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2015v12n1p126
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1. Introdução
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Mestrando do curso de Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Contato:
joao.g.bordin@hotmail.com
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Em Tese, Florianópolis, v. 12, n. 1, jan./jul., 2015. ISSN: 1806-5023
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por outros representantes desta tradição intelectual, digamos, mais puristas. Afinal, os
autores de Hegemonia e Estratégia Socialista refutam premissas centrais ao pensamento
marxista – notadamente a centralidade de classe, a estratégia revolucionária e a utopia
socialista entendida como sociedade homogênea e transparente. Diferentemente do
marxismo ortodoxo, no entanto, para Laclau e Mouffe não se trata de (re)encontrar o
“verdadeiro” marxismo, cujo essencialismo é, na verdade, uma impostura ontológica.
Eles se colocam, explicitamente, numa perspectiva que busca não apenas ir além do
marxismo, mas também relê-lo à luz dos problemas atuais; tanto extrair de Marx e dos
diversos marxismos elementos tomados à revelia, na medida em que se fizerem úteis à
luz de tais problemas, quanto enxertar neles elementos teóricos de outras tradições
intelectuais, sem preocupar-se, ao fazê-lo, em observar dogmas e preconceitos.
2
Citar Gramsi, assim de passagem, não faz jus à importância que ele tem na teoria de Laclau e Mouffe.
Gramsci já havia compreendido a crescente complexificação das sociedades capitalistas avançadas e as
implicações negativas disso para a teoria marxista. “Nesse contexto, o conceito de hegemonia surge para
preencher o vazio deixado pela categoria marxista de necessidade histórica e responder às situações
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concretas de contingência.” (ALVES, 2010, p.83-4). Embora ainda não houvesse superado a ideia de
centralidade de classe na formação das identidades, ao deslocar a sociedade civil para fora da estrutura e
para dentro da superestrutura Gramsci reafirmou a preeminência do político sobre o econômico e o papel
da cultura (ideologia) na constituição e reprodução das relações de dominação, isto é, da hegemonia
(BOBBIO, 1982). Em termos da dialética entre universal e particular, central para o argumento defendido
em HSS, assim coloca a questão Laclau (2004, p.56): “Para Gramsci, [...] a única universalidade que a
sociedade pode alcançar é uma universalidade hegemônica – uma universalidade contaminada pela
particularidade. [...] a emancipação universal se alcança somente através de uma identificação transitória
com os objetivos de um setor determinado, o que significa que é uma universalidade contingente que
requer constitutivamente mediação política e relações de representação”.
3
Como afirmam Tormey e Townshend (2006, p.107), “eles [Laclau e Mouffe] criticaram efetivamente
um certo tipo de marxismo, mas nós ainda podemos nos perguntar se a sua crítica do marxismo em geral
era tão incisiva quanto eles esperavam. [...] Assim, o marxismo totalitário soviético era diferente do
marxismo democrático do Ocidente, que, de Marx e Engels a Kautsky e os eurocomunistas, via o
parlamento como central na transição socialista, tendo pouco a ver com o fundamental ‘imaginário
jacobinista’ da Revolução Russa.”
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Segundo Burity (2008, p.35), “a pretensão de Laclau [e de Mouffe, acrescentaríamos] é [...] construir
[...] precisamente, uma concepção da política como ontologia do social”. E nas palavras de Mouffe (2003,
p.14): “A tese central do livro [Hegemonia e Estratégia Socialista] é que a objetividade social é
constituída através de atos de poder. Isso implica que qualquer objetividade social é definitivamente
política”.
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Neste sentido, tudo é político para Laclau e Mouffe, uma vez que o antagonismo
constitui o próprio fundamento ontológico da vida social (LACLAU e MOUFFE, 2001,
p.xiv). Ou seja, nenhuma estrutura social está determinada fora do campo da agência, o
que quer dizer que a sociedade é um arranjo instável e contingente – e, em certo sentido,
impossível porquanto nunca pode se completar cabalmente – entre relações de poder
antagônicas que estruturam a ordem (ou conferem sentido ao social) em torno de
determinado discurso hegemônico.5
A noção de contingência – e, mais especificamente, de hegemonia como uma
articulação contingente –, antitética à ideia do social como estrutura determinada por
leis imanentes, é fulcral, e seu corolário mais significativo é a afirmação da “política
como atividade autônoma”, ao privilegiar “o momento político na estruturação da
sociedade” (LACLAU e MOUFF, 2001, p.xii). Eis porque, partindo de um acerto de
5
Não iremos entrar na análise da teoria do discurso, o quadro teórico-metodológico no qual se inscreve a
teoria política de Mouffe. Importa notar aqui, sumariamente, que para ela o acesso à realidade é sempre
mediado por um sistema de significados ao qual se dá o nome de discurso. Ou seja, a realidade não existe
fora de um sistema de significados produzido socialmente. Em termos políticos, um discurso hegemônico
é um elemento-momento dentro de uma formação discursiva mais ampla, cuja capacidade de encadear
outros elementos (outros discursos diferentes) numa cadeia de equivalência confere-lhe uma posição
hegemônica sobre o processo de significação do social. Nas palavras de Burity (2008, p.44), “uma
formação discursiva é um conjunto de discursos articulados hegemonicamente por uma particularidade
[...]. [...] aquele discurso que, naquele momento, é capaz de significar os fenômenos/interlocutores a que
se dirige, de modo a oferecer-se como uma superfície de inscrição de diferentes demandas, em resposta a
um desafio, uma crise ou uma ameaça percebida”. Em suma: “É a essa capacidade de representar,
enquanto posição particular, algo maior, mais abrangente, que Laclau dá o nome de hegemonia” (idem).
Note-se que essa representação é sempre feita em relação a um exterior constitutivo, ou seja, ao mesmo
tempo em que ela cria uma identidade (“nós”), ela necessariamente também cria um “eles” com o qual
mantêm potencialmente uma relação antagônica. As implicações políticas desta dinâmica antagônica na
formação discursiva das identidades – especialmente no caso das sociedades contemporâneas, onde elas
são particularmente instáveis e cambiáveis – deverão ficar mais claras no decorrer desta exposição. Sobre
a teoria do discurso em Laclau, ver Mendonça e Rodrigues (2008).
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contas com o marxismo, Laclau e Mouffe têm como objetivo último reafirmar a
autonomia da prática política e propor um novo modelo democrático, capaz, como
veremos, de “transformar o antagonismo [inerente a toda formação social] em agonismo
[próprio da democracia e, mais especificamente, de uma democracia agonística]”
(MOUFFE, 2011, p.27; grifo do autor). Este é o objetivo que atravessa toda a obra de
ambos os autores, mas será Mouffe quem o levará mais adiante no âmbito de uma
discussão política normativa na tentativa de assentar as bases para fundar esse novo
projeto de democracia radical e plural – ou ainda: “pluralismo agonista”. Para ela,
somente este novo projeto está em condições de transformar o antagonismo em
agonismo, a luta entre inimigos numa luta entre adversários, e, assim, preservar e
aprofundar o “projeto não realizado da modernidade”, isto é, o “advento da revolução
democrática” (MOUFFE, 1999, p.29-30).
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definido externamente ao político (no caso do proletariado, sua posição nas relações de
6
produção). Ademais, a existência de uma sociedade democrática pressupõe,
justamente, que nenhum sujeito monopolize para si a função de representar o todo. Por
outro lado, à luz da experiência fracassada do comunismo soviético, que degringolou na
perversão do stalinismo, Mouffe é cética quanto às possibilidades e pessimista quanto às
consequências do “imaginário jacobinista” presente neste tipo de estratégia política.
Com efeito, ela não acredita que o totalitarismo soviético tenha resultado apenas das
condições sociais e econômicas vigentes na Rússia, mas também das premissas teóricas
dadas no cerne do próprio marxismo ortodoxo.
Assim, Mouffe não se coloca contra o Estado democrático liberal, como se ele
fosse apenas um engodo instrumentalizado pela classe dominante. Para falar em seus
termos, ela não faz da democracia liberal um inimigo, a destruir ou ser por ela destruída
numa irredutível luta de vida ou morte, mas antes um adversário com o qual se trava
uma disputa agonística pela hegemonia. Na verdade, para Mouffe, a radicalização da
democracia apenas pode se dar no quadro dos valores liberais que historicamente a
fundamentaram, ou seja, a igualdade e a liberdade. A aceitação desses valores –
enquanto premissas que fundam o campo discursivo da democracia – é o único
consenso legítimo numa sociedade democrática, sendo todo o resto matéria de disputa,
inclusive a interpretação dada a esses valores e o modo de operacionalizá-los na prática,
porque o que caracteriza a democracia é justamente a institucionalização – ou
“domesticação”, dirá Mouffe – do dissenso.7 Ou seja, o dissenso, o conflito, a disputa
6
“nenhum ator social pode atribuir a si mesmo a representação da totalidade e assim alegar ter o
‘domínio’ deste fundamento”, o que implica dizer que “não pode haver emancipação total, mas apenas
parcial”, e nenhuma sociedade pode realizar “o sonho de uma perfeita harmonia e transparência”
(MOUFFE, 2003, p.13-4). Como se sabe, essas suposições estão no cerne mesmo do pensamento
marxista.
7
Isto é, o único consenso que não está aberto à luta agonística: “todo consenso existe como um resultado
temporário de uma hegemonia provisória, como uma estabilização de poder que sempre vincula alguma
forma de exclusão [...]. [...] uma sociedade democrática dá oportunidade para a expressão de interesses e
valores conflitantes. A democracia pluralista demanda um certo consenso, mas tal consenso diz respeito
apenas aos seus princípios ético-políticos constitutivos” (MOUFFE, 2003, p.17). E ainda: “a confrontação
sobre as diferentes significações que se há de atribuir aos princípios democráticos e às instituições e
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pela hegemonia ainda existem, na medida em que são, por definição, características
inerradicáveis da vida social. Esse é o nível “do político”, que não pode e – jamais –
deve ser obnubilado, sob pena de consequências negativas para a política democrática
(como veremos). No entanto, a prática democrática exige que a disputa pela hegemonia
se dê segundo regras formais, válidas para todos e em comum acordadas, que permitam
que diferentes projetos de sociedade enfrentem-se no campo “da política” sem
destruírem-se uns aos outros, isto é, sem destruírem a própria prática democrática ao
erigirem-se em uma posição totalitária.8
Vejamos, então, como Mouffe (20103, p.15) define seu conceito de “o
político”:
Por ‘político’ refiro-me à dimensão do antagonismo que é inerente a todas as
sociedades humanas, antagonismo que pode assumir formas muito diferentes
e emergir em relações sociais diversas. ‘Política’, por outro lado, refere-se ao
conjunto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer uma
certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre
potencialmente conflituosas, porque afetadas pela dimensão do ‘político’.
práticas nas quais se concretizam é o que constitui o eixo central do combate político entre adversários”
(MOUFFE, 1999, p.19).
8
Aqui ficam claras as razões pelas quais Mouffe rejeita o paradigma marxista clássico: primeiro porque
ele concebe a identidade de classe como sendo determinada exteriormente e por uma lógica não-política
(portanto, pré-determinada e fixa); segundo porque não abre espaço para o dissenso ao empreender a luta
de classes pela ótica amigo/inimigo. Daí seu duplo potencial totalitário: essencialista e universalista.
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fora por meio da ação comunicativa racional (MIGUEL, 2014). E aqui entra o exato
ponto da crítica de Mouffe: ela ataca o paradigma racionalista que está no cerne dessas
concepções teóricas. Tanto para os pluralistas, quanto para os deliberacionistas, o poder
e a hegemonia (quando os admitem) podem ser neutralizados pela razão, tornando
desimportante a questão de como eles produzem as identidades coletivas, na medida em
que se pode passá-las por alto mediante o efeito neutralizador e equalizador da razão. A
implicação mais importante dessa concepção é que, através da argumentação racional, o
consenso pode ser alcançado no campo político que – porquanto racional –, é objetivo e
inteligível a qualquer sujeito, independentemente de sua posição na estrutura social.
Esse é, portanto, o fundamento epistemológico do consenso ao qual Mouffe se
opõe tão ferreamente: o racionalismo – e ele põe de manifesto a dimensão “pós” do seu
pensamento. 10 “Concebida desta maneira [racionalista], a democracia pluralista se
converte em um ideal que se autorrefuta” (MOUFFE, 1999, p.20). Ora, os móveis do
campo político são, em última instância, valores, e diferentes valores são irredutíveis
entre si. Ainda que admitíssemos que as diferenças de poder e recursos entre os sujeitos
sociais pudessem ser barradas fora do espaço público, como supõe os deliberacionistas,
a “verdade” de cada um deles não pode ser provada ou refutada pela lógica racional. 11
Uma terceira consequência do racionalismo é que, além de ignorar as relações de poder
e dominação constitutivas da sociedade ou que valores não são fatos, ele também exclui,
por princípio, o papel do sentimento na prática política. Mouffe condena
veementemente essa falha porque ela impede de reconhecer e mobilizar as paixões –
inevitavelmente presentes na prática política – a partir de um ponto de vista
democrático. Por fim, o racionalismo é necessariamente universalista e individualista, e
10
“Hoje em dia é de bom tom, entre os supostos defensores do humanismo, rechaçar a contribuição de
autores como Foucault, Derrida ou Lacan [...]. Acusam-nos de que, com sua crítica ao universalismo e ao
racionalismo, minam as bases do projeto democrático. Na realidade, é exatamente o contrário. Pois os que
põem em perigo a democracia são precisamente os racionalistas” (MOUFF, 1999, p.19).
11
Isso não nos deve levar a concluir pela via do relativismo, contudo. “Afirmar que é impossível oferecer
um fundamento racional último para um sistema de valores, qualquer que seja, não implica considerar
iguais todos os pontos de vista. [...] Sempre é possível distinguir entre o justo e o injusto, o legítimo e o
ilegítimo, mas com a condição de permanecer no interior de uma tradição dada, com ajuda dos padrões
que essa tradição proporciona” (MOUFFE, 1999, p.34-5).
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Nesse sentido, embora Mouffe não use a expressão “exclusão justa”, parece-nos
que a questão principal que a sua teoria política levanta não é como buscar a inclusão
total através do consenso, e sim encontrar uma forma de exclusão que seja justa, isto é,
que substitua as antigas formas de exclusão ao retraçar as fronteiras hegemônicas da
sociedade. Essa é a finalidade e o grande desafio de uma democracia radical e plural,
fundada numa prática política agonista e adversarial. Isso a teoria política dominante
não pode fazer, de resto porque nem sequer se coloca tal problema.
Numa fórmula aparentemente paradoxal, Mouffe (2003, p.19) sintetiza da
seguinte maneira a sua tese – que pela força explanatória vale a pena transcrever o
longo parágrafo integralmente:
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“Para que esta diversidade possa encontrar as condições para se expressar, deve entrar em cena a
multiplicação das ‘posições de sujeito’ democráticas segundo dispositivos que permitem as diferentes
posições enfrentarem-se no seio mesmo do que reconhecem como constitutivo de seu espaço político
comum” (MOUFFE, 1999, p.22).
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capitalismo com nome e sobrenome: neoliberal. Foi assim que intelectuais e arautos do
“mundo livre” decretaram o fim de uma porção de coisas, segundo eles associadas com
esse período histórico agora arcaico que o fim da Guerra Fria e o Consenso de
Washington viriam a enterrar irrevogavelmente. Decretado o fim das ideologias e o fim
da história, e coroado o capitalismo neoliberal vitorioso, a esquerda nada mais tinha a
fazer neste mundo. Sua existência foi ab-rogada. E tanto na teoria quanto na prática
política, diria Mouffe, foi exatamente isso o que aconteceu. A tese de que a distinção
topográfica esquerda/direita perdeu sua função e seu valor neste novo mundo
maravilhoso do consenso tornou-se senso comum. Teóricos apresentaram modelos que
julgavam ir além dela. Políticos diziam-se nem de esquerda nem de direita, porque ser
de direita ou de esquerda tornou-se quase um anátema. No jargão da política, surgiram
termos novos e bisonhos como “centro radical” ou “república de centro”. E Anthony
Giddens propôs uma “terceira via” que foi encarnada no Novo Trabalhismo de Tony
Blair, ajudando a descaracterizar de vez a esquerda socialdemocrata.
Com efeito, parte da culpa pela crise da esquerda pode ser creditada aos
socialdemocratas, que se converteram em maior ou menor medida ao dogma neoliberal,
o que jogou água no moinho dos patrocinadores do fim das ideologias. Ao borrar os
contornos entre socialistas/socialdemocratas e liberais/conservadores, aparentemente até
mesmo os mais aferrados à visão de campos políticos bem definidos davam razão à tese
de que a distinção esquerda/direita não faz mais sentido no mundo de hoje. Surgiram
novos atores, como os novos movimentos sociais, que se recusavam a deixarem-se
enquadrar facilmente nessas tradicionais fronteiras ideológicas. Ao invés de interesses,
reivindicavam valores, estilos de vida, o direito à alteridade. Ao invés da classe,
mobilizavam-se em torno de questões locais e cotidianas, movimento que Giddens
batizou de “política de vida”. As próprias relações sociais pareciam se desfazer e
fragmentar em um sem-número de identidades efêmeras, levando ao paroxismo o
processo de individualização encetado pela modernidade. Nesse contexto, a lógica
adversarial da política foi proscrita como arcaica e a política passou a ser visualizada,
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entrementes, não mais como uma disputa entre interesses particulares, mas como espaço
de diálogo orientado para o consenso racional e o bem comum. Isso quando ela não se
transformou em simples execução técnica de objetivos definidos fora do campo político,
pelo processo de globalização que tudo arrasta e ao qual só resta se conformar.
Orientados por um método descritivo (e impressionista) típico de certa
sociologia, Anthony Giddens – junto com Ulrich Beck – representa emblematicamente
a sublimação teórica desse processo de formação do “modelo de consenso” na prática.
Com efeito, Mouffe dedica um capítulo todo de On the Political para refutar sua
proposta de “democracia dialógica” como “destradicionalização da política” no âmbito
de uma “modernidade reflexiva”. Como se trata de uma teorização complexa e
sofisticada, não poderemos adentrar aqui nos detalhes da crítica mouffeana. Mais
interessante para nós, contudo, é perceber suas implicações sobre as categorias de
esquerda e direita, que Giddens julga obsoleta.
Essas ideias não seriam tão problemáticas se não expressassem uma tendência
empírica presente na prática política contemporânea e se, num movimento de
retroalimentação, não fossem vistas como a própria ratificação científica dessa
tendência.
À luz do que foi exposto neste artigo, são óbvias as implicações desses
processos históricos para o modelo teórico de Mouffe. A “perspectiva pós-política”
(designação que Mouffe lhe dá por motivos que já devem ter ficado óbvios, mas sem a
conotação positiva implícita na denominação, semelhante em certo sentido, “pós-
marxismo” que ela adota), ou seja, o fetiche por um centro que se coloca ao mesmo
tempo no meio e acima da divisão esquerda/direita, leva à recusa da lógica adversarial
inerente à política democrática. Ainda pior, ignora a própria natureza “do político”,
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porque supõe que o antagonismo pode e deve ser erradicado “da política”. Convergindo
para o centro, não apenas a esquerda deixou de apresentar um projeto próprio, perdendo
sua identidade, mas também a direita viu-se sem adversário, sem um “eles” que lhe
representasse um exterior constitutivo em oposição ao qual apresentar um projeto
identificável consigo mesma, relação que é condição de toda identidade, como vimos.
Não surpreende que, mesmo negando a lógica adversarial, antagonistas acabem, não
obstante, sendo procurados pelos defensores do consenso em outros lugares: se não
mais no comunismo, agora no terrorismo, no tráfico internacional de drogas, no
fundamentalismo religioso, etc.
A proliferação de conflitos étnicos, religiosos e identitários, aliás, foi
menosprezada como se fossem resquícios anacrônicos legados pela etapa de
“modernização simples”, para usar a terminologia giddensiana, que todavia deveriam
desaparecer à medida que a “segunda modernização” avançava. Essa perspectiva,
segundo Mouffe, é incapaz de compreender a dinâmica de construção das identidades,
rejeitadas por supostamente representarem particularidades desinteressadas pelo “bem
comum” e indiferentes a argumentos racionais, pressupostos para a aquisição do
consenso. “Muitas destas novas lutas renunciam de fato a toda pretensão de
universalidade”, como afirma Mouffe (1999, p.32). Mas os novos movimentos sociais,
impulsionados pela fragmentação e transversalização das identidades, longe de
impossibilitar a democracia, impulsionam-na, porque colocam em xeque o ideal
racionalista e humanista unitário e põe a nu a função inerradicável do poder na
constituição das relações sociais. O que caracteriza esses novos movimentos é a
multiplicidade das posições de sujeito, o que implica a possibilidade sempre presente de
antagonismo entre elas e de rearticulação constante das relações que estabelecem entre
si. “A crítica feminista [por exemplo] desmascara o particularismo que se oculta detrás
dos chamados ideais universais que, na realidade, sempre foram mecanismos de
exclusão.” (idem).
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“Neste crescente mundo ‘unidimensional’, no qual qualquer possibilidade de transformação das
relações de poder foram apagadas, não surpreende que partidos populistas de direita façam significantes
avanços em vários países. Em muitos casos eles são os únicos denunciando o ‘consenso de centro’ e
tentando ocupar o terreno de contestação abandonado pela esquerda.” (MOUFFE, 2000, p.7).
14
“A tendência dominante de hoje consiste em conceber a democracia de tal modo que ela é quase
exclusivamente identificada com o Rechsstaat [Estado de direito] e a defesa dos direitos humanos,
deixando de lado o elemento da soberania popular, o qual é considerado obsoleto. Isto criou um “déficit
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democrático” que, dado o papel central jogado pela ideia de soberania popular no imaginário
democrático, pode ter perigosos efeitos negativos sobre a fidelidade às instituições democráticas.”
(MOUFFE, 2000, p.3-4).
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“a desaparição de uma linha divisória clara entre os partidos políticos tradicionais [...] deixou, na
realidade, um vazio que a extrema direita apressou-se a ocupar. Esse vazio é o que lhe permitiu articular
novas identidades coletivas através de um discurso xenofóbico e recriar a fronteira política desaparecida
mediante a definição de um novo inimigo [...]: os imigrantes” (MOUFFE, 1999, p.17-18).
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Como vimos nesta última seção, Mouffe identifica vários desafios urgentes
esperando solução pela teoria e pela prática política contemporânea. A filósofa defende
a tese de que – pelas razões expostas na segunda seção – a teoria política dominante
(incluindo o deliberacionismo) é incapaz de fornecer respostas satisfatórias para esses
problemas. Presos ao paradigma iluminista, eles não conseguem perceber que a crítica
ao racionalismo, essencialismo e universalismo empreendida pela pós-modernidade é
condição de possibilidade para preservar e aprofundar a democracia e não, como pensa
Habermas, sua destruição. Portanto, uma resposta satisfatória àqueles problemas passa
pela afirmação do antagonismo, do poder e da paixão como elementos constitutivos da
prática política. Porque não ignora isso, advoga Mouffe, a proposta de democracia
radical e plural – ou mais especificamente “pluralismo agonista” – está melhor
capacitada para enfrentar tais desafios e levar adiante o projeto democrático fundado
pela modernidade.
Esse leitmotiv é a grande preocupação de fundo que atravessa toda a obra de
Mouffe, a problemática fundamental da autora. Sua grande questão é como substituir,
por um pluralismo agonista, o “modelo de consenso” que hegemoniza a teoria e a
prática política contemporânea, e que, incapaz de compreender a natureza antagonista
do político, põe em risco a própria existência da democracia. Para tanto, deve-se
reconhecer que o consenso é não apenas impossível como desastroso, já que vai contra a
própria razão de ser da democracia, fazendo dela um ideal que se autorrefuta, na medida
em que “o próprio momento da sua afirmação iria coincidir com sua desintegração”
(MOUFFE, 2000, p.32). A democracia é, portanto, um paradoxo, e a tradição liberal é
inábil para tratar com ele. Como o antagonismo não pode ser erradicado, na medida em
que as identidades (multiplicadas pelo avanço da modernidade) sempre estão numa
relação nós/eles indecidível que as limita e nunca deixa-as realizarem-se
completamente, a tarefa do pluralismo agonista é transformar os antagonistas em
adversários, os quais se, por um lado, compartilham um mesmo espaço simbólico,
delineado pelos princípios ético-políticos e liberal-democráticos, por outro, discordam
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quanto ao modo de organizar esse espaço e lutam, conforme regras comuns, pela
prerrogativa – a hegemonia – de fazê-lo.
Partindo deste modelo teórico, Mouffe propõe a constituição de uma cadeia de
equivalências entre os grupos dominados capaz de articular as diferentes demandas
desses diferentes sujeitos sociais, os quais, a despeito de suas diferenças, ligar-se-iam na
e pela diferença contra um inimigo comum. Nesse sentido, gostaríamos de concluir,
provisoriamente, chamando atenção para o fato de que, para além dos desafios teóricos
e empíricos situados fora dessa cadeia de equivalências (passados aqui brevemente em
revista), e que devem ser por ela superados, a própria articulação dessa cadeia, contudo,
já é em si um desafio bastante considerável – e a nossa autora parece um tanto quanto
otimista neste aspecto.
Quer nos parecer que a crítica de Mouffe é fundamentalmente pertinente. Ela
toca em fraquezas-chaves do paradigma democrático dominante, da direita (liberais) ou
da esquerda (socialdemocratas), tanto quanto da esquerda clássica revolucionária
(comunistas), e apresenta uma saída plausível para seus impasses. No entanto, dado o
nível altamente abstrato em que sua análise se situa, ela deixa em aberto como fazê-lo
na prática. Ou melhor, fica claro que Mouffe aposta suas fichas na mobilização e
organização dos inúmeros grupos sociais subalternos – além da classe trabalhadora – a
partir da construção de uma cadeia de equivalências que permita identificar um
adversário comum.
A verdadeira aposta desta radical and plural democracy [sic] é a criação de
uma cadeia de equivalências entre as diversas lutas pela igualdade e o
estabelecimento de uma fronteira política capaz de conferir nova identidade à
‘esquerda’. Uma esquerda que, mesmo sem questionar os princípios mesmos
da legitimidade da democracia liberal, não obstante apontaria à
transformação da relação de forças existente e à criação de uma nova
hegemonia (MOUFFE, 1999, p.24).
Uma vez que ela parece abdicar da superação radical do capitalismo enquanto
modo de produção – talvez por não visualizar uma alternativa viável, talvez porque toda
alternativa tenha, até o momento, falhado –, esse adversário só pode ser o discurso
hegemônico que atualmente organiza esse modo de produção, ou seja, o neoliberalismo
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e sua versão eufemística identificada com a globalização, com suas funestas implicações
sociais, políticas, econômicas, éticas e ambientais.
A fim de combater esse adversário, o problema maior está em como costurar
uma cadeia de equivalências, conquanto contingente e precária, entre tantas identidades
distintas e potencialmente antagônicas – “Pois não se trata de estabelecer uma mera
aliança entre interesses dados, senão de modificar realmente a identidade mesma destas
forças” (MOUFFE, 1999, p.39) –, com seus variegados interesses, valores, crenças,
linguagens, práticas, etc., e como fazê-lo democraticamente, isto é, como construir uma
nova hegemonia democrática que permita o dissenso e o conflito entre tantos sujeitos
diferentes sem implodir a si mesma, ao mesmo tempo em que enfrenta um poderoso
adversário (ou seria inimigo?) fora dela, o capitalismo neoliberal.
Isto indica o reconhecimento comum, por parte dos diferentes grupos que
lutam por uma extensão e radicalização da democracia, de que têm uma
preocupação comum, e levará à articulação das demandas democráticas que
levantam diferentes movimentos: as mulheres, os trabalhadores, os negros, os
homossexuais, os ecologistas [...]. O objetivo é construir um “nós” como
cidadãos democratas radicais, uma identidade coletiva articulada mediante o
princípio de equivalência democrática (MOUFFE, 1999, p.121).
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pluralista e agonista. Se, como acredita Bobbio (1995), o que sempre definiu a esquerda
foi a igualdade como meta, esta tem sido, com efeito, a grande esfinge da esquerda
desde a Revolução Francesa: unir uma pluralidade de vozes diferentes e desiguais
contra um inimigo em comum. Um problema capital cuja dificuldade todo militante de
esquerda conhece na prática e dois séculos de história dão conta. O trabalho de Mouffe,
sem dúvida, é um passo necessário no sentido da decifração deste enigma e deve ser
levado muito a sério por todos aqueles que acreditam na possibilidade de uma nova
hegemonia democrática radical, plural e anticapitalista.
Referências
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São Paulo, v.80, 2010, p.71-96.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política. São Paulo: Editora da Unesp, 1995.
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BURITY, Joanildo. Discurso, política e sujeito na teoria da hegemonia de Ernesto
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teoria do discurso: em torno de Ernesto laclau. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
LACLAU, Ernesto. Identidad y hegemonía: el rol de la universalidade em la
construción de lógicas políticas. In: BUTLER, Judith et al. Contingencia, hegemonía,
universalidad: diálogos contemporáneos en la izquierda. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2004.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and socialist strategy: towards a
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GOLDSTEIN, Philip. Post-marxist theory: an introduction. New York: State Universy
of New York Press, 2005.
MENDONÇA, Daniel de. Antagonismo como identificação política. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais, Brasília, n.9, setembro-dezembro de 2012, p.205-228.
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Resumo: O presente artigo se debruça sobre alguns dos problemas teóricos e empíricos
levantados por Mouffe na constituição do que ela chama de nova hegemonia
democrática radical e plural, uma preocupação que é o grande leitmotiv que atravessa
sua obra como um todo, desde a publicação em 1985, com Ernesto Laclau, de
Hegemony and Socialist Strategy. A resposta que ela dá passa, como veremos, pela
reafirmação da dimensão “do político”, isto é, do antagonismo contra o paradigma
liberal-democrata hegemônico que supõe a possibilidade (e a desejabilidade) do
consenso, e que ela denomina genericamente de “modelo de consenso”. Além da
conclusão e de uma breve introdução acerca das implicações teóricas das teses de
Laclau e Mouffe para a tradição marxista da qual ambos se afastam, o artigo subdivide-
se em outras duas seções. A primeira analisa o significado do político em Mouffe e suas
relações com o pluralismo agonista advogado por ela, explicitando seus pontos de
tensão com o modelo de consenso. Este é o momento dos problemas teóricos. Num
segundo momento, a seção seguinte discute algumas implicações desses problemas em
relação aos desafios empíricos que enfrenta a prática política contemporânea a fim de
avançar em direção a uma democracia radical e plural. O artigo conclui chamando
atenção para o que julgamos ser o desafio fundamental do modelo pluralista agonista:
lograr unir, numa cadeia de equivalências democrática, uma esquerda tradicionalmente
fragmentada por vários sujeitos sociais potencialmente antagonistas.
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Abstract: This article focuses on some of the theoretical and empirical issues raised by
Mouffe in the constitution of what she calls the new radical and plural democratic
hegemony, a concern that is the great leitmotif that runs through her work as a whole
since the publication in 1985, with Ernesto Laclau, of Hegemony and Socialist Strategy.
The answer she gives passes, as we shall see, through the reaffirmation of "the political"
dimension, that is, of the antagonism against the liberal-democratic hegemonic
paradigm that assumes the possibility (and desirability) of consensus, and that she
generally calls "consensus model". In addition to the conclusion and of a brief
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introduction about the theoretical implications of the Laclau and Mouffe's thesis for the
Marxist tradition from with both depart, the article is divided into another two sections.
The first analyzes the meaning of the political in Mouffe and their relationship with the
agonistic pluralism advocate by her, making explicit their points of tension with the
consensus model. This is the time of the theoretical problems. Secondly, the following
section discusses some implications of these problems in relation to empirical
challenges that the contemporary political practice faces in order to move toward a
radical and plural democracy. The article concludes drawing attention to what we think
be the fundamental challenge of pluralistic agonist model: get put together in a chain of
democratic equivalences a left-wing traditionally fragmented by various potentially
antagonistic social subjects.
Key-words: Chantal Mouffe. Normative democratic theory. Agonistic pluralism. Pos-
marxism.
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