ao lado direito da igreja, como assinala
Francastel:

das vinte e oito cenas, apenas três ilustram virtudes propriamente franciscanas. As
outras composições exaltam sete vezes milagres espetaculares, oito vezes cenas
honoríficas da vida do santo, seis vezes aspectos da mística oficial romana
(FRANCASTEL, 1973: 337).

Foi inspirada na Legenda Maior de Boaventura, única hagiografia considerada oficial


pela Ordem após o Capítulo Geral da Ordem de 1226, que ordenou a destruição de todas as
outras hagiografias, inclusive as anteriormente oficiais, como a Primeira e Segunda Vida de
Tomás de Celano.
O Ciclo da Vida de Francisco reanimou os estudos de historiadores para com a
imagem na Ordem dos Frades Menores no pioneiro estudo de Chiara Frugoni, “Francisco e a
invenção dos estigmas”, de 1983.
As observações de Frugoni reforçam o discurso de que os historiadores não devem
procurar nas imagens a confirmação da informação letrada. Nas hagiografias, a pregação de
Francisco aparece várias vezes, em contraposição, e segundo Frugoni, essa função é esvaziada
nas imagens da Basílica, em seu lugar, Antonio é apresentado como o verdadeiro pregador da
Ordem, os afrescos se centram muito mais na atividade taumatúrgica de Francisco.
Parece haver um claro objetivo ao figurar as ações de Francisco que são mais ligadas a
milagres, ao sobrenatural, o santo de Assis foi divinizado a tal ponto que, copiá-lo seria
impossível – a começar pela insistência de atenção para com os estigmas -, apresentar outros
modelos, como Santo Antonio, tornava mais acessível o modelo franciscano e mais que isso,
harmonizava os contrastes e, mesmo radicalidades que afloravam nos frades. Apresentar um
Francisco inalcançável era uma ótima estratégia para dar fim à Questão Franciscana: querer
copiar em tudo o mestre não era difícil, era impossível.
Não aprofundamos aqui, mas merece menção a abóbada da Igreja Inferior (Figura 2),
pintada possivelmente por dois discípulos de Giotto e suas oficinas, que apresentam São
Francisco em Glória e a tríade franciscana: Pobreza, Obediência e Castidade. Pensamos essas
quatro imagens como narrativas não no sentido de apresentarem a sucessão de “fatos

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ocorridos”, mas narrarem a espiritualidade franciscana, sob a ótica conventualista. O afresco


“São Francisco em Glória” narra Francisco envolto em um coro de anjos, é figurado jovem, e
acompanhado da inscrição “Renovai a lei evangélica e preparai o caminho para completa
salvação celeste”. A “Alegoria da Pobreza” figura Cristo celebrando o casamento místico da
pobreza, representada como uma jovem moça e à esquerda um jovem se despindo para doar
suas vestes. A “Alegoria da Obediência” traz a figura de um frade que ajoelhado se submete a
autoridade de outro e recebe o mandato de silêncio. Por fim, a “Alegoria da Castidade” figura
uma virgem no alto de uma torre e um jovem sendo purificado ao buscar a castidade.
Malafarina (2011: 111) aponta essa abóboda como ferramenta dos conventuais para
solidificarem sua vivencia do franciscanismo.

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Figura 2: Abóbada: Tríade Franciscana e Francisco em Glória

A imagética franciscana tende, em seus primeiros séculos, a ser inserida em narrativas,


não poucos são os ciclos nas paredes de igrejas, távolas, etc. (VISALLI, 2011: 228).

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Assim com as igrejas góticas se abrem as multidões que se agrupam para ouvir os
sermões, as imagens apresentam-se com um caráter público, de disseminação em
escala maior. Afinal, o crente pode acompanhar o acontecido: a hagiografia[...] na
medida em que a vida do santo é ambientada com direito a testemunho em tempo
‘real’ (VISALLI, 2011: 229).

4 Imagens Ornamento

Ao falarmos em ornamento, nos servimos da definição de Jean-Claude Bonne sobre


essa “categoria” de imagens (BONNE, 2009, p. 44): o ornamento não tem caráter de narração,
tampouco de contemplação, mas decorativo, estético,

[...] os valores decorativos [ornamentais] são percebidos apenas en passant, sem que
o olhar se detenha especialmente sobre eles [...] Ele se inscreve, por excelência, na
dinâmica dos rituais, nos quais ele é um intensificador ao mesmo tempo sensorial e
motor [...] todo ambiente de culto recebia uma decoração, por menor que ela fosse
(BONNE, 2009:. 44).

No latim, a família do termo ornamento, ornare, não remete somente a uma decoração
superficial, secundária e dispensável, mas é essencial para que um equipamento cumpra
plenamente sua função. Uma imagem ornamento, na lógica da imagética medieval, só faz
sentido e oferece toda a sua percepção atrelada ao espaço em que se encontra. Vale lembrar,
que é a noção moderna de arte, do Renascimento, com suas pinturas em tela que
desterritorializam em muito a noção de imagem: uma tela não é fixa, pode ocupar uma sala de
estar, um restaurante, uma igreja, um museu, etc.
Dentro das imagens ornamento na Basílica pensamos em quatro grandes motivos que
tendem a se repetir: geométrico, natureza, céu estrelado e bustos de personagens.
Linhas retas, vértices, quadrados, a basílica decorada com vários ângulos. Essas
pinturas geométricas (Figura 3) dão a ilusão de que as paredes são ainda mais altas, de que
existem mais colunas, assim a repetição geométrica em muito faz a Basílica parecer mais
imponente.

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Figura 3: Ornamento com motivos geométricos. Igreja Inferior.

Figuras naturais, motivos florais e o céu estrelado lembram o fiel do espaço sagrado: o
espaço do templo precisava ser como um pedaço da esfera celeste na terra. As folhagens
(Figura 4), flores, não só embelezam esteticamente mas lembram o paraíso, o Jardim do Éden
“perdido” por Adão e Eva. O céu estrelado, nas abóbodas mais altas da Igreja Superior em
muito lembram as construções góticas, altíssimas, que queriam “tocar o céu”. Essa técnica, de
preencher os tetos com estrelas é característica da oficina de Giotto. A Capella degli
Scrovegni, em Pádua, recebeu o mesmo cuidado de céu azul estrelado.

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Figura 4: Ornamentos com motivo de natureza. Igreja Inferior.

Percebemos também o ornamento que usa da efígie de personagens, principalmente


nas abóbadas da Igreja Superior e em alguns detalhes na inferior. Na Igreja de cima chama a
atenção a Abóbada dos Doutores da Igreja, com as imagens de Gregório Magno, Agostinho,
Jerônimo e Ambrósio. Outra abóbada reúne personagens celestes: São João Batista, a Virgem
Maria, Cristo e anjos acompanhando-os (Figura 5). Outra ainda é dedicada aos Evangelistas:
Mateus, Marcos, Lucas e João. O que nos permite afirmar que essas efígies são ornamentais e
não devocionais? Sua prática: além de não ocuparem lugar de destaque dentre as outras
imagens, são visualmente muito distantes do observador a altura do chão. Na Igreja de baixo
encontramos pequenas efígies, pintadas, que mais dão a sensação, ao observador distante, de
pequenas esculturas do que pinturas, não apresentam características que os permitam a ligar a
algum personagem específico.

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Figura 5: Abóbada ornamentada com personagens celestes. Igreja Superior.

O ornamento completa e permite a plena funcionalidade das coisas. Francisco iniciou


suas atividades ao reconstruir igrejas, ainda que essa prática tenha se dado graças à
interpretação inicial daquele pedido (“Francisco, vai e reconstrói minha igreja, que como vês
está toda em ruínas”), ela se torna importante na espiritualidade da Ordem. Reconstruir igrejas
é permitir seu pleno funcionamento, ornamentá-las também.

5 Imagens Devocionais

Imagens devocionais estão atreladas ao culto. Essas imagens possuem maior caráter de
ser do que coisa. Jean-Claude Schmitt as chamou de imagens-corpo (1996), Jérôme Baschet
as chama de imagem-objeto (2006). Daniel Russo prefere o conceito mais abrangente, de
imagem-presença (2011).
Em suma, esses conceitos, imagem-corpo, objeto ou presença, referem-se a imagens
que têm seu pleno sentido não em si próprias, mas atreladas a locais e práticas. Não bastam
apenas seus aspectos iconográficos, mas outros documentos que relatam a prática dos fiéis
com relação a essas imagens, que nos permitem compreender seus usos e funções. Os relatos
de milagres em torno da imagem acrescentam práticas ligadas à mesma, ao mesmo tempo, a
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possibilidade, por exemplo, de movê-la a faz ter possibilidades diferentes de uso, como a de
procissão, o que não acontece com os afrescos. Imagens devocionais têm sua importância
crucial garantida não pelo fato de serem alguém, mas carregarem a possibilidade de, através
de uma manifestação sobrenatural, vir a ser alguém.
O Museu do Sacro Convento testifica a existência de uma grande quantidade de
imagens devocionais móveis na Basílica, entretanto, ao delimitarmos essa pesquisa em
imagens nas paredes o número diminui consideravelmente. Comum é, seja na Superior ou na
Inferior, umas como espécies de retábulo pintados nas paredes, figurando principalmente a
Virgem, Francisco e um terceiro personagem, por vezes o encomendador da obra.
O difícil acesso e produção de um levantamento completo das imagens na Basílica têm
restringido em muito uma análise maior dessas imagens devocionais, contudo, notamos que
são mais recorrentes na Basílica Inferior e encontramos principalmente imagens da Virgem
que lembram os ícones móveis, as Virgens entronizadas e/ou com o menino e uma ou outra
imagem do santo ao qual cada capela se dedica (Figura 6).

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Figura 6: Virgem com o Menino entre São João Batista e São Francisco. Capela de São João Batista. Igreja
Inferior.

Essas imagens nos oferecem chaves para pensar a Ordem como um jogo de poder, ou
ainda, desde um ponto de vista cultural, a devoção daqueles que a freqüentavam: do Papa e os
frades menores ao pobre fiel penitente.

6 Considerações finais

É bem conhecida e debatida as grandes dificuldades em estudar história medieval no


Brasil. Os estudos imagéticos sobre a Basílica são recentes também, vale lembrar que a obra

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pioneira de Chiara Frugoni completou apenas 30 anos. Ainda assim insistimos na importância
da Basílica para o período, para a Ordem e para a devoção.
Ao propor três grandes categorias de imagens não queremos engessar as possibilidades
de visão sobre essas imagens, mas, observações inicias tem demonstrado a boa funcionalidade
destas grandes categorias. Dependemos do acesso a documentação escrita, contratos com os
pintores e outras documentações para pensar várias das questões da Basílica, como por
exemplo, a famosa pintura de Cimabue na Basílica Inferior da Virgem entronizada com
quatro anjos e Francisco, essa imagem foi de tal forma apropriada que definiu a imagem do
santo, entretanto, é necessário para pensar a imagem saber o que havia ao redor dela, as atuais
pinturas ao redor foram pintadas por Giotto sobre essas imagens anteriores, entre as quais se
encontra esta de Cimabue, porque, por exemplo, apenas esta imagem foi mantida da pintura
primeira da parede? Questões a serem pensadas. Com olhar mais atento, sabemos que não há
imagem na Basílica totalmente dissociada das outras categorias: elas se completam. Imagens
que narram, ornam, levam à ascese espiritual, legitimam poder, reforçam as escolhas
espirituais da ordem, enfim, a rica e extensão figuração da Basílica certamente não preenche
todas as possibilidades de uso da imagem no Medievo, mas manifesta grande parte delas.

REFERÊNCIAS

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. São


Paulo: Globo, 2006.

BONNE, Jean Claude. Arte e environnement: entre arte medieval e arte contemporânea. In:
FONSECA, Celso Silva; RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; COELHO, Maria Filomena
(orgs.). Por uma longa duração: perspectivas de estudos medievais no Brasil. VII Semana de
Estudos Medievais. Brasília: Universidade de Brasília, 2010.

FRANCASTEL, Pierre. A arte italiana e o papel pessoal de São Francisco. In: A realidade
figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 323-340.

LUNGHI, Elvio. The Basilica of St. Francis at Assisi. London: Thames and Hudson, 1996.

MALAFARINA, Gianfranco. Assise: la Basilique de Saint François. Paris: Seuil, 2011.

NESSI, Silvestro. La Basilica di S. Francesco in Assisi e la sua Documentazione Storica.


Assis: Casa Editrice Francescana, 1994.

RUSSO, Daniel. O conceito de imagem-presença na arte da Idade Média. Revista de


História. São Paulo, n. 165, jul./dez. 2011. p.37-72.

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SCHMITT, Jean Claude. La culture de l’imago. Annales. Historie, Sciences Sociales, 51e
année. n. 1, 1996. p. 3-36.

TEIXEIRA OFM, Frei Celso Márcio (org.) Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis/RJ:
Editora Vozes, 2008.

VISALLI, Angelita Marques; OLIVEIRA, Terezinha (orgs.). Leitura e Imagens da Idade


Média. Maringá/PR: EDUEM, 2011.

WOLF, Norbet. Giotto. London: Taschen, 2007.

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“NO SERMON MUI GRAN GENTE QUE Y ERA”: OS FRADES PREGADORES NAS
CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII)

Bárbara Dantas1
Prof. Ricardo da Costa2

RESUMO

Com o gradativo enriquecimento da sociedade medieval na Idade Média Central, os vícios


também se disseminaram. Avaritia, superbia, luxuria. O Setenário ganhou corpo. Se os
séculos XI e XII caracterizaram-se pelo domínio dos monges que viviam para o ora et labora,
a partir de suas clausuras nos monastérios rurais, díspar foi o séc. XIII. Em todo Ocidente
pulularam as ordens de frades pregadores que, a partir das catedrais urbanas e dos
aglomerados citadinos, tornaram-se mestres da intelectualidade, dedicados e humildes
disseminadores da Palavra de Cristo e dos ensinamentos da Bíblia. Com os exempla (breves
sermões com uma narrativa mnemotécnica simples e repetitiva para conquistar uma plateia)
Dominicanos e Franciscanos esforçaram-se abnegadamente em conquistar mentes e espíritos
para a prática de um Cristianismo mais pio, próximo da Vita Christi, da pobreza e da
simplicidade dos primeiros apóstolos. O objetivo desse trabalho é apresentar duas
representações textuais e imagéticas de frades Dominicanos e Franciscanos contidas
nas Cantigas de Santa María, compilação de milagres e louvores implementada pelo rei
Afonso X (1221-1284) de Castela e Leão. Nosso levantamento temático das Cantigas, além
de nosso método compreensivo-histórico (traduzi-las diretamente dos originais e realizar uma
descrição iconográfica de duas iluminuras das cantigas 103 e 266), trouxe-nos interessantes
questões à baila sobre as relações entre texto e contexto, entre imagem e suporte, entre Arte e
História. Sem Arte, sem Cultura, não é possível pensar, repensar e recriar o passado,
especialmente o da Idade Média, solo tão fértil no qual brotaram tantas manifestações
artísticas.
PALAVRAS-CHAVE: Iconografia Medieval. Cantiga. Frades Pregadores.

ABSTRACT

With the gradual enrichment of medieval society in the Central Middle Ages, the vices also
are widespread. Avaritia, superbia, luxuria... The Septenary grew up. If the XI and XII
centuries were characterized by the dominance of the monks who lived for the ora et labora
from their cloister in rural monasteries, distinct was the XIII century. In the Medieval West,
swarmed the orders of preaching friars who, from the urban cathedrals, of the agglomerates
cities, have become masters of the intellectuality, but especially, dedicated and humble
disseminators of the Word of Christ and the teachings of the Bible. With the exempla (short
sermons with a simple and repetitive narrative Mnemotechnic in order to convince the
audience), Dominicans and Franciscans strove selflessly to win minds and spirits to the
practice of a more pious Christianity, nearest Vita Christi, from the poverty and simplicity of
the first apostles. Our thematic survey of the Cantigas, beyond our understanding-historical
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Graduanda de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista/UFES do Projeto
interinstitucional de pesquisa (UFES-UNESP/Marília) Manifestações estéticas da Arte Românica na
Península Ibérica Medieval (sécs. XI-XIII). E-mail: <babicovre@gmail.com>.
2
Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Site: <www.ricardocosta.com>.
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method (translate them directly from the original and realize an iconographic description of
two illuminations of 103 songs and 266), brought us interesting questions about the
relationship between text and context, between image and support, between Art and History.
Without Art, without Culture, you cannot think, rethink and recreate the Past, especially the
Middle Ages, fertile period in which so many artistic manifestations.
KEYWORDS: Medieval iconographic. Medieval Songs. Preaching Friars.

1 Introdução

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Figura 1: Margem inferior de uma página da Bíblia de Abbey. Bolonha, Itália (c. 1250-1262). Jean Paul Getty
Museum, Ms. 107, folio 224r. Têmpera e folha de ouro sobre pergaminho.

Frades dominicanos e franciscanos cantam na Figura 1. Suas vestimentas são os


atributos iconográficos que os diferenciam (BOUCHER, 2010: 146). Cada grupo está na
frente de um enorme livro, ricamente iluminado e apoiado sobre um atril. Os dominicanos são
presenteados com a regência do próprio Cristo. Realizada por uma renomada oficina de
artífices bolonheses especializados na produção de bíblias iluminadas em estilo gótico, esta
Bíblia foi encomenda de um mosteiro dominicano. Isso explica o fato de Cristo estar regendo-
os, não aos franciscanos – que, na iluminura, observam, tristes, a preferência divina
(MORRISON, 2014). A utilização de imagens nas margens não é algo que ocorreu ao longo
de todos os séculos medievais. Elas começaram a abrigar imagens a partir do século XII. As
iluminuras marginais dos manuscritos são fontes complexas e fabulosas. Estão entre as que
melhor preservam a arte medieval, pois expressam as muitas faces da realidade e da cultura da
época (PEREIRA, 2008: 216).

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2 O exército de Deus

As paredes da nave da Basílica na Figura 2 estão decoradas com frescos que contam a
história do Poverello, o monge mendigo, Francisco de Assis (1182-1226). A partir da entrada
do santuário, somos rodeados pela genialidade de Giotto. Os frescos cobrem as paredes
inferiores e, na parede superior, juntam-se aos vitrais do clerestório para narrar, de forma
plástica, os principais eventos da vida do santo em diversos quadros com iconografia
historiada (WOLF, 2007: 7). A dramaticidade das cenas não está presente apenas nas
expressões faciais dos personagens – característica estilística que alçou Giotto ao grau de
excelência na História da Arte –, mas também no panejamento das roupas, na movimentação
dos corpos e nas curvas arquitetônicas que indicam, retrospectivamente, uma perspectiva pré-
renascentista que ali nascia. Na imagem, São Francisco luta contra sete forças diabólicas,
possivelmente uma personificação dos sete pecados capitais. Sua espiritualidade e abnegação
deram-lhe forças para cumprir seu papel no combate aos vícios que o diabo incitava a
Humanidade a praticar.

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Figura 2: Giotto di Bondone (1267-1337). São Francisco expulsa o Diabo de Arezzo, c. 1296/97. Basílica
superior de São Francisco de Assis, Itália. Detalhe do afresco.

Especular os enigmas do Universo, criação de Deus. Absorver em toda sua plenitude


espiritual as palavras bíblicas. Até o século XII, ser um religioso, particularmente um monge,
também significava dedicar-se a estas atividades espirituais (BERLIOZ, 1994: 10). O
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princípio de vida nos monastérios era o ato de compartilhar a existência em comunidade.


Nela, cada um na solidão, todos nas homilias, estariam absortos para estudar a Palavra e orar
pela Humanidade.
Pensava-se a Humanidade de então sob diversos aspectos e formas: o filósofo Ramon
Llull, por exemplo, deixou para a posteridade um quadro social do séc. XIII rico em diversos
ofícios e funções, distribuídos nas artes liberais, musicais, religiosas e mecânicas (COSTA,
2006: 136). Para outros pensadores do período, a sociedade feudal seria tripartida, os
camponeses seriam os laboratores; os nobres, os bellatores, e os religiosos, os oratores
(BASCHET, 2006: 166).
Contudo, orar também era combater. Lutar contra as forças do mal. Aqueles foram
tempos nos quais viver era uma luta cotidiana. A natureza era indócil, incompreendida. As
massas empobrecidas lutavam contra os infortúnios de uma vida rude. Os terrores da guerra
atormentavam a todos, sem distinção. Lutar, para os religiosos, era rezar contra as forças
demoníacas que não se cansavam de tentar os homens a praticar o mal. Cristo, nos séculos XI
e XII, era costumeiramente, representado como Majestas Domini (Senhor do Universo)
(DUBY, 1979: 57), simbolismo máximo de uma divindade soberana, que servia como
alicerce aos crentes em sua luta contra o mal.

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3 O monarquismo ocidental

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Figura 3: Le Mont Saint Michel. Normandia, França. “Maravilha do Ocidente”. Século VIII.

A abadia da Figura 3 está no centro de uma imensa baía invadida pelas marés altas das
praias da Normandia. Construída e consagrada como igreja em homenagem ao arcanjo
Miguel, chefe da milícia celestial, no ano de 709. Uma comunidade de beneditinos se
estabeleceu no santuário em 966 e a igreja pré-românica foi construída antes do ano mil. No
século XI, a abadia (em estilo românico) foi fundada sobre um conjunto de criptas, no cume
da rocha e os primeiros edifícios monásticos foram construídos na parede norte. No século
XII, os edifícios do mosteiro foram ampliados. Após a conquista da Normandia, no séc. XIII,
o rei Filipe Augusto (1165-1223) mandou executar as obras de ampliação e ornamentação de
dois edifícios no estilo gótico (MICHEL, 2014). Sobreposição de estilos. No decorrer da
Idade Média, grande parte dos santuários, ao invés de serem substituídos por outros, sofreram
alterações, ampliações, ornamentações (DUBY, 1997: 71). Variações de contextos políticos e
estéticos. Evolução das técnicas e da riqueza dos materiais, em uma estrutura na qual a
religiosidade, soberana, imperava.
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“Maravilha do Ocidente”. Sua importância ultrapassou fronteiras. Nas Cantigas de


Santa María, o mosteiro é o palco da cantiga 39 na qual a escultura da Virgem Maria,
milagrosamente, permanece intacta depois de um terrível incêndio: “Ond´ avẽo em San
Miguel de Tomba, no mõesteiro que jaz sobre lomba dũa gran pena, que já quant´é comba, em
que corisco feriu noit´ escura” (METTMAN, 1989, v. I: 156).
No Céu, morada de Deus, os santos formavam um exército de combate. Na Terra, os
monges eram o exército de Deus. Suas vidas abnegadas em prol da oração e do conhecimento
da Palavra estavam, de modo geral, ordenadas pelas premissas de São Bento (480-547). Ele
transpôs para o papel os ideais de uma vida cenobítica voltada à oração e à pobreza de forma
simples e, sobretudo, praticável. Por isso, majestosa. Contrariamente aos costumes
monásticos dos primeiros séculos da Idade Média, a regra beneditina não exigia um grau de
mortificação física e espiritual irrealizável para a grande maioria (VAUCHEZ, 1994: 22).

1. Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de


boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai 2. para que voltes,
pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela desídia da
desobediência. 3. A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas
que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas
armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei (SÃO BENTO
DE NÚRSIA).

Uma das primícias da Regra era fechar-se em comunidades religiosas independentes,


autossuficientes, para assim driblar o flagelo da fome e fortificar-se contra os invasores
(DUBY, 1995: 29). Mas, sobretudo, no ambiente monástico, a fé e a cultura eram enaltecidas.
Obediência e humildade. Os monges obedeceriam ao abade, mas viveriam em igualdade
perante seus pares. Silêncio. Através da leitura da Palavra, os monges impregnariam seus
espíritos em Cristo. Labor. A vida ascética foi minimizada em prol do trabalho manual. A
produção de manuscritos, por exemplo, uniu a necessidade de difundir os ditames da religião
à de ocupar o tempo com uma prática laborativa.

3 Um novo tempo

Passagens da vida de São Domingos de Gusmão (1170-1221), fundador da ordem


dominicana, estão representadas em cinco quadros na predela do retábulo da Virgem
localizado no Louvre. A Figura 4, terceiro dos cinco quadros, mostra o santo em seu leito de
morte (LOUVRE, 2014). Um filactério sai da boca do moribundo frade: são palavras de
consolo e fé para os que permanecerão no mundo terreno e continuarão a pregar o nome de
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Cristo e assim trazer para a salvação os que estão perdidos e em pecado. O gesto de São
Domingos, com a mão direita a admoestar os presentes, chamam-nos às obrigações como
militantes de Cristo.

Figura 4: Fra Angelico (1417-1455). A morte de São Domingos, 1434-1435, painel do retábulo da Coroação da
Virgem do altar do convento de São Domingos, Florença, Itália. Museu do Louvre, Paris.

O século XII foi um tempo de estupefação. Substanciais mudanças nas práticas das
ordens monásticas aconteceram. Não mais a clausura e os trabalhos manuais absorveriam
integralmente as forças dos pios monges. Eram novos tempos. A fome recuou. As cidades
cresciam. O comércio florescia e a riqueza começava a se propagar. Para os religiosos mais
conservadores, esta mesma riqueza começava a corromper e degradar a alma e, por fim,
induzir os fiéis ao pecado. A partir de então, a luta contra as forças diabólicas precisaria mais
do que orações solitárias e homilias suplicantes. Exército de Deus na terra, os monges
precisariam sair para enfrentar a vida secular, o mundo (DUBY, 1979: 170).
Maior ordem religiosa do século XI, Cluny foi invadida pela riqueza. Um luxo em prol
da magnificência do Paraíso. Suas abadias e mosteiros foram as mais majestosas obras de seu
tempo, pois se difundiram pelos campos de todo o Ocidente Medieval. Talvez por isso mesmo
é que alguns monges cluniacences tenham sido acusados de glutonaria e serem mais afeitos a
disputas políticas que a uma vida em prol da oração e da caridade. Talvez. A decadência da
vida monástica já se insinuava (DUBY, 1979: 122).

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Tudo começou nas cidades, diziam os moralistas, naqueles conglomerados de pessoas


e de práticas tão diversas em um circunscrito espaço geográfico (LE GOFF, 1998: 95). A
cidade começou a se sobressair frente aos campos. O feudalismo, fundamentado sobre a
propriedade fundiária, estava em decadência. Os mosteiros, que dominavam as paisagens
campestres, perdiam terreno. A catedral passava a ser a protagonista da vida social. Seus
pináculos demarcavam, nas alturas, a extensão da influência desta ou daquela cidade. Quanto
maior a catedral, maior a força espiritual da urbe (DUBY, 1997: 77).

4 As ordens religiosas nas Cantigas de Santa Maria

Os dominicanos dominam todo o cenário da Figura 5. Trata-se da glória da ordem em


um único afresco. Militantes por excelência, cães do Senhor, eles estão em toda parte –
estavam em todas as partes (WOLF, 2007: 10). À esquerda, junto com outros religiosos, em
frente à catedral de Florença. Com a força de sua retórica, persuasiva, dominavam os sermões
litúrgicos. À direita, três frades pregam em meio a cães e pessoas de diversos tipos.
Conquistavam os espíritos rudes com os exempla. Acima, à direita, São Domingos encaminha
os Bem Aventurados às portas do céu, pois os dominicanos salvavam vidas em Cristo. No alto
à esquerda, dentre os escolhidos para vislumbrar a Glória de Deus, está um dominicano.
Incansáveis leitores. Fervorosos crentes. Exímios professores. Suas palavras firmes, porém
doces, ajudaram a Igreja Católica a reinar, soberana, nas mentes e espíritos dos homens
medievais.

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Figura 5: Andrea da Firenze (1343-1415). Detalhe de O Triunfo da Igreja (c. 1367). Igreja de Santa Maria
Novella, Florença, Itália.

Galego-português medieval: a língua poética preferida pelo mecenas da obra, Afonso


X, o Sábio (1221-1284). Nossas atividades de pesquisa se iniciaram com as agruras e os
prazeres da tradução (COSTA & DANTAS, 2013).
Para uma compreensão a mais fidedigna possível de uma fonte histórica, devemos,
antes de tudo, procedermos àquilo que denominamos de compreensão apreensiva: para que a
vida dos mortos, sua sabedoria, seja transmitida a nós da forma mais fidedigna possível é
necessário que tenhamos um ato de submissão, isto é, um abrir-se à experiência do outro, e
que isso se transforme em uma espontânea aceitação e acolhida da “sempre complexa e
paradoxal integralidade existencial”. Essa submissão significa ter uma postura moral de
hospitalidade, de receptividade, que se traduz no historiador na “criação de um espaço mental
de acolhida do estrangeiro, já que o outro será sempre diferente em sua especificidade,
embora passível de ser compreendido e respeitado em sua integralidade” (COSTA, 2013:
328).
Após esse procedimento mental, devemos conhecer a totalidade da série documental
escolhida para estudo, no que já foi chamado de leitura isotópica (CARDOSO, 1997: 398).
Nela, o pesquisador lê sua fonte atento aos termos que se repetem nele para “fortificar a
confiança nas hipóteses formuladas”. A partir deste método, estudamos os cerca de 420
relatos de milagres e louvores contidos nas Cantigas de Santa María para encontrarmos a
presença de dominicanos e franciscanos na obra.

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A recorrência das ordens religiosas nas Cantigas de Santa María é percebida na


repetição das palavras mongia (convento), mõesteiro, monge, clerigo, crerigo, frade mẽor ou
monje (METTMAN, 1989, v. IV). Ao pesquisador compete diferenciar estes religiosos a
partir do texto do qual faz parte o termo. Algumas cantigas mostram a presença de
personagens religiosos, mas não é possível identificar somente nos textos a ordem religiosa da
qual fazem parte.
A análise da iluminura correspondente à cantiga costuma dirimir dúvidas. Um
levantamento das iluminuras presentes no fac-símile do Códice Rico e do Códice de Florença
localizados na PUC-Minas mostrou-nos a presença de ordens religiosas em 65 iluminuras.
Dentre estas, 15 iluminuras com representações de franciscanos e 22 com dominicanos.
O monge desprezava o mundo. Vivia na comunidade monástica. Os frades das ordens
mendicantes, religiosos fervorosos tanto quanto os monges, viviam, no entanto, nas
aglomerações populares. Defrontavam os vícios. As tentações da sociedade leiga. Pedintes,
sobreviviam das doações de alimento. Percorriam o mundo pregando o Evangelho e a
penitência. Após o Concílio de Leão (1274), a Igreja consentiu com a existência de quatro
ordens mendicantes: os pregadores (dominicanos), os menores (franciscanos), os carmelitas e
os agostinhos (LE GOFF, 1994: 228-229).

5 Os frades menores: São Francisco de Assis

No frescor da juventude, com apenas 25 anos, Francisco de Assis (c. 1181-1226)


despiu sua túnica e seguiu, cantando pelos montes, para a cidade de Gubbio. Lá recebeu um
rude hábito de ermitão, sandálias, um bastão e um cinto de couro. Dois anos depois, após
escutar um sermão que considerou sublime, desfez-se de seu cinto. Em seu lugar, amarrou na
cintura, uma modesta corda (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 674). Foi o desfecho de uma
marcha para tornar-se um exemplo de vida simples, semelhante à Cristo. Na pintura da Figura
6, El Greco utilizou magistralmente toda a simbologia religiosa em torno da veste de São
Francisco. Criou uma imagem na qual o manto e a corda são os maiores atributos
iconográficos de seu voto de pobreza e piedade. Os franciscanos ficaram conhecidos na
França medieval pelo uso da corde e ganharam, portanto, a denominação de Cordeliers (LE
GOFF, 1994: 229). A corda, que firma sua túnica, cai pelo chão. Quando trocou o cinto pela
corda, sentiu-se, enfim, pronto para pregar. Uma simples corda, para um humilde frade de
Deus.

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Figura 6: El Greco (1541-1614). São Francisco em oração diante do crucificado (1587-1596), óleo sobre tela.
105 x 86 cm. Bilbao, Museu de Belas Artes.

5.1. Os franciscanos nas Cantigas de Santa Maria

Nas Cantigas de Santa María, os homens da igreja são representados com seus
atributos: tonsura e trajes litúrgicos, monásticos ou de frades. Sofrimento e fé. Voto de
pobreza. Desapego. A tonsura era um corte de cabelo no qual o topo da cabeça era raspado
para formar uma coroa, prática iniciada pelos religiosos da Igreja Católica ainda no séc. V.
Identificava, principalmente, os monges e frades (LEVENTON, 2009: 90-93).

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Figura 7: Cantigas de Santa María. Rei Afonso X de Leão e Castela. Séc. XIII. Códice de Florença. Cantiga
266: Como Santa Maria de Castroxerez guardou a gente que siia na ygreja oy[n]do o sermon, dũa trave que
caeu de çima da ygreja sobr' eles (METTMANN, 1989, v. III: 23).

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Na quarta e quinta vinhetas (contadas a partir de cima, da esquerda para a direita) da


iluminura da Figura 7 há um franciscano a pregar no interior de uma igreja. Suas vestes são os
atributos que o definem. Um manto rústico amarrado por uma corda. É tonsurado. Em sua
mão esquerda ele porta um livro. Com a outra, chama a atenção dos presentes para suas
palavras. Os sermões dos franciscanos comoviam as plateias. O santuário está lotado de
crentes. A Cantiga 143 faz uma pontual citação a esse respeito: Mas un frade mẽor os fez vĩir
e fez-lhes sermon, en que departir foi como Deus quis por nos remiir nacer, como dit´ avia
(METTMAN, 1989, v. II: 120).
Mesmo com a igreja abarrotada de fiéis, ela ainda está em construção. Isso não era
algo estranho para a Idade Média, pois as ampliações ocorriam justamente para acolher as
massas cada vez maiores de fiéis. Por exemplo, o abade Suger de Saint-Denis (c. 1081-1151),
ao narrar as obras em sua abadia, explica que antes de transformá-la em um canteiro de obras,
os crentes acorriam ao santuário a ponto de não haver espaço para todos.
Notemos, na iluminura, os arcos ogivais e as fileiras de tijolos incompletos. Os
construtores. Os andaimes de madeira. Nada poderia impedir a pregação. Nem os ruídos das
roldanas, nem o martelar do pedreiro. Em todos os lugares com aglomeração de pessoas,
grandes centros ou pequenas vilas, lá estavam os franciscanos, testemunhas vivas de um
modo de vida cristão. Convertiam os incrédulos com seu testemunho, por meio de metáforas,
por meio de exemplos das vidas dos santos, dos mártires, das pessoas comuns. Para o papado,
os franciscanos auxiliavam os clérigos locais a manter o rebanho cristão unido e fiel (DUBY,
1997: 88).
Frades mẽores (METTMAN, 1989, v. IV: 576). São Francisco se intitulava um frade
menor, ou seja, um humilde servo da Igreja. A ela ele devia servir. Os franciscanos são
importantes personagens nas Cantigas de Santa María. A repetição do termo – frades mẽores
– em diversos relatos de milagres sugere uma considerável presença e difusão da ordem
franciscana na sociedade castelhana. Na sociedade medieval.
A Cantiga 96 é o relato de um homem que tentou agradar a Virgem, mas esqueceu de
confessar seus pecados. Um dia, quando passava por montanhas, ladrões o atacaram.
Decapitaram-no e fugiram. Quatro dias depois, quando dois franciscanos passaram pelo local,
ouviram o cadáver gritar, pedindo a confissão. E a quarto dia per y vẽeron dos frades mẽores,
e vozes deron o corp´ e a testa (METTMAN, 1989, v. I: 296). Os frades assustaram-se, mas
descobriram o corpo com a cabeça, milagrosamente, recolocada. O homem contou que os
ladrões o mataram e demônios tentaram roubar-lhe a alma. A Virgem o protegeu dos
!
31
!

demônios e recolocou sua cabeça no corpo para que pudesse fazer a confissão. Os frades
reuniram uma grande multidão e o homem fez a sua confissão perante todos. Em seguida, a
cabeça se separou do corpo e o homem morreu. As pessoas, então, louvaram a Virgem
(OXFORD, 2014).
Na Cantiga 109, cinco demônios uniram forças para atormentar um homem. Ele partiu
para Salas (Santa Maria de Salas, Itália), mas os demônios o impediram de continuar sua
jornada. Dois franciscanos vieram e levaram-no para a igreja. Aquel ome, segund´aprendi, ta
que dous frades vẽeron y mẽores, que o levaron dali aa eigreja logo sem falir (METTMAN,
1989, v. II: 34). Os demônios tentaram recuperar o domínio sobre o infeliz com a intervenção
de um judeu, que, segundo eles, era seu servo – ca meus sodes e punnades de me servir (a
relação “demoníaca” com o povo eleito não era nova no imaginário cristão medieval (COSTA
e DANTAS, 2013: 507-514). No entanto, o judeu fugiu e os demônios saíram do homem
possesso. Todos deram graças à Virgem (OXFORD, 2014).
A Cantiga 123 mostra como Santa Maria guardou um frade mẽor dos diabos na ora
que quis morrer, e torcia-sse todo com medo deles. Um franciscano, que se juntou à ordem
quando criança e viveu uma boa vida, aproximou-se da morte. Bem com´em Bitoria guariu
hũa vez a um frade mẽor (METTMAN, 1989, v. II: 70). Moribundo, seu corpo tornou-se
contorcido e preto, incrivelmente feio. Outro frade acendeu uma vela em homenagem à
Virgem e colocou-a na mão do agonizante. A cor preta desbotou e o rosto do monge ficou
branco. No entanto, para a tristeza de seus confrades, ele morreu em poucos dias. A seguir, o
frade morto apareceu a dois irmãos. Explicou que, antes de morrer, o seu rosto estava preto
porque ele viu demônios, e que as velas fizeram os demônios fugir (OXFORD, 2014).
A Cantiga 239 relata o milagre ocorrido na cidade de Murcia. Um homem
atormentado por uma dor lancinante convocou um franciscano e fez sua confissão, mas não
mencionou seu engano: guardou, mas não devolveu o dinheiro que lhe confiaram. Chamade
um prest´, a quen sse confessou, deste mẽores un frade (METTMAN, 1989, v. II: 326).
Repetiu a mentira ante a imagem da Virgem. Imediatamente seu queixo caiu. Ele sentiu uma
dor lancinante e não conseguiu falar. Estava assim em tal tormento, pensando que morreria,
quando chamou o franciscano uma vez mais. Desta vez, ele admitiu que fez confissão falsa.
Perjúrio. Pediu ao frade para reembolsar o homem a quem ele devia dinheiro e, após três dias,
morreu (OXFORD, 2014).

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6 São Domingos e a Ordem dos Pregadores

Figura 8: Livro de Horas com calendário, litanias e orações. O Sonho do papa Inocêncio III. Inglaterra, século
XIV. Abrigado na British Library3. Folio 8 verso. Iluminura de página inteira.

Na Figura 8, uma fina folha de ouro é o pano de fundo ideal para uma imagem
sagrada. Circunscrita ao limite marginal quadrilobado, há a representação do papa Inocêncio
III (c. 1160-1216) dormindo. O mundo onírico sempre esteve presente na História, na Arte
(COSTA, 2013). Em seu sonho, o papa suporta o colapso da basílica de São João de Latrão.
Em seu auxílio, dois dominicanos seguram os pináculos que desmoronam. Sustentáculo de
uma instituição que corria grave perigo, as ordens mendicantes foram fundamentais para a
expansão da Igreja. Sem pompa nem riqueza, ofereciam aos espíritos e aos corações dos
gentis homens o ideal de uma vida devota a Jesus.
Este papa notabilizou-se por sua luta pelo primado da Igreja Católica frente ao poder
secular e o combate às heresias. Em 1210, aprovou a criação da Ordem dos Frades Menores
(Ordo Fratrum Minorum). Os propósitos do IV Concílio de Latrão (1215) soaram como
música para os ouvidos de Domingos de Gusmão (c. 1170-1221), fundador da Ordem dos
Pregadores (Ordo Prædicatorum) (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 668). Ao instalar-se na
cidade de Toulouse, Domingos estabeleceu ali uma comunidade de clérigos. Sob sua
orientação, deveria formar religiosos mais devotos à salvação das almas, à conversão.
Domingos estreitou amizade com o bispo local, Fulco. Este, em 1215, aprovou a fundação da
Ordem dos Pregadores. Ambos então se dirigiram ao IV Concílio de Latrão para obterem a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Disponível em:
<http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/record.asp?MSID=8850&CollID=8&NStart=2356>.
!
33
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confirmação papal. Sob a regra de Santo Agostinho, obtiveram a sanção do papa


(VAUCHEZ, 1994: 265).
Compreenderemos melhor os ideais e as práticas dos dominicanos se nos voltarmos
para ao mundo no qual viviam. As heresias tomavam forma e força agressivas. Nas escolas
anexas às catedrais, a filosofia e outras vertentes do conhecimento, por vezes, tentavam
sobrepujar a Teologia e questionavam as verdades da fé. Por sua vez, o ambiente no qual os
dominicanos tanto se prepararam como se tornaram mestres, foi o da universidade. O mundo
acadêmico era irrequieto, pois era um espaço das livres disputas de palavras, dos embates
filosóficos, das querelas intelectuais (VERGER, 1994: 291).
Preparavam-se os dominicanos, desta forma, para enfrentar os vícios do mundo. Para
convertê-lo. Frente a frente. Tornaram-se eruditos. Conhecedores da palavra e dos grandes
teólogos da Igreja. Ademais, as disputas forjaram exímios debatedores. Capacitaram-nos a
argumentar de forma clara, objetiva e bem fundamentada.
Em 1217, os dominicanos foram autorizados a pregar em todos os lugares. Percorriam-
nos a pé. Com um bastão na mão, humildes. Não possuíam dinheiro. Seus pertences se
resumiam a alguns livros de Teologia e passagens da Bíblia. Mendicantes. Pediam pelo
caminho comida e abrigo. Missão cumprida, retornavam aos seus conventos para descansar,
estudar e relatar suas experiências ao superior. Em seguida, voltavam a pregar pelo mundo
(BERLIOZ, 1994: 274).
A partir do séc. XIII, o exército de Deus era formado pelas ordens mendicantes. Em
especial, franciscanos e dominicanos. Combatiam as heresias e pregavam uma vida menos
afeita aos vícios. Prometiam a Salvação Eterna. O instrumento era a palavra. Tornaram-se
mestres nos sermões conhecidos na Idade Média como exempla. Com os mendicantes, os
sermões saíram das igrejas e tomaram a via pública. O público alvo: o povo. Os exemplas
foram sermões criados a partir de histórias de fé. De exemplos a serem seguidos. Relatos
breves e enfáticos da vida de mártires. De virgens piedosas. Milagres da Virgem e dos Santos.
Mas, principalmente, de pessoas comuns que encontraram a Salvação na fé. Ensinar pelo
exemplo. Através de uma linguagem que, sem perder conteúdo, era destinada aos simples,
portanto, de fácil entendimento. Possuíam uma oratória cativante, emocionavam a plateia.
Eram amados, idolatrados pelo público (BERLIOZ, 1994: 277-282).
Étienne de Bourbon (1180-1261), inquisidor e dominicano, escreveu o “Tratado das
diversas matérias a pregar” (Tractatus de diversis Materiis Praedicabilibus). Para ele, o
sermão tinha três objetivos principais: 1) inspirar o medo da condenação eterna, 2) mostrar o

!
34
!

caminho da salvação e 3) lutar contra os vícios”. Sua obra está dividida em cinco dos sete
dons do Espírito: temor, piedade, ciência, força e conselhos (BERLIOZ, 1994: 277-282).

6.1 A Ordem dos Pregadores nas Cantigas de Santa Maria: Cantiga 103

Figura 9: Uma das cópias das Cantigas de Santa María está abrigada na Biblioteca do complexo de El Escorial,
Madri – Espanha com o nome de “Códice Rico” 4. A imagem mostra a Cantiga 74: Como Santa Maria quiser
deffender, non lle pod´o demo niun mal fazer (METTMAN, 1989, v. I: 242). 1. Notações musicais; 2. Texto da
cantiga; 3. Iluminura historiada de página inteira; 4. Verso do fólio; 5. Frente do fólio; 6. Letra capitular
ornamental; 7. Número da cantiga em algarismos romanos; 8. Letra capitular; 9. Título da cantiga; 10. O refrão
da cantiga se repete nos textos em vermelho.

Nas Cantigas de Santa María todo relato de milagre ou louvor é acompanhado por
uma iluminura historiada de página inteira, na qual o texto é representado iconograficamente
(LEÃO, 2008: 09). A estrutura, a forma e o estilo variam em poucos detalhes. Manteve-se a
mesma norma para a composição de todas as imagens do códice. A estrutura é formada por
seis vinhetas que representam a história de cima para baixo, da esquerda para a direita. As
formas ornamentais são compostas por margens com figuras em formato de cruz grega ou flor
quadrilobada, separadas por imagens heráldicas dos reinos de Castela e Leão (Castelo e Leão)
e do Sacro Império Romano Germânico (águia). O estilo gótico francês está presente nos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
A PUC-Minas adquiriu um fac-símile de toda a série documental deste manuscrito (LEÃO, 2008: 07).
!
35
!

motivos arquitetônicos, nas representações de pinturas e de esculturas e no panejamento das


roupas. As figuras humanas, seus gestos e expressões faciais, tem grande similaridade com o
estilo artístico dos códices alemães da primeira metade do séc. XIII (WALTHER/WOLF,
2005: 188).
Em nosso levantamento temático nos textos das Cantigas de Santa María, não
identificamos termos diretamente relacionados com a ordem dos pregadores, os dominicanos.
No entanto, a iluminura da Cantiga 103 (assim como outras 22 iluminuras) representa um
frade com sua característica vestimenta e corte de cabelo, a tonsura. Um levantamento
bibliográfico e de imagens de pesquisadores e de obras que constam nas referências deste
trabalho embasou nossa hipótese de que os frades pregadores são visivelmente reconhecíveis
por sua túnica branca coberta por um manto negro, além de certas práticas condizentes com
suas regras.

!
36
!

Figura 10: Rei Afonso X de Leão e Castela. Século XIII. Biblioteca de San Lorenzo, Complexo de El Escorial,
Madri, Espanha. Cantiga 103: Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da
passarỹa, porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso (METTMANN,
1989, v. II: 16).

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37
!

O frade dominicano é identificado na Figura 10 por seu vestuário. Viver no século


poderia corromper o espírito. Por isso, o prólogo das primeiras regras da ordem dominicana
instituiu que, em todas as horas canônicas, os frades deveriam recitar ou cantar breves
passagens da Bíblia ou de livros de Teologia. Desta forma, mantinham a fé inabalável e se
protegiam contra a tentação dos romances de cavalaria e dos livros dos filósofos antigos,
famosos na época (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 670).
Nas seis vinhetas da iluminura, o frade é representado em diversas práticas comuns da
vida cotidiana de um dominicano do séc. XIII. Na primeira vinheta, acima à esquerda, o frade
está ajoelhado à frente do altar da Virgem Maria, com os braços abertos, posição de um
simbolismo teológico fundamental. De Santo Agostinho a Tomás de Aquino, desde os
primeiros séculos da Idade Média, teólogos refletiram sobre a genuflexão na oração. O gesto
do frade denota sua adoração, humildade e penitência (BERLIOZ, 1994: 157-159). O quadro
abaixo contém um extrato do texto da cantiga em sua língua original, o galego-português,
acompanhada por nossa tradução (METTMANN, 1989, v. II: 16-18).

QUADRO 1: TRADUÇÃO DE EXTRATO DA CANTIGA 103


103
Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passarỹa,
porque lle pedia que lle mostrasse qual era
o ben que avian os que eran en Paraiso.
Como Santa Maria fez um monge estar por trezentos anos ao canto do passarinho
porque lhe pedia que mostrasse qual era
o bem que tinham os que estavam no Paraíso.
Quena Virgen ben servirá Quem à Virgem bem servir
a Parayso irá. ao Paraíso irá.
E daquest' un gran miragre vos quer' eu E sobre isso um grande milagre vos quero
ora contar, agora contar,
que fezo Santa Maria por un monge, que que fez Santa Maria a um monge que
rogar sempre lhe rogava
ll'ia sempre que lle mostrasse qual ben en
que mostrasse qual bem há no Paraíso
Parais' á
E que o viss' en ssa vida ante que fosse e que o visse ainda em vida, antes de
morrer. morrer.

Nele, notemos que o princípio máximo da ordem, salvar almas em Cristo, está
textualmente representado, pois, uma alma salva, viveria no Paraíso, na Jerusalém Celeste.
Quimera de todo cristão, sobretudo de um dedicado dominicano, ver, viver no Paraíso seria
uma maravilhosa e maior recompensa por sua vida abnegada e dedicada a aumentar o rebanho
de Deus.
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38
!

7 Unidos na difusão da fé, os onipresentes frades pregadores

Figura 117: São Boaventura. Lenda e vida de São Francisco de Assis. Florença, Itália. Abrigado na British
Library5. Folio 26, frente. Detalhe da iluminura. Letra capitular historiada.

Rodeado de rostos angelicais, São Francisco de Assis surge dos céus para o seu mais
renomado biógrafo, São Boaventura (1221-1274) na IMAGEM 11. Sua biografia, a Legenda
Major, foi a única aceita pela Igreja, a partir de 1266 (VAUCHEZ, 1994: 246). Com a mão
direita, e através de um facho de luz, Francisco conduz suas palavras à boca do escritor,
extasiado com sua visão celestial. Já nomeado cardeal, Boaventura está vestido com um
refinado manto solene sobre sua veste de frade franciscano. Sua mitra6 – insígnia de sua
condição de sacerdote – pode ser apreciada em uma das prateleiras. Como um elo entre os
dois espaços sagrados, Santo Tomás de Aquino (1225-1274), frade dominicano, irrompe na
sala. É seguido por outro dominicano e um franciscano. São Boaventura e Santo Tomás de
Aquino têm, em torno de suas cabeças, halos de luz dourada, símbolos de suas santidades.
A força das duas principais Ordens Mendicantes da Idade Média vinha do respeito
mútuo e do trabalho em prol de uma Igreja Católica forte e libertadora. Com sua força
expansionista, franciscanos e dominicanos reescreveram a história do ocidente. Em vários de
seus aspectos e matizes. Com eles, a Europa ganhou o mundo. Por eles, o Cristianismo
triunfou Modernidade adentro.
Cantiga 264. “E por este miragre deron grandes loores todos comũalmente, maoyores
e mẽores, aa Virgen bẽeita, que aos peccadores acorr´ e a coitados nas coitas noit´ e dia”
(METTMAN, 1989, v. III: 18).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Disponível em:
<http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/record.asp?MSID=8290&CollID=8&NStart=3229>.
6
Mitra: chapéu cônico, nas cores branca e dourada, fendido na parte superior, com duas fitas pendentes.
!
39
!

REFERÊNCIAS

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WALTHER, Ingo F.; WOLF, Norbert. Obras Maestras de la Iluminación. Madrid:


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!
41
!

A ORDEM DE CLUNY E AS PEREGRINAÇÕES A SANTIAGO DE COMPOSTELA


(SÉCULOS XI E XII)

César Augusto da Silva Foga1

RESUMO

A presente comunicação tem como finalidade tratar sobre a relação entre a ordem de Cluny e
as peregrinações a Santiago de Compostela. Buscaremos ao longo de nossa apresentação
evidenciar que a ordem de Cluny foi uma importante promotora das peregrinações a Santiago
de Compostela. Além disso, nota-se também que a respectiva ordem encontrou na Hispânia
cristã um espaço propício para o seu desenvolvimento, principalmente, através das rotas de
peregrinação, dentre essas, o chamado caminho de Santiago onde então Cluny fundou
hospitais e mosteiros para acolher os peregrinos. Logo, a ordem de Cluny utilizou-se da
peregrinação a Santiago de Compostela como uma fonte de prestigio e dessa forma, buscou
promovê-la na Cristandade.
PALAVRAS-CHAVE: Cluny, peregrinação, caminho de Santiago.

ABSTRACT

The present communication intends to deal with the relationship between the Order of Cluny
and the pilgrimages to Santiago de Compostela. Along our presentation we will seek to evince
that the Order of Cluny was an important promoter of the pilgrimages to Santiago de
Compostela. Furthermore, it is also noticed that the respective order found in Christian
Hispania a propitious space for its development, specially through pilgrimage routes, among
which was the so called Route of Santiago, where the Order of Cluny founded hospitals and
monasteries to shelter pilgrims. Therefore, the Order Of Cluny made use of the pilgrimage to
Santiago de Compostela as a prestige source and thus sought to promote it in Christianity.
KEYWORDS: Cluny, pilgrimage, route of Santiago.

1 Introdução

Esta comunicação, inserida junto às atividades do Congresso “Ordens Religiosas na


Idade Média: Concepções de Poder e Modelos de Sociedade (séculos XII-XV)”, dialoga com
nossa pesquisa de mestrado, em desenvolvimento, junto ao Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Estadual Paulista, “Júlio de Mesquita Filho”.
A referida pesquisa trata sobre as peregrinações a Santiago de Compostela no contexto
da chamada Reforma Papal (séculos XI e XII). O objetivo central é evidenciar que o
programa de reformas instituído pela Igreja romana entre meados do século XI e início do XII
contribuiu para a ascensão de Santiago de Compostela como um dos principais centros de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação “História e Sociedade” da Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. E-mail: <cesarfoga@hotmail.com>.
!
42
!

peregrinação da Cristandade. Ademais, procuramos demonstrar que a aproximação entre as


monarquias cristãs da Hispânia e o clero na referida época também auxiliou na promoção das
peregrinações.
Utilizamos como fonte de pesquisa a Historia Compostelana o período histórico
abordado pela obra compreende o final do século XI e início do XII, momento esse que
coincide com o reinado de Alfonso VI de León (1065-1109) e do bispo e, posteriormente
arcebispo da Igreja de Compostela, Diego Gelmirez (1100-1140). Personagens esses que com
o auxílio dos papas reformadores fizeram de Compostela o principal centro de peregrinação
da Cristandade ocidental no século XII.
Contudo, no decorrer de nossa investigação, notamos que além desses personagens
supracitados, a ordem de Cluny2 também foi outra importante promotora das peregrinações
jacobeias. Esse reconhecimento atribuído a Cluny é apresentado na própria Historia
Compostelana, que elaborada entre os anos de 1109 e 1139, tem como objetivo retratar as
realizações de Diego Gelmirez à frente da Igreja de Compostela entre os anos de 1100 e 1139,
período em que ele foi bispo (1100-1120) e arcebispo (1120-1140) desta Igreja.
A Historia Compostelana é dividida em três livros, o primeiro compreende as duas
décadas em que Gelmirez foi bispo de Compostela, a propósito, este livro faz referência ao
próprio apóstolo Santiago, como a transladação de seu corpo da região da Judeia para a Galiza
e, quando foram encontradas suas relíquias pelo bispo Teodomiro no início do século IX. O
Livro II trata de como a Igreja de Compostela sob a direção de Gelmirez foi elevada à
condição de arquidiocese e também as realizações do mesmo como arcebispo. O terceiro livro
é uma continuação do segundo, portanto, retrata os acontecimentos de Gelmirez enquanto
arcebispo de Compostela.
Quanto à sua autoria, Emma Falque Rey afirma que os artífices da Historia
Compostelana foram pessoas próximas ao bispo Diego Gelmirez e que os mesmos ocupavam
cargos na própria Igreja de Compostela (HISTORIA COMPOSTELANA, 1994: p, 11). Ainda
segundo Falque Rey, seus autores foram três, Nuño Alfonso (tesoureiro), Hugo
(arquidiácono) e Giraldo (cônego). O objetivo conforme tratado foi reunir em uma obra todas
as realizações de Gelmirez em benefício da Igreja de Compostela, ademais, a sua elaboração
foi uma solicitação do próprio Gelmirez. Observa-se que a Historia Compostelana foi uma
forma de propagar a figura de Diego Gelmirez, assim como promover a imagem da Igreja de
Compostela perante a Cristandade. Contudo, a consideramos também,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
A participação de Cluny também foi determinante na própria Reforma Papal, assim como em outros
importantes acontecimentos da época.
!
43
!

[...] um valioso testemunho da visão de um determinado setor da classe senhorial


eclesiástica sobre boa parte dos principais acontecimentos políticos e sociais de
finais do século XI e primeira metade do XII em Compostela, Galiza, os reinos
cristãos peninsulares, Cluny e o papado (SINGUL, 1999: 113).

Portanto, ao longo de nossa pesquisa notamos que a ordem de Cluny teve importante
participação na difusão do mito de Santiago, assim como Cluny encontrou na Hispânia cristã
espaço profícuo para o seu desenvolvimento. Logo, o intuito de nossa comunicação é
apresentar essa relação entre a Ordem de Cluny e as peregrinações a Santiago.

2 As peregrinações a Santiago de Compostela

Em relação às peregrinações a Santiago elas se difundiram a partir do século IX,


quando então, foram encontrados na região da Galiza (noroeste da Hispânia), restos mortais
que acreditou-se serem de um dos apóstolos de Cristo, Tiago o Maior. “Não se sabe com
exatidão em que momento começaram as peregrinações a Santiago, mas não há dúvida da
existência das mesmas no século IX” (IRADIEL, SALUSTIANO, SARASA, 1995: 88).
Sobre o encontro das relíquias do apóstolo Tiago na região da Galiza, a Historia
Compostelana retrata o momento em que foram encontradas essas relíquias que,
supostamente seriam de Santiago:

Inspirado pela divina graça, Teodomiro se dirigiu rapidamente ao pequeno bosque e


olhando ao redor com cuidado encontrou entre os arbustos uma pequena casa que
tinha dentro uma tumba de mármore. Depois de encontrá-la dando graças à Deus, se
dirigiu ao rei Alfonso II, o Casto, que então reinava na Espanha e fez o mesmo
conhecer o assunto [...] (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:70).

É importante considerarmos que nesse contexto (início do século IX) o reino de


Astúrias era um dos últimos redutos cristãos da Hispânia, pois, grande parte da península
Ibérica encontrava-se sob o poder dos muçulmanos. Dessa forma, o suposto encontro das
relíquias de Santiago também serviu de estímulo para os cristãos na guerra contra os mouros
e, Santiago, seria um poderoso apoio espiritual para a Guerra de Reconquista (711-1492).
Entretanto, antes do suposto episódio, quando então foram encontrados os restos
mortais de Santiago, já existiam relatos acerca da pregação do apóstolo Tiago na Hispânia. “É
conhecida uma série de textos tardo antigos e alto medievais ocidentais que iniciaram a
tradição escrita sobre a pregação e posterior sepultamento de São Tiago na Hispânia, os quais
recolhiam a tradição oral que havia sobre o tema” (SINGUL, 1999: 24). Mas, é apenas a
!
44
!

partir do século VIII, ou seja, após a conquista da península Ibérica pelos mouros e com o
desenvolvimento da Guerra de Reconquista que os escritos que fazem menção à Santiago se
tornaram recorrentes e podemos afirmar que foi entre os séculos XI e XII que o mito de
Santiago se consolidou na Cristandade.
Dessa forma, os peregrinos estrangeiros, ou seja, aqueles provindos de fora das
fronteiras da Península Ibérica começaram a visitar Compostela com maior assiduidade a
partir do século XI (MARTINEZ DIEZ, 2003: 207). Portanto, é necessário assinalar que até
então os fiéis que visitavam Compostela eram, principalmente, os próprios hispanos e que a
disseminação do culto ao apóstolo fora das fronteiras da Hispânia está relacionada à
promoção do mito de Santiago pela Igreja e monarcas hispânicos. Conforme apresentamos na
Introdução, além desses elementos é importante enaltecer o papel desempenhado por Cluny
no que diz respeito à promoção das peregrinações, por exemplo, a proteção oferecida aos
peregrinos por parte dos hospitais e mosteiros que foram criados ao longo das rotas de
peregrinação por Cluny, é um indício dessa relação entre a Ordem e o Caminho de Santiago.
Quanto ao apoio dos monarcas às peregrinações podemos afirmar.

Os reis cristãos foram decididos impulsores do Caminho de Santiago nos seus


territórios, traçando o caminho físico nas zonas onde ainda não existia, levando
pontes que desobstruíam o curso dos rios, construindo igrejas e catedrais, ajudando
os mosteiros com doações e isentando de impostos os peregrinos que passavam
pelas suas terras (SINGUL, 1999: 77).

Assim, as peregrinações a Santiago atingiram seu apogeu no século XII, Compostela


neste século foi transformada em arquidiocese e seu primeiro arcebispo, Diego Gelmirez,
tomou uma série de medidas político-administrativas e culturais para fomentar as
peregrinações. Por outro lado, é preciso considerar questões acerca dos supostos restos
mortais do Apóstolo Santiago:

Não importa tanto debater sobre se os restos do apóstolo descansam em Santiago ou


não e, se esse evangelizou a Espanha, mas sim considerar a importância dessas
crenças e seu discurso, a devoção ao apóstolo e todas as suas implicações, tanto
religiosas como de outro tipo (ARQUERO CABALLERO, 2011: 17).

Dessa forma, de acordo com Arquero Caballero o importante é considerar as


consequências da devoção a Santiago, pois, seria difícil provar se Santiago realmente
evangelizou a região da Hispânia e se os restos mortais encontrados na Galiza no século IX
por Teodomiro eram mesmo de Tiago.

!
45
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O Liber Sancti Jacobi3 retrata a crença sobre a pregação de Tiago na região da


Hispânia. “Ele, enquanto os demais foram a outras partes do mundo, levado às costas da
Espanha por vontade de Deus, pregando ensinou a divina palavra às gentes que ali viviam e
tinham por pátria essa região” (LIBER SANCTI JACOBI, 1998: 53). Segundo este excerto,
Tiago, em vida, teria passado pela Hispânia e ali difundido as palavras de Cristo. Quando
Tiago retornou a Judeia, após a suposta passagem pela Hispânia, ele foi condenado e
degolado pelo rei Herodes Agripa, isso por volta do ano de 40 d.C. Após a morte de Tiago,
segundo o LSJ, seu corpo foi depositado por seus discípulos dentro de um barco, que os
levaram até as costas da Galiza na Hispânia.

Seus discípulos, apoderando-se furtivamente do corpo do mestre, com muito esforço


e extraordinária rapidez o levam à praia, onde encontram uma nave para eles
preparada, e, embarcando, se lançam ao alto mar, chegando a sete dias ao porto de
Iria, que fica na Galiza, alcançando a remo a desejada terra (LIBER SANCTI
JACOBI, 1998: 55).

Além disso, devemos lembrar que a localização geográfica do sepulcro de Santiago


contribuiu para a valorização do local. A região da Galiza situa-se ao extremo noroeste da
Hispânia, região próxima ao litoral, local onde o sol se põe, sabendo que ele “renascerá” no
dia seguinte, para o peregrino este processo representa muitas vezes o próprio espírito da
peregrinação, ou seja, a renovação do espírito.
Além dessa conjuntura supracitada, outro elemento que também contribuiu para a
promoção das peregrinações a Santiago de Compostela é que esta região possuía elementos
que a tornava mais fascinante que outros centros de peregrinação, pois, a Hispânia oferecia
aos viajantes uma série de oportunidades materiais. Devemos considerar que no contexto
histórico em questão (Idade Média Central) a Cristandade passou por um significativo
crescimento demográfico e a Hispânia era uma região que ainda não estava totalmente
povoada, logo ela oferecia um espaço favorável para o desenvolvimento material daquela
sociedade. Assim, muitos peregrinos que visitavam Compostela, o faziam buscando alcançar
algum milagre do apóstolo, assim como também eram atraídos pelas riquezas que havia na
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Liber Sancti Jacobi – Codex Calixtinus, produzido em meados do século XII foi um importante meio de
difusão do mito de Santiago e das peregrinações jacobeias. O original é composto por um conjunto de cinco
livros. Os cinco livros que compõe o LSJ, são os seguintes: o primeiro apresenta as festas que ocorrem em
homenagem ao santo. O segundo - Liber Miraculorum - traz os 22 milagres atribuídos ao apóstolo Santiago.
A transladação do corpo de Santiago da região da Judeia até a Galiza é discutido na terceira parte do LSJ. A
quarta parte do livro é intitulada Pseudo-Turpin, composto por diversas lendas carolíngias, onde, por
exemplo, é tratado a suposta aparição de Santiago ao Imperador Carlos Magno e a missão da qual este é
incumbido pelo apóstolo, que é a libertação das terras sagradas da Hispânia. A quinta e última parte é o Le
guide du pèlerin de Saint Jacques de Compostelle. Além de um apêndice que é composto por peças
musicais. O manuscrito mais antigo do LSJ encontra-se na catedral de Santiago de Compostela.
!
46
!

região da Hispânia. Segundo o Guia do Peregrino4, “Castela está cheia de tesouros, abunda
em ouro e prata, tecidos e cavalos fortíssimos e é fértil em pão, vinho, carne, peixe, leite e
mel” (LE GUIDE, 1969: 63).
Quanto aos milagres realizados por Santiago relatados no Livro dos milagres (um dos
livros que compõe o LSJ), nota-se que estão relacionados às curas milagrosas, ressurreição e
libertação de prisioneiros. Além disso, observamos que os contemplados com tais milagres
em geral eram pessoas de origem humilde como peregrinos pobres e camponeses. Aliás, a
própria condição dos peregrinos é relatada no LSJ.

E com sua mulher e dois meninos, montados em sua égua chagaram até a cidade de
Pamplona. Mas ali faleceu sua mulher e o injusto estalajadeiro ficou injustamente
com os recursos que o cavaleiro e sua esposa haviam trazidos consigo. Desolado
pela morte dela e despojado totalmente do dinheiro e de égua a qual levava os
meninos, continuou a sua marcha com muito sacrifício (LIBER SANCTI JACOBI,
1998: 121).

Esses episódios onde os peregrinos eram roubados eram recorrentes, tanto que com o
decorrer do tempo e o desenvolvimento das peregrinações, os monarcas, a ordem de Cluny e a
própria Igreja de Compostela (a mando de seu bispo, Diego Gelmirez) fundaram hospitais ao
longo dos caminhos de peregrinação para abrigar os peregrinos de forma mais adequada e
com isso também promover as peregrinações.
Por fim, após esta breve exposição sobre as peregrinações a Santiago de Compostela
devemos discorrer sobre outra questão fundamental e inerente a esse trabalho que é a ordem
de Cluny e sua participação no que diz respeito ao apoio a essas peregrinações.

3 Cluny e o apoio às peregrinações

Hilário Franco Júnior em sua tese de doutorado, “As peregrinações a Santiago de


Compostela e a Formação do Feudo-Clericalismo periférico na península Ibérica”, assinala:
“O interesse cluniacense por Compostela e pelas peregrinações é atestado ainda pelo
envolvimento na política local e pela posse de inúmeros hospitais ao longo do camino
francés” (FRANCO JÚNIOR, 1982: 183).
Conforme tratado, a Ordem de Cluny foi uma importante promotora do mito de
Santiago assim como a ordem beneditina encontrou na Hispânia cristã um espaço para o seu
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4
O Guia do Peregrino é o quinto livro que compõe o Liber Sancti Jacobi. O trecho faz uma analogia entre a
Hispânia e Canaã. A utilização de exemplos e analogias era fundamental para abranger a maior quantidade de
fiéis possível.
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47
!

desenvolvimento, principalmente, através do caminho de Santiago. Ao longo dessa


importante rota de peregrinação, Cluny fundou hospitais e mosteiros, isso com o apoio tanto
da Igreja da Hispânia quanto da Monarquia, essa última que investiu importantes somas em
ouro em doações piedosas a Cluny (SINGUL, 1999: 107). Segundo Maria Carmen Martiniano
de Oliveira,

Os monarcas cristãos de mais destaque e influência na Península, caso de Alfonso


VI de Leão e Castela, estavam ligados à abadia cluniacense e ao papado, e está claro
que partilhavam com interesses comuns: ideologia cluniacense revelava-se atraente
para os monarcas ibéricos ao contribuir para reconquistar e repovoar os territórios
dominados há muito pelos muçulmanos (OLIVEIRA, 2002: 32).

A princípio a presença de Cluny na península Ibérica pode ser compreendida como


consequência de dois fatos importantes, que foram a Reforma Papal e a expansão
demográfica. Porém, essa hipótese não é um consenso, pois, há um debate entre os
historiadores acerca desse tema. Esse debate consiste na seguinte questão: parte da
historiografia ibérica representada neste aspecto por Ramón Menéndez Pidal, Américo Castro
e Cláudio Sánchez-Albornoz, não reconhecem que Cluny instalou-se na península devido aos
fatores externos, como a Reforma Papal ou a dinâmica da sociedade feudal, mas, para os
referidos historiadores, Cluny penetrou na Hispânia devido ao “chamado” dos próprios reis
cristãos. Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez compartilha da mesma tese, e ainda ressalta que,
“Sob o reinado de Alfonso VI, os monges de Cluny serão cada vez mais numerosos nos
mosteiros espanhóis, recebendo generosas doações de terras e igrejas já existentes ou novas;
ocupando as sedes mais importantes e exercendo uma política preponderante na corte”
(PEDRERO-SÁNCHEZ, 1996: 151).
A respeito desse debate entre os historiadores acerca da presença da Ordem de Cluny
na Península Ibérica, consideramos que a expansão de Cluny para aquela região foi
consequência tanto dos fatores externos quanto internos. Posto isto, segundo a nossa
concepção, a Reforma Papal, a expansão da Cristandade a partir do século XI e também o
apoio dos monarcas hispânicos, caso de Alfonso citado por Guadalupe, devem ser levados em
consideração. Pois, Cluny encontrou na Hispânia um espaço que favoreceu o seu
desenvolvimento, assim como também a sua presença foi fundamental para o
desenvolvimento da Hispânia cristã, sobretudo, num contexto histórico em que os monarcas

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48
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cristãos buscavam uma aproximação com o restante da Europa. Somando-se a isso, Cluny
teve um importante papel no que diz respeito à substituição do rito moçárabe pelo romano5.
Em relação à participação de Cluny na Reconquista, Derek Lomax, afirma que Cluny
foi responsável em difundir entre os cristãos que viviam além das fronteiras hispânicas, a
Reconquista (LOMAX, 1984: 79). Ainda sobre esta questão Paul Rousset, ressalta: ”Desde o
início do século XI, o papado e a feudalidade francesa, auxiliados e incentivados por Cluny
vieram em socorro da Espanha” (ROUSSET, 1980: 29). Em síntese, segundo esses
historiadores, Cluny teria desempenhado função vital na Reconquista, que foi incentivar os
cristãos a participarem da guerra contra os muçulmanos na Hispânia.
No entanto, trabalhos historiográficos mais recentes trazem outra perspectiva acerca
da importância de Cluny na Guerra de Reconquista. “Antigamente, os historiadores davam
grande importância ao papel de Cluny na reconquista espanhola e na formação do conceito de
guerra santa” (FLORI, 2011:277).

Hoje se tende a reduzir consideravelmente esse papel de Cluny na reorganização da


reconquista espanhola. Por certo Cluny tinha interesses materiais nisso, no mínimo
em razão da implantação de mosteiros, e a defesa desses estabelecimentos levava
naturalmente a certa sacralização dos que a garantiam (FLORI, 2011:277).

Dessa forma, podemos compreender a participação de Cluny na Reconquista, a


princípio, como uma forma de proteger seus próprios bens na região da península Ibérica, por
isso que, fazia questão de propagar a Guerra de Reconquista. Por consequência, os interesses
materiais da ordem eram preponderantes, por conseguinte, a participação de Cluny na
Reconquista não deve ser minimizada com tanta veemência, haja visto que mesmo buscando
defender seus próprios interesses, Cluny teve participação na difusão da Reconquista fora das
fronteiras da Hispânia.
Os autores da Historia Compostelana evidenciam inúmeras vezes a importância de
Cluny para a Igreja de Compostela. Ademais, é importante assinalarmos que foi neste

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5
Em meados do século XI quando a Igreja romana iniciou seu projeto de reformas, a situação da referida
instituição na região da Península Ibérica era similar às demais da Cristandade. Ou seja, por mais que a Igreja
da Hispânia apresentasse algumas peculiaridades em relação à romana (como seguir uma liturgia distinta), na
Hispânia a Igreja também era corrompida por uma crise interna, assim como contava com a intervenção do
mundo laico em seus assuntos. Logo, o programa de reformas iniciado em Roma, que acarretaria numa série
de consequências para a Cristandade medieval, também contribuiu para importantes mudanças na região da
Península Ibérica. Dentre as principais mudanças podemos citar a introdução da liturgia romana em alguns
reinos em substituição ao moçárabe (visigótico). De acordo com nossa pesquisa de mestrado, a introdução do
rito romano foi possível devido a um jogo de interesses entre os monarcas hispânicos que almejavam com
isso apoio do papado para a Guerra de Reconquista e a Igreja romana buscava ampliar sua esfera de
influência sobre aquela região da Cristandade.
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!
49
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contexto (meados do século XI e início do XII) que pessoas ligadas a Cluny começaram a
ocupar cargos tanto na Igreja de Compostela quanto na Santa Sé. Logo, é importante observar
que as realizações do bispo Diego Gelmirez à frente da Igreja de Compostela tiverem grande
apoio de Cluny. O capítulo da Historia Compostelana que trata da viagem de Diego Gelmirez
a Roma para receber a dignidade do Pálio em 1104 ilustra essa relação entre os monges e o
bispo de Compostela.

Ao chegar a Cluny, capital de toda religião monástica, o mencionado bispo, por


tanta e grande veneração, foi recebido familiarmente e de maneira especial com
diversas procissões na boa aventurança daquela santíssima congregação, a qual
acreditamos que existe por vontade divina. Pois, como sabemos Cluny todos os
monastérios na santa religiosidade, em caridade e em dignidade, assim também
comprovamos que sua caridade é copiosa e sempre disposta para todos que vão até
ela (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:101, 102).

Ainda sobre a relação entre Cluny e a Igreja de Compostela, Francisco Singul assinala
que a própria dignidade do Pálio recebida por Gelmirez em 1104 contou com o apoio de
Cluny e destaca que o Papa que fez tal concessão era ligado à Cluny.

A abadia de Cluny, com tão extraordinários apoios – e incentivada pelas constantes


doações que lhe oferecia Compostela -, vai fazer que Diego Gelmirez fosse
nomeado bispo de Santiago em 1100, e assim é proposto ao papa cluniacense
Pascoal II (1099-1118), que lhe oferece a dignidade do Pálio em 1104 (SINGUL,
1999: 111).

Outro consenso no que diz respeito aos interesses de Cluny, Gelmirez, e os monarcas
cristãos no que se refere às peregrinações jacobeias, foi a proteção oferecida aos peregrinos.
A hospitalidade é um dos fundamentos essenciais da regra criada no século VI por São Bento,
pois, tal exercício é um atributo inerente a todo cristão, “que todos que ali chegarem, que
sejam recebidos como Jesus Cristo”. (VÁSQUEZ DE PARGA, L., LACARRA, J.M. e URÍA
RÍU, J, 1948: 283). Além disso, devemos nos atentar para a seguinte questão, o que fez de
Compostela um dos maiores centros de peregrinação do Ocidente medieval ou mesmo na
atualidade é: “A carinhosa e proverbial hospitalidade do caminho de Santiago, protagonizada
tanto pelos poderosos, como pelos humildes, é um dos aspectos que sustentam o fenômeno da
peregrinação jacobeia” (SINGUL, 1999: 84).
A partir do exposto fica evidente que Cluny teve grande influência na história da
Hispânia cristã entre os séculos XI e XII. Dessa forma, uma das razões que tornaram
Compostela um importante centro de peregrinação, segundo nossas hipóteses foi em
decorrência das ações da ordem de Cluny que ao promover as peregrinações acabou

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50
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promovendo sua própria riqueza e prestígio. No entanto, a participação de Cluny no que se


refere ao prestígio da Igreja de Compostela vai além da promoção das peregrinações e sua
ação junto ao papado que também deve ser considerada. Segundo a Historia Compostelana,
Cluny teve importante participação na elevação de Compostela à condição de arquidiocese,
questão muito cara ao então bispo Diego Gelmirez.
A obra apresenta o contexto que envolveu a elevação de Compostela à condição de
arquidiocese, assim como a participação de Cluny em tal feito. O próximo excerto retrata a
viagem do bispo da Igreja do Porto, Hugo6, que foi então enviado a pedido de Diego Gelmirez
para fazer tal reivindicação.

Vou, com a ajuda de Deus, enviado ao papa Calixto pelo bispo de Compostela para
exaltar a igreja de Santiago, para que a condição de metrópole de Braga ou Mérida
seja transferida para a igreja de Santiago. Ademais, suplicarei ao papa Calixto por
minha sede, a igreja do Porto, a qual os bispos de Braga e Coimbra roubam
paróquias da própria diocese, e para que com justiça devolvam essas paróquias que
injustamente foram arrebatadas (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:322).

Chegando a Cluny, onde encontrava-se o Papa Calixto, Hugo entregou as cartas


enviadas pelo bispo Gelmirez ao abade de Cluny (Pôncio), Hugo também confiou-lhe um
montante em dinheiro enviado pelo próprio bispo de Santiago. Até esse momento as relações
entre Calixto e Pôncio não eram tão amigáveis, isso, devido ao seguinte fato: após a morte de
Gelásio (1118-1119), a nomeação de Guido de Vienne como papa sofreu certa resistência por
parte do abade Pôncio, o que então causava certo receio entre ambas as partes. Porém, nesse
encontro em Cluny a situação foi alterada e Calixto e Pôncio selaram a amizade.

Quero que a partir desse momento o abade de Cluny seja o meu mais importante
amigo e que os monges cluniacenses sejam meus amigos íntimos. Os assuntos mais
importantes da igreja romana, que tiverem de ser resolvidos nessas regiões, serão
resolvidos principalmente com os vossos conselhos [...] (HISTÓRIA
COMPOSTELANA, 1994:326).

A aproximação entre Calixto e Cluny, seria muito importante para os anseios da


Igreja de Compostela, com o apoio do abade Pôncio seria mais fácil conseguir junto ao papa a

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6
A rainha Urraca (1109-1126), mãe de Alfonso VII (1126-1157), não permitiu que Diego visitasse o
pessoalmente o papa Calixto II (1119-1124). A justificativa dos autores da Historia Compostelana era que a
rainha temesse que Diego fosse à França entregar o reino de “Espanha” aos parentes de Alfonso, pois, o Papa
Calixto era tio de Alfonso. Entretanto, a justificativa utilizada por Urraca é que naquele momento
Compostela não poderia ficar sem o seu bispo devido à ameaça dos muçulmanos que estavam se
aproximando da cidade. Nessa mesma época Hugo, bispo da Igreja do Porto, estava de passagem pela cidade
de Compostela e foi incumbido de levar tal solicitação junto ao papa que na época encontrava-se em Cluny.
!!
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51
!

antiga solicitação de Diego Gelmirez. A falta deste último seja no concílio em Reims ou agora
em Cluny mais uma vez foi utilizada como desculpa para que o papa não realizasse o desejo
do bispo compostelano. Porém, agora o abade de Cluny interveio diretamente em tão nobre
causa.

[...] sem dúvida o pacto de caridade selado entre Calixto e o abade de Cluny
favoreceu nossa causa e produziu frutos benéficos para nossa igreja. O abade de
Cluny ao escutar as razões do bispo do Porto, se apresentou ao papa Calixto e disse:
“Oro suplico, pai santíssimo, a sua majestade em exaltar a igreja de Santiago e
aceitar o justo desejo de seu bispo e amigo seu. O que os seus antecessores, Pascual,
Gelasio, teriam realizado se não houvesse faltado tempo e oportunidade, faça você
mesmo com a ajuda de Deus. O próprio Santiago lhe solicita a metrópole, ao menos
realize o desejo de Santiago. Ademais, a igreja de cada um dos apóstolos, em
qualquer lugar onde esteja, tem poder e, é elogiada com dignidade eclesiástica.
Apenas a igreja de Santiago, escondida na parte ocidental, se contenta apenas com o
episcopado. E assim se não está em sua mente transferir a metrópole de Braga para a
igreja compostelana ou o arcebispado, que faz algum tempo, na época do rei godo,
Teodomiro esteve na igreja de Lugo, ao menos conceda para sempre a igreja de
Santiago a metrópole da igreja de Mérida que assolada pela força dos sarracenos,
perdeu o culto da fé cristã e assim enalteça a igreja do Apóstolo com a dignidade de
arcebispado. (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:328, 329).

Após dizer essas palavras ao papa, o abade, juntamente com o bispo Hugo e as demais
pessoas ali presentes, como alguns nobres que conheciam a importância do apóstolo e da
Igreja de Santiago assim como de seu bispo, se baixaram aos pés de Calixto e pediram por
misericórdia que honrasse a Igreja de Santiago com a transferência do arcebispado da Igreja
de Mérida para Compostela.

Quem seria tão duro que não concedera a tão dignos desejos do abade de Cluny,
bispo do Porto e tão importantes príncipes borgonheses que se encontravam
prostrados no chão? Também os mesmos cardeais rogaram com insistências suplicas
ao Papa que a metrópole de Mérida fosse transferida para a igreja de Compostela.
Então o Papa tomando a palavra disse: “Levantem-se, queridos filhos de Cristo,
levantem-se. O importante que o que pediram é digno que consigas, a igreja de
Compostela, mediante a Deus será honrada com a dignidade metropolitana da igreja
de Mérida (HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994:329, 330).

Ao receberem essa notícia aqueles que se encontravam no chão beijaram os pés do


papa e os demais que estavam ali presentes se alegraram com tal fato. Calixto finalmente
escreveu ao bispo de Compostela concedendo a dignidade, no documento, o papa justifica que
retirou de Mérida a condição de arquidiocese em razão daquela cidade estar ocupada pelos
muçulmanos e que assim essa dignidade era transferida para Compostela.

Assim, pois, para maior veneração do apóstolo Santiago com cujo glorioso corpo
vossa igreja se honra e por especial amor a sua pessoa, pelas suplicas de nosso
sobrinho Alfonso, rei da Espanha, dos nossos irmãos Hugo, bispo do Porto, e Poncio
!
52
!

abade de Cluny e também Lorenzo cônego de sua igreja, concedemos a autoridade


de Deus a dignidade da mencionada metrópole a honrável e rica Compostela [...]
(HISTÓRIA COMPOSTELANA, 1994: 333).

4 Considerações finais

No ano de 1120, Compostela finalmente tornou-se arquidiocese e para que isso


ocorresse a participação de Cluny foi determinante, principalmente, porque o Papa que
concedeu à Igreja de Compostela tal título, era um ex-monge cluniacense, Calixto II o qual
contou com o apoio do abade de Cluny. Assim, percebe-se que os interesses da Igreja de
Compostela, das monarquias e a Ordem de Cluny se consubstanciaram num ponto comum, no
incentivo às peregrinações a Santiago.
Em conclusão, Compostela tornou-se ao lado de Roma e Jerusalém um dos principais
centros de peregrinação da Cristandade. “A história das peregrinações na Idade Média Central
poderia ser resumida, grosso modo, dizendo-se que o século X foi o de Roma, o XI de
Jerusalém e o XII de Compostela” (FRANCO JÚNIOR, 1982: 211). As razões que tornaram
Compostela um importante centro de peregrinação segundo nossas hipóteses se deu em
decorrência das ações da Igreja de Compostela, sobretudo, a figura de Diego Gelmirez e dos
monarcas hispânicos dentre esses Alfonso VI. Isto é, “(...) os restos mortais que
supostamente seriam de Santiago, serviram de estímulo tanto para a religiosidade popular
quanto para os interesses políticos dos soberanos cristãos e da Igreja” (SALVADOR
MIGUEL, 2003: 216) e também da ordem de Cluny que ao promover as peregrinações acabou
promovendo sua própria riqueza e prestígio.

REFERÊNCIAS

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Camino de Santiago y de las sociedades medievales del norte peninsular. In: Ab Initio. n. 4
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Editora da Unicamp, 2013.

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2006.

______. As peregrinações a Santiago de Compostela e a Formação do Feudo-


Clericalismo Periférico na Península Ibérica (fins do século XI – fins do século XIII).

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53
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(Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências


Humanas. São Paulo: 1982.

______. Peregrinos monges e guerreiros: Feudo-Clericalismo e Religiosidade em Castela


Medieval. São Paulo: Hucitec, 1990.

HISTÓRIA COMPOSTELANA. Introducción, traducción, notas e índices de Emma Falque


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IRADIEL, P.; SALUSTIANO, M.; SARASA, E. Historia Medieval de la España Cristiana.


Madrid: Cátedra, 1995.

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4ª ed. 1969. [Edição bilíngue do livro V do Liber Sancti Jacobi].

LIBER SANCTI JACOBI “Codex Calixtinus”. Tradução e notas de MORALEJO, A;


TORRES C; FEO, J. Santiago de Compostela: Xunta de Galícia, 1998. In: MALEVAL, Maria
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MALEVAL, M. do A. T. Maravilhas de São Tiago: Narrativas do Liber Sancti Jacobi


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MÁRQUEZ VILLANUEVA, F. Santiago: trayectoria de um mito. Barcelona: Belaterra,


2004.

OLIVEIRA, M. C. G. M. de. As facetas de São Tiago no Liber Miraculorum do Codex


Calixtinus. Franca. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Direito e Serviço Social de Franca. Franca. São Paulo: 2002.

PEDRERO-SÁNCHEZ, M, Guadalupe. O caminho de Santiago: uma via para o maravilhoso


e o cotidiano. História. UNESP, 15, 1996. p. 143-159.

ROUSSET, P. História das Cruzadas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

SINGUL, F. O Caminho de Santiago: a peregrinação Ocidental na Idade Média. Rio de


Janeiro: EdUERJ, 1999.

!
54
!

IMAGENS DE DEUS: TEMPO E MOVIMENTO NA TRINDADE TRIÂNDRICA

Maria do Céu Diel de Oliveira1

RESUMO

Contemplando o cristomorfismo e sua circunscrição na história das imagens, este texto


propõe a reflexão sobre os conceitos de tempo, imagem e movimento - interno e externo ao
olhar - a partir de pinturas, afrescos, relevos e ícones e seus desmembramentos para a
hierarquia dos poderes divinos e a estatização das imagens.
PALAVRAS-CHAVE: Imagens, movimento, cristomorfismo.

ABSTRACT

Contemplating cristomorfismo and his constituency in the history of images, this paper
proposes a reflection about the concepts of time, image and movement-internal and external-
starting from the look of paintings, frescoes, reliefs and icons and its ramifications for the
hierarchy of the divine powers and the paralysis of the images.
KEYWORDS: Images. Movement. Cristomorfism.

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1
Professora Associada I do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes, pesquisadora sobre memória,
imagens e pedagogia visual.
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55
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1 Do Uno ao Trio

Deus: transcendente e irrepresentável. Nisto concordam os três ramos monoteístas


abrâmicos. Porém, seria possível imaginá-lo ou torná-lo visível através das imagens, da
pintura, do desenho e da escultura? Como perseguir e reter no presente uma imagem ad
aeternum cuja hierarquia e movimento realizam-se no entremundo das ideias? Para avizinhar-
se das imagens do Credo cristão e de sua manifestação plástica2, não é possível excluir a
representação de Cristo “Deus verdadeiro e verdadeiro homem”3 nem a figuração da
Trindade.
A fé na encarnação do Verbo de Deus em Jesus deu ao cristianismo - diferentemente
do hebraísmo e do Islã - uma posição curiosa. Por um lado, no momento em que admite a
encarnação em Jesus, afirmou a visibilidade e a representabilidade de Deus em Jesus. Assim,
funda o direito figurar a imagem de Deus no Cristo, quando o mesmo Deus desejou fazer-se
carne e sangue e “habitar em meio a nós”4. Por outro lado o cristianismo definiu-se, em
coerência com seu Credo como um monoteísmo trinitário, e afirmou que Deus é uno e trino:
“A Trindade é um mistério de um só Deus em três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
reconhecidos distintamente na unidade de uma só natureza, ou essência ou substância” Isto
nos leva a pensar que “na sua forma mais elevada é doação, troca, amor”5. Os cristãos então
concebem que a revelação da trindade de Deus deu-se num longo processo de desvelamento,
iniciado no Antigo Testamento. Esta pluralidade manifestou-se na criação do mundo, quando
as palavras de Deus na Bíblia: “Façamos então o homem à nossa imagem” (Gênesis 1: 26),
que são interpretadas como um pluralis majestatis, ou um prenúncio do mistério da Trindade.
Assim anunciada na nova aliança, a trindade dá início ao seu mistério que ganha força nas
palavras de São Marcos, a propósito do batismo de Cristo no Jordão: “e saindo da água,
abriram-se os céus e o espírito desceu sobre ele, como uma pomba. E ouviu-se uma voz do
céu: és meu filho amado em quem me comprazo” (Marcos 1: 10-11). Em alguns textos menos
visuais, como em Lucas (10: 21) ou em João (João 14,17), Cristo fala de Deus como seu pai e
evoca também o Espírito Santo. Um dos atestados escriturais mais explícitos da fé trinitária
da igreja nascente está no final do Evangelho de São Mateus (28: 19): “Portanto vão e façam
discípulos em todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Do grego plasma.
3
Concilio de Niceia, em 325.
4
Evangelho de São João, 1: 14. Para todos os textos bíblicos aqui citados, escolhi a Bíblia de Jerusalém,
edição brasileira de 2002.
5
TERTULIANO. Adversus Praxean.
!
56
!

fórmula esta que coloca as três pessoas num plano de igualdade, porém nomeando-as na
ordem que coloca o Pai o primeiro lugar, sem, no entanto, diminuir a unidade dos três. Deste
versículo deriva a parte sacramental do batismo, que vem completado com uma tríplice
imersão. O batismo é o lugar primordial da transmissão da fé trinitária dos cristãos.
Finalizando, o Novo Testamento contém uma série de afirmações sobre a relação de Jesus e
Deus como: “Eu e o Pai somos uma coisa só” (João 10: 30) e o breve anúncio do kerigma6
com dois ou três termos: fórmula binária – Eu creio em Deus Pai e seu único filho, Jesus
Cristo – e fórmula ternária – Creio em Deus Pai, seu filho Jesus e no Espírito Santo.
A palavra “trindade” (trinitas ou triunitas ou trina deitas) aparece em Tertuliano por
volta do ano 220 no seu Contro Prasea, no início do século III. Santo Agostinho usará
habitualmente a expressão Deus Trinitas. Os teólogos gregos, outrossim escrevem “santa
tríade” (e hagia Trias). O termo trias, aplicado a Deus surge pela primeira vez em Teófilo de
Antiochia, ao final do século II, mas o uso do termo difunde-se somente depois de Atanásio
(295-373) entre os padres capadócios. Porém é Irineu de Leão (130-40 a 202-8) talvez o
primeiro padre católico que oferece uma exposição exaustiva sobre a fé trinitária. Distingue
dois níveis expositivos, o da teologia – que considera Deus em si e seu mistério - e o nível da
economia- que considera Deus e suas relações com a criação e sua história. Irineo vê em
Deus o autor de um plano de salvação para a humanidade e, em consequência, ocupa-se de
sua ação no tempo, de suas aparições (teofania) e das missões das pessoas divinas (encarnação
do Verbo, emanações do Espírito). De Irineu provem o adágio que contém a melhor expressão
daquilo que podemos definir como “a regra do cristomorfismo da representação de Deus” na
arte (capítulo III, Conclusões): “O Pai é o Invisível do Filho e o Filho é o Visível do Pai”.
Este adágio não se refere absolutamente aos pintores e queria dizer que, em primeiro lugar,
Jesus Cristo, enquanto filho, revelado visível através da encarnação, revela o Pai – que não
encarnou, portanto continua invisível; por outro lado, a visibilidade de Jesus não diz tudo dele
nem mostra tudo do Pai. Esta fórmula estabeleceu uma ligação entre a teologia cristã da
história da salvação – que assegura que tudo que Deus pretende dar aos homens o faz através
de Jesus Cristo e o problema da representação cristã de Deus na arte.
No primeiro Concílio de Nicéia, em 325, foram definidos e promulgados como
ortodoxia (fe retta), a divindade de Jesus Cristo. Nos Concílios ecumênicos sucessivos, e
depois nos Sínodos de Toledo (sobretudo no quarto em 633 e no décimo primeiro em 675), no
Concílio de Laterano IV (1215) e nos “Concílios de União” (Lyon II, 1274 e Ferrara-Florença

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
Do grego kerux: arauto, é o coração do anúncio dos Evangelhos, que precede a uma revelação
!
57
!

1438-42), confirmaram-se as declarações, aprofundando pouco a pouco o que concerne a


Cristo, as relações entre Deus-Trindade e a Criação e por fim a emanação do Espírito Santo: o
Espírito emana eternamente do Pai e do Filho como um único principio e uma única
inspiração: ab uno principio et unica spiratione.
Por fim, vale assinalar que as tradições teológicas gregas e latinas percorreram
caminhos diversos. Possuem em comum símbolos conciliatórios, como um léxico basal:
essência (ousia), hipostasia, persona (prosopon), relações assim entendidas: o Pai não é um
nome que indica a substância, mas um nome que indica as relações, como também o Filho
(filiação, inspiração, circunscrição-perichoresis). Mas as reflexões teológicas da tradição
latina, influenciada por Agostinho, partiram de uma única substância em direção às Pessoas e
buscou compreender, sobretudo, de que modo se distinguem. O seu mérito foi estabelecer
com clareza a divindade equânime das Pessoas, porém não esclarece nem a relação das
criaturas entre si nem o caráter original das suas missões invisíveis, ou seja, o modo como
cada uma se relaciona entre si e se reportam entre si diante de Deus, com exceção das suas
missões visíveis, ou seja, o plano de salvação. O perigo para o Ocidente repousa no triteísmo:
“os latinos na maior parte das vezes falam em Pai, Filho e Espírito Santo e veem, por assim
dizer, as Pessoas da Trindade uma ao lado da outra” (TAVARD, 1993). Ao invés disto, a
tradição grega coloca em evidência a distinção das Pessoas - Deus é somente uma ousia em
três hipostasis – e a implicação de cada uma na economia da salvação, porém que pode
transformar-se numa subordinação, ou seja, uma relação hierárquica que de certa forma
submete a segunda e a terceira Pessoas em respeito ao primado da figura do Pai.
Assim entendendo a distinção das Pessoas no que concerne à suas manifestações
visíveis, devemos entender que uma história icônica de Deus estuda os “adventos” no espaço
pictórico e busca individualizar e formular as leis e os ritmos das diferentes aparições.

2 Imago non est interpres sui

No segundo milênio da era cristã, uma vez superados os obstáculos teóricos, as


imagens artísticas abundam. Por causa desta expressiva quantidade de imagens - e porque as
vozes dos artistas que as fizeram são extremamente raras - o pesquisador que deseja recorrer
a história icônica de Deus é exposto ao duplo perigo de expor muitas ou muito poucas
explicações a respeito das imagens que estuda. O primeiro pode ser chamado de
hipercontextualização, que acontece quando os estudiosos acreditam que a história das formas
não contém no seu interior seu próprio princípio explicativo. Assim interpretando as imagens,
!
58
!

deve-se referir-se à imagem em outros gêneros, não icônicos: o contexto histórico, as


traduções, a identificação das correntes espirituais ou pessoais, dados demográficos e eventos
políticos. A este primeiro postulado junta-se outro, o do fato social total: o estado da cultura e
da sociedade no momento da criação da obra. Porém, deve-se saber que as imagens “citam-
se” entre si, copiam-se e traem-se, criando uma dinâmica própria de vida, que podem também
interagir com influências externas, como na história das mentalidades, mas que não se
reduzem apenas a isto. As imagens resistem, por vezes impermeáveis aos eventos, tem o
direito à lentidão e percorrem caminhos particulares. É preciso considerar a diacronia da
história das formas e das suas sobrevidas. Nas formas icônicas – como as imagens de Deus - o
tempo de suas aparições e de suas possíveis transformações se dão também por questões
pragmáticas, fora do mundo formal que as conduzem.
Um segundo ponto: no que tange à iconografia de Deus, há uma certa inércia,
compreendida como um movimento que se dá internamente, por assim dizer, na figura do
crente. Uma imagem de Deus comum a toda uma comunidade e a uma parte do tempo de uma
civilização não é inventada e não pode ser modificada a não ser por legitimações escriturais e
textos litúrgicos e devocionais. Curiosamente os historiadores da arte tendem a conceder um
valor explicativo, por vezes excessivo, ao Primeiro Concílio de Nicéia (325), ao Concílio de
Calcedônia (451), ao Segundo Concílio de Nicéia (787), ao grande cisma de 1054, à reforma
gregoriana, à teologia escolástica, ao nascimento das universidades, das cidades e das ordens
mendicantes, aos Concílios sucessivos como Laterano IV - 1215, Lyon II - 1274, à grande
peste, à emergência do rico mecenatismo laico, etc. Estes tempos históricos concorrem com o
tempo icônico, que comporta a fenomenologia de uma espécie de iconocosmo complexo.
Para além de uma contextualização arrítmica, é no movimento das imagens e de suas
hierarquias temporais que este estudo busca entender o movimento dentro da iconologia
cristã, principalmente na representação da tríade: um movimento alinhado como um emblema,
uma aparição alegórica em três tempos e pessoas que se mostram idênticas e que movem-se
para abranger a totalidade dos tempos mundanos.

3 Trindade como movimento: vultus trifrons

Restam poucas imagens que mostram a trindade triândrica, ou seja, imagens que
representam a trindade como três homens distintos, que dividem o mesmo plano da cena e
gesticulam de forma semelhante. Estas imagens são idênticas e olham à frente para o presente
ou por vezes as duas figuras laterais olham ligeiramente para a figura central. Estão
!
59
!

circunscritas no mesmo tempo, como unidades identicas que contemplam o eterno instante
dos acontecimentos. Consubstanciais, estão assentadas para expressar que, juntas, formam um
único deus: é a obrigação protocolar da frontalidade hierárquica. Assim, o tempo contíguo do
movimento da figura única que ocupa espacialmente o mesmo plano é um abarcar lento de
passado, presente e futuro, quando é evocada junto à imagem seu poder de cura e do plano de
salvação. O movimento também ondeja, modifica-se e toma velocidade se entendermos o
tempo como uma fração do espaço. Assim percebendo as tríades triândricas, entendemos
quando Agostinho (1964: XI, 28,1) escreve:

Mas como o futuro, que ainda não existe, pode diminuir ou esgotar-se? Como o
passado que não existe mais pode aumentar, senão porque no espírito, autor dessas
transformações, se realizam três ações: o espírito espera, está atento e se recorda. O
objeto de sua espera passa pela atenção e se transforma em lembrança.Com efeito:
quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Contudo, a espera do futuro já está
no espírito. E quem poderá contestar que o passado já não existe? Contudo, a
lembrança do passado ainda está no espírito.

Regidas pelas concepções aristotélicas, estas imagens existem sob a égide da definição
de tempo, pois “o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois”
(ABBAGNADO, 2003). Nas trindades com três faces que vemos aqui, há o alinhamento, num
fio condutor cronológico do instante presente ad aeternum. Movem-se em si e entre si, no
espaço linear da aparição tinitária.

!
60
!

!
Figura 1: Cristo com três faces. Escola holandesa. 1500

Aos poucos estas imagens foram desaparecendo, reorganizadas segundo as novas


regras conciliares. Porém, na história das imagens elas aparecem como estranhamentos, quase
monstra, ilustrando um programa político aliado com os preceitos da figuração do Deus
cristão. Em sua concepção também estão presentes as ideias de movimento eterno, do tempo
atemporal e de hierarquias celestes, num esforço de fixá-las em um único acontecimento
temporal, através de afrescos, pinturas e miniaturas em breviários e missais.

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61
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!
Figura 2: Antônio Martini di Atri. Duomo di Atri. 1350.

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62
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Figura 3: Guillaume de Digulleville. Peregrinação das almas. 1330-1331.

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63
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Figura 4: Jeronimo Cósida. Espanha. 1530

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Figura 5: Trindade. Igreja de Castelleto Cervo, Itália. Século XIV.

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65
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Figura 6: Trindade. Igreja de São Nicolau. Abside. Giornico, Suíça. Século XIII.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2013.

ABBAGNADO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997.

TAVARD, G. La visione della Trinità: rivelazione, contemplazione. Roma: Esperienza,


1993.

TERTULIANO. Adversus Praxean. Disponível em:


<http://www.tertullian.org/works/adversus_praxean.htm>.

!
66
!

ENTRE VETUSTAS E NOVITAS: O CONFLITO ENTRE BERNARDO DE CLARAVAL E


PEDRO ABELARDO SOBRE O MONAQUISMO

Rafael Bosch1

RESUMO

Em 1131, Bernardo de Claraval fez uma visita oficial ao Paracleto, abadia sob influência
direta de Pedro Abelardo. Nesta visita, Bernardo mostrou-se preocupado com a liturgia ali
praticada. Em resposta a essa preocupação, Abelardo enviou-lhe uma carta, na qual discute o
binômio tradição e novidade no ambiente monástico, sobretudo na então jovem ordem
cisterciense. O conflito entre ambos é um tema ainda muito discutido, sobretudo em seu
aspecto teológico, no que concerne às interpretações sobre a Trindade e o perdão. Esta
comunicação, no entanto, pretende discutir uma faceta da dimensão monástica desse conflito.
PALAVRAS-CHAVE: Pedro Abelardo. Bernardo de Claraval. Monaquismo. Ordem
Cisterciense.

ABSTRACT

In 1131, Bernard of Clairvaux made an official visit to the Paraclete, abbey under the direct
influence of Peter Abelard. On this visit, Bernard was concerned with the liturgy practiced
there. In response to this concern, Abelard sent him a letter, in which he discusses the
binomium tradition and novelty in the monastic environment, aiming particularly the young
Cistercian order. The conflict between them still is a highly debated topic, especially on its
theological aspect, regarding interpretations of the Trinity and forgiveness. This
communication, however, aims to discuss a facet of the monastic dimension of this conflict.
KEYWORDS: Peter Abelard. Bernard of Clairvaux. Monasticism. Cistercian Order.

1 Introdução

É indubitável que Bernardo de Claraval e Pedro Abelardo foram figuras de grande


notabilidade no século XII. Não é à toa, portanto, que o embate entre ambos tenha repercutido
no período e tenha sido objeto das mais diversas análises historiográficas. Desse modo, este
debate já foi entendido como aquele entre o pensamento feudal e o pensamento urbano (LE
GOFF, 2010); entre o amor e a razão (ROCHA, 1996); entre a tradição e a modernidade
(CHENU, 2006).
Seja qual for o binômio empregado, a maioria dessas análises toma como centro a
questão teológica do debate. Assim, a ética abelardiana e a polêmica sobre a Trindade são os
elementos que compõem o fio condutor dessas análises. O que, de fato, é pertinente. Afinal,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Mestrando em História Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. E-mail para
contato: <rafael.bosch@outlook.com>.
!
67
!

se nos atermos à lista de heresias que Bernardo imputou a Abelardo perceberemos que elas
versam justamente sobre isso2. No entanto, raramente se menciona que ambos tinham
concepções distintas a respeito do monaquismo.
É exatamente sobre esse ponto que essa comunicação buscará se aprofundar. Para isso,
analisaremos uma carta que Abelardo enviou à Bernardo em que discutiu acerca de inovações
e tradições no ambiente monástico. Trata-se de um texto que sobreviveu apenas em um
manuscrito (BnF lat. 13057) e deve ter sido escrito não muito depois de 28 de novembro de
1131, data que voltaremos a ver. Ele foi pouco estudado pela historiografia e o que se sabe até
o momento é que Bernardo, infelizmente, não o respondeu. No entanto, a partir de outros
textos produzidos no período, é-nos possível supor como a epístola de Abelardo foi recebida.
Nossa análise consistirá, dado ao tempo limitado que dispomos, de uma simples leitura
do documento em questão, buscando realizar uma análise semântica de termos chaves e
pensa-lo em seu contexto de produção. Portanto, comecemos por esse para, enfim,
adentrarmos à análise da carta de Abelardo.

2 Antecedentes

A década de 30 do século XII foi um momento de conflitos. No início desta, o então


papa Honório II faleceu e uma eleição foi convocada. Por conta de uma série de tensões
internas, dois papas foram eleitos, configurando um cisma no seio da cristandade. De um lado
Anacleto II e de outro Inocêncio II se declaravam papas. O racha estava dado e ambos
buscavam todo apoio político e militar que podiam. Nesse contexto, Inocêncio II organizou
um concílio na abadia de Morigny para angariar forças da igreja francesa3. Nesse estavam
presentes os religiosos mais importantes da França no período, entre eles Bernardo e
Abelardo.
Bernardo lá estava para firmar seu apoio à Inocêncio II e, como sabemos,
posteriormente acabou se tornando seu maior aliado político, o que lhe garantiu imenso
prestígio e poder, a ponto de autores sustentarem que, por um tempo, o verdadeiro centro da
Cristandade havia se mudado do papado para Claraval, tendo Bernardo como seu maior
representante. (MURRAY, V. 1967: 17). Abelardo, por sua vez, mais do que prestar apoio a
Inocêncio II, buscou o seu auxílio para duas questões que lhe eram caras.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Sobre a lista de heresias e à sua formulação, remetemos a: MEWS, 2005: 226-250.
3
Para uma análise mais atenta ao cisma em questão, remetemos a: RUST, 2011: 301-369.
!
68
!

Tratava-se, também, de um período de conflitos na vida de Abelardo. Desde a segunda


metade da década de 1120, Abelardo era abade de Saint Gildas-Rhuys, um mosteiro afastado
na Bretanha. Este, segundo ele, era habitado por monges indisciplinados, praticantes de
concubinato e também criminosos, a ponto de tentarem assassiná-lo mais de uma vez4. Em
meio a esse clima de tensão, Heloísa, sua esposa, que era monja em Argentuil acabava de ser
expulsa, em 1130, junto com suas irmãs, de seu mosteiro feminino pelo abade Suger de Saint-
Denis.5 Abelardo, consternado pela situação, doou o Paracleto, um oratório que ele havia
fundado em 1123, à Heloísa, para acolhê-la e suas irmãs monjas. Em pouco tempo, o antigo
oratório começou a crescer, tomando corpo de mosteiro e fazendo sua fama se espalhar.
É nesse contexto que se formularam os pedidos de Abelardo. Em primeiro lugar,
solicitou ajuda em relação aos monges que estavam sob seu comando em Gildas-Ruys. O
pedido foi atendido e um legado papal teria ido à sua abadia, mas não logrou resultado algum,
como nos diz Abelardo:
Enfim, pela intervenção da autoridade do Romano Pontífice Inocêncio – que designou
um Legado para isto -, eles [os monges indisciplinados] foram forçados a renovar o juramento
e outros mais, na presença do conde e dos bispos. Mas, nem assim descansaram.
(ABAELARDUS, 1844-1855, PL. 178: 180)6.
Em segundo lugar e o que mais nos interessa, Abelardo demandou que o Paracleto
fosse instituído, de fato, como uma abadia feminina e que Heloísa fosse nomeada como
abadessa. Novamente, teve o seu pedido atendido e em 28 de novembro de 1131 Heloísa e o
Paracleto foram reconhecidos em documento assinado pelo papa. No entanto, para que isso
pudesse vir a ocorrer, era necessário que uma visita “oficial” ocorresse de modo a comprovar
que o antigo oratório pudesse se tornar oficialmente uma abadia.
Esta visita foi realizada por Bernardo de Claraval. Ele, segundo nos conta Abelardo,
edificou, como um anjo, as monjas com suas sagradas pregações (ABAELARDUS, 1983:
239)7. No entanto, Bernardo teria ficado incomodado com um detalhe litúrgico, em que,
durante os ofícios diários, as preces não eram feitas da mesma maneira que em outros lugares.
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4
Sobre os monges, ver as próprias palavras de Abelardo: “[...] sed unusquisque de propriis olim marsupiis se
et concubinas suas cum filiis vel filiabus sustentaret. Gaudebant me super hoc anxiari, et ipsi quoque
furabuntur et asportabant quae poterant” [destaques nossos]. (ABAELARDUS, 1844-1855, PL. 178: p.166). !
5
O motivo disso é um tanto nebuloso. Oficialmente o ato foi justificado por conta de conduta indecorosa. No
entanto, estudos recentes apontam que a desapropriação da abadia de Argentuil e a consequente expulsão das
monjas está mais relacionado a motivos econômicos do que à sua conduta. Para mais, conferir os apêndices
de, Mary Martin Mclaughlin em MCLAUGHLIN, Mary Martin, 2009.
6
“[...] tandem per auctorictatem Romani Pontificis Innocentii, legato proprio ad hoc destinato, in praesentia
comites et episcoporum hoc ipsum jurare compulsi sunt et pleraque alia; nec sic adhuc quieverunt.”
7
“et non tanquam hominem, sed quasi angelum tam eam quam sorores suas sacris exhortationibus
corroborasse.”
!
69
!

(ABAELARDUS, 1983: 239)8. Para Bernardo, Abelardo, mentor da abadia, poderia ser visto
como um inovador nesses assuntos (ABAELARDUS, 1983: 239)9. É este comentário que
motiva a carta de Abelardo a Bernardo, nela ele buscará justificar a sua opção litúrgica e ainda
discute sobre a natureza da inovação e da tradição no ambiente monástico. É nela que nos
deteremos agora.

3 Entre vetustatis e novitatis

Nos parece possível dividir a carta em duas partes bem definidas. Uma primeira parte
em que Abelardo justifica a alteração na liturgia praticada no Paracleto, do qual ele era
responsável, e uma segunda em que se discute a natureza da inovação e da tradição no
ambiente monástico.
Mas que alteração é essa que incomodou Bernardo e motivou Abelardo a escrever uma
carta? Abelardo ordenou a Heloísa que a oração Pai-Nosso fosse alterada de modo que a
passagem “o pão nosso de cada dia” fosse substituída para “o pão substancial”. A justificativa
dessa alteração é simples. Segundo Abelardo, essa oração nos chegou por duas vias: Mateus e
Lucas. O primeiro, um apóstolo e evangelista, esteve presente na primeira vez que a prece foi
dita. O segundo foi discípulo de Paulo e, por isso, não a ouviu dos lábios de Cristo. Sendo
assim, para Abelardo, está claro que a versão de Mateus é mais completa e correta do que a de
Lucas. E na sua versão há “o pão substancial” ao invés de “o pão nosso de cada dia”10
(ABAELARDUS, 1983: 240-241).
Em sua defesa, Abelardo sustentou que não é uma questão de acusar Lucas de
falsidade, mas sim que a palavra “substancial” expressa melhor a excelência do pão na
oração. Além disso, os gregos – que para Abelardo, se baseando em santo Ambrósio, possuem
mais autoridade – sabiamente ainda utilizavam a versão de Mateus. Deste modo, Abelardo
afirmou que “se eu não estou enganado, eu devo ser acusado de restauração ao invés de
inovação, e não devo ser censurado por presunção, já que neste assunto eu estou seguindo
tanto o Senhor quanto os apóstolos e a manifesta sabedoria dos gregos” (ABAELARDUS,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
“aliquantulum commotum esse, quod in oratorio illo oratio Dominica non ita ibi in horis quotidianis sicut
alibi recitari soleret”.
9
“et cum hoc per me factum crederetis, me super hoc quasi de novitate quadam notabilem uideri”.
10
Segundo o evangelho de Mateus, o trecho da oração é: panem nostrum supersubstantialem da nobis hodie
(MATEUS, 6:11). Já no evangelho de Lucas, a oração é apresentada da seguinte maneira: panem nostrum
cotidianum da nobis hodie (LUCAS, 11: 3) [destaques nossos].
!
70
!

1983: 242-243)11. E ainda se defendeu dizendo que não estava ordenando ou pedindo para que
alguém o seguisse. “Deixe que cada um siga seu próprio entendimento, mas que se lembre,
seja lá quem for, que a prática comum não deve ser posta antes da razão e que o costume não
é preferível à verdade” (ABAELARDUS, 1983: 243)12.
Notemos como a novitas foi aqui interpretada. Em primeiro lugar, Bernardo teria
ficado commutatum com ela, incomodado ou perturbado. Em seguida, ao saber que poderia
ser visto como um inovador, Abelardo se viu na necessidade de escrever uma excusatio, uma
desculpa ou justificativa, para reparar a offensatio, crítica ou incômodo, de Bernardo.
Podemos concluir aqui que a novidade era algo pejorativo. Giles Constable já notara que a
novidade era algo que os reformadores lutavam contra, em particular Bernardo que defendia
uma liturgia baseada preceitos tradicionais e autênticos (CONSTABLE, 1996: 143).
Tendo isso em mente, é interessante notar como Abelardo desenvolve a segunda parte
de sua carta. Após se proclamar um restaurador e defensor da verdade em relação ao costume,
Abelardo se voltou à, então jovem, ordem cisterciense. Em uma argumentação direta, afirmou
que se tratava de uma ordem que seguia uma liturgia distinta do costume de todas as outras
igrejas.
Vocês [cistercienses] que são recém-surgidos e que tiram grande proveito de
novidades, estabeleceram, por meio de alguns novos decretos, que vocês realizariam
os ofícios divinos de uma maneira diferente, contrária a todo costume que há muito
foi estabelecido e que ainda permanece entre monges e clérigos (ABAELARDUS,
1983: 244-245)13.

E segue sua argumentação reiterando que:

Mas vocês não acham que devam ser censurados por isso. Se essa inovação ou a
singularidade de vocês diferem dos antigos costumes seguidos pelos outros, então
vocês acreditam que ela está muito mais em harmonia com a razão e o sentido da
Regra. Vocês não se preocupam o quanto os outros possam se maravilhar ou
reclamar, desde que sigam em conformidade com sua própria razão
(ABAELARDUS, 1983: 245)14.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
“His itaque, ni fallor, tam rationibus quam auctoritatibus uetustatis potius quam nouitatis arguendus uideor
et minus de praesumptione censendus, qui tam Dominum quam apostolos et manifestam Graecorum
prouidentiam in hoc praecipue sequor”.
12
“Nemini tamen praecipio, nemini persuadeo, ut me in hoc sequatur et a communi recedat usu. Habundet
unusquisque in sensu suo. Illud tamen, quieunque est ille, attendat nee usum rationi nec consuetudinem
praeferendam esse ueritati”.
13
“Vos quippe quasi nouiter exorti ac de nouitate plurimum gaudentes, praeter consuetudinem omnium tam
clericorum quam monachorum longe ante habitam et nunc quoque permanentem, nouis quibusdam decretis
aliter apud uos diuinum officium instituistis agi”.
14
“Nec tamen inde uos accusandos censetis, si haec uestra nouitas aut singularitas ab antiquitate recedat
aliorum, quoniam rationi plurimum et tenori regulae creditis concordare, nec curatis quantacumque
admiratione super hoc alii moueantur ac murmurent, dummodo uestrae quam putatis, rationi pareatis”.
!
71
!

Não contente em apenas inverter a lógica de atribuição da inovação, Abelardo fez


questão de apontar tudo aquilo que considera como inovador no que a ordem cisterciense
pratica. Assim demonstrou como os cistercienses recusaram as orações costumeiras e
introduziram outras, menos numerosas e desconhecidas; como eles se contentam com apenas
uma única oração – enquanto a Igreja utiliza diversas – nos dias de vigília; como também
aboliram as orações ditas em todos os lugares após a prece e súplica de Deus, bem como
aquelas pedindo a ajuda dos santos como se, ainda na ótica de Abelardo, o mundo não
precisasse de suas preces e como se os cistercienses não precisassem das preces dos santos; e,
o que lhe foi mais estranho mencionar, embora dediquem todas as suas abadias à mãe de
Cristo, como eles removeram todas as festas em honra a ela15 (ABAELARDUS, 1983: 246).
Após elencar todas essas inovações, Abelardo finalmente postulou que “o Apóstolo
não proíbe inovações nas palavras, exceto por aquelas que são profanas e contrárias à fé”
(ABAELARDUS, 1983: 246)16. Dito isto, o autor passou a celebrar a diversidade, já que
“aquele que desejou que seu evangelho fosse pregado para pessoas de todas as línguas,
ordenou que fosse cultuado de maneiras diferentes” (ABAELARDUS, 1983: 246)17. A
principal questão para Abelardo é que as preces podiam ser feitas da forma como as pessoas
desejassem, contanto que o sentido original se mantivesse:

Para satisfazer a todos, eu repito o que eu disse antes, deixe que cada um aja
conforme seu entendimento. Deixe-nos dizer essa prece como desejarmos. Eu não
estou pedindo que ninguém me siga nesse assunto, deixe que nós mudemos a
palavra de Cristo como quisermos. Mas eu manterei, o quanto puder, essas palavras
em seu significado inalterado (ABAELARDUS, 1983: 247)18.

Deste modo, a princípio, parece-nos impossível situar o pensamento de Abelardo


como uma defesa da novidade ou do tradicional. Ele se situa justamente entre a vetustatis e a
novitatis. Se ele inovou na forma de se expressar, em nenhum momento, segundo sua própria

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
“Quorum ut pauca commemorem pace uestra, hymnos solitos respuistis et quosdam apud nos inauditos et
fere omnibus ecclesiis incognitos ac minus sufficientes introduxistis. Unde et per totum annum in uigiliis tam
feriarum quam festiuitatum uno hymno et eodem contenti estis, cum ecclesia pro diuersitate feriarum uel
festiuitatum dinersis utatur hymnis, sicut et psalmis uel caeteris quae his pertinere noscuntur, quod et
manifesta ratio exigit. [...] Preces quae post supplicationem et orationem Dominicam ab ecclesia ubique
celebrantur et ea quae suffragia sanctorum dicuntur, omnino a uobis fieri interdixistis, quasi uel precibus
uestris mundus uel uos suffragiis sanctorum minus egeatis. Et quod mirabile est, cum omnia oratoria uestra
in memoria matris Dominicae fundetis, nullam eius commemorationem, sicut nec caeterorum sanctorum ibi
frequentatis.”
16
“Non enim uocum nouitates, sed profanas tantum et fidei contrarias Apostolus interdicit”.
17
“Qui ergo omnium linguarum generibus praedicari uoluit, ipse diuersis officiorum modis uenerari decreuit.”
18
“Denique, ut omnibus satisfatiam, nunc etiam ut superius dico, abundet unusquisque in sensu suo dicat eam
quomodo uoluerit. Nemini persuadeo ut me in hoc sequatur. Variet uerba Christi prout uoluerit. Ego autem
sic illa, sicut et sensum, quantum potero, inuariata seruabo.”
!
72
!

defesa, buscou modificar a mensagem original da fé cristã, pois se baseou em preceitos


antigos do Cristianismo.
4 Conclusão

Como já dissemos anteriormente, sabe-se que essa carta nunca foi respondida. No
entanto, isso não impediu que os historiadores se questionassem a respeito do modo que ela
foi interpretada. Mary Martin McLaughlin apontou que há dois posicionamentos gerais sobre
isso: aquele que vê a carta como um texto amigável e reconciliatório; enquanto outros a
interpretam como um texto irônico e bastante agressivo (MCLAUGHLIN, 2009: 272-273).
Posicionamo-nos nesta segunda categoria. Porque mais do que elencar as novidades trazidas
pela ordem cisterciense, Abelardo pontuou o quão pobre era a liturgia desta ordem – crítica já
um tanto comum no período (CONSTABLE, 1996: 209-216) – e deixou bem claro que eles
haviam se esquecido de seu papel para com a sociedade.
Mais do que isso, parece-nos que Bernardo não a recebeu muito bem. O que nos
possibilita dizer isso é a própria relação entre ambos. Após menos de um ano, Abelardo
escrevia em sua Historia Calamitatum que Bernardo se vangloriava de ter ressuscitado a vida
dos monges, e que ele, juntamente com Norberto de Xanten – fundador da ordem dos
premonstratenses –, viajavam pelo mundo

como pregadores, atacando-me quanto podiam, sem nenhum escrúpulo, tornaram-


me, durante algum tempo, repreensível diante de algumas autoridades, tanto leigas
quanto eclesiásticas, e espalharam sobre minha fé e sobre minha vida coisas tão
sinistras, que alguns de meus principais amigos afastaram-se de mim, [...], por causa
do medo que tinham. 19 (ABAELARDUS, 1844-1855, PL. 178: 163-64).

Por outro lado, temos, aproximadamente sete anos depois, uma carta que Bernardo
enviou ao cardeal Ivo de Chartres. Esta se inicia da seguinte forma:

Mestre Pedro Abelardo, um monge sem regra, um superior sem responsabilidade,


não mantém ou permanece em ordem. Ele é um homem em contradição, um
Herodes por dentro um João por fora, uma pessoa completamente inconfiável. Nada
tendo de monge, além do hábito e do nome. (BERNARDUS, Ep. 193, 1956-1977:
185)20.

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19
“Hi praedicando per mundum discurrentes et me impudenter quantum poterant corrodentes, non modice tam
eclesiasticis quibusdam quam saecularibus potestatibus contemptibilem ad tempus effecerunt, et de mea tam
fide quam vita adeo sinistra disseminaverunt, ut ipsos quoque amicorum nostrorum praecipuos a me
averterent [...] hoc ipsi modis omnibus metu illorum dissimularent”.
20
“Magister Petrus Abaelardus, sine regula monachus, sine sollicitudine praelatus, nec ordinem tenet, nec
tenetur ab ordine. Homo sibi dissimilis est, intus Herodes, foris Joannes; totus ambiguus, nihil habens de
monacho, praeter nomen et habitum.”
!
73
!

É interessante notar que, em um contexto de graves acusações de heresia a Abelardo,


Bernardo priorizou a imagem deste como monge para fazer suas críticas. O que deixa claro a
importância da questão monacal e, também, nos permite questionar se o conflito entre ambos
não teria, a princípio, se iniciado justamente por conta de visões diferentes acerca da natureza
da vida monástica.
À guisa de conclusão, há alguns pontos que gostaríamos frisar. Em primeiro lugar,
pudemos observar o quão complexa é a relação entre inovação e tradição no contexto
reformador do século XII. Giles Constable atentara à polissemia dessas palavras no período
(CONSTABLE, 1996: 3-10), e foi exatamente o que aqui notamos. Deste modo, podemos
concluir que analisar o período simplesmente por meio de binômios – como, por exemplo,
inovação e tradição, urbano e rural, etc – é reduzir a sua complexidade à incompreensão.
No entanto, o que mais nos interessa e que será central para a realização de nossa
pesquisa é atentar ao fato de que Abelardo estava, de fato, inserido nesse contexto reformador,
de modo que ele discutiu acerca da natureza da vida monástica com figuras de maior
importância da época. No caso do texto aqui analisado pode-se perceber que Abelardo, a
partir do seu interesse pela gramática e filosofia da linguagem, mais do que discutir a natureza
da novitas ou da vetustas, ele buscou legitimar o modelo de liturgia que propôs ao Paracleto
atribuindo à sua proposta uma maior verossimilhança à sua origem.
Assim, podemos afirmar que há claras relações entre a vida e obra de Abelardo com o
monaquismo e que estas são passíveis de análise. Uma análise que, embora pouco feita pelos
historiadores, pode nos revelar mais acerca desta sociedade, principalmente sobre como esta
lidava com as novas formas de vida religiosa que então surgiam.

REFERÊNCIAS

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Biblia Sacra iuxta vulgatam Clementinam. Ed. Michaele Tveedale. Londres: CBCEW,
2006.

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Paulo: Edições Loyola, 2006.

CONSTABLE, Giles. The reformation of the twelfth century. Cambridge: Cambridge


University Press, 1996.

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

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74
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MCLAUGHLIN, Mary Martin. The letters of Heloise and Abelard: A translation of their
collected correspondence and related writings. New York: Palgrave MacMillan, 2009.

MEWS, Constant. Abelard and Heloise. New York: Oxford University Press, 2005.

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Manchester: Manchester University Press, 1967.

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cultural do século XII. Recife: Editora universitária da UFPE, 1996.

RUST, Leandro Duarte. As colunas de São Pedro: a política papal na idade média central.
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SMITS, E. R. (Ed.) Peter Abelard: Letters IX-XIV. Groningen: Rijksuniversiteit te


Groningen, 1983.

Sancti Bernardi Opera. Ed. Jean Leclerq et al. 8 vols. (Rome, 1956-77).

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75
!

A PREGAÇÃO FRANCISCANA FACE ÀS REGRAS BULADA E NÃO BULADA NA


PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIII

Victor Mariano Camacho (PPGHC-PEM)1

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo trazer reflexões sobre as normativas acerca da prática da
pregação na Ordem dos Frades Menores presentes na Regra Bulada e não Bulada. Ao longo
desta exposição buscaremos tratar de alguns aspectos presentes nestes documentos, que
tinham o intuito de orientar a pregação dos religiosos. A análise destes textos será somada ao
estudo do que outras fontes e a historiografia apresentam sobre o desenvolvimento desta
prática entre os franciscanos na primeira metade do século XIII. Queremos discutir em qual
medida as características propostas para a pregação nestes documentos normativos foram
preservadas, modificadas ou adaptadas diante das exigências da Igreja Papal e do processo de
clericalização da mesma ordem.
PALAVRAS-CHAVE: Franciscanismo. Pregação. Normatização.

ABSTRACT

This work aims to bring reflections about the practice of preaching in the Order of Friars
Minor present in the normative Rule Bulada and not Bulada. Throughout this exposition seek
to address some aspects present in these documents, which had the aim of guiding the
preaching of the religious. The analysis of these texts will be added to the study than other
sources and the historiography about the development of this practice among the Franciscans
in the first half of the thirteenth century. We want to discuss to what extent the characteristics
proposed for preaching in these normative documents were preserved, modified or adapted to
the demands of the Church and the Papal and the clericalizing process the same order.
KEYWORDS: Franciscan. Preaching. Normatization.

A proposta dos Frades Menores, aprovada pela cúria romana no ano 1209, assim como
a dos movimentos de Vida Apostólica2 contemporâneos, previa um modo de vida itinerante,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
sob a orientação da Professora Dra. Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva. Integrante do projeto de
pesquisa coletivo Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade desenvolvido no âmbito do
PEM (Programa de Estudos Medievais). Esta pesquisa conta com o auxílio financeiro por meio de uma bolsa
de mestrado da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior).
2
Entendemos por movimentos de Vida Apostólica, comunidades de fiéis que desejavam viver o evangelho de
forma radical, renunciando às riquezas e pregando a penitência (Cf. VAUCHEZ, 1995: 82-83). Esta nova
forma de manifestação religiosa traz de volta a pregação popular, que não se restringia apenas ao espaço dos
templos. Estas exposições, feitas majoritariamente por leigos, muito mais que apresentar um caráter
catequético, sinalizavam para a adoção de uma vida de austeridade, renúncias e radicalidade evangélica. De
certa forma, a emergência desta forma de pregar entrava em conflito com os parâmetros metódicos da
instituição eclesiástica, que procurava restringir este ministério ao clero. Provenientes desta experiência
religiosa, grupos considerados heréticos surgidos neste mesmo período passaram a se dedicar a este
ministério. Eles pautavam suas exposições em elementos concretos da sociedade de seu tempo,
diferentemente dos discursos teológicos e eruditos feitos pelos clérigos, muitas vezes distantes da realidade
dos fiéis. Os ditos hereges também traduziam textos da Sagrada Escritura para o vernáculo, fazendo
!
76
!

bem como a prática da pregação. Porém, bem diferentes dos frades pregadores ou
dominicanos, que também surgiram no século XIII, cujo principal objetivo era o de converter
os considerados hereges, os franciscanos, nos primeiros anos que se seguiram à sua fundação,
dedicaram-se a uma pregação do cunho penitencial, isto é, fazer exortações simples, que
propiciassem o cultivo de virtudes e uma vida de oração, com uma mensagem essencialmente
de paz evangélica (IRIARTE, 1985: 166). A pregação franciscana, inicialmente, não possuía
um caráter erudito, pelo fato da maioria dos primeiros religiosos não possuir formação
teológica.
André Miatello salienta que a pregação de cunho simples que Francisco e os frades
inicialmente proferiam era na verdade aquela que não estabelecia relações profundas com
temas bíblicos, tal qual a pregação erudita. Era uma exposição desprovida de quaisquer
sutilezas ou recursos retóricos, de cunho muito mais exortativo do que catequético
(MIATELLO, 2013: 104).
Segundo Kajetan Esser, cronistas de fora da ordem testemunham a presença dos frades
em diversas ocasiões em cidades e em aldeias camponesas (ESSER, 1972: 242). Os religiosos
saiam em grupos, entre dez a sete irmãos, com o intuito de pregar nestes locais. Além disso,
segundo tais testemunhos, o discurso dos frades era eficaz, pois seu exemplo de vida de
pobreza e austeridade era bem visto pelos fiéis.
Para Carlo Delcorno, a pregação do fundador, Francisco, também possuía um caráter
político, ao falar de paz na região da Península Itálica, onde, em algumas regiões,
predominavam conflitos entre instâncias do governo comunal. Além das disputas entre o
Papado e o Império Germânico pelo controle político da região. Simultaneamente, a pregação
de cunho penitencial dos primeiros religiosos, embora inicialmente próxima daquela proferida
pelos movimentos de Vida Apostólica, também estava vinculada a política de Inocêncio III,
cujo objetivo era uma reorganização não apenas eclesial, mas também social, uma vez que,
adotando a ortodoxia católica, fomentava uma vida regrada de acordo com a doutrina
eclesiástica no âmbito urbano (DELCORNO, 1977: 138)3.

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exposições de forma compreensível ao seu público, formado, sobretudo, pelos habitantes dos centros
urbanos. Estas iniciativas apontavam para um anseio predominante na sociedade medieval expressado pelos
movimentos de vida apostólica, que buscavam revisitar e reviver as experiências relatadas no Novo
Testamento, cujo acesso ainda permanecia inacessível aos leigos. (BÉRIOU, 2002: 113)
3
A Igreja Romana, no contexto da chamada Reforma Papal, passou a utilizar-se da pregação como meio de
garantir sua hegemonia política e religiosa no âmbito da sociedade medieval, na qual a própria figura do
pregador adquire autoridade e status social. À medida que o papado, sobretudo entre os séculos XII e XIII,
consolida suas diretrizes centralizadoras e o estabelecimento de regras em relação ao clero e a vida dos
leigos, esta atividade adquire dois objetivos principais: o primeiro seria, por meio da persuasão, converter os
considerados hereges ou mesmo impedir que os leigos aderissem suas doutrinas, consideradas, na visão da
!
77
!

Uma vez que Inocêncio III, em 1209, havia consentido que os franciscanos
proferissem pregações penitenciais, inicialmente, todos os religiosos eram pregadores e não
havia prerrogativas dentro da fraternidade quanto a este ministério. Assim, todos os frades
deveriam exercer esta atividade por meio de suas palavras, de suas obras e exemplo de vida
(IRIARTE, 1985: 167). Porém, nos anos que se seguiram, além das mudanças ocorridas
quanto à organização institucional e a missão a ser desempenhada pelos frades, observamos
transformações expressivas em relação às diretrizes sobre a pregação destes religiosos.
No decorrer do século XIII, clérigos entram na Ordem e simultaneamente a Igreja
Romana passa a estabelecer critérios e objetivos precisos para esta prática. A partir do
momento em que os religiosos passam a desempenhar um papel expressivo em missões, como
a contenção das chamadas heresias, a pregação em cruzadas, além da administração do
próprio sacramento da confissão4, os documentos normativos elaborados dentro da instituição
começam, de certa forma, a atender a estas novas exigências.
Uma das primeiras mudanças que apontam para uma paulatina absorção da
fraternidade em relação às diretrizes da Igreja Romana foram as primeiras expedições entre os
muçulmanos, onde, por volta de 1215, os primeiros religiosos minoritas sofreram o martírio
por parte dos sarracenos no Marrocos. Os frades assim como outros religiosos da cristandade,
por meio das diretrizes papais em relação as Cruzadas, passaram a se lançar em expedições
rumo a Terra Santa5.
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cúria, errôneas e nocivas para a unidade da Igreja Romana; o segundo seria fomentar uma vida sacramental
regrada, principalmente com a prática da confissão e da eucaristia por parte dos fiéis, elementos que foram
estabelecidos nas atas do III e no IV Concílios do Latrão. Sobre a pregação como meio de centralização
política ver: RUSCONI, Roberto. De lá predicacion à la confission: transmission et contrôle de modèles de
comportement au XIIIe siècle. In: CROIRE, Faire (org). Modalités de la diffusion et de la réception des
messages religieux du XIIe au XVe siècle. Roma: École Française de Rome, 1981. p. 67-85.
4
Entre os séculos XII e XIII, diretrizes pastorais propostas pelo papado, sobretudo nos concílios lateranenses,
procuraram estabelecer a confissão individual como norma, em detrimento da confissão pública
predominante na estrutura rural alto medieval. Roberto Rusconi elucida que, desde o IX século, o ritual de
imposição das cinzas na quarta-feira da primeira semana da Quaresma marcava o início de um período de
penitência, que culminaria necessariamente com uma confissão individual, em vista de se receber a
comunhão pascal. Porém, em finais do século XII, a fim de melhor regulamentar esta prática, cria-se o
costume de preceder o ato da confissão com uma pregação. Logo, pregação e confissão estabelecem uma
ligação estreita, uma vez que os discursos proferidos pelos frades, às vésperas das festividades pascais,
assumiram um cunho moralizante e penitencial. Na quaresma predominavam exposições de natureza
exortativa, apontando os vícios e virtudes e as diretrizes para uma conduta cristã considerada ideal. Assim, os
pregadores deveriam levar os seus ouvintes a refletirem a respeito de possíveis faltas cometidas e de sua
vivência em relação aos ensinamentos evangélicos e a doutrina da Igreja. (RUSCONI, 1981: 68)
5
O cânone 71 do IV Concílio do Latrão previa a presença de religiosos em expedições no contexto de cruzada
para a Terra Santa no intuito de pregar aos cavaleiros e garantir-lhes a administração dos sacramentos. No
caso dos mendicantes existia também o desejo de pregar no intuito de converter os sarracenos à fé católica.
Este tipo de pregação refletia à ideia de embate entre a fé cristã católica entendida pelos religiosos como
verdadeira, frente ao islã e os muçulmanos classificados pelos cristãos do Ocidente como infiéis. Ver:
BACHRACH, David S. The friars go to war: mendicant military chaplains, 1216- C. 1300. The Catholic
historical review. New York, v. 90, n. 4, p.617-633, 2004.
!
78
!

Percebemos mudanças em relação às novas atividades e diretrizes da ordem nos textos


da Regra não Bulada e da Regra Bulada. Todavia, antes de nos debruçarmos na análise destes
dois documentos, torna-se necessário expor as circunstâncias em que ambos foram
elaborados.
Seguiram-se cerca de dez anos desde o encontro dos primeiros frades com o Bispo de
Roma, porém, no decorrer deste período, alguns elementos levaram a mudanças dentro da
Ordem. Os religiosos já haviam feito missões de pregação além da Península Itálica,
chegando até o Oriente; o próprio Francisco chegou a fazer uma viagem a Terra Santa. Além
disso, a entrada de clérigos levou a transformações na forma de pregar, pois alguns destes
possuíam formação teológica e também universitária. Este fator propiciou uma clara distinção
entre os primeiros companheiros do santo, que eram em sua maioria leigos.
Por outro lado, a Ordem que crescia cada vez mais apresentava problemas, que não
existiam quando o número de frades se limitava entre 12 a 20 homens. Por isso, Francisco
solicitou ao papa a presença de um cardeal para auxiliar no governo da instituição. A função
foi dada ao bispo de Óstia, Hugolino Segni, sobrinho de Inocêncio III, que posteriormente foi
eleito papa, escolhendo para si o nome de Gregório IX, já mencionado6.
Hugolino possuía formação em direito canônico na alta escola curial, assim como
experiência em transações diplomáticas. Por ordem de Inocêncio III, já havia mediado
conflitos entre os nobres alemães. Em 1217, seu predecessor, Honório III, também o enviou
para mediar dissensões nas cidades da Itália Centro-Setentrional, a fim de obter auxílios
financeiros e militares para os cruzados que se encontravam em dificuldades para manterem-
se na Terra Santa (MANSELLI, 1997: 178-179).
Até o retorno de Francisco do Oriente, o primeiro texto normativo a ser seguido pelos
frades, o mesmo apresentado a Inocêncio III, ainda era vigente entre os minoritas. A primeira
regra aprovada por Inocêncio III em 1209, segundo a Crônica de Frei Jordão de Jano,
conforme o crescimento da fraternidade, passou a não atender mais as necessidades da
Ordem, havendo, portanto a necessidade de uma reforma nos estatutos. Logo, os frades
deveriam apresentar à Cúria Romana um texto normativo mais sistemático e claro, que seria
aprovado (JORDÃO DE JANO, 2008: 1270 - 1271).7 O primeiro documento proposto pelo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
Embora segundo algumas fontes, como a própria Vida Prima de Celano, Francisco tenha solicitado um
cardeal para o auxílio no governo da Ordem, a presença de um prelado que servia quase que como um tutor
para as ordens religiosas foi uma das diretrizes estabelecidas pelo IV Concílio do Latrão (Cf. BOLTON,
1983: 129-130).
7
“E assim acalmados de imediato os agitadores, com o favor de Deus, ele reformou a Ordem segundo seus
estatutos. E vendo o bem-aventurado Francisco que Frei Cesário era erudito nas Sagradas Escrituras,
!
79
!

santo de Assis provavelmente possuía apenas algumas passagens do evangelho e em


comparação com outras regras monásticas já existentes, não se constituía como uma Regra de
fato, em seu sentido jurídico, para o papado (LE GOFF, 2001: 71).
Entendemos que a necessidade de se elaborar uma nova Regra para a fraternidade está
estreitamente vinculada a política reformadora e centralizadora estabelecida pelo papado no
IV Concílio do Latrão em relação às ordens religiosas existentes no Ocidente nos cânones de
número 12 e 13 respectivamente, onde se estabelecia a obrigatoriedade dos capítulos em
mosteiros e a proibição da criação de novas ordens fundadas após aquele concílio8. De fato, os
cânones emitidos após a reunião caracterizaram-se por uma profunda sistematização e
burocratização da Igreja, sendo a Ordem naquele momento também incorporada às estruturas
eclesiásticas, houve a necessidade de normativas mais sistemáticas.
No capítulo geral de 1217, decidiu-se pela elaboração de uma nova Regra. Francisco
não estava alheio às mudanças legislativas que eram estabelecidas pela Igreja Romana
naquele momento, dando início à elaboração do novo texto legislativo. (FALBEL, 1995: 17-
18).
Em 1221, segundo Lázaro Iriarte, no capítulo geral de Pentecostes, foi aprovada pela
fraternidade a Regra não Bulada. Tal documento contou com o auxílio de Frei Cesário de
Espira para a fundamentação de textos bíblicos citados ao longo do mesmo, dando a ele uma
acentuada índole evangélica. Este, contudo, ganhou este nome pelo fato de não ter sido
aprovado pela Cúria Romana (IRIARTE, 1985: 56).
Apesar de não ter recebido a devida aprovação do papado, a primeira regra apresenta
diversas mudanças ocorridas tanto na fraternidade quanto nas diretrizes eclesiásticas. A Regra
estabelece o ano do noviciado, imposto pela Igreja Romana através de uma bula emitida pelo
Papa Honório III9. A regra também previa normas quanto à recitação do ofício divino pelos
clérigos, jejuns, missões entre os sarracenos, e também com relação à pregação. Logo no
início exige-se que os novos candidatos sejam examinados na fé católica; este fator aponta
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
incumbiu-o de adornar com as palavras do Evangelho a regra que ele mesmo concebera com palavras
simples”.
8
De acordo com Brenda Bolton, o decreto não foi aplicado aos franciscanos, pois Francisco baseava a sua
posição a uma suposta revelação divina bem como ao fato de sua primeira regra ter sido aprovada
verbalmente por Inocêncio. Isso expôs os frades a acusações de um movimento de inovação presunçosa por
parte da Cúria Romana e dos padres conciliares. O decreto trouxe dificuldades aos antigos movimentos que
Inocêncio havia ajudado anteriormente, porém nos bastidores do concílio o papa procurou ao máximo
incorporar os mendicantes a hierarquia eclesiástica. Após o concílio a ordem apresenta outra regra possuindo
alguns preceitos monásticos já existentes na cristandade como a obrigatoriedade do ofício divino e o ano de
noviciado sendo enfim aprovada pelo papado. (Cf. BOLTON, 1983: 128).
9
Trata-se da bula Cum Secundum Consilium, emitida em 22 de novembro de 1220, que estabelecia, além da
obrigatoriedade do ano de noviciado, a proibição de deixar uma ordem religiosa, após a profissão dos votos.
Cf. (IRIARTE, 1985: 56).
!
80
!

para uma preocupação de distinguir os frades de outros movimentos considerados


heterodoxos existentes no Ocidente.
A Regra não Bulada, portanto, procura na medida do possível atender às novas
exigências do papado e normatizar as atividades das quais os frades desempenhavam naquele
momento. Porém, como aponta Raoul Manselli, na visão da Cúria, o texto repleto de
passagens bíblicas não representaria um documento preciso e de caráter normativo
(MANSELLI, 1997: 239).
Em virtude do parecer da Igreja Romana, o santo, que neste momento havia
renunciado ao governo da Ordem10, elabora outra Regra, tendo a mesma provavelmente
algumas intervenções de Hugolino. Neste sentido, é provável que o documento tenha sofrido
modificações por parte do cardeal antes de chegar a Cúria11. Em 1223, a Regra definitiva é
aprovada pelo papa por meio da bula Solet Annuere12, emitida por Honório III, tendo vigência
até os nossos dias.
O segundo texto apresenta os mesmos pontos do primeiro, com algumas modificações
e adaptações, sendo mais breve e objetivo. A fim de melhor expor as diretrizes que tocam a
pregação dos Frades Menores a partir, sobretudo de 1221, analisaremos aqui os capítulos 17 e
9 das regras não Bulada e Bulada, respectivamente.
Com relação à transmissão e autenticidade destes textos, há que tratar de algumas
questões. De acordo com Celso Márcio Teixeira, as regras estão incluídas no conjunto dos
escritos de Francisco. Os Frades Menores procuraram, desde o século XIII, preservar estes
documentos, transcrevendo as exortações e recomendações que o santo havia proferido ou
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10
O capítulo geral de 1221 foi um dos mais decisivos na trajetória do movimento franciscano. O fundador
Francisco de Assis, diante das dissensões em torno da sua proposta inicial de pobreza e renúncia, decide
renunciar ao governo da fraternidade instituindo Frei Pedro Cattani como ministro geral, este por sua vez,
seria auxiliado por Hugolino. Cf. MERLO, 2005: 37-38.
11
É provável que Hugolino tenha auxiliado Francisco na elaboração da Regra a partir de informações presentes
em uma biografia intitulada Vida de Gregório IX que segundo Celso Márcio Teixeira está em uma coleção
chamada Vita Romanorum Pontificum presente no terceiro volume de uma edição de 1929 da Collectanea
Philosophico-Theologica: “No tempo do ofício dele [como bispo e cardeal de Óstia], fundou as novas ordens
dos Irmãos Penitentes e das Senhoras Reclusas e conduziu-as ao ponto mais elevado. Com a entrega de nova
regra, dirigiu também a Ordens dos Menores, que no início vagava por caminhos incertos, e deu forma ao
que estava disforme, constituindo Francisco como ministro e guia deles [...]”.
12
Segue o texto da bula que procede e que conclui a Regra dos Frades Menores: “Honório, bispo, servo dos
servos de Deus, aos diletos filhos Frei Francisco e demais irmãos da Ordem dos Frades Menores, saudação e
bênção apostólica. Costuma a Sé Apostólica anuir aos piedosos votos e deferir os desejos honestos dos que
lhe imploram benévolo favor. Por este motivo, diletos filhos no Senhor, propício aos vossos rogos,
confirmamos, como autoridade apostólica, a Regra de vossa Ordem aprovada pelo nosso predecessor, o Papa
Inocêncio, de vossa saudosa memória, registrada nas presentes letras, e a munimos com a proteção do
presente escrito. (...) Portanto, absolutamente a nenhum homem seja permitido infringir esta página de nossa
confirmação ou contrariá-la por temerária ousadia. Se porém, alguém presumir tentá-lo, saiba que há de
incorrer na indignação de Deus Todo-Poderoso e de seus bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo. Dada em
Latrão, aos 29 de novembro, no oitavo ano de nosso pontificado” (REGRA BULADA. 2008: 165).
(Doravante RB).
!
81
!

mesmo recolhendo cartas e outros escritos do mesmo. O próprio Francisco incentivava aos
destinatários que transcrevessem estes documentos, a fim de memorizar e praticar os preceitos
por ele deixados (TEIXEIRA, 2008: 14). O fato de haver uma prática de transcrições por parte
dos religiosos fez com que houvesse diversas coletâneas dos escritos do Poverello.
Uma das primeiras tentativas de reunir todos estes documentos se deu em 1623, pelo
frade Lucas Wadding, tendo como título Opuscula. Esta edição foi impressa em latim. O
religioso, porém, não teve o cuidado de distinguir na obra quais seriam os textos produzidos
pelo santo daqueles que seriam simplesmente atribuídos ao mesmo (TEIXEIRA, 2008: 15).
No início do século XX, edições críticas dos escritos de Francisco buscaram fazer esta
distinção, além disso, tentavam na medida do possível reconstruir os textos em sua versão
original, a fim de apontar as adições feitas pelos copistas.
A mais recente edição crítica dos escritos de Francisco é de 1976, organizada por
Kajetan Esser a partir do códice 338 da Biblioteca Comunal de Assis. Nela, o frade conseguiu
transcrever a maioria dos manuscritos do século XIII que traziam consigo mensagens e
orações do assisense. Tal edição foi feita a partir de comparações entre manuscritos presentes
na Biblioteca Comunal de Assis. Porém, segundo Teixeira, o próprio Esser sinalizou para
alguns problemas em relação à suposta autenticidade destes textos pelos seguintes fatores:
alguns deles não foram escritos de próprio punho pelo santo e eram geralmente proferidos em
língua vulgar, mas elaborados em latim por secretários, como é o caso das próprias regras
(TEIXEIRA, 2008: 15).
Além disso, observam-se diferenças na escrita, pois enquanto em alguns trechos se
constata um estilo erudito e um latim rebuscado, já em outros se observa um caráter mais
simples. Por isso, Esser estabelece a distinção entre autenticidade e originalidade, pois, na
visão do frade, mesmo que os textos tenham sofrido intervenções dos secretários no intuito de
torná-los mais claros e gramaticalmente corretos, é provável que o santo os lesse e, ao assiná-
los, os reconhecia como seus, visto que os mesmos transmitiam a essência de seu pensamento
(TEIXEIRA, 2008: 16).
Quanto à Regra não Bulada, vemos nas primeiras recomendações quanto à pregação
dos frades: “nenhum irmão pregue contra a forma e as diretrizes da Santa Igreja e se não lhe
tiver sido concedido pelo seu ministro. E cuide o ministro para não concedê-lo a ninguém
sem discernimento” (RNB, Cap. XVII)13.

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13
Doravante RNB. A versão do documento em latim foi extraída do site do centro franciscano da província dos
capuchinhos de Piracicaba: <http://www.centrofranciscano.org.br/>. Acesso em 12 fev 2014: “Nullus frater
praedicet contra formam et institutionem sanctae ecclesiae et nisi concessum sibi fuerit a ministro suo”.
!
82
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Neste fragmento é possível inferir sobre dois aspectos. Primeiramente quanto à


recomendação de pregar de acordo com as diretrizes da Igreja Romana. É provável que até
1215, quando foram emitidos os decretos de Latrão IV14, os frades pregassem, como já
destacamos, de forma simples e com caráter penitencial. Por isso, talvez não houvesse, até
aquele momento, preocupações por parte da Ordem quanto a uma possível formação teológica
dos religiosos, bem como acerca das mensagens transmitidas pelos mesmos.
Quanto ao parecer do ministro, percebemos o início de uma restrição em relação a esta
atividade: se inicialmente a todos os frades era concedida a permissão de pregar, vemos que,
nos anos 20 do século XIII, a Ordem começa e estabelecer critérios quanto a esta prática. O
capítulo recomenda que o ministro use de discernimento para a escolha dos mesmos:
“contudo, todos os irmãos preguem com as obras. E nenhum ministro ou pregador se
aproprie do ministério dos irmãos ou do ofício da pregação, mas em qualquer hora em que
lhe for ordenado, sem qualquer objeção, deixe seu ofício” (RNB, cap. XVII, 3-4)15.
Ao destacar que os frades devem pregar pelas obras, a Regra não Bulada está em
sintonia com o decreto de número 10 do IV Concílio do Latrão16, no qual se diz que os bispos
devem escolher pessoas ricas em palavras e obras para desempenharem a missão de pregar.
Sendo a Ordem dos Frades Menores uma instituição que estava subordinada diretamente a
Santa Sé, caberia, portanto, aos ministros, ao invés dos bispos, a função de escolher os
pregadores. Além disso, o mesmo capítulo da Regra destaca o fato de que aqueles que pregam
devem ser ricos em obras. Este primeiro texto não menciona o fator da erudição como
exigência para que os frades proferissem exortações ao povo, porém, se no fragmento anterior
existe uma restrição – pregar na “forma e as diretrizes da Santa Igreja”, é provável que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
O IV Concílio do Latrão dentre outras medidas, reiterou a condenação da heresia de forma ainda mais
incisiva, porém Inocêncio III havia demonstrado maior aceitação em relação aos grupos leigos inseridos nas
características da Vida Apostólica. Além dos franciscanos em 1209, o papa já havia aprovado outros
movimentos de penitentes, permitindo-lhes a pregação de caráter penitencial. Percebemos que a aprovação de
tais grupos e a permissão de pregar em língua vulgar demonstra, por parte da Igreja Romana na figura de
Inocêncio III, a ideia de que tal prática poderia ser um instrumento eficaz de reforma. Todavia, a Igreja passa
a exigir maior instrução teológica e retórica mesmo daqueles que havia sido permitida a pregação simples e
penitencial (BOLTON, 1983: 126).
15
Segue o texto latino: “Omnes tamen fratres operibus praedicent. Et nullus minister vel praedicator
appropriet sibi ministerium fratrum vel officium pradicationis, sed quacumque hora ei iniunctum fuerit, sine
omni contradictione dimittat suum officium”.
16
Os designados deverão visitar os povoados e eles confiados quando os bispos não o puderem fazer por eles
mesmos, deverão igualmente instruir com sua palavra e exemplo, dispensar-lhes, se forem ministros, os
auxílios necessários de maneira que a privação destes meios não obrigue a suspensão da obra empreendida
(Cânone 10). Segue o texto latino: “Assumant potentes in opere et sermone qui plebes sibi commissas vice
ipsorum cum per se idem nequiverint sollicite visitantes eas verbo ædificent et exemplum. Quibus ipsi cum
indiguerint congrue necessaria ministrent ne pro necessariorum defectu compellantur desistere ab incoepto”
(CONCILIUM LATERANENSE IV, 2007: 14).
!
83
!

houvesse uma relativa preocupação de Francisco e do governo geral quanto à formação dos
frades.
Não é coincidência que do mesmo período, ou seja, entre 1223 e 1224, exista um
documento, cuja autoria é atribuída a Francisco e é endereçado a Antônio de Lisboa/Pádua,
solicitando que o lisboeta ensinasse teologia aos frades:

Eu, Frei Francisco, [desejo] saúde a Frei Antônio, meu bispo. Apraz-me que ensine
a sagrada teologia aos irmãos, contanto que, nesse estudo, não extingas o espírito de
oração e devoção, como está contido da Regra (FRANCISCO DE ASSIS, 2008:
107).

No trecho da Regra não Bulada, Francisco destaca que o ministério da pregação não é
propriedade dos frades e que estes, se necessário ou, sob obediência, deveriam abandoná-lo.
Este elemento sugere que a prédica não deveria ser utilizada pelos frades como uma forma de
obter visibilidade e ascensão dentro da Ordem e da Igreja Romana, por isso a autoridade do
ministro em destituir um pregador; logo, o documento reforça o princípio da humildade. O
fragmento que vem a seguir dá continuidade a esta questão, fazendo uma verdadeira
exortação aos frades:

Por isso, na caridade que é Deus, suplico a todos os meus irmãos que pregam, que
rezam e que trabalham, tanto aos clérigos quanto aos leigos, que se esforcem por
humilhar-se em tudo e por não se gloriar nem regozijar consigo mesmos nem exaltar
interiormente das boas palavras e obras, e menos ainda, de nenhum bem que Deus
muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles, segundo diz o Senhor: Não vos
alegreis, no entanto, porque os espíritos se vos submetem. E saibamos firmemente
que nada vos pertence, a não ser os vícios e pecados (RNB, cap. XVII, 5-7)17.

Marie Paolo Bolieu salienta que a grande maioria da sociedade medieval era iletrada,
sendo o letramento muitas vezes restrito aos clérigos, logo, a palavra proferida oralmente
ganhava maior receptividade e eficácia para a transmissão da doutrina cristã. Assim, a
pregação reunia, nas principais datas do calendário litúrgico da Igreja Romana, fiéis em torno
da palavra de Deus em busca de salvação, ao mesmo tempo em que estabelecia de forma
hierárquica uma distinção entre locutores e ouvintes, sendo estes respectivamente clérigos e
leigos (BOLIEU, 2009: 367).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Segue o texto latino: “Unde deprecor in caritate, quae Deus est, omnes fratres meos praedicatores, oratores,
laboratores, tam clericos quam laicos, ut studeant se humiliare in omnibus, non gloriari nec in se gaudere
nec interius se exaltare de bonis verbis et operibus, immo de nullo bono, quod Deus facit vel dicit et operatur
in eis aliquando et per ipsos, secundum quod dicit Dominus: ‘Verumtamen in hoc nolite gaudere, quia
spiritus vobis subiciuntur’. Et firmiter sciamus, quia non pertinent ad nos nisi vitia et peccata”.
!
84
!

O trecho acima, em nossa opinião, demonstra uma preocupação de Francisco em


relação uma possível soberba por parte dos frades que desempenhassem tal ministério a partir
desta hierarquização. Se compararmos os franciscanos com os dominicanos, os primeiros, em
seu projeto original, não pretendiam colocar-se como os pregadores por excelência, pois esta
atividade era parte da forma de vida proposta por Francisco e não seu objetivo central. Porém,
é possível que alguns religiosos tenham assumido para si tal prática, como uma forma de
engrandecimento.
Apesar das mudanças em relação à pregação no âmbito da fraternidade, que se tornava
cada vez mais complexa, Francisco ainda procurava lembrar aos religiosos que sua forma de
falar deveria ser simples e que o ato de pregar não deveria sobrepujar os princípios de
humildade, pobreza e austeridade que eram os elementos centrais do projeto da Ordem.
Persistindo em suas recomendações, o santo cita dentro do texto o capítulo 8 da Carta de
Paulo aos Romanos e o Evangelho de Mateus:

Portanto, acautelemo-nos, irmãos todos, de toda soberba e vanglória; e guardemo-


nos da sabedoria deste mundo e da prudência da carne; pois o espírito da carne quer
se esforça muito por ter as palavras, mas pouco por fazer as obras, e procura não a
religião e a santidade interior do espírito, mas deseja ter a religião e santidade que
aparecem exteriormente aos homens. E estes são aqueles que diz o Senhor: Em
verdade vos digo, já receberam sua recompensa (RNB, cap. XVII, 9-13)18.

Um fator de tensão pode ser percebido no trecho em que se fala sobre a “sapientia
mundi” e o recurso retórico da carta paulina sobre “letra e espírito”; a citação de certa forma
está vinculada ao cultivo do estudo e da ciência por parte dos religiosos. Sabemos que, já em
1221, teólogos e outros intelectuais ingressavam dentro do movimento franciscano,
provenientes de centros universitários europeus. Atendendo as exigências da Igreja Romana,
era provável que estes frades desempenhassem com maior frequência a prática da pregação,
que ganha um caráter cada vez mais erudito19. Porém o cultivo dos estudos em uma sociedade

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18
Segue o texto latino: “Omnes ergo fratres caveamus ab omni superbia et vana gloria; et custodiamus nos a
sapientia huius mundi et a prudentia carnis; spiritus enim carnis vult et studet multum ad verba habenda, sed
parum ad operationem, et quaerit non religionem et sanctitatem in interiori spiritu, sed vult et desiderat
habere religionem et sanctitatem foris apparentem hominibus. Et isti sunt, de quibus dicit Dominus: ‘Amen
dico vobis, receperunt mercedem suam’”.
19
A constante dedicação dos frades a esta atividade levou a investimentos por parte do governo destas ordens
em estudos, manuais dentro do modelo das Artes predicandi, conventos mais amplos e equipados de
manuscritos com textos bíblicos, dos santos padres, além de filósofos clássicos, perpetuando assim, como já
destacamos, os recursos retóricos construídos ao longo dos séculos do cristianismo. Nos grandes centros
universitários, onde os religiosos mendicantes também possuíam cátedras de teologia, através de seus
grandes mestres, procurou-se dar formação sólida aqueles que desejavam exercer tal ministério (BÉRIOU,
2002: 119).
!
85
!

cuja maioria era formada de iletrados dava aos clérigos status social, que era ainda mais
expressivo em sua dedicação ao ministério da pregação.
O que se percebe no capítulo 17 da Regra não Bulada é uma tensão entre pregação,
exemplo e estudo, embora, como já destacamos, o santo possivelmente via a necessidade de
formação ao menos elementar para os religiosos. As exortações feitas no documento, a partir
de textos bíblicos, revelam este conflito e apontam para o crescente distanciamento entre
clérigos e leigos, a partir do momento em que existe um critério para o desempenho da
função. No capítulo 9 da Regra Bulada algumas destas recomendações são omitidas,
resumindo o texto sobre a pregação em apenas um parágrafo:

Não preguem os irmãos na diocese de algum bispo, quando este lhes tiver proibido.
E absolutamente nenhum dos irmãos ouse pregar ao povo, se não tiver sido
examinado e aprovado pelo ministro geral desta fraternidade e se não lhe tiver sido
concedido pelo mesmo o ofício da pregação (RB. Cap. IX, 2-3)20.

Por que a questão do estudo e da ciência não é tratada no documento aprovado pelo
papado? Possivelmente, Hugolino já via nos frades um importante instrumento de reforma,
por isso era necessário o cultivo da instrução e da erudição de alguns religiosos. Além disso,
para o papado também era necessário que os frades se dedicassem a teologia e ao estudo
universitário para exercer este ministério e concretizar os objetivos centrais almejados pela
instituição eclesiástica.
No início do nono capítulo da Regra percebemos a adição de mais uma instancia na
norma sobre a pregação: o bispo que não havia sido mencionado no primeiro documento.
Desta forma, o texto entra em concordância de forma mais plena com o cânone de número 10
do IV Concílio do Latrão, que estabelece o bispo como o primeiro responsável pela pregação
dentro de sua diocese21. Assim, mesmo que os frades devessem obediência diretamente ao

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20
Segue o texto latino: “Fratres non praedicent in episcopatu alicuius episcopi, cum ab eo illis fuerit
contradictum. Et nullus fratrum populo penitus audeat praedicare, nisi a ministro generali huius
fraternitatis fuerit examinatus et approbatus, et ab eo officium sibi praedicationis concessum”.
21
A tradução da edição espanhola dos cânones lateranenses de Raymunda Foreville é nossa: Todos sabemos
que, entre muitas coisas relativas à saúde do povo cristão, a palavra de Deus é um dos alimentos mais
necessários. Assim como o corpo tem necessidade de um alimento material, a alma tem de um alimento
espiritual, pois “o homem não vive somente de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. Não é
raro que os bispos, como consequência de suas múltiplas ocupações, de suas enfermidades físicas, dos
ataques de pessoas inimigas, incluindo eventualidades diversas – para não mencionar a ignorância em toda a
parte digna da mais severa condenação –, que deverá tolerar no futuro, não podem dedicar-se a proclamar a
palavra de Deus, especialmente nas grandes dioceses e de população dispersa. Em consequência,
estabelecemos, por uma ordem geral, que os bispos designem pessoas capacitadas, ricas em palavras e
exemplo, para cumprir convenientemente o ofício da santa pregação. Segue o texto latino: “Inter cætera quæ
ad salutem spectant populi christiani pabulum Verbi Dei permaxime sibi noscitur esse necessarium quia
sicut corpus materiali sic anima spirituali cibo nutritur eo quod non in solo pane vivit homo sed in omni
!
86
!

papa, a realização desta atividade, no nível diocesano, pelos frades, deveria passar pela
aprovação do poder episcopal.
O texto continua reafirmando o princípio da simplicidade elucidado pela Regra não
Bulada:

Admoesto também e exorto os mesmos irmãos a que, na pregação que fazem, seja
sua linguagem examinada e casta, para a utilidade e edificação do povo, anunciando-
lhe, com brevidade de palavra, os vícios e as virtudes, o castigo e a glória; porque o
Senhor sobre a terra, usou de palavra breve (RB. Cap. IX: 4-5)22.

Quando se recomenda a brevidade, bem como o anúncio de vícios e virtudes,


constatamos uma preocupação de que a pregação proferida pelos minoritas permanecesse em
seu caráter penitencial. Todavia, como já sinalizamos, não há censura quanto ao cultivo da
erudição.
Embora não fosse a pregação a principal atividade pastoral a ser desempenhada
inicialmente pelos frades, como já mencionamos, a disposição aos projetos do papado levam a
Ordem a assumir de forma cada vez mais ampla este ministério. Mesmo que a Regra
exortasse aos mesmos para que cultivassem uma pregação simples, a atuação em missões
anti-heréticas e nas cruzadas, a entrada de teólogos no grupo e a exigência de que os
pregadores deveriam ter noções básicas da doutrina da Igreja, tornou-se cada vez mais
necessário o preparo intelectual dos religiosos.
Os dois textos definem a prática da pregação como um “ofício”, logo, deveria ser
entendida pelos franciscanos como uma das atividades desempenhadas pelos mesmos, assim
como os trabalhos manuais. A palavra “ofício” pode ser entendida como um trabalho, tal
como a prática cotidiana da oração. Por isso, o ato de pregar não deveria ser entendido como
um privilégio ou condecoração, mas uma função dentre as demais. Entretanto, este “ofício” ao
longo da trajetória da ordem torna-se cada vez mais restrito aos frades clérigos e negado aos
leigos, que passam, sobretudo, a desempenhar apenas trabalhos manuais. A pregação,
portanto, torna-se também um fator que gerará uma hierarquização dentro do movimento.

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verbo quod procedit de ore Dei. Unde cum sæpe contingat quod episcopi propter occupationes multiplices
vel invaletudines corporales aut hostiles incursus seu occasiones alias ne dicamus defectum scientiæ quod in
eis est reprobandum omnino nec de cætero tolerandum per se ipsos non sufficiunt ministrare populo Verbum
Dei maxime per amplas dioeceses et diffusas generali constitutione sancimus ut episcopi viros idoneos ad
sanctæ prædicationis officium salubriter exequendum” (CONCILIUM LATERANENSE IV, 2007: 14).
22
Segue o texto latino: “Moneo quoque et exhortor eosdem fratres, ut in praedicatione, quam faciunt, sint
examinata et casta eorum eloquia, ad utilitatem et aedificationem populi, anuntiando eis vitia et virtutes,
poenam et gloriam cum brevitate sermonis; quia verbum abbreviatum fecit Dominus super terram”.
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87
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Além disso, na Regra não Bulada, as primeiras recomendações são: “Nenhum irmão
pregue contra a forma e as diretrizes da Santa Igreja...”. Este elemento, para nós, gera ainda
mais exigências quanto à pregação dos frades, pois afinal, em que medida as diretrizes da
Igreja eram conhecidas de forma clara por grande parte dos frades? Lembremos que os
primeiros religiosos e o próprio Francisco eram leigos, logo, em que grau, no contexto do
século XIII realmente, conheciam a doutrina católica? O confronto dos frades com os
considerados hereges ou mesmo o cuidado para que os franciscanos não fossem confundidos
com estes grupos dissidentes, exigia que os mesmos tivessem ao menos uma formação
teológica elementar.
A partir das regras, constatamos: a crescente distinção entre os frades que tinham ou
não a permissão de pregar; o princípio da obediência em relação à Igreja Romana, bem como
a presença da ortodoxia dos religiosos em suas exortações; a ideia da pregação como um
ofício, isto é, uma forma de trabalho, assim como outras atividades desenvolvidas pelos
frades, sob obediência e não motivada por iniciativa pessoal e vanglória; a preocupação em
relação às obras e o testemunho daqueles que tivessem tal ministério; o cuidado de
caracterizar a pregação franciscana como um discurso simples e breve de caráter penitencial,
a fim de distanciá-lo do modelo erudito, que entra em tensão com as exigências sobre a
instrução teológica por parte da instituição eclesiástica.
Embora a Regra exigisse simplicidade na predica dos frades e que os mesmos fossem
breves, ou seja, que suas exortações fossem muito mais de caráter penitencial que teológico,
comparando o documento elaborado pela ordem com as normativas lateranenses, é
perceptível a presença de certa dissonância entre as duas diretrizes: enquanto no primeiro
documento se exige cada vez mais a instrução dos pregadores, no segundo tenta-se preservar
o caráter simples da mesma, a partir do princípio de pobreza e humildade, próprios da forma
de vida proposta pelo Poverello.
Embora nas regras transpareça a preocupação de Francisco com o estudo como uma
possibilidade de engrandecimento e soberba, como já apontamos, ao longo do século XIII a
formação teológica será uma exigência cada vez maior para aqueles que exercessem a
atividade de pregador. Assim, tornava-se quase que impossível aos frades, diante de sua
inserção no âmbito da instituição eclesiástica, a observância das recomendações do santo. O
próprio Antônio, um dos primeiros teólogos que ingressou na Ordem, em seus sermões
demonstrava erudição e conhecimento nos textos bíblicos.

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88
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REFERÊNCIAS

1 Fontes

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<http://www.documentacatholicaomnia.eu/>. Acesso em 16 de abril de 2014.

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Fontes franciscanas e clarianas. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p. 107.

JORDÃO DE JANO. Crônica. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e
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REGRA BULADA. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e clarianas.
Petrópolis: Vozes, 2008. p. 157-158.

REGRA NÃO BULADA. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e
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VIDA DE GREGÓRIO IX. In: TEIREIRA, Celso Márcio (coord). Fontes franciscanas e
clarianas. Petrópolis: Vozes, 2008. p.1439.

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BÉRIOU, Nicole. Un mode singulier d’educacion. La predication aux derniers siècles du


Moyen Age. Comunications. Roma, t. 72, 2002. p. 113-127

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Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2009. 2v, v.2, p. 367-377.

BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 129-130.

DELCORNO, Carlo. Origini della predicazione francescana. In: Francesco D´Assisi e


francescanesimo dal 1216 al 1226. Atti del convegno internazionale. 4. 1976, Assis: Centro
Italiano di Studi sull’alto medievo spoleto, 1977. p. 132-133.

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89
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ESSER, Kajetan. Origens e espírito da ordem franciscana. Petrópolis: Vozes, 1972.

FALBEL, Nachman. Os espirituais franciscanos. São Paulo: Edusp, 1995.

IRIARTE, Lázaro. História franciscana. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.

LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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réception des messages religieux du XIIe au XVe siècle. Roma: École Française de Rome,
1981. p. 67-85.!
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TEIXEIRA, Celso Márcio. Introdução. In: ______ (coord). Fontes franciscanas e clarianas.
Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13-89.

VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Lisboa: Estampa, 1995.

3 Homepages

<http://www.centrofranciscano.org.br/>. Acesso em: 12 fev 2014.

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90
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O PASTOR AMOROSO: A MOBILIZAÇÃO DO CONCEITO DE AFFECTUS NAS


PRÁTICAS DO PASTORADO RÉGIO (SÉC. XIII)

Wanderson Henrique Pereira1

RESUMO

Nosso objetivo é compreender a mobilização política do conceito de affectus dentro das


práticas de governo do tipo pastoral na realeza capetíngia de Luís IX (1226-1270) de França.
Realizaremos tal intento analisando a Eruditio Regum Et Principum, que mobiliza o conceito
em questão e lhe dá um significado bastante forte na descrição da função governamental do
rei. Essa obra é inserida dentro do tipo de literatura política conhecida como Espelhos de
príncipes. Sua finalização data de 1259. Ela Foi escrita por Gilberto de Tournai, frade
mendicante e professor de teologia da Universidade de Paris. Nessa obra procuraremos
perceber a utilização de um discurso emocional em torno do conceito de affectus como uma
das estratégias de facilitação na condução dos súditos. Atentaremos nas semelhanças entre a
figura régia e a figura do pastor, destacando as representações do rei como um pastor
amoroso, imagem fortalecida na realização de ações caritativas dirigidas aos súditos.
PALAVRAS-CHAVE: Affectus. Pastor. Súditos. Governo pastoral. Caritas.

1 Introdução: As emoções no centro do político

Nos últimos anos, estudiosos da história política têm buscado novas abordagens,
lançando o olhar em outras dimensões das relações políticas. Fala-se de um retorno do
político2. Os estudos do campo do político, por meio da análise do papel das emoções no
interior da vida política, podem ser vistos como uma das possíveis tendências dessas novas
abordagens do político. Temos visto o surgimento de historiadores que se debruçam sobre a
escrita de uma História das emoções, tendo como objeto de estudo os sentimentos nos mais
diversos períodos históricos. A medievalista norte-americana Barbara Rosenwein é a grande
representante dessa tendência. Ela que realizou importantes trabalhos sobre o papel das
paixões na vida política da Alta Idade Média, tem proposto métodos e teorias para realizar os
estudos das emoções sob o ponto de vista histórico.
Uma das principais propostas de Rosenwein (2001: 319) é compreender as emoções
como construções sociais de uma determinada sociedade. Portanto, as emoções fazem parte
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Aluno de graduação e iniciação científica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do
Laboratório de estudos medievais – LEME/UFMG. E-mail: <wandersonhenriquep@hotmail.com>.
2
Sobre esse retorno: REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p 13-36.
Ver também: ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial,
2010. p. 11-35.

!
91
!

do processo de socialização dos indivíduos, elas dependem da linguagem, das crenças


culturais e morais de cada sociedade. Para melhor estudar essas emoções, a historiadora
propõe a noção de “comunidades emocionais” que se confundem com as comunidades sociais
– famílias, sindicatos, conventos, cortes principescas dentre outras. Ao estudar essas
comunidades, o historiador deve se debruçar sobre o funcionamento do sistema de
sentimentos que alimenta as relações afetivas entre os indivíduos, percebendo quais são os
sentimentos mais valorizados, os mais desvalorizados, seus modos de expressão positivo e
negativo e atentar ao uso dos vocábulos emocionais nos escritos produzidos nessas
comunidades (ROSENWEIN, 2011: 21-22).
Para Damien Boquet (2013: 3), essa abordagem que entende as emoções como
resultante de um processo de socialização realizado por cada sociedade de acordo com sua
codificação social, apóia-se nas concepções do construcionismo social3. Apesar do avanço
dessa teoria, alguns antropólogos, sociólogos e psicólogos denominados de “presentistas”4 são
contrários a essa visão, defendendo que as emoções não são mutáveis. Nessa perspectiva, é
entendido que as emoções são as mesmas em qualquer período histórico, ou seja, que elas não
são valores construídos e estabelecidos pelo meio social, mas estão impregnadas de forma
orgânica e imutável na mente dos homens.
Segundo Rosenwein em seu importante texto Émotions en politique: Perspectives de
médiéviste5, as emoções são a chave da política da atualidade e que no passado,
principalmente no período dito medieval, onde concentra seus estudos, também tiveram
grande importância. Para ela são nos momentos de mudanças sociais, crises e violência que
surgem tipos de discursos políticos fortemente emocionais.
Considerando as perspectivas apresentadas por Rosenwein, nos deteremos na análise
do papel dos afetos na vida política do século XIII, pensando em um possível entrelaçamento
entre as ações políticas e os afetos humanos, principalmente na relação entre o rei e os súditos
dentro da política régia dos capetíngios na França. Atentaremos em compreender como as
emoções, especificamente o conceito de affectus, eram utilizadas no discurso político dos
teóricos do poder régio. Vale ressaltar que a noção de política no período que chamamos de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
As discussões sobre o Construcionismo social atentam na importânciaque a sociedade exerce no processo de
formação social dos sujeitos. Ver a discussão Kenneth Gergen:Gergen, K. J. (1983, Setembro). Movimento
do Construcionismo social na psicologia moderna. (E. J. S. Filho, trad.).
4
São chamados assim por defenderem a visão de que as emoções do presente são as mesmas do passado e
continuarão a ser as mesmas no futuro. Entre os defensores dessa visão estão o psicólogo Paul Ekman e o
sociólogo norte-americano Jonathan Turner.
5
ROSENWEIN Barbara. Émotions en politique: Perspectives de médiéviste. Hypothèses., 2001/1. p. 315-324
!
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92
!

Idade Média difere da política tal como compreendemos no mundo contemporâneo. No


Período medieval ela possui suas especificidades de acordo com as experiências daquela
sociedade, o que veremos ao tratarmos da noção de caritas.

2 Os Espelhos de príncipes e o conceito de affectus

Os teóricos do poder régio na Franca do século XIII, importantes homens de saber6,


em sua grande parte filhos das ordens mendicantes, que nesse momento se encontravam em
grande disseminação no espaço urbano, se encarregavam de elaborar teorias que fossem
favoráveis ao poder régio. Isso foi notável principalmente no reinado de Luís IX(1226-1270),
em que essas teorias tiveram papel central na vida política do regnum.
Um dos instrumentos utilizados para a construção de ideias de sustentação do poder
régio foram os Espelhos de príncipes, um gênero de literatura política, que tinha um caráter
didático. Seu objetivo era ensinar como os reis e príncipes e seus futuros descendentes
deveriam governar de forma correta os seus reinos. Esses tratados políticos, geralmente
encomendados pelos próprios reis, tendiam a elaborar as diretrizes morais e éticas para o
sucesso do governante, criando um modelo ideal de realeza Cristão. Portanto, colocando em
prática os ensinamentos contidos nesses espelhos, o rei seria um exemplo de virtude para seu
povo e teria a ajuda divina na arte de governar.
O rei Luís IX foi um dos grandes estimuladores de desses tratados. Sua corte foi um
espaço de produção e difusão dessas obras, tendo entre seus principais elaboradores, os frades
mendicantes: Gilberto de Tournai, Vicente de Beauvais e Guilherme de Payraut. Michel
Senellart (2006: 158) nos chama a atenção para a pretensão de São Luís em fundar uma
escola, ou uma academia política como disse Le Goff7, com o objetivo de reunir essas
construções teóricas do poder, colocando essas obras a serviço de seu governo. Senellart
também nos aponta que esses Espelhos de príncipes elaborados no reinado de São Luís, não
eram alheios as práticas de governo, mas eram redigidos tendo em vista as práticas do
governante da época de sua produção, explorando as características positivas deste.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
O conceito de homens de saber foi utilizado na obra de Jacques Verger (1999:13-19) para definir os homens
que possuíam o domínio de certo tipo de conhecimento nos últimos séculos de Idade Média.
7
Segundo Le Goff (2010: 362) essa academia política, também chamada de Escola de São Luís, desenvolveu-
se no convento de são Tiago, pertencente Ordem dos Dominicanos. São Luis teria pedido a Humbert de
Romams, o mestre da ordem no período de 1234 a 1263 que convocasse uma equipe para a redação desses
escritos. Assim foram reunidos importantes teóricos com esse objetivo de produzir esse tipo de literatura
política.
!
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93
!

Portanto, analisando o Espelho de príncipe de Gilberto de Tournai, a Eruditio Regum


et principium, que compõem-se de três cartas, podemos perceber o uso recorrente do vocábulo
affectus e de seus derivados no decorrer de toda a obra. Principalmente na última carta
denominada: Quae est de Affectus et protectio subditorum (Que trata do afeto e da proteção
dos súditos), a prática do affectus parece assumir lugar central nas práticas de condução dos
súditos. Dessa forma, vamos analisar como Gilberto mobiliza este conceito dentro das
práticas de governo e como isso contribui na representação de um rei ideal.
Não podemos tratar da noção de affectus sem nos deteremos no papel que esse
conceito assumia dentro da filosofia e da vida religiosa dos cistercienses do século XII. Nesse
sentido, destacaremos os estudos realizados por Damien Boquet em L’Ordre de l’affect au
Moyen Âge - Autour de l’anthropologie affective d’Aelred de Rievaulx8, obra em que trata
dos discurso religioso realizado pelos cistercienses em torno do conceito de affectus.
Segundo Boquet (2006:165-171), a noção cisterciense do affectus e affectio9está localizada no
centro da expressão da sensibilidade da alma. Dessa forma, a noção de affectus corresponde
ao conjunto de impulsos sensíveis e específicos, como o amor ou ódio. Nessa obra, o autor
realizou uma breve genealogia do conceito de affectus da Antiguidade ao século XII, mas foi
nas concepções do abade cisterciense Elredo de Rievaulx, importante nome da Mística
Especulativa10 no século XII, que ele se centrou.
Ao analisarmos as obras de Gilberto, percebemos que Elredo de Rievaulx foi uma de
suas principais influências na escrita do Eruditio Regum et principum e na sua outra obra
chamada de Tractatus de pace. Elredo de Rievaulx produziu importantes obras em que o
objetivo era compreender as diversas formas de sentir o amor, principalmente no âmbito da
amizade. Nesses escritos o affectus aparece como um elemento central na compreensão das
relações entre os homens. Em seu tratado denominado Espelho de Caridade (Speculum
Caritatis), Elredo nos oferece uma definição de affectus. Para o abade, o affectus é um
movimento espontâneo, doce e amoroso da alma que favorece uma inclinação (inclinatio)
involuntária da alma em direção a alguém, ou seja, ao ser que é amado. Apesar desta
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
BOQUET, Damien. L’Ordre de l’affect au Moyen Âge: Autour de l’anthropologie affective d’Aelred de
Rievaulx, Caen, 2005.
9
Segundo Damien Boquet (2005: 34), Affectus e affectio são freqüentemente utilizados como sinônimos na
Antiguidade. Dessa forma, Boquet decide traduzir esses dois vocábulos pelo termo francês affect que na
tradução para o português seria afeto.
10
A Mística Especulativa foi uma importante corrente filosófica influenciada pela da obra de Pseudo-Dionísio
Aeropagita (sec. VII). Mas foi com Bernardo de Claraval (1091-1153) considerado para muitos como
fundador dessa filosofia, que ela ganhou notoriedade, tendo como centros as abadias cistercienses e a abadia
escolástica de São Vitor. Em Bernardo o objetivo final da mística era proporcionar a união intima com Deus,
o que os místicos chamavam de êxtase. Essa espécie de matrimônio espiritual aconteceria por meio de duas
maneiras: pela luz do intelecto e na devoção do afeto (Ricardo Costa, 2011: 126-127).
!
94
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definição, vemos que historicamente o conceito de affectus tem vários problemas quanto ao
seu valor semântico. Na própria visão de Elredo, o affectus pode assumir dois sentidos
opostos.
No primeiro sentido mobilizado por de Elredo, o affectus é entendido como a
capacidade de amor ordenado e comandado pela caridade fraterna. Nesse caso, o movimento
amoroso do qual o affectus deve ser inclinado é a caritas, que é considerada como a mãe de
todas as virtudes cristãs. Portanto a relação do affectus com a caritas é um ponto
fundamental na compreensão das relações afetivas na Idade Média. Segundo Anita Guerreau-
jalabert (2000: 34-44), a caritas se mostra como a virtude suprema na Idade Média,
funcionando como o valor social que cimenta todas as outras relações sociais no seio da
Ecclesia, ou seja, é o vinculo social que congrega os homens em sociedade. O homem só se
tornava um ser social, o que hoje chamamos de cidadão, quando recebia por meio do batismo,
a marca sacramental da caritas, proporcionando a capacidade de adquirir essa virtude,
entendida como o instrumento primordial para a convivência em sociedade. Dessa forma,
vemos que o affectus pode ser movimentado pela virtude que ordena todas as outras virtudes,
o que coloca o affectus em uma posição de importância nas relações entre os homens da
sociedade medieval ocidental.
No outro sentido, completamente oposto a esse primeiro, o affectus pode ser entendido
como um movimento egoísta. Nesse caso é orientado pelas paixões da alma e é qualificado
como uma perturbação. Quando é interpretado dessa forma o affectus se distância da noção de
caritas e se aproxima da noção da cupiditas (concupiscência) e de todos os sentimentos
contrários a caritas, como por exemplo, odium (ódio), superbia (soberba) e avaratia
(avareza).

3 O pastorado régio: conduzir amando

Antes de analisar o papel do affectus nas práticas de governo no século XIII, é de


suma importância tentar compreender qual era a função do rei no dito período Medieval.
Segundo Michel de Senellart (2006: 72-74) é na dramaturgia do pecado original, elaborada
por Santo Agostinho, que devemos buscar os fundamentos do poder secular. É no que ele
chama de “momento Agostiniano” que é construída a base teórico-cristã desse poder.
Senellart nos mostra que a função dos reis no período que chamamos de medieval está
relacionada ao ato de corrigir e conduzir, estando fundamentada em uma Teologia da
coerção. De acordo com essa fundamentação, o pecado cometido por Adão tirou a capacidade
!
95
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dos homens de fazer o que realmente querem, assim, tem-se a necessidade de um poder
soberano que os conduza ao bem querer, um poder disciplinador. É defendido por alguns
pensadores medievais11 que Antes do pecado original, não existia uma autoridade política
coercitiva (Dominatio), o que havia era um poder de comando do superior sob inferior
(Dominium), sem qualquer ato punitivo. Esse poder foi instituído na Graça original, assim,
Adão o exercia na caridade, sua vontade estava em conformidade com a caridade e em tudo
era obediente ao seu criador. A generosidade de Adão ao governar, fazia com que seus súditos
o obedecessem voluntariamente, o que proporcionava a paz e o bem comum (utilitas
publicas). No entanto, o poder de Adão teria mudado de natureza quando em uma atitude
egoísta desejou governar independente da graça divina, tendo a vontade de coagir os outros
(KRITSCH, 2010: 404-409).
A partir dessa dramaturgia do pecado, o homem não teria mais a capacidade de seguir
sozinho, ele caiu em uma servidão. Por isso se fez necessário que os homens fossem
conduzidos pelos reis, que podiam usar até mesmo da violência caso fosse preciso. Segundo
os teóricos do poder na Idade Média, dentre eles o próprio Gilberto de Tournai, essa função
coercitiva sobre os homens é pertencente exclusivamente aos reis, que receberam das mãos da
Igreja a espada capaz de ferir o corpo, já que o poder eclesiástico não teria a capacidade de
exercer essa função, indigna dos religiosos que tem a função de exorta pela palavra. Portanto,
os reis são aqueles que conduzem homens, suas ações políticas estão dirigidas aos homens.
Esse ato de conduzir é a característica essencial da prática que ficou conhecida como governo
do tipo pastoral.
Michel Foucault foi o grande teorizador das práticas do governo pastoral, definindo-o
como uma técnica de condução tipicamente cristã. Ao estudar as formas de governo do
Ocidente, ele coloca a prática do pastorado como uma técnica de governo que teria surgido no
processo de institucionalização do “cristianismo”. Foucault (2008: 200) nos aponta que o
primeiro a definir o pastorado como uma arte ou ciência de governar homens foi Gregório de
Nazianzo, chamando essa prática de tékhne tékhnôn (artes das artes) e epistémê epistemôn
(ciências das ciências), o que posteriormente vai ser conhecido por ars artium (regime das
almas) e regimen animarum (governo das almas).
Dentro dessa técnica de governo, a figura do Pastor é essencial. Os conduzidos só
existem em função da presença da figura do pastor. No entanto, o que significaria ser um
pastor? Qual a função dessa figura? Vejamos a resposta que Foucault deu a essa pergunta:
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11
Segundo Kritsch (2010: 405), Essa idéia de que não havia autoridade política coercitiva antes do pecado
original era defendida por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Egidio Romano.
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96
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Ser pastor quer dizer, em primeiro lugar, ser o único pastor num rebanho. Nunca há
vários pastores por rebanho. Um só. E, por outro lado, a propósito das formas de
atividade, percebe-se que o pastor é alguém que deve fazer urna porção de coisas.
Deve garantir a alimentação do rebanho, Deve cuidar das ovelhas mais jovens. Deve
tratar das que estão doentes ou feridas. Deve conduzi-las pelos caminhos dando-lhes
ordens ou eventualmente tocando música. Deve arranjar as uniões para que as
ovelhas mais vigorosas se mais fecundas dêem os melhores cordeiros. Portanto um
só pastor e toda uma série de funções diferentes. (FOULCAULT: 190).

Para Foucault (2008:202-2005), o poder do tipo pastoral tinha um funcionamento bem


especifico que o diferenciava do poder político. Em sua concepção, o governo pastoral era
uma prática exercida pelas autoridades eclesiásticas (bispos e abades) e não pelas autoridades
seculares. Ele até acreditava que havia uma interação entre as duas formas de poder, como por
exemplo, na sagração dos reis de França e da Inglaterra, onde o rei era sagrado de modo
semelhante a um bispo. Porém, esse fato não transformava o rei em um eclesiástico,
permanecendo à distinção entre o poder religioso, exclusivamente exercido pelo pastor e o
poder do tipo imperial, exclusivamente exercido pelo rei.
Apesar dessas afirmações, ao analisarmos a construção da figura régia em Gilberto de
Tournai e em outros teóricos do poder régio do século XIII, percebemos que o governo do
tipo pastoral possui semelhanças com o exercício do governo régio. Em Gilberto o rei não é
explicitamente chamado de pastor, mas a figura do rei é sempre representada como um guia,
principalmente quando faz à analogia dos súditos com animais, dos quais o rei sempre aparece
como um condutor. Ao perceber tal semelhança, principalmente ao analisar as obras de
Tomás de Aquino12, Michell de Senellart (2006: 178-179) afirma que bastava apenas que o rei
se associasse a Igreja ocupando a função de auxiliar desta, uma espécie de braço secular, para
que assumisse o papel de pastor do povo. Dessa forma, assemelhando-se a um pastor, o
governante teria o papel de conduzir seus súditos mostrando-lhes o melhor caminho, aquele
que conduz a salvação. O rei seria uma espécie de rei pastor.
Portanto, se o rei é um pastor, isto é, condutor de um rebanho, é de extrema
importância que ele use estratégias que facilite a condução dos súditos no decorrer da
trajetória rumo a um fim determinado. Uma estratégia que pode contribuir para esse objetivo é
o uso de um discurso emocional, provocando nos súditos sentimentos que os façam mais
inclinados a colaborar com o seu condutor, ocorrendo o que podemos chamar de um uso
político dos afetos. Na Eruditio regum et Principum, esse discurso emocional, pode ser
percebido quando analisamos o uso do conceito de affectus. Na obra de Gilberto de Tournai
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Segundo Senellart (2006: 178), Tomás de Aquino teria afirmado que o rei deve comportar- se como um
pastor. Esse pastor teria o papel de garantir o bem da multidão, proporcionando a paz e a unidade.
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97
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esse conceito é mobilizado como um valor fundamental dentro das práticas de governo.
Vejamos uma citação do frade:

Por essa afeição da caridade (caritatis affectu), os reis e príncipes comparam-se aos
santos espíritos chamados de serafins, que, tendendo para Deus pelo movimento do
amor e levam os súditos para ele, a fim de proporcionalmente serem inflamados por
amor semelhante [...] é preciso que o afeto de piedade (affectu pietatis) seja próprio,
sobretudo, do homem que, entre outras coisas, é chamado de animal social. Todavia,
entre os homens, esse afeto (affectus) convém especialmente aos reis e aos príncipes.
(GILBERTO: 139-140).

Na primeira parte da citação, Gilberto aproxima-se do pensamento de Pseudo-


Dioníso, O Areopagita ao comparar a figura régia com os anjos pertencentes à ordem dos
Serafins. Em A hierarquia celeste Pseudo Dionísio nos apresenta à organização da hierarquia
dos anjos comparando-a com a organização da sociedade terrestre. No topo dessa hierarquia
estaria a ordem dos serafins, espíritos encarregados de conduzir ao amor. Dessa forma, o rei é
representado por Gilberto como aquele que “levam os súditos” rumo à salvação. Posto isso,
podemos pensar que durante a trajetória rumo a esse fim, os reis devem governar exercendo o
que ele chamou de afeição da caridade (caritatis affectu), proporcionando aos súditos um
afeto fundamentado na caritas, durante o ato da condução. Percebemos que uma das
demonstrações desse afeto da caridade, acontece por meio de ações caritativas, como por
exemplo, a distribuição de esmola, uma das práticas mais evidentes no reinado de Luis IX.
Segundo seus biógrafos ele teria praticado de forma sistemática a doação de esmola,
sobretudo aos mais pobres. Portanto, o rei gilbertino é representado como um pastor que
conduz o seu rebanho no exercendo a caritas.
Gilberto também usa o termo afeto de piedade (affectu pietatis), nos indicando um tipo
de afeto mais compassivo, um amor revestido de compaixão. O frade afirma que esse afeto
deve está presente em todo o homem, que é chamado de animal social. Ao afirmar isso,
Gilberto se inspira na famosa consideração de Aristóteles em que o pensador grego define o
homem como um ser social e político, condicionado a viver em sociedade para suprir suas
necessidades básicas. Portanto, o homem deve viver em uma comunidade política.
Analisando essa consideração de Gilberto, podemos perceber que no interior de uma
comunidade política, onde a caritas é entendida como um vínculo social, as atitudes afetivas
praticadas entre os membros da comunidade é a mais nítida demonstração de amor entre os
“cidadãos”, dando ao affectus um papel essencial na vida política. Essas atitudes afetivas
devem ser manifestadas, sobretudo, nas atitudes do chefe político da comunidade, ele deve
demonstrar uma profunda afeição por seus governados, conduzindo-os com o mesmo cuidado
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98
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com que um pastor conduz suas ovelhas. Nessa ocasião o rei é exaltado como aquele que ama
e deseja ser amado pelos seus súditos. Para Le Goff, São Luís teria sido um modelo perfeito
desse tipo de rei amoroso:

Enfim, a bonitas se une ao amor, o que produza compaixão e a piedade que São Luís
manifesta em relação ao próximo. São Luís ama seus súditos e a propaganda
monárquica da qual ele é o grande e primeiro modelo se esforça por fazê-lo amado
reciprocamente por seus súditos, durante a vida e depois da morte. (LE GOF: 614).

4 Ações régias: proteger, fazer obedecer e alimentar

Uma das funções mais significativas do governo pastoral é a proteção oferecida às


ovelhas. O pastor deve livrá-las de todos os perigos que possam aparecer durante a trajetória
rumo à salvação, defendendo-as dos lobos e de todos os mercenários que possam aparecer no
caminho. O pastor não pode deixar que nenhuma de suas ovelhas se perca, deve ter um
cuidado individual por cada uma delas e ao mesmo tempo deve cuidar de todo o rebanho.
Caso uma ovelha se perca, o pastor deve deixa todas as outras no aprisco e ir ao encontro da
ovelha perdida. Nesse sentido o pastor tem uma atitude paradoxal, é um operador de uma ação
conjuntural e de uma ação individualizante ao mesmo tempo (CANDIOTTO, 2012: 98-99).
No espelho de Gilberto, a proteção oferecida aos súditos pode ser compreendida como
um dever fundamental da figura régia. O súdito deve se sentir amado e protegido pelo seu rei,
já que a proteção régia seria uma demonstração do afeto para com os súditos. O rei deve
cuidar de seus súditos garantindo-lhes a tranquilidade necessária para que vivam em paz
proporcionando a unidade do reino:

Já que, por causa do devido afeto [affectu] segue-se que os príncipes devem dar
proteção aos súditos, os reis e os príncipes devem fazer isso a fim de assim
protegerem os que lhes estão sujeitos para que vivam na unanimidade da paz as
populações que lhes estão sujeitas [...] vejamos a origem e o princípio da unidade, da
qual procede à paz, preserva-se a unidade nos reinos e floresce a unanimidade nos
súditos. (GILBERTO: 144).

Portanto a proteção é uma característica marcante do pastorado e aparece como uma


das práticas indispensáveis do oficio régio, o que fortalece a imagem do rei como um pastor
que amorosamente cuida de suas ovelhas. Nos Ensinamentos de São Luís, Espelho de príncipe
que teria sido escrito pelo próprio Luís IX, o príncipe Filipe, o sucessor real, é aconselhado a
proteger a todos, sobretudo, os membros da Igreja dos quais o rei deveria amar mais que os
outros. Provavelmente o desejo de São Luís era que o filho prosseguisse no papel, claramente

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99
!

assumido por ele, de protetor dos religiosos das Ordens Mendicantes. Os frades mendicantes
eram declaradamente os prediletos do rei, que demonstrava uma profunda afeição por esses
homens. Nos assuntos de condução do reino, muitos deles eram seus principais conselheiros e
cooperadores. Le Goff (2010: 296) nos aponta que Luís IX e os mendicantes tinham os
mesmos objetivos, o uso do poder para promover uma reforma moral e religiosa naquela
sociedade, o que poderia ser visto como uma reforma política. Posto isso, percebemos que o
modelo de rei idealizado no espelho de Gilberto é profundamente marcado pelos ideais dos
mendicantes.
Apesar de tratarmos do pastorado régio, não podemos deixar de tratar de outra imagem
da qual Gilberto faz questão de aproximar o rei. Ao afirmar que o rei deve sentir um afeto
natural (affectu naturae)13 pelos súditos do mesmo modo que ele sente por seus filhos
biológicos, o frade faz uma aproximação da figura régia com a figura paterna. Essa associação
tem certa frequência no tratado e tem como objetivo o fortalecimento do laço afetivo entre o
rei e seus súditos. É importante ressaltar que a relação pai e filho, caracterizada pelos gestos
de afeição paternal, era muito valorizada no cotidiano e nos rituais da Idade Média, sobretudo
no século XIII, em que a intimidade corporal entre pai é filhos fica cada vez mais acentuada.
Portanto, Em Gilberto o rei é aconselhado a sentir pelos seus filhos adotivos (os súditos) o
que chamou de paternus affectus, um apego construído no amor paternal. Nesse sentido, o rei
teria as funções típicas de um bom pai, como por exemplo, promover a educação moral dos
filhos, corrigi-los quando necessário, protegê-los dos perigos da vida e ser o modelo perfeito
de virtudes para que eles possam se espelhar.
São Luís sempre foi representado como a imagem perfeita do bom pai, um pai amoroso
que cuida de cada um de seus filhos, oferecendo-lhes uma educação moral e política. Segundo
seus biógrafos, antes de dormir, São Luís sempre se dirigia aos filhos e lhes contava as glórias
e vitórias dos bons reis e imperadores, para que os jovens príncipes tivessem bons exemplos a
imitar. O exemplo mais evidente dessa educação paterna teria sido à elaboração dos
Ensinamentos de São Luís entre 1267 a 1268, que o rei teria escrito com o objetivo de ensinar
a moral e os caminhos do bom governo ao seu filho Felipe III, o sucessor do trono. Nesse
texto, Luís IX demonstra-se um pai afetuoso, utilizando uma linguagem carregada de
expressões afetivas, como por exemplo, a utilização da evocação “Querido filho”. Nessa obra
o rei aconselha o filho a amar a Deus e a proteger à igreja; amar seu povo, cumprir retamente
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
O affectus natureo é entendido como um tipo de affectus responsável pelo apego espontâneo que liga os seres
do mesmo sangue. Segundo Elredo de Rievaulx, foi graças à manifestação desse tipo de affectus que
Salomão pôde descobrir qual das duas mães era a verdadeira no episódio narrado nas Escrituras em que duas
mães disputavam a maternidade biológica de uma criança (BOQUET, 1999: 139-140).
!
100
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suas funções de rei e a ter um coração compassivo com os pobres, dentre outros ensinamentos
mais específicos. Portanto, tendo em vista a aproximação da figura paterna com figura do rei
em Gilberto, vimos o fortalecimento da ideia de paternidade régia. Podemos pensar que o rei
pastor deve conduzir suas ovelhas (súditos) com afabilidade e o cuidado de pai.
Tanto na categoria de pai ou de pastor, o rei sempre exige de seus súditos a
obediência. No governo pastoral a obediência assume um lugar de destaque. Para Foulcault
(2008: 230) o pastorado criou o que ele chamou de ‘‘instância de obediência pura’’ uma
obediência que tem a razão de ser nela mesma. Na condução pastoral, há uma submissão
integral das ovelhas em relação ao seu condutor. Assim, a obediência deve ser praticada
durante todos os instantes da condução pastoral. As ordens do pastor devem ser acatadas
independentes do seu teor. Na relação rei/súditos, principalmente na realeza capetíngia, a
obediência ocupou um lugar de destaque. Para Jacques Chiffoleau (1998: 18-19), a obediência
aparece como um valor essencial, começando a superar até mesmo a ideia de fidelidade. Essa
valorização da obediência é uma exigência do rei da França, que ocupa o papel de suserano se
mantendo no topo da hierarquia do sistema feudal. O rei também assume o título de
majestas14. Nesse sentido, a figura régia é vista como a imagem da majestade divina na terra.
Assim, a desobediência a ele é condenada como um crime de lesa-majestade, um sacrilégio
contra a imagem da majestade de Deus.
Objetivando a conquista da obediência por parte dos súditos, Gilberto nos apresenta
uma estratégia emocional que tende a suscitar um afeto (affectus) que leva a obediência a
figura régia. Para que essa estratégia tenha sucesso é necessária que a imagem do rei seja a
mais fiel representação das virtudes, que ele seja reconhecido pelos súditos como um rei
temente a Deus, inclinado à misericórdia, um rei próximo do seu povo e detentor de uma
profunda afeição pelos súditos, afeto que deve ser demonstrado por meio de suas ações.
Seduzidos por essa imagem, os súditos reconheceram no rei uma figura digna do seu afeto e
ficaram constrangidos a desobedecê-lo. Nessa estratégia emocional, o súdito é colocado em
uma espécie de prisão afetiva, ficando preso na obrigação de retribuir o afeto do monarca.
Para Gilberto essa retribuição é manifestada no amor que os súditos sentem pela figura
régia, amor que favorece a sujeição destes ao rei e que contribui para a paz e a ordem do
reino. Já que o frade afirma que o súdito só atingirá a tranquilidade, isto é, a realização plena
da paz, quando o súdito se sentir profundamente amado, neste caso, ele jamais se revoltará
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
A Majestas que podemos traduzir por majestade é uma antiga concepção romana que vinha sendo recuperada
pelos reis no século XIII dentro de um ponto de vista da teologia cristã. Essa concepção está ligada a ideia de
soberania. Para Le Goff, (2010: 600) a magestas é o termo que melhor exprime a soberania do rei no século
XIII.
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contra o rei. Dessa forma, se aproximando ainda mais da figura do pastor, o monarca e seus
defensores exigem a obediência de seus conduzidos. Na relação rei/súdito essa obediência é
conquistada com o uso de um discurso emocional criado em torno da figura do rei,
contribuindo para o sucesso da política régia.
Nas teorias do governo pastoral, a figura do pastor é aquele que tem a obrigação de
cuidar de suas ovelhas, Ele deve ser uma vigília constante, obrigado a se preocupar com as
necessidades básicas de cada uma delas, como por exemplo, a garantia da boa alimentação,
com a medicação das ovelhas doentes, com localização de pastagens seguras e propicia a boa
alimentação. Por meio dessas ações o pastor demonstra o zelo e a afeição por suas ovelhas.
Nesse sentido a figura de Luís IX é um exemplo espetacular, já que é sempre representado
como um rei que se preocupava com as necessidades básicas de seus súditos. Le Goff (2010:
579) chega a chamar Luis IX de rei alimentador, colocando em destaque uma de suas ações
caritativas mais marcantes, que é a prática da doação de esmolas, que deve ser direcionada,
sobretudo aos pobres (pauperes). É importante ressaltar que a prática da esmola no século
XIII foi sistemática.
A esmola é uma das mais significativas demonstrações de caritas, é uma atitude
típica da sociedade cristã desde sua origem. Em seu reinado, São Luís não hesitou em
instituir a esmola como uma das funções da casa real, criando um sistema de captação e
distribuição de esmolas, transformando essa prática em uma função da política régia dos
capetíngios. Em Gilberto, o rei deve ser generoso e distribuir suas riquezas aos súditos.
Podemos ver no ato de distribuir, uma demonstração da utilitas publica, sendo um ato de
contraposição a atitude da pessoa privada do rei. Vejamos uma citação de Gilberto.

É útil que o rei seja rico, mas de forma que considere pertencente ao povo as suas
riquezas, que as possua em nome alheio, já que por amor privado, a ele próprio não
deva pertencer, mas por dilatada afeição do coração, ele pertence a todos os súditos.
Como medida, ele deve imitar a munificência daquele rei que faz nascer seu sol
sobre os bons e maus, conforme está escrito: Dá a todo aquele que te pede (Lc 6,
30), tanto o afeto (affectus) da mente como o favor da caridade. (GILBERTO: 49-
50).

Gilberto nos mostra a imagem de um rei que deve estar atento em suprir as
necessidades dos súditos, já que não é atitude de um rei virtuoso pensar apenas em si, ou seja,
ele não deve ser egoísta inclinando-se ao amor privado (privato amore), mas deve ter como
propósito a realização do bem comum, manifestando aos súditos o que Gilberto chamou de
dilatato cordis affectu (dilatada afeição do coração), isto é, uma afeição que atinja a todos e
que venha da sensibilidade do coração. Uma das formas de demonstrações desse movimento
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102
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afetivo acontece por meio das ações caritativas praticadas pelo rei. Uma das práticas mais
evidente é justamente a distribuição de esmolas, que deve ter como alvo, principalmente os
mais pobres (pauperes)15. É importante perceber que os pobres assumem um lugar importante
nessa obra. Gilberto mobiliza um discurso que tende a denunciar a atitudes de certos homens,
sobretudo de alguns oficiais do reino (bailios, prebostes, funcionários de corte), qualificados
pelo frade como os opressores e exploradores dos pobres. Diante dessa situação o rei é
aconselhado a assumir o papel de advogado dos pobres, não é sem razão que o frade utiliza a
expressão: pai dos pobres (pater pauperum) para se referir ao rei que exerce as ações
caritativas aos mais necessitados. Podemos perceber que nessa comunidade política, onde a
prática da caritas é entendida como uma obrigação social, os pobres tendem a serem vistos
como os receptores por excelência das ações caritativas. Isso nos mostra que tal categoria
tinha sua funcionalidade social bem definida dentro da sociedade, o que colabora com os
interesses da política regia capetíngia.

5 Conclusão

Percebemos que a utilização dos afetos, principalmente o termo affectus é uma das
características ou estratégia do discurso político de Gilberto. A representação de um rei
afetuoso se torna mais contundente quando associada à idéia de um rei que conduz seu povo
na observância da caritas, exercendo atitudes caritativas como a proteção oferecida aos
súditos e a distribuição de esmola, está última associada à alimentação dos pobres, uma forma
de garantir uma necessidade básica de seus súditos. Posto isso, o rei é semelhante a um pastor
cujo oficio é cuidar de suas ovelhas, garantindo-lhes as necessidades básicas na terra, para que
possam seguir com segurança à eternidade. Portanto, apesar das descontinuidades entre o rei
representado por Gilberto e o rei real, a representação gilbertina do rei está em conformidade
com certas atitudes de São Luís, construindo a imagem de um rei que conduz amando, um
pastor amoroso.

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15
Os pobres (pauperes) na Idade média, pode ser vista como uma categoria social. Os considerado pobres
poderiam ser os deficientes alimentares (famelicus), os leprosos (Leprosus), os doentes (infirmus), os órfãos
(orphanus), as viúvas ( viduae), os cegos ( caecus), os injustiçados dentre outras categorias.
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103
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REFERÊNCIAS

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