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Hamilton de Mattos

Monteiro

Nordeste
Insurgente
(1850-1890)
ÍNDICE

Introdução

A região

As insurreições

As revoltas urbanas

Conclusão

Indicações para leitura


INTRODUÇÃO

Durante muito tempo, a historiografia brasileira refletiu


as histórias das elites vitoriosas e dedicou-se, na maior
parte, a acompanhar as mudanças do eixo econômico dentro do
território nacional. Assim, temos vasta produção não só sobre
o Nordeste colonial, como também sobre as Minas Gerais no
século XVIII, a província fluminense e a Corte no século XIX e
São Paulo no século XX. Além do interesse pelas mudanças
econômicas, nesses pontos de atração, alguns temas são
continuamente pesquisados, entre outros a escravidão africana,
a industrialização, etc. No conjunto, apesar de sua
importância, estas regiões, épocas ou temas, com seu poder de
atração, contribuíram para um relativo esquecimento de outros
assuntos e também da história de outras regiões em
determinadas épocas.
Modernamente, saímos desse provincialismo intelectual e
começamos a escrever as histórias locais, das épocas
esquecidas. Retomamos o fio da meada, deixado por
historiadores e cronistas regionais que, por muito tempo
ignorados nas prateleiras das bibliotecas, voltam a ter
importância ao se escrever a verdadeira história brasileira
que não deve ser somente a dos vencedores, mas também a dos
vencidos, a da Corte como a da província, a das regiões
"desenvolvidas" como a das empobrecidas e exploradas.
Aqui neste opúsculo, restauramos um pouco da história do
Nordeste brasileiro que, depois de ter sido uma das mais
importantes regiões geo-econômicas da era moderna, fornecedora
praticamente exclusiva do açúcar consumido no mundo ocidental,
é deixada à sua própria sorte, a partir do século XIX. O Nor-
deste é uma das provas do resultado da exploração predatória
dos recursos econômicos de uma região para atender a
interesses externos, que, depois de esgotada, é abandonada. De
região heróica da época áurea da produção açucareira e da
vitória contra os holandeses, passa a ser acusada de
ignorante, fanática e indolente, quando economicamente não
mais interessa.
No presente trabalho, limitar-nos-emos a escrever sobre a
segunda metade do século XIX, já que a primeira será objeto da
atenção de outros especialistas e que, no conjunto,
contribuirão para dar ao nordestino a consciência de seu
passado sempre heróico e glorioso.
A REGIÃO
A Paisagem

Quando nos referimos ao Nordeste brasileiro, tratamos da


área que engloba os atuais Estados do Maranhão, Piauí, Ceará,
Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e
Bahia.
Esta vasta região apresenta-se subdividida em quatro
outras, consoante seu tipo de solo, clima e vegetação. São
elas a Zona da Mata, o Agreste, o Sertão e o Meio-Norte.
A Zona da Mata abarca cerca de 18,2% da área total,
estendendo-se do Rio Grande do Norte à Bahia. Seu clima é
quente e úmido e ali se cultiva principalmente cana-de-açúcar,
cacau e fumo.
Estendendo-se mais para o interior, está o Agreste. Não
apresenta clima e vegetação uniformes, contendo algumas
regiões que se assemelham ao Sertão e outras à Zona da Mata. É
uma área de transição entre essas duas outras que lhe fazem
limites. As atividades econômicas são múltiplas, destacando-se
o algodão, os gêneros alimentícios e a pecuária.
O Sertão ocupa a maior parte do Nordeste, abrangendo cerca
de 49% do total. Seu relevo é mais uniforme e o clima mais
seco. Em grande parte, a vegetação é de caatinga e a ocupação
humana mais rarefeita. As atividades predominantes são a
pecuária e a cultura do algodão. Nele existem algumas regiões
que são autênticas ilhas, onde se pratica uma agricultura
variada e há maior concentração populacional. São as várzeas
dos rios sertanejos, as regiões serranas e o vale do Cariri.
O Meio-Norte (Maranhão e Piauí) é tipicamente uma região
de transição entre a floresta equatorial (floresta amazônica)
e o Sertão. A paisagem se altera de oeste para leste. No
extremo oeste do Maranhão, a vegetação e as condições
climáticas se assemelham à Amazônia e, à medida que se avança
para leste, cada vez mais se parece com o Sertão. A pecuária e
o extrativismo vegetal predominam na atividade econômica, se
bem que ali também se desenvolvam a produção de algodão e a de
arroz.

A distribuição da Terra e a Sociedade

O elemento principal que atuou na formação da sociedade


nordestina foi a posse da terra; a partir dela, estruturaram-
se os principais grupos sociais.
Como se sabe, tem predominado ali a grande propriedade
cuja origem remonta às doações sesmariais. Na Zona da Mata,
desenvolveu-se a cultura da cana-de-açúcar; no Agreste, foi
dada maior atenção à pecuária e/ou à cultura do algodão; no
Sertão, a pecuária extensiva teve grande êxito e, na região do
Maranhão e Piauí, houve grande dedicação tanto ao extrativismo
vegetal quanto à pecuária.
As pequenas propriedades são poucas e dedicam-se
geralmente à produção de gêneros alimentícios e, em alguns
casos, ao algodão. No Agreste, estas localizam-se nos chamados
"brejos", regiões mais elevadas e, portanto, beneficiadas por
um clima de maior umidade, e, no Sertão, normalmente nas
regiões que margeiam os rios. Muitas vezes são tão pequenas,
entre 5 e 10 hectares, que obrigam os agricultores a procurar
trabalho adicional.
Por outro lado, havia também as terras arrendadas, onde se
praticava uma agricultura geralmente voltada para gêneros
alimentícios. Na Zona da Mata, cultivavam a cana-de-açúcar
para fornecimento aos engenhos e, no Agreste e no Sertão,
também o algodão, sendo que os grandes proprietários tinham
maior interesse na atividade pecuária.
Comum também era a existência de "roças" feitas pelos
moradores, também chamados agregados, os quais constituíam-se
em trabalhadores eventuais que moravam nas fazendas e a quem
era permitido cultivar uma pequena área. Estas "roças" eram
quase sempre de mandioca, milho e feijão, alimentos comuns na
refeição nordestina.
Sobre esta divisão e utilização da terra, assentava-se uma
estratificação social também diversificada. Em resumo, sem
querer esgotar o assunto e tendo em vista que nosso propósito
é apenas estabelecer o quadro da sociedade nordestina para
efeito de melhor compreensão dos temas que serão tratados, a
região apresentava as seguintes camadas sociais: de um lado,
no ápice da pirâmide social, estava o grande proprietário
(senhor de engenho na Zona da Mata, fazendeiro e/ou criador no
Agreste e no Sertão), isto é, o coronel todo-poderoso da
Guarda Nacional, senhor de fato da região sob sua influência.
Do outro lado, estavam os escravos e os moradores, que, embora
livres, gozavam de piores condições de vida que os próprios
escravos.
Entre estes dois grupos, situava-se uma enorme variedade
de tipos sociais que englobavam desde os pequenos e médios
proprietários e arrendatários, os "oficiais" assalariados
(como os mestres de açúcar nos engenhos e o curtidor nas
fazendas de criação) ou autônomos (como alfaiates, oficiais de
cantaria, carpinteiros etc), até os profissionais liberais e
os funcionários públicos.
A desigual distribuição da terra iria dicotomizar a
população rural na medida em que um número reduzido teria
acesso a ela como proprietário ou arrendatário e uma grande
massa, progressivamente aumentada, por força mesmo do
crescimento natural, teria de se contentar com a condição de
moradores ou então perambular de propriedade em propriedade
como jornaleiros. Estes últimos constituíam mão-de-obra barata
e abundante, vivendo miseravelmente, de onde provinham os
jagunços, os cabras e os cangaceiros.
"Nas cidades, o papel da agitação social estava reservado
a uma pequena classe média, que sofria primeiro os efeitos da
carestia e se compunha de artesãos (alfaiates, mestres-
carapinas, mestres-de-obra e seus oficiais) e de profissionais
liberais, imbuídos, muitas vezes, de idéias de justiça social,
quando não era tal papel, com bastante freqüência,
representado pelo clero."
Na longa crise por que passou o Nordeste no século XIX,
estes grupos não se limitaram a esperar pacificamente pela
solução de seus problemas. Reagiram a seu modo, a curto ou a
longo prazo.
Dos mais pobres ou empobrecidos que não emigraram, saíram
levas de bandidos que infestavam o Sertão e também os
"sediciosos" que colaboraram na rebeldia dos coronéis ou
rebelavam-se diretamente contra os que os exploravam.
Dos setores médios urbanos, emergiram os "conspiradores",
que nos clubes políticos, ou através de comícios, panfletos e
jornais, não cessavam de fazer a crítica ao regime vigente e
lideravam intelectualmente e na prática os motins e revoltas
urbanos.
Dos mais poderosos, dos grandes proprietários, surgiram as
"guerras" contra seus pares, as violências contra seus
agregados, as contestações ao poder público; isoladas ou
coletivas estas últimas tomaram os mais variados aspectos,
desde a explosão coletiva de 1874, quando a crise se
apresentou com toda a sua intensidade, até a abstenção com
relação à sorte da monarquia, em 1889, já cansados de esperar
a atenção que achavam justa merecer.
Todavia, dada a importância, para a compreensão das lutas
sociais, do papel desempenhado pelos grandes proprietários e
pelos homens pobres livres (a quem chamaremos genericamente de
lavradores), consideramos necessário maior detalhamento sobre
estes dois grupos.

Os grandes proprietários

Fundamentavam sua dominação no latifúndio e na exploração


da mão-de-obra, sob relações sociais de produção que iam desde
o contrato mediante salário até a escravidão, conforme suas
conveniências e lucratividade. Impuseram-se socialmente pela
violência, a qual se caracterizou, desde a fase colonial, pela
expropriação do indígena, privando-o de suas terras e, em
muitos casos, de sua liberdade; pela privação da liberdade do
negro e sua coação ao trabalho; pela apropriação da quase
totalidade das terras por uma minoria, impedindo que uma ampla
camada de homens livres, cada vez maior, se tornasse também
proprietária.
Instalou-se, portanto, uma ordem caracterizada pela
violência. O grande proprietário, o "coronel", necessitou
impor-se autoritariamente sobre a população de seu "domínio",
para assegurar a posse dos seus bens ante a maioria que se
constituía em trabalhadores livres, escravos e jagunços. Ele
se acastela em sua propriedade e se cerca de um numeroso
"exército" privado, com o qual comete toda a sorte de vio-
lências. Deve precaver-se contra possíveis "traições", porque
é assim que entende as discordâncias dos que habitam sua área
de mando; contra seu rival, também grande proprietário
territorial, com o qual disputa a influência e até mesmo as
terras, e, por último, contra o Estado monárquico que,
tentando instalar uma ordem em certa medida racional, toma
atitudes que contrariam seus interesses.
Como centro de convergência das lutas sociais e políticas
no Nordeste, fundamentalmente no meio rural, está, de fato, o
coronel. Ele é que, direta ou indiretamente, traçava os rumos
do relacionamento social e político. Ele era a célula de todo
o sistema. Enfeixava em suas mãos o poder econômico, jurídico,
político e, pela influência sobre o vigário local, até mesmo
determinava os parâmetros da ação religiosa. Qualquer estudo
sobre a violência da sociedade local não pode ignorar a ordem
social que ali se instalou sob o primado da lei do mais forte,
regida por um código próprio, o código do coronel.
Sua ética era muito simples. Era o "divisor de águas", e o
bem e o mal se definiam a partir de seus interesses privados.
Bem era tudo que fosse a seu favor e mal tudo que lhe fosse
contra. "Conquistador" de suas terras ou herdeiro de
"conquista", organizador da produção local e "domador" da
população aborígene ou adventícia, o coronel era muito cioso
de suas propriedades e posses e exigia de todos o
reconhecimento de seus direitos de mando. Na sua lógica, nada
havia de mais correto e insofismável. Ele estava acima do
julgamento dos subordinados, restando a estes balizar seu
comportamento pela fidelidade irrestrita ou então discordar e
cair nas suas iras.
O coronelismo, fruto do latifúndio e da omissão ou
ausência do poder público, encontrar-se-ia, entre 1850 e 1889,
situado entre dois fogos. De um lado, a crise do setor
exportador que, quando não o arruína, torna sua situação
econômica instável; do outro, a tentativa da monarquia em
fazer valer seu poder em meio a esses autênticos "potentados",
como os alcunhava Euzébio de Queirós.
Acostumados ao mando sobre seus vastos domínios, numa
autoridade adquirida desde os tempos coloniais, os coronéis
sofreriam os efeitos da centralização monárquica a partir do
momento em que os Braganças formaram no Brasil um Império
autônomo e aplicaram as idéias centralizadoras tão ao gosto
das casas reais européias. Passado o período regencial,
durante o qual a obra centralizadora esteve paralisada e em
alguns casos retroagiu, e vencida a revolta Praieira, em 1850,
a monarquia recomeça a sua obra de centralização e de
instalação de uma estrutura político-administrativa mais
racional e menos patrimonial. Este fato provocaria atritos, se
bem que, na maior parte dos casos, estabelecessem — o poder
público e o poder privado — um modus vivendi. Mas, apesar de
tudo, os coronéis não cedem na sua autoridade e agem como se
fossem o poder maior, descaracterizando o poder público na sua
área de influência, desmoralizando a justiça e oprimindo
desapiedadamente os que estão na sua dependência.
Mesmo assim, o relacionamento entre coronéis e Estado,
nessa época, foi, podemos dizer, harmonioso. O coronel
entendia o Estado como expressão de seus interesses privados,
e este adotava uma política dúbia, mas lógica dentro dos
objetivos nacionais. Estávamos muito perto dos movimentos
insurrecionais que marcaram a primeira metade do século XIX, e
ao Império atemorizava a idéia de qualquer convulsão interna.
Diante da eclosão de algum motim, insurreição etc, caso
partisse das camadas mais pobres, a resposta do governo
imperial se fazia pronta e enérgica, e protelatória e
cuidadosa, caso partisse dos coronéis. Ela foi violenta no
caso do "Quebra-quilos", mas aos coronéis não foi aplicado "o
colete de couro" e foram absolvidos ou anistiados.
O que se depreende desse relacionamento é que foi feito em
níveis diversos e de formas diferentes. Em nível local, houve
a submissão quase completa das autoridades ao coronel; em
nível geral, houve uma ação decisiva, com alguns recuos
táticos para enquadrar os grandes proprietários no Estado
racional que se formava. Podemos dizer que o Império, ciente
da importância do coronel como "primeira garantia da ordem
pública", no dizer de Henrique Millet, e ciente, também, da
necessidade de organizar o país em bases mais condizentes com
o século, colocou esta organização como objetivo permanente a
longo prazo, evitando uma ação imediata que provocaria reações
incontroláveis. Salvavam-se a paz interna e a unidade política
em troca da concessão de uma parcela do poder, em nível local,
aos coronéis, enquanto a administração pública, em nível
geral, mantinha a independência relativa necessária para
alcançar seus objetivos.
Quando eclodiram os conflitos entre os coronéis e o
Império, foi porque este ou adotou medidas contrárias aos
interesses dos grandes proprietários ou não atendeu às suas
reivindicações. Tais confrontos quase sempre terminaram com a
conciliação, geralmente em detrimento do poder estatal.
Mas, se não houve conflitos que jogassem decisivamente os
coronéis contra o Estado, também não podemos dizer que houve
uma ligação bem alicerçada. A colaboração existia porque, por
mais que divergissem, tinham interesses comuns que se tradu-
ziam, por exemplo, na necessidade de defender a manutenção da
ordem numa sociedade com parcela considerável de
subempregados, marginalizados e escravos. Além do mais,
alimentavam a esperança de auxílio financeiro da parte do
Estado à sua economia cada vez mais descapitalizada. Ressalte-
se, ainda, o fato de que os coronéis jamais se mostraram
unidos na oposição ao governo.
A reforma da Guarda Nacional, em 1873, a nova lei do
recrutamento militar, de 1874; a falta do tão solicitado
financiamento estatal e o agravamento dos problemas
econômicos, à partir da grande seca de 1877-79, serviram para
o distanciamento decisivo entre aquela elite e o regime
monárquico.

Os lavradores

Esta parcela da população caracteriza-se pela


heterogeneidade mas, qualquer que seja sua condição em termos
sócio-econômicos, deve-se ter em mente a imensa distância que
os separava dos grandes proprietários e que formavam a maioria
da população regional. Compunha-se esse grupo de pequenos
arrendatários, pequenos proprietários, moradores e
jornaleiros.
Suas condições de vida e trabalho eram precárias. Como
moradores ou agregados de uma grande propriedade, habitavam
por favor nas terras do senhor, numa situação instável,
podendo a qualquer momento ser expulsos, perdendo as
benfeitorias e, inclusive, a "roça", Não tinham a necessária
liberdade para decidir suas vidas e mesmo a contragosto eram
convocados, não podendo-se recusar, para realizar tarefas nada
legais sob o mando arbitrário do coronel. Se não eram
moradores, constituíam-se em força de trabalho disponível
conforme as necessidades dos proprietários. O fato de serem
trabalhadores eventuais, geralmente convocados nas épocas de
plantio ou colheita, sob ínfimas condições de pagamento, fazia
dessa gente uma população sofrida, subnutrida e mendicante,
muitas vezes migrando de paróquia para paróquia, à procura de
trabalho e alimentos.
Após o fim do tráfico negreiro, com problemas de reposição
de mão-de-obra, os grandes proprietários tiveram dificuldades
em atrair trabalhadores rurais, devido, entre outros fatores,
às condições exploratórias que impunham. Nos finais dos anos
50, ouve-se o clamor dos fazendeiros que exigem das au-
toridades medidas tendentes a obrigar os homens pobres livres
a trabalhar em suas terras. Em 1860, a pedido, o Arcebispo da
Bahia, Marquês de Santa Cruz, emite uma pastoral onde afirma
que a ociosidade era um dos maiores pecados e concita, dessa
forma, os pobres a procurar trabalho. Na década de 70,
acentuando-se o problema, os delegados de Polícia são
alertados para efetivar a aplicação do § 2º, do artigo 12, do
Código de Processo Criminal e do artigo 111, do Regulamento de
31 de janeiro de 1842. O Chefe de Polícia da Província de
Sergipe seria bem claro ao afirmar que "devido à fakta de
braços para a lavoura, não se podia permitir a vadiagem".
Estes parágrafos e artigos constituíam-se em verdadeiras leis
contra a pobreza, mendicância e ociosidade. Os que fossem
encontrados sem trabalho teriam o prazo de 30 dias para
encontrar ocupação, findo o qual poderiam receber três tipos
de penas: multa até 30 réis, prisão até 30 dias e 3 meses de
casa de correção ou oficinas públicas. Reeditava-se, no Brasil
do século XIX, a versão cabocla das famosas poor-laws inglesas
do século XVI.
Estes homens pobres livres viviam praticamente à margem da
lei. Não recebiam proteção dela, pois, no seu vasto mundo, os
coronéis eram a lei suprema. Os julgamentos e decisões dos
juízes,as resoluções das Câmaras Municipais, às ações da
polícia; etc, tudo se colocava sob o arbítrio daqueles land-
lords. Não havia recurso diante de seu autoritarismo, a não
ser abandonar a terra, acomodar-se, ou então transformar-se em
bandido.
O banditismo rural foi uma das soluções encontradas por
esta população que vivia em condições subumanas. A falta de
consciência política levou-os a reagir instintivamente e a
tornarem-se bandoleiros, também chamados cangaceiros. Optar
pelo banditismo significava a solução extrema diante da penú-
ria e de certa forma a "liberdade", se bem que em termos
individuais. Embora cometessem toda a sorte de crimes, estes
homens eram vistos como heróis e olhados com admiração pela
população em geral, da qual, inclusive, recebiam ajuda. Sua
audácia e independência ante o coronel transformavam-nos em
exemplos vivos de saída possível. A partir da década de 70,
principalmente após a grande seca de 1877-79, houve um
incremento considerável deste tipo de "saída", não sendo por
coincidência que ocorreu justamente na época em que a crise
econômica se mostrava mais aguda e as relações sociais se
faziam mais impessoais, e menos velado se tornava o aspecto
exploratório desse "relacionamento. A violência gerava a
violência e ameaçava explodir de forma imprevisível, com
sérias conseqüências.
Os lavradores pobres, por seu turno, só se revoltavam
quando a situação tornava-se aflitiva ou quando se
aproveitavam de divisões ocorridas na elite dominante e eram
insuflados por um dos lados. Dessa forma, saíram em campo,
lutando contra seus opressores ou aqueles que identificaram
como tais. Atacaram as fazendas na revolta de 1851-52 e, entre
outros, as Câmaras Municipais e Coletorias na de 1874-75. Em
ambas, com o mesmo pavor de serem escravizados, pois foi assim
que entenderam (ou foram induzidos a tal) os decretos
inovadores do registro civil, do sistema métrico decimal e da
nova lei do recrutamento militar. Esta atitude serve para de-
monstrar o quanto de contas tinham a ajustar com seus
"senhores". Demonstra, outrossim, que possuíam certa
consciência da miserabilidade, dependência e opressão em que
viviam e não achavam estranha a possibilidade de virem a ser
escravizados.
Os rebeldes derrotados engrossavam as fileiras dos
bandidos e os bandos desciam do Sertão quando as rebeliões
eclodiam no Agreste ou na Zona da Mata. Os matutos viam o
banditismo como saída possível para sua situação de penúria e
explodiam em rebelião quando a situação atingia seu ponto
crítico. Se não conseguiram atingir seus objetivos é porque
lhes faltaram a necessária conscientização e a liderança saída
de seu próprio meio. Quando foram conscientizados e alertados
contra quem os oprimia, pelos radicais ou padres jesuítas, não
receberam o apoio necessário para a continuação da luta.
Diante da revolta popular, diante da revolta dos homens
"sem nenhuma importância social e menos política", como os
chamava certa autoridade, as elites se retraíam e se
conciliavam. A revolta pregada pelas elites, quando de
dissensões internas ou com o aparelho estatal, não era
revolução, mas sim uma forma de levantar esses "proletários"
para atingir objetivos que lhes interessavam. A elite, porém,
não podia admitir perder o controle da situação e se isso era
provável as suas facções se conciliavam. Como afirma José
Honório Rodrigues, a conciliação sempre foi feita contra e em
detrimento do povo; surgia como defesa da classe dominante
contra a classe dominada. Ao sentir a gravidade do problema,
os membros da elite que haviam insuflado a revolta popular
preferiam esquecer as rivalidades e apoiavam a repressão
governamental.
As últimas décadas do século XIX foram assinaladas, no
Nordeste, pelo incremento do banditismo rural, do fanatismo
religioso e pelo desânimo dos grandes proprietários que se
desinteressaram pela sorte da Monarquia. A violência se
consolidou como forma de relação natural entre a população
nordestina e refletia a acentuada deterioração das condições
sociais. O desenrolar dos acontecimentos levaria ao confronto,
a uma autêntica luta de classes, caso outros fatores não
contribuíssem para esvaziar a tensão. Entre estes, colocamos
como fundamental as migrações internas que deslocaram,
progressivamente, para o litoral, para a Amazônia e,
posteriormente, para o Sul, grandes levas de nordestinos.

A situação econômica

As revoltas devem ser entendidas, sem excluir aspectos


particulares e conjunturais, a partir da crise econômica que
assola a região e que se aprofunda nas décadas finais do
século XIX.
Inicialmente, não devemos esquecer que o Nordeste foi
colonizado e explorado tendo em vista as necessidades
econômicas da expansão comercial européia. A procura de metais
preciosos, especiarias e produtos tropicais havia provocado as
grandes navegações dos séculos XV e XVI e colocado, à mercê
dos homens de negócios da Europa, novas áreas, muitas das
quais praticamente despovoadas. Em algumas regiões coloniais,
encontraram grande densidade populacional e formas de trabalho
que souberam adaptar aos objetivos europeus; em outras, como
no caso brasileiro, tiveram que montar toda uma infra-
estrutura de produção, trazendo para aqui sua técnica,
capitais e, inclusive, mão-de-obra forçada. De que adiantava
ter-se dinheiro, sementes e instrumentos de trabalho se
faltava gente para trabalhar? A escravidão negra foi uma
solução para tornar viável os investimentos e fechar o círculo
da economia: Não estavam em jogo os direitos humanos, mas sim
a rentabilidade econômica.
O Nordeste mostrou-se propício à produção de alguns
artigos tropicais, principalmente a cana-de-açúcar, cujo
consumo aumentava continuadamente no Velho Mundo e,
posteriormente, de outros, como o algodão e o arroz.
Seguindo estas necessidades externas, pôde a região
durante longo tempo, na época colonial, entrar no circuito da
produção e comércio mundiais, cujo centro achava-se nos Países
Baixos, passando evidentemente pelos portos portugueses.
Em fins do século XVI, a Zona da Mata nordestina ocupava o
primeiro lugar na produção mundial do açúcar. A sua
importância fica patenteada quando, após o Brasil passar para
o domínio espanhol, em 1580, e tendo em vista a guerra entre a
Holanda e a Espanha, os holandeses resolvem conquistar a
região para não perder tão importante fonte de lucros.
Mas tanta importância e riqueza gerada no nordeste
brasileiro que fazia a fortuna de muitos comerciantes
portugueses e batavos estava assentada sobre base instável,
que iria ser a responsável pela crise que a região passaria
nos fins do século XVIII e todo o século XIX.
Um ponto fundamental que o leitor deve observar está na
própria gênese da economia local, nascida a partir de
necessidades externas, ou seja, visando a atender a um consumo
que estava milhares de quilômetros distante, isto é, na
Europa.
Disto advêm problemas sérios:
1º) o plantador nordestino, que assumia todas as despesas
e riscos do plantio e colheita da cana e da produção do
açúcar, não tinha controle sobre o preço e a venda do artigo
que ele próprio produzia. Afastado da comercialização, ficava
ao sabor das flutuações dos preços que, muitas vezes, não
chegavam a pagar os custos da produção, gerando o seu endivi-
damento e, em alguns casos, a ruína;
2º) não tinha a garantia de que sua produção seria
efetivamente adquirida pelos comerciantes estrangeiros.
Investimentos holandeses, ingleses e franceses, nas Antilhas,
fizeram desta região um centro produtor de açúcar concorrente
do Brasil e sua proximidade da Europa, além de outros fatores,
fizeram com que o Nordeste perdesse fatia considerável deste
importante comércio. A isto acrescente-se o esforço do
continente europeu em extrair, com sucesso, o açúcar da
beterraba;
3º) na medida em que não tinha possibilidades de influir
no comércio internacional, o fazendeiro nordestino, ao mesmo
tempo que via os preços de seus artigos baixarem de forma
real, era forçado, numa autêntica troca desigual, a adquirir
manufaturados europeus (implementos agrícolas, objetos de
consumo pessoal, etc.) por preços que se elevavam
continuamente;
4º) a utilização do escravo como principal força de
trabalho era rentável enquanto o preço do produto no mercado
fosse elevado. O fazendeiro, ao comprar o escravo, imobilizava
nele um capital (dinheiro) e tinha que, obrigatoriamente,
fornecer casa, comida e roupa. Quer produzisse ou não, a
despesa com esta força de trabalho era relativamente
constante. Para que se produzisse com mão-de-obra escrava, não
se podia lançar mão de instrumentos de trabalho muito
sofisticados, e necessário se tornava, também, que a terra
fosse abundante e fértil para que a técnica rudimentar fosse
compensada pela natureza. Visando a retirar, no mais curto
espaço de tempo possível, o capital investido no escravo, o
fazendeiro era obrigado a exigir dele cotas de trabalho bem
maiores (média de 14 horas por dia), o que tornava sua vida
útil muito curta. Portanto, além do alto preço do produto, da
abundância e fertilidade da terra, a escravidão, para
continuar a existir como forma de trabalho, exigia reposição
continua de mão-de-obra;
5º) tendo sido montada como economia produtora de artigos
para exportação, a região tendia à monocultura em detrimento
da produção de alimentos para o consumo local. A importação de
muitos alimentos de outras regiões ou países deixava, pois, as
cidades sob a ameaça da escassez e à mercê da alta dos preços
dos gêneros de primeira necessidade;
6º) tendo em vista que a principal produção da região
visava a mercados externos (não só no sentido de estrangeiros,
como de outras regiões do país), o fazendeiro não tinha por
que pagar bons salários aos trabalhadores livres, quando os
possuía, já que não era entre estes que estavam seus
principais consumidores. Da mesma forma que agia com os
escravos, exigia dos homens livres cotas excessivas de
trabalho em troca de diárias irrisórias.
No Nordeste, a partir de fins do século XVIII, encontramos
todos estes problemas que se irão agravar no século XIX. Os
produtos da região perdem, cada vez mais, importantes fatias
dos mercados tradicionais; há uma queda real dos preços desses
artigos e observa-se o esgotamento do solo, caindo a pro-
dutividade. A redução dos lucros impede a introdução, em forma
ampla, de uma moderna tecnologia que, por certo, estava além
das posses da grande maioria dos fazendeiros. Com o fim do
tráfico negreiro, a partir de 1850, o fazendeiro nordestino,
às voltas com esses problemas, começa a se desfazer de seus
escravos. Vende-os para o Sudeste que, em fase de expansão,
pode pagar elevados preços pelos cativos. Mas tal fato não
significa que a recuperação do capital imobilizado naquela
força de trabalho venha resolver seus problemas; pelo
contrário, como sua situação chegara a um ponto crítico, na
verdade, ele estava desfazendo-se de seus bens para saldar dí-
vidas.
Aí está a explicação para o tráfico interprovincial de
escravos que, nas décadas de 60 e 70, encheu de horror o país.
A proibição do tráfico internacional não permitira ao Brasil
livrar-se deste comércio degradante que então passava a ser
feito às claras, dentro do próprio território nacional.
Contudo, o fim do tráfico e a crise do setor exportador
fizeram com que a abolição da escravidão chegasse mais cedo ao
Nordeste do que no resto do país. O braço escravo foi sendo
substituído pelo livre em condições extremas de
miserabilidade. Na região, já havia uma reserva de mão-de-obra
livre suficiente para assegurar a reprodução daquela economia
exportadora sem ter que pagar salários elevados. Segundo
cronistas que visitaram a região naquela época, a situação
desses trabalhadores livres era pior do que a dos escravos,
pois estes últimos, pelo menos, tinham assegurados vestuário,
alimentação e moradia.
Em síntese, era esta a situação do Nordeste. Perda de
mercados tradicionais, queda dos preços dos artigos de
exportação, esgotamento do solo, rendimento decrescente do
setor agro-exportador e uma "massa" progressivamente aumentada
de homens livres vivendo miseravelmente.
Celso Furtado (1974:147-149), comparando dados das duas
últimas décadas do século XIX, diz que, enquanto a população
nordestina cresceu cerca de 80%, a renda real gerada pelo
setor exportador não ultrapassou 54%, cabendo admitir que
"houve declínio da renda per capita da região". Este declínio,
no cômputo geral e no nível das classes sociais, traduz-se no
empobrecimento ainda maior dos assalariados, arrendatários e
meeiros e na concentração de renda em mãos dos grandes
proprietários.
Esta concentração de renda repousa e gera a proletarização
de amplas camadas sociais. Uma parte considerável dos grandes
fazendeiros inicia um processo de ampliação das áreas
destinadas ao cultivo dos artigos de exportação, às expensas
das que produziam gêneros alimentícios. Os relatórios dos
chefes de Polícia das províncias mostram uma crescente relação
de casos de violência praticados pelos fazendeiros contra os
moradores de suas terras. Estes são expropriados, perdendo
suas "roças". Aumenta o número de desocupados e miseráveis.
A dinâmica e as contradições da acentuada dependência
brasileira no marco do capitalismo internacional provocavam a
destruição da pequena produção e ampliavam a economia de
plantation. Eliminavam, pouco a pouco, a produção de artigos
de subsistência (em sua quase totalidade, feita por esses
moradores) e forçavam a que todos entrassem em uma economia de
mercado, num processo que ainda hoje não se completou. À
pobreza e ociosidade de grande parte da força de trabalho
disponível somavam-se a escassez e alta dos preços dos artigos
básicos da alimentação local. Verificaram-se violentas
insurreições urbanas e casas comerciais foram depredadas e
incendiadas.
O Nordeste estava, neste período, à beira da efervescência
revolucionária. Tudo era motivo para revolta e atos de
violência. Nas principais cidades, de tempos em tempos,
ocorriam motins populares. Ás decisões governamentais que não
tinham apoio ou compreensão popular não eram acatadas. A popu-
lação revoltava-se contra o recrutamento militar, contra o
aumento de impostos, contra o registro civil dos nascimentos e
óbitos, contra o censo geral da população do Império, contra a
aplicação dos novos padrões de pesos e medidas etc. Não
realizava simples passeatas de protestos, mas autênticas lutas
com mortos e feridos. Além disso, desde a Praieira (1848-50),
havia uma animosidade latente entre grandes proprietários e
trabalhadores rurais. A tudo isto somava-se a atuação da
imprensa e dos políticos radicais, bem como a luta entre
facções da elite, disputando o controle das funções públicas.
A difícil situação da economia regional ocasionava o rompi-
mento da precária paz entre as classes sociais, e entre estas
e o Estado monárquico. As insurreições, conflitos e violência
demonstravam a profundidade das contradições econômicas que
ameaçavam transformar a região em um bolsão revolucionário.
AS INSURREIÇÕES
Introdução

Denominaremos genericamente de insurreições os violentos


movimentos sociais que sacodem o Nordeste, nesta segunda
metade do século XIX. Cabe-nos, no entanto, antes de descrevê-
las, distinguir insurreição de revolução, seguindo a lógica de
Um-berto Melotti (1971:34-36).
A diferença entre revolução e insurreição consiste em que
a primeira tem como objetivo derrubar o sistema existente para
substituí-lo por outro que seja a expressão das transformações
sociais ocorridas. Insurreição, por outro lado, constitui-se
em um estágio anterior à revolução e serve para demonstrar que
o antigo equilíbrio social foi rompido. Os movimentos
insurrecionais podem ser dirigidos para atingir objetivos
específicos, localizados e imediatos, tais como oposição a uma
lei, a impostos considerados extorsivos, à alta de preços,
etc.
Os participantes dos movimentos insurrecionais, descrentes
dos aparelhos do Estado, perderam a confiança na reclamação
por meios legais (oficiais), mas ainda não chegaram ao ponto
de propor a transformação total. Em vista disso, acusam a
autoridade mais próxima, atacam os comerciantes, enfim, aque-
les que muitas vezes são apenas executores e/ou sofrem os
efeitos dos mesmos problemas. Não conseguem ainda relacionar
fatos isolados e, muitas vezes, conjunturais, com contradições
estruturais. Pode ser que com o prolongamento do movimento, no
tempo e no espaço, adquiram esta conscientização mas, neste
ínterim, já estamos nos limites de uma revolução.
É assim que devemos entender as rebeliões nordestinas.
Elas anunciavam as transformações que se operavam na sociedade
local. Apontavam a necessidade de mudanças globais, o que pode
ser atestado pelo incremento do banditismo rural e do
fanatismo religioso, com a proliferação de "santos" e "beatos"
que pregavam o isolamento ante aquela ordem injusta e
aguardavam a salvação celeste, única esperança que lhes
restava. Cangaceiros e fanáticos são faces de uma mesma moeda.
Não é por coincidência que, no exato momento em que a crise
econômica e a seca agravam os problemas regionais, aumenta o
número de Chicos Beatos, Antônio Conselheiro, Jesuíno
Brilhante, Quirinos, Viriatos, Calangros, etc, no rastro de
uma herança que daria no século XX os famosos Padre Cícero e
Lampião, aliás, amigos entre si.
Um dos traços mais fascinantes da história das lutas
sociais nordestinas está na própria memória histórica que
cultuaram. Os líderes revolucionários de 1874 lembraram em
panfletos os heróis de todas as revoltas anteriores, desde
1817 a 1848, numa prova de que as repressões passadas não
haviam conseguido torná-los esquecidos entre a população pela
qual morreram.

O "Ronco da abelha" (1851-52)

Terminada a Praieira (1848-1849), grupos remanescentes


continuaram agindo no interior do Nordeste, principalmente de
Pernambuco, Paraíba e Alagoas. Pedro Ivo, um dos líderes mais
populares daquele movimento, organizou nas matas de Água Preta
(Pernambuco) um dos mais importantes grupos de resistência. O
próprio Ministro da Justiça, Euzébio de Queirós, em relatório
apresentado em janeiro de 1850, reconhecia a dificuldade em
combatê-lo.
"É necessário porém acabar quanto antes esse germe de
revoltas", exclamava enfaticamente o ministro. De fato, a
existência desses pontos rebeldes constituía-se numa ameaça à
tranqüilidade da região porquanto não só estimulava o
aparecimento de outros focos semelhantes, como também
constituía-se num excelente atrativo para que outros
descontentes viessem engrossar aquelas fileiras.
A figura de Pedro Ivo continuava a servir de esperança
para a população insatisfeita. As notícias que chegavam ao Rio
de Janeiro davam conta de que o líder rebelde era visto como o
"predestinado", encarregado de fazer surgir "a nova idade do
ouro".
Paralelamente ao auxílio que populares prestavam a Pedro
Ivo, o governo, extremamente preocupado, aumentava suas forças
para persegui-lo. Em contraposição, em diferentes pontos da
região, grupos rebeldes se formavam e agiam isoladamente. O
aparecimento desses "focos sediciosos", um "ato espontâneo de
patriotismo", no dizer da oposição, era visto pelo governo
como manobra visando a "cansar o governo, separar e distrair
suas forças" e, assim, manter vivo o espírito revolucionário.
A prisão de Pedro Ivo não foi suficiente para eliminar os
grupos guerrilheiros. Em seu relatório de 13 de maio de 1851,
Euzébio de Queirós ainda se queixava de que o "valhacouto" de
Serra Negra (comarca de Pajeú das Flores, Pernambuco), apesar
de tantas vezes dispersado, renasce como ponto "azado para
tais reuniões".
Enquanto no interior a situação, de certa forma,
continuava intranqüila, o ministro mostrava-se preocupado com
a campanha dos políticos da oposição que exigiam "por meios
revolucionários reformas radicais nas instituições".
O clima apresentava-se tenso. O fim da Praieira não fora o
fim do estado de agitação. A prisão dos seus principais
líderes não significou que os revoltosos tivessem esquecido
suas reivindicações. Ao mesmo tempo que grupos isolados agiam
pelo interior do Nordeste, numa flagrante contestação ao
governo conservador, a oposição continuava sua política de
manter vivos os grandes temas liberais e praieiros. Formaram-
se duas facções: uma mais moderada, pedindo a convocação de
uma Constituinte, e outra mais radical que organizava
"sociedades", apelando para a "agitação" e assustando a
população, no entender do Ministro da Justiça.
Foi neste ambiente "pré-revolucionário" que, nos meses de
dezembro de 1851 e janeiro de 1852, as províncias de
Pernambuco, Paraíba, Alagoas, com maior intensidade, e as do
Ceará e Sergipe, de forma mais amena, foram assoladas por
movimentos armados de oposição aos decretos 797 e 798, de 18
de junho de 1851, que instituíam, respectivamente, o Censo
Geral do Império e o Registro Civil dos Nascimentos e Óbitos.
O decreto 797 determinava que o arrolamento da população
para o censo seria feito no dia 15 de julho de 1852, após
afixação de editais nas Igrejas matrizes e anúncios nos
jornais, a partir de 1º de junho daquele ano. Quanto ao
decreto 798, constava que o registro civil da população, a ser
feito pelos escrivães dos juízes de Paz dos distritos,
entraria em vigor, "impreterivelmente", a 1º de janeiro de
1852.
Foi na província de Pernambuco, "que o movimento apareceu
com caráter mais grave, não só pelo número de grupos que se
armaram, como por serem mais numerosas as freguesias e os
termos em que ele se manifestou". Naquela província,
levantaram-se os termos de Pau d'Alho, Limoeiro, Nazaré,
Goiana, Vitória, Garanhuns, Rio Formoso, Igaraçu e as fre-
guesias de Ipojuca, Jaboatão, São Lourenço e Munheca. Na da
Paraíba, foram envolvidas as vilas de Ingá, Campina Grande,
Alagoa Nova, Alagoa Grande. Na de Alagoas, as localidades de
Laje do Canhoto, Mundaú-Mirim, Porto Calvo, Porto de Pedras,
Riachão, Arrasto, Juçara, Jacuípe, São Brás, Salomé e Barra
Grande, além dos moradores das matas de Cocal e Angelim. Nas
do Ceará e Sergipe, a sedição limitou-se às localidades,
respectivamente, de Jiqui e Porto da Folha.
Em todos os pontos, os fatos foram idênticos. Ataques às
vilas e engenhos, fuga das autoridades e grandes
proprietários, ameaças e reuniões suspeitas feitas por
"conspiradores" que, dentro dos engenhos, incitavam os
moradores a tomarem das armas "se não querem ficar reduzidos
com seus filhos ao cativeiro".
A "plebe" revoltada clamava contra a "declaração da
escravidão". Espalhara-se a notícia de que os decretos 797 e
798 visavam a "escravizar a todos os recém-nascidos e aqueles
batizados com as formalidades prescritas por aquela lei" que
fazia parte de um plano geral para reduzir "à escravidão as
pessoas livres" e, para enfim, "reduzir à escravidão a gente
de cor".
O momento era propício para a exploração política dos
decretos, apresentando-os como medidas escravizadoras da parte
do governo conservador. Em 1850, regulamentara-se a repressão
ao tráfico de escravos e os grandes proprietários reclamavam
da falta de braços, ao mesmo tempo em que se queixavam da
"preguiça" e "resistência ao trabalho" por parte dos
trabalhadores livres. Esta situação tenderia a provocar da
parte dos senhores de engenho, de um lado, a exigência de
maiores cotas de trabalho dos moradores e, do outro, a
solicitação de "leis repressoras da vadiagem, que forçassem os
homens ao trabalho".
Quando em 1851 dois novos decretos determinaram que se
fizesse o censo geral da população do Império e que todo
nascimento e morte fosse registrado no livro do juízo de Paz,
segundo a cor da pele (como era natural no Brasil até há pouco
tempo), qualquer argumentação, mesmo simples, serviria para
levantar em sedição a população amedrontada. Esta "gente de
cor", estes "caboclos", na sua simplicidade e ignorância,
viam-se diante de todos esses decretos como alvo da voracidade
do senhor de engenho e tenderiam a reagir violentamente. Uma
reação deste tipo não seria novidade, pois, por ocasião da
Praieira, ouvindo a pregação dos radicais do partido da Praia,
os lavradores haviam-se revoltado contra os senhores.
É o povo mais pobre, principalmente moradores e
jornaleiros, que forma o "grosso" da revolta. A
correspondência vinda dos locais amotinados especifica que os
revoltosos são o "povo mais miúdo", são a "gente baixa", são
"a maioria da população menos abastada", enfim, "gente da
última ralé" e "sem nenhuma importância social e menos
política".
Torna-se claro que as autoridades locais, identificadoras
da origem social dos revoltosos, procuraram, taxativamente,
assinalar que eles não pertenciam à elite da região; da mesma
forma procederam os presidentes de Província e o próprio
Ministro da Justiça. Assim fazendo, procuravam descaracterizar
o movimento, visando a não estimular adesões e procurando
mantê-lo circunscrito às localidades já sublevadas, evitando
transformá-lo em outra Praieira ou algo de maior proporção, já
que sabiam do descontentamento que grassava no Império,
principalmente da ala mais radical do partido liberal, "de-
posto" em 1848. O governo conservador, expressão do "partido
da ordem", tinha que aparecer perante a nação como o
restaurador da paz interna e não o "divisor de águas"; a
eclosão de uma nova Praieira demonstraria não só sua
debilidade, como também a capacidade de resistência e luta do
adversário.
Na verdade, à primeira vista, a insurreição caracterizava-
se por ser um movimento da população rural mais pobre
("moradores", "proletários", etc.) contra os senhores de
engenho e as autoridades nas vilas e cidades. Mas, teriam
esses "moradores" e "proletários", sabidamente afastados da
cultura da elite, condições de por si só julgarem o conteúdo
dos decretos 797 e 798 e associarem-no ao de repressão ao
tráfico negreiro e às atitudes tomadas pelos grandes
proprietários? Acreditamos que não.
Stavenhagem (1972:83), analisando a grande propriedade
rural monocultora da América Latina, diz que entre o grande
proprietário e os trabalhadores existem diferenças muito
grandes; para ele, a "classe dominante é muito politizada, na
proporção em que o campesinato dominado quase não tem
atividades nem participação políticas". Dessa forma, à luz da
documentação que consultamos, muito embora não haja indicação
explícita da participação de outros grupos sociais, achamos
que ela provavelmente existiu e partiu dos grupos
remanescentes do partido da Praia.
O partido da Praia defendera, por ocasião da revolta de
1848, um programa de profundo cunho social; seus ataques eram
dirigidos contra os senhores de engenho (principalmente o
poderio do "clã feudal e parental" dos Cavalcantis) e os
comerciantes portugueses, aqueles por monopolizarem a terra e
estes, o comércio das cidades. Insuflaram os moradores dos
engenhos contra seus senhores, e distribuíram perto de cinco
mil armas entre o povo. Assim podemos entender quando Nabuco
chama a Praieira de "movimento de expansão popular" e a vê sem
"disciplina". A disciplina que lhe faltava era a limitação do
movimento nos parâmetros do interesse da elite descontente.
"Expansão popular" significa, neste caso, confronto com as
elites, significa de fato um conflito social na medida em que
passa a ser um levante popular, ultrapassando os objetivos
iniciais. Quando as elites percebem as "terríveis forças" que
acionaram, retraem-se, conciliam-se e a repressão é feita. E é
Nabuco que isto observa no caso da revolta da Praia:
"Diante da nova situação, os homens abastados, tendo em
vista que os Praieiros eram indiferentes à sorte de sua
propriedade e de suas vidas, pensaram em aproximar-se uns dos
outros" (Nabuco, 1975:101-111).
Por que não poderia ser a sedição de 1851-52 uma
continuação da Praieira? Os problemas que levaram à sua
eclosão não haviam desaparecido. No interior, grupos rebeldes
continuavam agindo em autêntica "guerra de guerrilhas". Os
"matutos" continuavam sob o "mando" incontestado dos poderosos
senhores de engenho. Os liberais, e, mais do que nunca, os
radicais da Praia, continuavam na oposição. Não estaria aí
formado o "pano de fundo" para a interpretação dos decretos
797 e 798, de forma a exaltar novamente a "gente baixa" e
tentar com nova sublevação a "inversão de tudo que havia
oficialmente"?
Apesar da preocupação em caracterizar o movimento como da
exclusiva responsabilidade do "povo mais miúdo", as fontes
deixam transparecer a participação de elementos de outros
grupos sociais.
Os primeiros as serem apontados são os párocos:

"Alguns párocos, imaginando ou fantasiando prejuízos que


da execução do decreto lhes devem resultar, consentem se não
aprovam essas disposições hostis à lei..." (apud Monteiro,
1980:124).
Em segundo lugar, na procura dos "anarquistas" que
fomentam a revolta da "gente rude", apontam os políticos do
partido liberal:
"Os conspiradores continuam a fazer reuniões em seus
engenhos e a proclamar que tomem as armas se não querem ficar
reduzidos com seus filhos ao cativeiro e que o Partido Liberal
é oposto a esse decreto e está pronto a defendê-lo (apud
Monteiro, 1980:125).

De qualquer modo, a participação do clero e de elementos


identificados com os ideais "praieiros" deu-se de forma
velada. Procuraram dissimular sua atuação, evitando um
confronto direto com o governo. Prepararam o terreno na
esperança de um levante geral, a partir do qual, quem sabe,
pudessem retornar à ação os antigos líderes foragidos no
sertão ou então presos. A revolta de 1851-52 demonstrava que,
embora a Praieira tivesse sido sufocada, as reivindicações
ainda estavam bem vivas nas mentes dos nordestinos e que a
repressão, que naquela ocasião fora feita, não havia sido
suficiente para desestimulá-los.
A repressão seguiu uma escala progressiva. Inicialmente,
enviaram-se circulares às autoridades do interior no sentido
de investigar a "verdadeira origem do preconceito" contra os
decretos e que se empregassem "meios suasórios", usando "todo
o legítimo ascendente do cargo que ocupa para desvanecer as
impressões desfavoráveis"; sugeriam, também, que se
encontrasse "o melhor modo de coibir a propagação do erro" e
que se processassem os "amotinadores" (Monteiro, 1980:125).
Além dessas medidas, foi mandado às localidade sublevadas
o Frei Caetano de Messina, capuchinho, para organizar "santas
missões" e ver se, dessa forma, acalmavam-se os descontentes.
Sua pregação seguia uma norma comum nos sermões desse tipo:
lamentava o erro dos devotos, aconselhava o arrependimento e
mostrava-se interessado no bem-estar deles, ao mesmo tempo que
os ameaçava com os piores castigos caso não ouvissem sua exor-
tação; ou concordavam com ele ou seria derramado o "sangue dos
filhos de Pau d'Alho".
O trabalho do missionário era lento mas a cada dia,
afluindo de vários outros lugares, ia crescendo o número dos
que acorriam a Pau d'Alho para colocar-se sob a proteção do
Frei e, portanto, a salvo da perseguição que começara a ser
feita por tropas de primeira linha.
Estes "proletários" eram usados, sob a direção do
capuchinho, para a realização de obras públicas; em Pau d'Alho
foram reparadas as igrejas de Santa Teresa, do Rosário e do
Livramento:

"Os homens fabricando tijolos e telhas, conduzindo pedras,


cortando madeiras (...) e as mulheres conduzindo areia,
tijolos e telhas, andando todos no maior contentamento e
alegria, como se cada um dia de tanto trabalho fosse para
todos a melhor festa. Nessa missão recebi trinta e seis
clavinotes para entregá-los à competente autoridade" (apud
Monteiro, 1980:126).

Entrementes, o governo não podia deixar o fim da sedição


entregue ao lento trabalho do missionário; afinal, as
propriedades começavam a ser ameaçadas, o que exigia pronta
repressão. Do Recife, foi enviado o 4º Batalhão de Artilharia
para juntar-se ao 9º Batalhão de Infantaria que já havia sido
mandado anteriormente para Pau d'Alho e que estava acampado no
Engenho Cajueiro, a pouca distância daquela vila. Tendo em
vista que a todo momento "chegassem notícias desagradáveis de
Nazaré, Limoeiro, Santo Antão, Goiana e outros lugares", a
Guarda Nacional foi convocada.
Na segunda quinzena de janeiro, as autoridades já podiam
anunciar a pacificação, muito embora apontassem ainda a
existência de grupos armados. Os lavradores, em parte, optavam
pela "guerrilha", embrenhando-se pelas matas. Estes franco-
atiradores, à medida que não se reintegravam nas antigas
atividades econômicas, preferiam refugiar-se no interior, no
Sertão, e transformavam-se em "bandidos".
Na verdade, as forças governamentais não chegaram a lutar
com os sediciosos. Da mesma forma que se abateram sobre os
engenhos e vilas — de surpresa e em ação rápida —,
desapareceram sem deixar vestígios. Alguns participantes dos
grupos de razia foram reconhecidos por pessoas da localidade
ou de fazendas invadidas, mas não houve referência posterior
sobre abertura de processo-crime.
O governo preferiu, a 29 de janeiro de 1852, pelo decreto
907, suspender a execução do Registro dos Nascimentos e Óbitos
e do Censo Geral. Estando a pouco mais de um ano do início da
conciliação, o gabinete conservador, ao que parece, já
envolvido pela atmosfera que iria resultar no ministério de 6
de setembro, resolve conciliar. A suspensão das medidas
pretensamente causadoras da revolta e o caráter brando da
repressão, que mais pareceu uma demonstração de força,
confirmam esta hipótese.
Os lavradores revoltados não contaram com uma unidade de
ação, com uma liderança. Incentivados ou não por elementos de
outros grupos sociais, os registros não assinalam nenhum
chefe, nenhuma organização. Embora em maior número, o levante
em grupos esparsos facilitaria a reação da classe dominante e
a repressão. Evidentemente que essa classe, por sua própria
posição, tinha mais condições de se organizar, não só por
contar com os "aparatos ideológicos" que levavam a população
em geral a condenar o levante, mas, também, por pertencer à
Guarda Nacional que a transformava em classe armada e,
finalmente, pelo apoio que tinha do Estado através das "forças
de linha" (exército regular).
 participação de elementos do Partido Liberal, do clero,
de radicais etc, cai de importância ante o problema maior que
se apresentava: a luta de classes que, de latente, passava a
declarada.
O "Quebra-quilos" (1874-75)

Nos últimos meses de 1874 e princípios de janeiro de 1875,


quatro províncias do Nordeste — Paraíba, Pernambuco, Rio
Grande do Norte e Alagoas — foram assoladas por uma nova
rebelião que abalou as principais comarcas da Zona da Mata e
Agreste de Pernambuco e Paraíba e várias localidades de
Alagoas e Rio Grande do Norte.
De maneira geral, os fatos ocorreram de forma idêntica. A
cobrança dos impostos provocava protestos, e daí partia-se
para a agressão, com a "turba" descontente quebrando os pesos
e medidas do novo sistema métrico decimal e, em seguida,
destruindo os arquivos das Câmaras Municipais, Coletorias,
Cartórios (inclusive o de registro de hipotecas) civis e cri-
minais e até mesmo, em algumas localidades, os "papéis" dos
Correios; ou então, repentinamente, a cidade ou vila era
invadida por bandos de homens armados, cujo número variou de
60 a 600, que realizavam os mesmos "feitos" (destruição dos
novos padrões e incêndio dos arquivos) e partiam prometendo
voltar a qualquer momento.
O movimento teve início na vila de Fagundes, da comarca do
Ingá, na Paraíba. Por ocasião da feira, a 31 de outubro de
1874, "o povo que ia à feira para abastecer-se de gêneros
alimentícios" pronunciou-se contra o arrematante de impostos
que cobrava o denominado "imposto do chão". A grande quanti-
dade de pessoas que protestava e o reduzido número da força
policial deram vitória aos insurre tos. "A notícia voou." O
comandante das forças imperiais na província atribui a rápida
propagação da insurreição à vontade de sacudir, dos ombros,
fardos que ele supunha pesados demais à pobreza da população.
A partir de então, uma após outra, várias localidades da
Paraíba sofreram os efeitos das "massas desenfreadas". No mês
seguinte, levantava-se Pernambuco e, em seguida, Alagoas e Rio
Grande do Norte.
Os revoltosos traziam "um rosário" de queixas. Explodiam
em rebelião por um acúmulo de problemas que se acentuavam a
cada ano. Algumas foram comuns a todas as agitações:
reclamação contra os impostos (novos ou aumentados), contra a
nova lei do recrutamento militar e contra o novo sistema mé-
trico decimal.
A queixa contra os impostos era dirigida, em primeiro
lugar, ao aumento do número de taxas cobradas, tanto pela
fazenda provincial quanto municipal, e à elevação de inúmeros
deles; em segundo lugar, ao abuso verificado na cobrança dos
mesmos pelos arrematantes.
Conforme explicamos anteriormente, as províncias do
Nordeste vinham sofrendo os efeitos da queda dos preços dos
seus principais gêneros de exportação — o açúcar e o algodão —
e da contínua perda do mercado mundial. O resultado disso, no
plano financeiro, foi a diminuição das rendas provinciais.
Em tais circunstâncias, por solicitação das presidências e
Câmaras Municipais, as assembléias provinciais foram votando o
aumento dos impostos existentes e a criação de novos.
Dentre os impostos criados, estava o que instituiu o
imposto de consumo de alguns gêneros alimentícios, entre os
quais o da carne seca e da farinha, que tantos protestos iria
causar.
Explicando esta sobrecarga de taxas, dizia o presidente
Lucena de Pernambuco: "convém aqui ponderar que, sendo neste
segundo período consideravelmente maiores os encargos da
Província e demasiadamente escassos os meios de ocorrer a
eles, NÃO ERA MUITO QUE SE ALTERASSE A TABELA DE IMPOSIÇÕES,
TANTO QUANTO FOSSE BASTANTE PARA CONSEGUIR-SE RENDA SU-
FICIENTE" (apud Monteiro, 1980:132).
Tal argumento poderia ser considerado lógico, mas não
naquelas circunstâncias, onde qualquer majoração ou criação de
impostos não deixaria de elevar o custo de vida. A imprensa
liberal vê nessas elevações uma forma de transferir para o
povo, entre o qual, principalmente, os mais afetados seriam a
"gente miúda", a responsabilidade de sustentar a burocracia
estatal, ou seja, "para fazer viver na opulência a meia dúzia
de ladrões".
Quanto aos arrematadores dos impostos, sabemos que, tendo
arrematado ao município ou à província determinada taxa,
procuravam eles arrecadar o máximo que pudessem visando a
aumentar "seus lucros". Os expedientes por eles utilizados não
têm sido devidamente estudados, mas dois dos exemplos citados
pelo Comandante das Forças Imperiais na Paraíba são
suficientes para ter-se uma idéia dos motivos por que as
populações tinham tanta prevenção contra esses "capitalistas".

"Um pobre homem trazia às vezes para a feira uma certa


quantidade de farinha no valor de 2$000 rs., logo que pousesse
no chão o saco que trazia, pagava imediatamente uma certa
quantia, porém se por qualquer circunstância ele mudava de
lugar tinha que pagar novamente o imposto e pagaria quantas
vezes mudasse de lugar; de modo que muitas vezes, sem ter
ainda vendido o que trazia, já tinha pago ao exigente
arrematador o dobro do valor do que trazia para vender"
(Arquivo, 1937:120). "Em Pedras de Fogo o arrematante, vendo
que um homem que trazia uma pequena quantidade de frutas no
valor de 160 réis não lhe dava lugar a cobrar o imposto no
chão por não querer descansar o cesto, usou o artifício de
entreter com ele conversação e oferecer-lhe um cigarro, e
assim que o homem, para acender o cigarro, descansou o cesto,
o arrematante cobra-lhe 200 réis que aquele lhe era devedor"
(Arquivo, 1937: 120).

A freqüência de fatos como esses transformava a cobrança


dos impostos em momentos de grande tensão. Os revoltosos de
Panelas queixavam-se das "extorsões dos arrematantes" e os de
Bom Jardim diziam que o coletor "cria impostos para si".
Assim, compreendemos por que, em grande número dos casos, as
agitações têm início com discussões nas feiras sobre a
legalidade dos impostos, daí partindo para as agressões já
citadas. Compreendemos também porque, nas vilas atacadas, um
dos alvos quase sempre eram as coletorias.
A arrecadação de impostos já havia ultrapassado o limite
natural que uma população psicologicamente considera como
justo. Na difícil situação em que se encontravam — os senhores
de terras se descapitalizando passo a passo e os "proletários"
sofrendo os efeitos da crise da lavoura —, as novas taxas eram
não só um "abuso" como um "cinismo"; aqueles, reclamando da
queda dos preços e da perda de mercados, pediam financiamento
e recebiam aumento de impostos, estes, sofrendo as agruras do
desemprego, teriam que pagar mais caro até mesmo pelos ali-
mentos. Realmente, como dissera o Presidente Lucena: "bastava
uma faísca".
A esse problema que consideramos o mais grave, acrescente-
se, como já afirmamos, a oposição à nova lei do recrutamento
militar (Lei nº 2.556, de 26.09.1874) "que, espalharam, torna
o cidadão escravo".
Era um argumento semelhante ao utilizado em 1851-52.
Curiosa é a preocupação, que atemorizava a população,
geralmente "mestiça", quanto a ser transformada em escrava.
Retrata uma certa desconfiança para com as elites ou para com
o governo; deixa perceber a imagem que as populações mais
pobres fazem da burocracia governamental e dos senhores na
medida em que não são ouvidas politicamente, não têm proteção
legal ante os tribunais, a não ser com apoio de uma "pessoa
influente" e não têm perspectiva de melhoria de sua situação,
pois do governo nada mais esperam. A escravidão, se viesse a
cair sobre eles, não causaria estranheza, mas naturalmente
iriam lutar contra tudo que lhes pudesse parecer um caminho
para aquela forma de trabalho.
Além dos pobres, a repulsa à nova lei partia também dos
senhores. Acostumados a substituir os seus parentes recrutados
por escravos ou "cabras" da área de seu domínio, ouviam agora
dizer que a lei 2.556 iria impedir que os recrutados fossem
pessoas só de "baixa condição", ouviam dizer que ela igualaria
a todos.
Era muito para os poderosos "senhores de homens e terras".
A atitude deles passa a ser a de uma ostensiva oposição, como
no caso do Tenente-Coronel Luís Paulino, fazendeiro em São
Bento, comarca de Buíque, que contratou o bando de José
Cesário para ajudá-lo a se opor à nova lei, ou como aconteceu
em Panelas, onde o juiz de Direito reclamava não ter
"encontrado por parte dos cidadãos mais prestáveis e com os
quais me hei entendido o menor indício de coadjuvação em
qualquer emergência" (apud Monteiro, 1980:134).
No nosso entender, o ato de quebrar os novos padrões do
sistema métrico decimal, e que dá o nome ao movimento —
"Quebra-quilos" — situa-se na mesma linha de destruição e
incêndio dos arquivos dos municípios, trata-se da
exteriorização de uma revolta contra o governo e seus
representantes.
A revolta do "Quebra-quilos", na verdade, tem suas origens
na crise por que passava a economia nordestina; o problema dos
impostos e a nova lei do recrutamento serviram para acionar a
sedição. A isto acrescentem-se, também, os problemas de ordem
política e religiosa (a oposição liberal ante um governo
conservador e a prisão do Bispo D. Vital) que não só
aproveitaram-se da crise econômica, como também ajudaram a
exaltar os ânimos.
Para se ter uma exata compreensão desta revolta, torna-se
necessário analisar a participação dos que nela atuaram.
Os elementos principais que formaram a maioria dos
revoltosos foram os grandes proprietários de terra e os
indivíduos de "baixa condição", ora denominados "moradores"
ora "proletários".
Além desses dois grupos, dela também participaram os
políticos da oposição, o clero e os oficiais da Guarda
Nacional. Houve participação menor, geralmente em casos
isolados e bem específicos, de marchantes, negociantes,
arrematadores de impostos e inspetores de quarteirão. Podemos
afirmar, portanto, que a sedição teve como seus principais
atores os grandes proprietários de terra, os "proletários", os
políticos da oposição e o clero. Vamos analisar cada caso em
separado.
A participação dos grandes proprietários de terra
caracterizou-se pela ação direta, chefiando a "turba"
descontente, ou, como relata o Comandante das Forças Imperiais
na Paraíba, pela neutralidade comprometedora, quando não era
"indiferença culposa ou uma animação mais culposa ainda".
Dessa forma, temos arrolados como "cabeças da sedição", entre
outros, os fazendeiros Virgínio Horácio de Freitas, senhor do
Engenho Lajes, em Itambé, Francisco Roma, senhor do Engenho
Jatobá, em Goiana e Antônio José Henriques, senhor do Engenho
Serra, em Bonito.
Em oficio datado de 13 de dezembro de 1874, o Delegado de
Policia de Panelas reclamava que os "homens importantes" da
região negaram-lhe auxilio contra os sediciosos dizendo que
estavam "alcançados", não dispondo de meios para reunir o
povo, isto é, estavam endividados.
A participação direta ou a omissão desses cidadãos que,
como diz Henrique Millet, constituem a "primeira garantia da
ordem pública", pode ser explicada a partir da difícil
situação econômica em que se encontravam. A produção de suas
terras — o açúcar e o algodão — sofria, como já dissemos, os
efeitos da perda do mercado internacional e da queda dos
preços, ao mesmo tempo em que a crise financeira restringia o
crédito. Nesta situação extremamente aflitiva, a ponto de
terem de começar a se desfazer, segundo Millet, de parte do
seu capital imobilizado, compreendemos que possuíam motivos
suficientes para rebelarem-se ou para ficarem indiferentes à
sorte do governo que não olhava por eles.
Quanto aos "proletários", foram eles que formaram a
"massa" dos descontentes. Foram eles que, em grupos que
variavam de 60 a 600, invadiram as vilas e destruíram os pesos
e medidas e os arquivos. Nessa categoria, de forma abrangente,
podemos agrupar os "moradores", os "proletários" e os "mer-
cadores das feiras".
Foram indiciados como "cabeças" do grupo que atacou a
povoação de Vertentes, Umbelino de tal, "morador na Borba",
Jorge Marques Defensor do Império, "morador na Tapada" e
Manuel Francisco da Silva, "morador no Estreito". Em Panelas,
comunicava o Delegado de Polícia a 13 de dezembro de 1874 que
Leôncio, "morador em Camaratuba" andava "falando contra os
impostos". Em todos os pontos de revolta, a "massa" dos
sublevados era formada pelos "mercadores da feira e por grande
número de proletários" que se identificavam pela "baixa
condição" ou, como disse o Comandante do Batalhão de Panelas,
são pessoas que "não têm o que comer".
Fica muito difícil distinguir quem, exclusivamente,
pertence a uma destas 3 categorias pois um "morador" não deixa
de ser um "proletário" e ambos podem ser um "mercador de
feira".
Entenda-se por "morador" o indivíduo a quem é permitido
morar nas terras de um grande proprietário, com direito a ter
sua "roça" e, eventualmente, quando o senhor necessita, presta
serviços em troca de remuneração. Quanto ao termo
"proletário", de acordo com os relatórios da época, são os que
estão à procura de trabalho, conseguem ocupação normalmente na
época do plantio e colheita recebendo por jornada, isto é, são
jornaleiros. Por conseguinte, um jornaleiro pode ser aquele
que não tem acesso à terra de forma alguma, mas também pode
ser o pequeno proprietário, um pequeno arrendatário, foreiro
ou "morador" que procura no trabalho assalariado a
complementação da sua renda para poder adquirir aqueles
objetos que não é capaz de produzir. Dependem, como diz
Henrique Millet, "senão para a subsistência diária, que em
grande parte tiram diretamente, do solo, rios e matas, pelo
menos para todas as mais precisões da vida civilizada, dos
salários que lhes pagam os agricultores" (apud Monteiro, 1980:
136).
De qualquer forma, tendo acesso à terra ou não, estes
trabalhadores eventuais podem participar da feira do arraial
ou vila próximos, vendendo produtos agrícolas que lhes
sobraram de sua diminuta produção ou artesanato em madeira,
couro, barro e palha que preparam nas horas de folga. "Os
produtos são vendidos no mercado para produzir uma margem
extra de 'entradas' com as quais compram bens que não produzem
domesticamente" (Wolf, 1972:10).
Assim sendo, estas pessoas que as autoridades locais
designam como de "baixa condição", "ignorantes e cheias de
preconceitos", são as que vivem em condições precaríssimas em
épocas normais e em situação extremamente difícil em épocas de
crise, como essa por que passava a economia nordestina em
1874-75.
Em 1874, não só as possibilidades de trabalho tornaram-se
muito limitadas, devido à crise da economia, como também uma
série de leis novas havia sido criada, como a que mudava o
padrão de pesos e medidas, a que estabelecia novas regras de
recrutamento para o exército e armada, entre outras, e espe-
cialmente as que criavam e aumentavam impostos provinciais e
municipais, todas parecendo uma forma de opressão do Estado. É
bem sintomático que os movimentos de rebeldia tivessem início
por ocasião das feiras, no momento em que se dava início à co-
brança dos impostos. Estas imposições, novas ou aumentadas,
provocavam irritação pois constituíam, por menor que fosse,
uma sobrecarga aos já tão sacrificados trabalhadores e
pequenos proprietários rurais.
Não se tratava, portanto, da simples oposição de
"população ignorante" às leis que não sabiam compreender;
tratava-se, isto sim, da explosão de revolta de uma população
pobre, vivendo em condições subumanas, reagindo de forma
aparentemente irracional contra um estado de coisas cada vez
pior e sem perspectivas aparentes de melhoria.
Quando os senhores de engenho cruzam os braços e deixam a
"turba" livre para agir, ou usam-na como forma de pressão
contra as autoridades constituídas, visando a fazê-las olhar
para a situação, o que se vê são ações isoladas de grupos de
"proletários" que resolvem "acertar contas muito antigas em
suas aldeias ou regiões" (Wolf, 1972:6-8).
Ao falarmos em "acertar contas", podemos ser levados a
pensar em luta entre "proletários" e "senhores", mas acontece
que os trabalhadores rurais, neste momento, vêem os grandes
proprietários não como seus exploradores, mas como indivíduos
que sofrem os efeitos do mesmo mal. De certa forma, com eles
ficam solidários, ou melhor passam a identificar o "inimigo"
real contra o qual devem reagir de imediato: o Estado.
O relacionamento entre grandes proprietários e seus
jornaleiros não é uma simples troca de trabalho por salário.
Além do compadrio que o transforma numa ligação pessoal, com
traços de afetividade, a "Casa Grande" realiza uma enorme obra
de assistência social, moral e jurídica, de que resulta a per-
missão de morar gratuitamente nas terras do senhor, além de
dar conselhos e proteção. É evidente que este relacionamento
não deve ser entendido no seu sentido puro, pois existiram
diferenças, de acordo com a evolução histórica, com as
condições econômicas e com as necessidades e nível de
entendimento dos grupos envolvidos. Assim, as secas, como a de
1869, que trazem do Sertão para o Agreste ou Mata os vaqueiros
foragidos, transformando-os em lavradores, dão como resultado,
de certa forma, a "injeção" de idéias de altivez e reação no
tradicional ambiente rural.
Outro ponto que não devemos esquecer é o trabalho de
conscientização levado a efeito por grupos políticos e
religiosos que tiveram sua primeira expressão na "Praieira" e
na revolta de 1851-52; nesses movimentos, os trabalhadores
rurais chegaram mesmo a ignorar os laços afetivos e de
submissão, atacando as próprias fazendas, como demonstramos
anteriormente.
As características da crise econômica e as medidas
administrativas governamentais serviram para colocar, lado a
lado, estes dois grupos rurais — os trabalhadores e os grandes
proprietários — contra o Estado que nada faz em benefício
deles; trata-se de uma luta do "campo" contra a "cidade", ou
melhor, como definiu Irineu Jofily, contemporâneo ao acon-
tecimento, uma revolta contra o "governo que chamavam de
doutores ou bacharéis", numa clara referência às diferenças de
visões e ao divórcio entre a sociedade rural e a burocracia
governamental (Jofily, 1892:188).
O clero participou da revolta do "Quebra-quilos" e foi um
dos mais punidos. Os padres foram apontados como instigadores;
alguns, como o vigário Calisto Correia da Nóbrega, de Campina
Grande, na Paraíba, e o Padre Manuel de Jesus, de Granito, em
Pernambuco, foram acusados de serem "cabeças" de sedição;
outros, como os jesuítas estrangeiros Mário Arcioni, João
Batista Royberti, Felipe Sottovia, Luis Cappuci, Vicente
Mazzi, João Berti, Antônio Aragnetti e Onoratti, foram
expulsos do Império.
Os governos imperial e provincial ligaram a questão dos
bispos e a atuação do clero ao "Quebra-quilos". A atitude dos
padres tem uma característica toda especial e deve ser vista
sob ângulos diversos. Um que merece destaque se refere à
conjugação de duas crises, uma econômica e outra político-
religiosa que tem seu desdobramento com a agitação "popular",
desenrolada na mesma época.
Se acreditarmos nos relatórios oficiais, o problema
religioso prepondera sobre o econômico e, neste caso, os
padres jesuítas tiveram papel destacado na rebelião. Mas não
devemos esquecer que, atribuindo maior importância à questão
da prisão dos bispos, desviavam-se as atenções do problema
mais grave, que era a difícil situação da lavoura nordestina.
O governo, assim, escondia seus fracassos ante a crise
econômica e, ao culpar o povo, liderado pelos padres jesuítas,
pela rebelião, tirava de si próprio a responsabilidade,
deixando-a para a idéia vaga de "povo ignorante", ao mesmo
tempo em que tinha nos "padres estrangeiros" os necessários
elementos para "sacrificar" e justificar a revolta. Ao
transformar o "Quebra-quilos" num movimento de fundo religioso
e de prova da interferência estrangeira (da Igreja Romana) nos
negócios internos do país, o governo adquiria o papel de
representante da independência e nacionalidade ofendidas,
pretendendo unir em torno de si o maior número de defensores.
Distorciam-se os fatos para beneficiar politicamente o
gabinete conservador, que seis meses depois (junho de 1875)
não resistiria e seria mudado.
O papel desempenhado pelos padres jesuítas é outro ponto
delicado. Usaram o púlpito, escreveram artigos nos jornais e
falaram, nas "missões", contra o Estado. Como funcionários
públicos e religiosos, ao mesmo tempo, estavam em situação
difícil: defendendo o Bispo D. Vital, colocavam-se contra o
governo imperial a quem deviam obediência; não ficando a seu
lado, colocar-se-iam numa posição de rebeldia ante seu pastor.
Podemos dizer que ficaram do lado de sua consciência e por
isso incorreram nas "iras" do Estado. Mas, fica uma
interrogação: até que ponto esta simples disputa de autoridade
— entre a Igreja e o governo imperial — seria motivo para
levantar o povo em revolta? Se não houvesse a crise econômica,
com as implicações já vistas, os "matutos" iriam pegar em
armas contra o governo, somente devido à prisão de D. Vital?
Na nossa opinião, o problema era bem mais complexo.
Em ofício de 25 de dezembro de 1874, o Juiz Municipal de
Granito (Pernambuco) acusava o Padre Manuel de Jesus, da
paróquia local, de incutir "no espírito do povo rude e
ignorante idéias perigosas e subversivas da ordem social".
Referindo-se ao mesmo vigário, diz o comandante do destaca-
mento policial de Granito que "não satisfeito com sua
jesuítica doutrina, na Igreja, domingo, 19 do corrente
(dezembro), NA FEIRA DESTA VILA, PROFERIU PALAVRAS INSTIGANTES
AO POVO PARA NÃO SE SUJEITAR A IMPOSIÇÕES COM REFERÊNCIA A
ATACAR GÊNEROS ANTES DA HORA MARCADA PELAS POSTURAS DA
RESPECTIVA CÂMARA". Este era um ponto de suma relevância
porque a cobrança de impostos aos feirantes levara à adoção de
uma norma pela qual as feiras só teriam início com a chegada
do presidente da Câmara Municipal ou seu representante,
acompanhado pelo coletor de impostos. Ora, se cada um, à
medida que fosse chegando, "atacasse" os seus artigos, isto é,
começasse a vendê-los, o fisco ficaria prejudicado na
cobrança.
Em carta apreendida pela polícia, o professor público de
Vertentes, Xavier Ribeiro, escrevia ao vigário de São Lourenço
da Mata (Pernambuco) dando conta de seu trabalho de
conscientização dos "matutos": "Estes povos, como já tenho
dito, detestam o maçonismo, mas detestam-no por um sentimento
vago; não é porque eles saibam o que é a maçonaria, nem seus
modos, fins etc, etc. Há outra pessoa, como este seu criado,
que, arrostando as iras da energúmena, não cessa de instruir
os matutos convenientemente, etc, etc. Eu sei que os cachorros
estão danados comigo, assim como parece-me que em certas
localidades (do mato, bem entendido) eles não ladram" (apud
Monteiro, 1980:140).
A atuação dos padres e seus agentes, pelo que a
documentação deixa perceber, foi de conscientização da
população mais pobre, alertando-a para as profundas injustiças
sociais de que era alvo, agora aprofundadas com as instigações
contra o Estado "algoz de bispo". Pode-se dizer também que, na
luta contra o Estado que se mostrava "inimigo" da Igreja,
postando-se ao lado da maçonaria, a arregimentação do povo
levou à radicalização das prédicas dos religiosos a ponto de,
ao mesmo tempo que criticavam uma situação política,
começassem a levantar problemas sociais.
Aqui, o ponto de convergência. A crise econômica e a
religiosa fornecem, reciprocamente, "razões" para a revolta.
No caso dos padres jesuítas, podemos dizer que tiveram na
"crise da lavoura" um aliado de suma importância, mas daí
atribuir ao movimento um caráter preponderantemente religioso
é supervalorizar o confronto entre o Bispo D. Vital e o
Gabinete Rio Branco, é esquecer o sofrimento daqueles
"proletários", atingidos mais diretamente pela crise
econômica.
A revolta de 1874-75 foi o renascer do "espírito liberal-
radical" que já se manifestara em 1817, 1824 e 1848. Não foi
como na revolta de 1851-52 onde a participação dos grupos
político-radicais, se houve, foi marcada pela timidez. Agora,
passados quase trinta anos, ouviam-se os mesmos gritos de luta
pela liberdade:

"O Leão do Norte será sempre o mesmo.


Sim, liberal paraibano, não terás glórias
nem martírios que não sejam também nossos.
Patrícios de Nunes Machado, abracemos os patrícios de
José Peregrino!
A liberdade é o anel de ouro das núpcias dos patriotas!
Firmes que Deus é pela liberdade!

Um pernambucano."

A fermentação política em todo o Império estava por esta


época marcada pela contestação de fato ao regime. Desde 1868,
quando os liberais foram "despejados" do governo, com a queda
de Zacarias, a situação, a cada ano, tornava-se mais tensa;
havia-se passado das críticas ao poder moderador, responsável
por aquela "derrubada", ao manifesto republicano de 1870 que
pregava abertamente a necessidade de se extinguir a monarquia.
Na revolta de 1874-75, o que se via era o desembaraço dos
radicais que, de certa forma, estava de acordo com o que se
passava em nível nacional.
A ação política foi feita em vários níveis.
A imprensa liberal criticou severamente a situação.
Aproveitando-se do momento, tomava partido contra tudo que
emanava do governo conservador, desde as novas leis até o
problema da prisão do Bispo D. Vital. Tudo era motivo para
atacar o gabinete e a administração provincial. Em ofício
datado de 31 de dezembro de 1874, queixava-se o Presidente
Lucena:
"O partido que se diz liberal, em publicações diárias e
avulsas, difundia doutrinas subversivas, com alteração da
verdade e deturpação dos fatos, na linguagem a mais virulenta
e inconveniente (apud Monteiro, 1980:141-142).

Enviaram-se agentes às localidades com o propósito de


orientar a resistência. Os radicais fundamentaram sua
propaganda nos pontos que evidentemente mais sensibilizariam
os setores descontentes. Colocaram-se contra o governo na
questão dos bispos, chamando-o de maçom e, como disse o Presi-
dente de Pernambuco, "especulando com o sentimento religioso",
procurando atrair o clero e sensibilizar a população católica.
Anunciaram que a nova lei do recrutamento tinha por objetivo
escravizar os "homens pobres". Este argumento havia sido deci-
sivo na sedição de 1851-52 e como as circunstâncias o
permitiam, nada melhor do que usá-lo outra vez. Outro ponto
também muito utilizado foi a oposição às leis relativas aos
impostos. Pregaram a resistência ao pagamento numa
argumentação semelhante à que havia sido empregada, com êxito,
na revolta de 1817.
Os ataques variavam desde pontos evidentemente corretos às
mentiras mais torpes, como a futura criação de impostos para
"estender roupa para secar", 100 réis por cada galinha que
possuíssem, dois mil-réis para usar óleo no cabelo, etc. Mas
todos os ataques terminavam sempre com o mesmo refrão de que
"era chegado o tempo de libertar-se". Não ficaram ao nível dos
discursos e conversas "ao pé do ouvido"; imprimiram-se
manifestos que foram espalhados pela Zona da Mata e Agreste.
Fizeram, como disse o Juiz de Direito de Tacaratu, um
verdadeiro "chuveiro de manifestos".
Pudemos ler três exemplares que foram apreendidos na
ocasião (Monteiro, 1980:165-173).
O primeiro transcreve um manifesto supostamente redigido
por "um paraibano" onde, depois de historiar a ajuda que a
Paraíba prestou a Pernambuco nas revoltas de 1817 a 1848,
reclama que agora, quando a Paraíba precisa de ajuda, o que
Pernambuco fez foi enviar soldados para sufocar o movimento
ali iniciado. De fato, atendendo ao pedido do Presidente da
Paraíba, o Presidente Henrique Pereira de Lucena, de
Pernambuco, enviou uma companhia de soldados para auxiliá-lo
na repressão.
O manifesto aos pernambucanos lembra ainda algumas das
atitudes de Lucena: reduziu o povo à miséria; "matou os brios
de teus filhos", transformando-os em algoz dos paraibanos;
chamou-os de "canalha" no parlamento; especulou com os cadá-
veres, "concedendo privilégios de carros fúnebres"; mandou
"espaldeirar" o povo, tingindo de sangue as calçadas das ruas
e, além de fazê-lo passar por todas essas humilhações, reduziu
a província à condição de "feitoria". Em resposta, "um
pernambucano" fala da identidade entre as duas populações e
que os brios dos pernambucanos não devem deixar o "rubor"
subir à face, nem "estremecer os manes de Nunes Machado".
O segundo manifesto, sob título POVO!!!, protesta contra
os "impostos pesados que absorvem todo o teu trabalho, te
reduzem à miséria e matam à fome a tua mulher e os teus
filhos". E pergunta:

"Não tens um cacete, uma faca, um bacamarte? Já estás tão


fraco que não possas com uma garrafa de gás, para te vingares
de quem te rouba e te injuria?"
E numa direta alusão a Lucena, que participou da revolta
de 1848-49 e agora defendia os do "partido da ordem": "Ao
lampião com os que ontem diziam que devias fazer a revolução e
hoje te injuriam e te ridicularizam, porque foram comprados
pelo governo!..."
Finaliza, conclamando à luta armada, conclamando à
revolução:

"É preciso um dilúvio de sangue para que desapareçam


eternamente desta terra os ladrões e espaldeiradores. Une-te e
serás invencível!"

O terceiro, sob o título CIDADÃO GUARDAS NACIONAIS DO


RECIFE, opõe-se ao aquartelamento determinado por Lucena,
objetivando formar batalhões para sufocar a sedição:

"Isto é, depois de haver roubado o pão, o bacalhau e a


carne seca do povo, tira os pais de família dos bancos de
trabalho, acaba a obra de destruição do povo pela miséria e
pela fome!"

E sugere a resistência. Pede que os cidadãos não se


apresentem pois devem deixar "correr os acontecimentos".
Lembra os "mártires da liberdade pernambucana", citando:

Nunes Machado — Joaquim Nunes Machado, morto na revolta de


1848;
Caneca — Frei Joaquim do Amor Divino, participante das
revoltas de 1817 e 1824 e executado a 13 de janeiro de
1825;
Roma — Padre José Inácio de Abreu Lima, executado a 29 de
março de 1817;
Miguelinho — Padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro,
executado a 12 de junho de 1817;
Teotônio — Domingos Teotônio Jorge Pessoa, executado a 10
de julho de 1818;
José Peregrino — José Peregrino Xavier de Carvalho, herói
paraibano, executado a 21 de agosto de 1817;
Pedro Ivo — um dos líderes da Praieira (1848-49),
assassinado em 1852 depois de "fugir" da fortaleza em que
se encontrava preso no Rio de Janeiro.

Finaliza, conclamando os pernambucanos a honrar essa


"sagrada memória" e tranqüilizar "esses adoráveis manes".
A repressão foi considerada pela historiografia como
extremamente violenta. Podemos distinguir nela duas etapas
diferentes: numa primeira, a sugestão do emprego de "meios
suasórios e brandos", com a demonstração da verdade.
Nesta fase, assistimos às tentativas de arregimentar a
população local, nas próprias vilas atacadas, para a defesa; o
apelo aos senhores de engenho para colaborarem com o Governo
arregimentando seus "moradores" e o envio de missionários
capuchinhos para exortá-los a não prosseguirem no movimento.
Os resultados não foram satisfatórios. Com a população das
vilas não puderam contar de fato; de maneira geral, as
populações apoiaram os revoltosos ou mantiveram uma
neutralidade "comprometedora". Os senhores de engenho, como
vimos, alegavam estar sem condições de "reunir povo"; alguns
prestaram auxílio, como foi o caso do Coronel Comandante
Superior da Guarda Nacional de Pau d'Alho, Luís de Albuquerque
Maranhão, do Barão de Buíque, Francisco Alves Cavalcanti
Camboim, do Barão de Tracunhaém, João Cavalcanti Maurício
Wanderley, que acorreram com "seus moradores", mas este apoio
foi, de fato, isolado, não caracterizando uma atitude
generalizada dos senhores de engenho que preferiram omitir-se
quando não participavam.
Os padres capuchinhos, como sempre, colaboraram,
realizando suas "santas missões" e indo ao encontro dos
revoltosos para tentar demovê-los dos seus intentos. Entre
outros, colaboraram o Frei Venâncio, que atuou na região de
Itambé e cuja participação mereceu um elogio do Ministro da
Justiça, no relatório de 01/05/1875, o Frei José que atuou na
região do Bom Conselho e Frei Fidélis Maria Fogmano que agiu
na região de Panelas. Mas também esta atuação não deu os
resultados esperados, pois as participações que vinham do
interior freqüentemente noticiavam que suas exortações não
eram atendidas.
Numa segunda etapa, passa-se ao emprego de medidas
"enérgicas" com a "exemplar punição dos autores e coniventes".
O Presidente da Paraíba solicita auxílio de tropas ao
Presidente de Pernambuco, no que é atendido; o mesmo faz o
Presidente do Rio Grande do Norte ao do Ceará. Em dezembro de
1874, chegam finalmente à Paraíba as forças enviadas pelo
Governo imperial. Tratava-se de um contingente de 750 praças e
47 oficiais sob o comando do Coronel, depois General,
Severiano da Fonseca que, juntamente com a força da polícia
local da província, formou um efetivo de 1203 praças. A
Província de Pernambuco contava apenas com uma força policial
de 1400 praças, espalhados pelas várias comarcas já que a
Guarda Nacional havia sido desmobilizada desde setembro do ano
anterior.
A ação das tropas foi de verdadeira "selvageria, aplicada
cegamente contra culpados ou inocentes". José Américo de
Almeida, no seu livro A Paraíba e seus Problemas, transcreve
depoimento do Deputado João Florentino em 1879, onde se pode
ter a idéia do tipo de repressão:

"Fizeram-se prisões em massa, velhos e moços, solteiros,


casados e viúvos, todos acorrentados e alguns metidos em
coletes de couro, eram remetidos para a capital. Alguns
desses infelizes, cruelmente comprimidos e quase
asfixiados, caíam sem sentidos pelas estradas, deitando
sangue pela boca" (Almeida, J. Américo, 1923: 219).

O "colete de couro", segundo consta, fora inventado pelo


Capitão Longuinho, comandante de uma das colunas que seguiu
para o interior, e consistia em envolver o tórax do indivíduo
em couro cru, molhado, que, ao secar, comprimia o peito "a
ponto de provocar vômito de sangue". "Os que sobreviveram a
esse suplício, diante do qual se regalava o Capitão Longuinho,
não escaparam da tuberculose ou das lesões cardíacas que, cedo
ou tarde, os levariam ao túmulo" (Almeida, Horácio, 1958:145).
O clamor contra a "selvageria" da repressão levou o
Coronel Severiano a enviar um ofício circular aos oficiais
comandantes dos destacamentos, determinando que se atenuasse o
rigor das prisões e impedissem roubos e atos de violência por
parte dos soldados. A esse ofício responde o Capitão Longuinho
dizendo que tem usado cordas e correias de couro para prender
os "criminosos e sediciosos" por não ter algemas, mas que isto
"não os magoa tanto".
Durante muitos anos uma modinha popular, cantada no
interior nordestino falava da triste sorte dos "quebra-
quilos":

"Sou quebra-quilos encoletado em couro


Por vil desdouro me trouxe aqui;
A bofetada minha face mancha
À corda, à prancha me afligir senti

Na cans modesta a tesoura cega...


De minha enxerga só me resta o pó;
De esposa e filhos violentam rudes
As sãs virtudes, seu tesouro só.

E ao quebra-quilo desonrado, louco


É tudo pouco quanto a infâmia faz;
Se aqui contempla da família o roubo,
Ali, no dobro, o flagelam mais.

Tiranos vedes que miséria tanta,


Nem os quebranta? meu pungir, meus ais;
Martírios, ultrajes de negror fazei-me
Porém dizei-me se também sois pais"

(Andrade, 1946:203).
A "Guerra das mulheres" (1875-76)

Evidentemente que há um pouco de exagero no título, ao


chamarmos o movimento de "guerra das mulheres". Na verdade, os
homens ali também se achavam, mas deve-se ressaltar a
participação preponderante e decidida das mulheres que, pela
primeira vez na história do Brasil, atuaram, coletivamente, em
um movimento insurrecional.
A revolta decorre da aplicação da Lei nº 2 556, de 26 de
setembro de 1874, que alterou a forma do recrutamento de
soldados para o Exército e Armada.
Aliás, o recrutamento que sempre fora mal visto pela
população, gerava conflitos sérios, e, no que tange à lei de
1874, esta provocou não reclamações ou conflitos isolados, mas
um movimento coletivo que deu-se, simultaneamente, se bem que
em dias e meses diferentes (entre agosto de 1875 e julho de
1876) em várias províncias do Império.
Mas, para se entender melhor a Lei 2556, acreditamos ser
necessária uma síntese da situação do alistamento militar nos
anos anteriores.
Até 1874, o recrutamento era feito por uma pessoa
designada pelo Presidente da Província (conforme Decreto 73,
de 06.04.1841) para recrutar "todos os homens brancos e
solteiros e ainda pardos libertos de idade de 18 a 35 anos"
respeitando-se as isenções da Portaria Real de 10 de julho de
1822. A população pobre era a que mais sofria os efeitos do
recrutamento, pois a Lei nº 45, de 29.08.1837, permitiu que os
recrutados pudessem dar substitutos ou serem dispensados
mediante o pagamento de quatrocentos mil-réis, numa época em
que o salário de um artesão especializado não ultrapassava os
trinta mil-réis mensais.
Esta forma de recrutamento permitia muitos abusos e
transformou-se numa arma de perseguição política, pois
afastava da região indivíduos indesejáveis aos grandes
proprietários, já que estes tinham influência na indicação dos
recrutadores. Transformou-se, portanto, o recrutamento em
verdadeira caçada. A todo instante um elemento podia ser
recrutado e preso, e, caso resistisse, ficaria, a partir de
então, sujeito à severa disciplina militar que incluía
castigos corporais. Era, por conseguinte, uma ameaça constante
que pesava sobre os habitantes. Pelo horror que inspirava,
pelos conflitos que gerou e por retirar homens válidos de
pobres famílias de lavradores, esta lei ficou conhecida como
"imposto de sangue".
Para evitar os abusos do recrutamento constante, baixou-se
o Decreto nº 1089, de 14 de dezembro de 1852, pelo qual se
estabeleciam cotas anuais para cada província. Ou seja, cada
uma forneceria um contingente anualmente, conforme número
determinado por lei. Mas cada recruta ou voluntário que
conseguisse dava ao recrutador o direito de receber 5$,
importância que foi alterada pelo Decreto 2171, de 1º de maio
de 1858, para 10$ por recruta apurado e 20$ por voluntário. O
recrutamento virou negócio.
Apesar de tudo, os abusos e ilegalidades continuaram. Os
conflitos se sucediam. Após a guerra contra o Paraguai, o
assunto volta a ser discutido e, em 1874, aprovava-se nova
lei, que tomou o número 2556, em que se instituíam juntas de
alistamento e o sorteio. A junta era formada pelo juiz de Paz,
a autoridade policial mais graduada do local e o pároco. A lei
deveria, no primeiro ano de vigência, arrolar todos os
solteiros e casados, que tivessem entre 19 e 30 anos de idade.
O sorteio seria feito em data posterior, a ser designada.
As juntas paroquiais se organizaram, expediram as
proclamas convocando todos os homens válidos naquela faixa
etária e começaram os trabalhos em 1875, utilizando geralmente
as instalações das igrejas locais.
Os boatos correram dando conta de que todos os homens
dessa idade seriam efetivamente recrutados. Outros diziam que
era uma nova lei de escravidão para os trabalhadores rurais.
Como sempre, os políticos radicais dela se serviram para
atacar o gabinete conservador do Visconde do Rio Branco,
acirrando ainda mais os ânimos. Os grandes proprietários te-
meram perder o controle desta "arma legal" que tanto
utilizavam. As mulheres temeram perder seus maridos e filhos.
O ambiente já estava propício para mais uma insubordinação.
Instaladas as juntas e tendo-se iniciado os trabalhos,
grupos de mulheres, em sua maioria, invadem as igrejas, rasgam
os editais e exemplares da lei, destroem móveis e utensílios e
partem ameaçando voltar a qualquer momento. No Ceará, ocorrem
distúrbios em Acarape, Limoeiro, Quixadá, Boa Viagem, Baturité
e Saboeiro. No Rio Grande do Norte, conflitos em Mossoró, São
José de Mipibu e Canguaretama. Na Paraíba, houve oposição nos
municípios de Alagoa Grande, Alagoa Nova, Ingá, Campina Grande
e Pilar. Em Alagoas, são atingidas as comarcas de Palmeira dos
índios e Penedo e na Bahia, a comarca de Camamu.
Mas, conforme assinala Câmara Cascudo, de todos os
conflitos o que chamou mais atenção foi o que ocorreu em
Mossoró. O cabeça do movimento foi uma mulher chamada Ana
Floriano. Ela conseguiu reunir 300 mulheres. "O cortejo
rebelde partiu da atual rua João Urbano indo até à, hoje,
praça Vigário Antônio Joaquim Rodrigues. Aí foram rasgados os
editais pregados na porta da igreja e despedaçados vários
livros. Dessa praça, dirigiram-se as amotinadas à praça da
Liberdade, passando pela, hoje, rua Trinta de Setembro.
Naquele logradouro público, achava-se disposto um corpo de
polícia, ali posto com o fim de dominar a sedição. Aos gritos
de avança, logo ficaram confundidos, no tumulto da luta,
soldados e mulheres" (Cascudo, 1955:79-80). A interferência de
pessoas importantes evitou que o conflito tivesse maiores
conseqüências.
Mesmo assim, a lei continuou em vigor. Periodicamente, ao
se instalar a Junta de Recrutamento, em várias regiões do
país, grupos se organizavam e partiam para a agressão. Nos
anos finais do Império, os relatórios ainda dão notícias, se
bem que esparsas, desses atentados.
AS REVOLTAS URBANAS

Introdução

Algumas cidades brasileiras foram, durante longo tempo,


focos de movimentos sediciosos, principalmente as capitais que
se encontravam mais livres do "mandonismo" dos grandes
proprietários. Para esta situação vários fatores contribuíram,
tais como: maior heterogeneidade da sociedade local; a
situação de refúgio dos que se "libertavam" da autoridade e/ou
da exploração dos coronéis; os contatos mais freqüentes com os
"progressos" e as "novas idéias" que grassavam na Europa e sua
posição intermediária entre a região produtora "colonial" e o
grande centro consumidor europeu, sofrendo, portanto, os
reflexos das crises de uma ou outra, o que geraria, como
gerou, graves descontentamentos sociais.
Neste capítulo, nos restringiremos apenas aos movimentos
que grassaram em Salvador, capital da província da Bahia, mas
o leitor deve compreender que tais movimentos fazem parte de
um amplo leque de agitações sociais que abalaram várias
cidades do Nordeste brasileiro, entre as quais citamos Recife,
Natal, Fortaleza, Mossoró, Macau, Mucuripe, São Luís, Caxias,
Alcântara, etc. Todas estas revoltas têm motivações próprias,
frutos de situações específicas locais, mas, de qualquer
forma, inserem-se dentro de um contexto mais amplo que é a
crise regional. Expressam, em nível urbano, as contradições da
estrutura econômica regional.
As cenas são semelhantes. Repentinamente, por motivos
aparentemente simples e variados, a população irrompe pelas
ruas, depredando casas de comércio, ameaçando edifícios
públicos e entrando em luta com as forças policiais. Gritam
contra a "carestia", saqueiam e, muitas vezes, incendeiam os
depósitos dos grandes atacadistas e monopolistas do
fornecimento dos gêneros alimentícios. Ao brado de "mata
marinheiro", voltam-se contra os portugueses, geralmente
comerciantes, a quem acusavam de responsáveis pela situação.
Em excelente trabalho publicado em 1978, Kátia Matoso
estuda a cidade de Salvador, sua população e as condições de
seu mercado, abastecimento, preços e salários no século XIX.
Caracteriza a maioria da população da cidade como vivendo em
condições precárias e ameaçada de indigência e, portanto,
incapaz de constituir estoques dos gêneros de primeira
necessidade — carne verde, farinha de mandioca, feijão e
arroz. Por outro lado, quanto ao abastecimento, apresenta
quatro pontos que dificultavam o fornecimento e encareciam os
preços: o primeiro, ligado à produção das regiões próximas que
não era suficiente para atender à demanda citadina, obrigando-
a a importar de regiões distantes a farinha (do Paraná e Rio
Grande do Norte), arroz (do Maranhão), feijão (de Portugal e
de regiões brasileiras) e carne (de regiões situadas a
centenas de quilômetros); o segundo, ligado à precariedade dos
meios de transporte e das vias de comunicação; o terceiro, à
ambivalência da administração que ora liberava os preços, ora
taxava-os; o quarto, ao fato de a cidade, além de ser um
centro importador-exportador, ser também distribuidora de
gêneros alimentícios para todo o Nordeste brasileiro, com base
em uma estrutura monopolista e açambarcadora.

"Com efeito, bastava que uma necessidade se tornasse


premente em alguma área que se achava sob o controle dos
comerciantes da Bahia, para que a população sofresse na
carne as conseqüências" (Matoso, 1978:258).

Tomando por base o salário de um pedreiro (em torno dos


30$000 mensais na década de 60) e as variações dos preços dos
três artigos básicos (farinha, feijão e carne verde), Kátia
Matoso estabelece as percentagens do salário necessárias para
adquiri-los.

Ano Percentagem
1845 41,36%
1854 47,27%
1858 58,47%
1866 44,89%
1873 35,93%
1878 58,77%
1885 41,10%
(Matoso, 1978: 369-371)

Não é simples coincidência que as três mais sérias


revoltas em Salvador tenham ocorrido, justamente, nos anos em
que estas percentagens ficaram mais elevadas: 1854, 1858,
1878, isto é, nos anos em que foi necessário utilizar uma
parte maior do salário para adquirir os alimentos. Deve-se
levar em conta, também, os aumentos que ocorreram em outros
itens, como moradia, vestuário, etc, tornando difícil a vida
da população soteropolitana.
Tomando por base os preços unitários de dois produtos mais
consumidos, chegamos também a conclusões semelhantes:
Ano Farinha Carne
(1 LITRO) verde(Kg)

1845 $ 30,40 $ 217,10


1854 $ 50,71 $ 221,00 +
1858 $ 101,94 $ 459,42 +
1866 $ 71,94 $ 335,38
1873 $ 86,61 $ 487,71
1878 $ 103,38 $ 480,00 +
1885 $ 77,34 $ 447,91
(Matoso, 1978: 369-371)

Este é o pano de fundo das revoltas que se verificaram nas


cidades nordestinas, de uma maneira geral, neste período. A
população, em que pese outras variáveis que entraram no
acirramento dos ânimos, revoltava-se contra uma situação que
considerava insustentável — a alta do custo de vida, a depre-
ciação de suas condições de vida — mas que, além de ser um
problema conjuntural, refletia as contradições estruturais
daquela região.
Em resumo, podemos citar os cinco grandes problemas que
estão por trás das revoltas:

a) queda dos preços dos artigos de exportação e perda de


mercados tradicionais no exterior, gerando redução na
capacidade de acumulação de capital local;
b) redução das áreas destinadas à produção de gêneros
alimentícios para o consumo local;
c) precariedade do abastecimento dos centros urbanos;
d) monopolização dos principais gêneros de consumo
popular, provocando elevação artificial dos preços;
e) problemas climáticos que prejudicavam a produção e o
abastecimento.

As revoltas, devido às situações em que ocorriam,


receberam cognomes interessantes. Assim é que a de 1854 ficou
conhecida como a do "pano do Teatro São João", a de 1858 como
"carne sem osso, farinha sem caroço", somente a de 1878 não
recebeu alcunha específica.
Trataremos, a seguir, dessas três revoltas.

"Pano do Teatro São João" (1854)

No dia 23 de setembro de 1854, a partir de um incidente


verificado na inauguração do Teatro São João, ocorrem, pelas
ruas da cidade, choques entre a população e a força pública,
com muitos feridos.
O quadro no qual se insere esta revolta tem dois
componentes básicos. O primeiro é o alto custo de vida que
alimenta um forte sentimento antilusitano, pois os portugueses
eram os "senhores" do comércio atacadista, bem como do chamado
de "retalho". Desde 1848, quando foi apresentada, na
Assembléia Geral do Império, proposta de nacionalização do
comércio a retalho, que tal oposição aos portugueses vinha
sendo sustentada por muitos jornais, contribuindo para
aumentar o sentimento "antimarinheiro".
O segundo componente refere-se à oposição liberal ao
governo conservador de João Maurício Wanderley, presidente da
província. A oposição era encabeçada pelo jornal liberal O
Século, dirigido por João Barbosa de Oliveira, pai de Rui
Barbosa.
A imprensa local juntava os dois elementos em seus
ataques. Apresentava os conservadores e os comerciantes
portugueses como que mancomunados, atribuindo à situação
conservadora interesses em não frear a alta dos preços (Pinho,
1937:246).
Na fala apresentada à Assembléia provincial, em 1º de
março de 1855, Cotegipe queixava-se da imprensa. Dizia que nos
"países cultos" ela guia a opinião, mas aqui constitui-se no
"pelourinho das reputações e o algoz do sacrário das
famílias". E concluía:

"Se houvesse um inimigo das garantias sociais, acharia por


certo seus melhores cúmplices nos incansáveis apóstolos dessa
licença desmoralizadora que se arreia com o manto da
liberdade" (Wanderley, 1855:4).

O estopim seria a pintura encomendada pelo governo para o


pano de boca do Teatro. Por ordem de Wanderley, fora concluída
a reforma do prédio e aberta a concorrência para a pintura do
pano. Foi vitorioso o alemão Bauch que, conforme estabelecia o
edital, pintou uma cena da história do Brasil. A cena era a
chegada de Tomé de Souza à Bahia; nela figuravam os índios,
depondo os arcos, admirados e prostrados ante o governador que
empunhava a bandeira portuguesa. A oposição viu nisto mais uma
prova para seus ataques e recrudesceu a campanha contra o
governo e "seus aliados" portugueses.
Na véspera do incidente, a 22.09.1854, Cotegipe escrevia
ao Presidente do Conselho, o Marquês de Paraná:

"Escrevem e proclamam que a cena é um insulto à


nacionalidade, porque estão os brasileiros (tupinambás)
curvados ante os portugueses; que foi muito de propósito
escolhida para indicar ao povo o plano do absolutismo que o
governo quer proclamar" (Pinho, 1937:273).

Apesar de estar a par dos planos para promoverem uma


"assuada" e depois queimarem o pano no dia da inauguração,
Cotegipe não recuou. E afirmava: "tenciono pois experimentar a
ousadia desses meus senhores, e depois de mostrar-lhes que não
os temo, arredarei este pé de cantiga" (Pinho, 1937: 273).
Assim foi feito. Na noite de 23, o teatro achava-se
lotado. Não só de povo, como também de autoridades. Nos
corredores e platéia, de espaço em espaço, viam-se policiais,
estrategicamente postados à espera de qualquer tumulto.
Concluída a apresentação, como não fosse baixado o aludido
pano, levanta-se o alferes reformado do exército, João José
Alves, tio de Castro Alves, e, dirigindo-se para o camarote do
presidente, grita:

"Sr. Wanderley, mande vir abaixo este pano infame que


queremos despedaçá-lo! Abaixo o pano infame! Fora o presidente
traidor!" (Pinho, 1937:274).

Forma-se o tumulto. O alferes é preso. O presidente,


atingido por uma pedra que lhe feriu uma das mãos, retira-se.
Quando a comitiva chega à calçada, a multidão vaia. Bradam os
protestos e uma chuva de pedras cai em direção ao teatro.
Várias pessoas são feridas. A polícia enfrenta a multidão.
"Corre sangue." Finalmente os amotinados são contidos pela
polícia, com a ajuda das tropas de linha, muito embora seu
comandante, o capitão Alexandre Gomes de Argolo Ferrão,
recusasse a desembainhar a espada contra o povo.
Wanderley mostrara que não estava disposto a se submeter à
oposição. Aplicara a força sobre o povo amotinado, mas o pano
que acionara a revolta nunca mais foi utilizado. Novo pano foi
encomendado e inaugurado no mesmo ano. Representava uma cena
neutra: "Febo conduzindo o carro do Sol, tirado por quatro
pégasos e circundado de deusas simbolizando as Horas. Era
denominado Pano da Aurora" (Bocanera:58).
Em relatório datado de 15 de maio de 1855, o ministro da
Justiça, Nabuco de Araújo, anunciava à Assembléia Geral que no
ano anterior, ocorrera em Salvador "uma ridícula desordem
motivada pela pintura do pano do teatro público". Dessa forma,
omitiam-se ao país as condições da população soteropolitana
que, como diz Kátia Matoso, estava à beira da indigência e
vivia na dependência de uma estrutura de abastecimento
exploradora e monopolista.

"Carne sem osso, farinha sem caroço" (1858)

Nos dias 28 de fevereiro e 1º de março, a cidade de


Salvador foi novamente palco de violentos choques entre o povo
e as forças militares que ficaram conhecidos como a revolta da
"carne sem osso, farinha sem caroço" ou, ironicamente, como
"revolução dos chinelos".
Governava a província João Luís Vieira Cansanção de
Sinimbu que ocupou o cargo de 19 de agosto de 1856 a 16 de
julho de 1858. O presidente, um conservador, estava sendo
"asperamente combatido" pelas velhas facções políticas que não
aceitavam a forma como se fazia na província a política de
conciliação, iniciada, em nível nacional, por Paraná. O apoio
declarado de Sinimbu à candidatura de Nabuco de Araújo ao
Senado fez com que as oposições acirrassem os ataques ao
presidente.
Juntamente com este problema de ordem política,
acrescentavam-se a escassez e a alta dos preços da farinha de
mandioca e da carne fresca que levaram a Câmara Municipal da
capital a entrar em "verdadeira guerra" com o presidente. Este
aparece como o defensor dos atacadistas e monopolistas dos
gêneros de primeira necessidade, e aquela como defensora dos
consumidores. Aos problemas políticos somava-se o da carestia
e estava preparado o "palco" para a cena que se iria
desenrolar (Ruy, 1953:220).
Os atritos têm início com disputas para definir
atribuições a que a Câmara se arvorava e o presidente negava.
Com o propósito de evitar os constantes aumentos do preço
da farinha, a Câmara Municipal vota, a 16 de janeiro de 1857,
uma postura pela qual aquele gênero só poderia ser vendido em
lugares determinados por aquele conselho. Sinimbu determina a
suspensão do ato até que fosse votado pela Assembléia
Provincial; como esta encerra o período de reuniões sem
discutir o problema, os vereadores dirigem ao presidente
ofício, datado de 17 de fevereiro, no qual dizem que estavam
cansados de esperar e que iriam colocá-lo em vigor, apesar da
suspensão presidencial (Ruy, 1953:311-312).
O ofício historia magnificamente a situação dos gêneros de
primeira necessidade em Salvador, notadamente da farinha e da
carne, os principais. Acusa a existência de "monopólios
calculadamente estudado" e que, no caso daqueles gêneros, era
exercido por "três ou quatro indivíduos somente". Dizia que
não podia e nem devia cruzar os braços "diante de uma crise
como a atual, consentindo que a população desta capital
continue a ser vítima do monopólio e da ambição de alguns
homens que, não se contentando com razoáveis lucros, soem
especular com as necessidades do povo de quem somente almejam
sugar até a última substância" (Ruy, 1949:565-567).
Em resposta, o presidente determina que a polícia garanta
os comerciantes de farinha contra os fiscais da Câmara e
ordena que a mesma revogue o edital. Com efeito, em vários
pontos da cidade, funcionários municipais entravam em choque
com a polícia, aumentando os ataques ao presidente Sinimbu.
A Câmara retruca afirmando que uma postura só poderia ser
anulada por um corpo legislativo e que "nenhuma autoridade, em
face do Ato Adicional, pode revogá-la sem proposta da
respectiva Câmara". Diz que a ação da polícia retrata um ato
de "desobediência às leis municipais" e culpa o presidente
pelos conflitos que "se hão de reproduzir" (Ruy, 1953:569-
570).
Considerando a atitude dos vereadores como rebeldia,
Sinimbu suspende-os por 160 dias e convoca os suplentes. A
medida, sumamente impopular, exalta os ânimos e aumenta o ódio
contra o presidente, acusado de proteger os atacadistas. A
oposição acusa-o também de ter punido os camaristas como
manobra política visando a evitar que aqueles vereadores
fizessem a apuração dos votos da eleição senatorial marcada
para 1? de março.
Os acontecimentos foram muito habilmente explorados pela
oposição. Nos principais pontos da cidade, oradores incitam o
povo contra o presidente. Propõem uma grande concentração para
impedir a reunião dos suplentes. Sinimbu determina a prontidão
das tropas e ameaça responsabilizar criminal-mente os
exaltados. O clima eleitoral contribui para aumentar a tensão
e criar um ambiente de luta.
O estopim da revolta coletiva foi o incidente entre as
internas do Recolhimento da Misericórdia e as freiras de São
Vicente, encarregadas de dirigir a casa.
O Recolhimento funcionava desde 1716, como legado deixado
por João de Mattos Aguiar à Santa Casa de Misericórdia, com o
fim de acolher e educar moças pobres. Com o tempo, a
disciplina foi sendo relaxada e em meados do século XIX, a
Casa já era famosa por seus escândalos. Toda Salvador sabia da
intensa vida sexual que ali se travava, com as internas
recebendo no próprio local os seus amantes. Para coibir tais
abusos, a Santa Casa entrega a direção às freiras de São
Vicente. As vicentinas encontram as maiores dificuldades para
impor a ordem e então a Mesa resolve transferi-las para o
Convento da Lapa. No dia da mudança, as moças recebem a
direção da Misericórdia com vaias e insultos. Algumas chegam à
janela pedindo socorro. A população concentrada nas imediações
resolve invadir o prédio para auxiliá-las.
As irmãs de caridade foram agredidas e se refugiaram nas
casas vizinhas e no palácio do governo. Também foi atacada a
Casa da Providência, situada na Baixa do Sapateiro, que teve
sua porta arrombada a machado. Outro grupo dirigiu-se ao
bairro de Nazareth onde tentou invadir o Colégio de São Vi-
cente, dirigido pelas mesmas freiras, mas foi contido por um
piquete de cavalaria. Ao mesmo tempo, populares se agrupavam
no largo do Pelourinho e em São José.
A multidão dirige-se à praça do palácio da presidência
onde protesta contra a alta dos preços. O povo gritava em
uníssono: "queremos carne sem osso e farinha sem caroço", em
alusão ao problema da carne e da farinha de mandioca. Enquanto
a Câmara era invadida e tinha seu sino tocado a rebate, a
multidão apedrejava o palácio. Finalmente, já era noite quando
uma força de linha dispersou os manifestantes.
No dia seguinte, 1º de março, a praça do palácio
encontrava-se ocupada por um batalhão da Guarda Nacional. Os
quartéis estavam de prontidão. Mesmo assim, populares foram
chegando para assistir à sessão da Câmara Municipal, marcada
para as 10 horas da manhã, onde os suplentes convocados
deveriam efetuar a verificação de votos para a eleição de um
senador. Ao iniciar os trabalhos, a Câmara foi invadida pelo
povo que tumultuou seus trabalhos. A tropa evacuou o recinto.
A multidão volta-se contra o palácio, cantando rimas
espirituosas e algumas até obscenas, ridicularizando Sinimbu.
A repressão que se seguiu foi violenta. Piquetes foram
colocados nos pontos estratégicos. Tropas de infantaria e
cavalaria fecham as saídas e invadem a praça do palácio. A
população foi dispersada a golpes de espada e patas de cavalo.
Não houve mortos, mas os feridos foram muitos. No dia
seguinte, via-se a praça coberta por uma infinidade de
chinelos; daí, por ironia, veio o nome de "revolução dos
chinelos".
No dia 25 de março, por ocasião das comemorações do
aniversário da Constituição, tentaram alvejar o presidente com
um tiro. A 16 de julho, foi designado outro dirigente para a
província. Para deixar a capital, Sinimbu teve que ser
escoltado por tropas do exército que o livraram das agressões
físicas, mas não da chacota dos que foram assistir a sua
partida, guardado como um prisioneiro. A 19 de agosto, os
vereadores foram reintegrados (Ruy, 1953: 222).

A Revolta de 1878

Outra vez, a 1º de junho de 1878, os incidentes se


repetiram.
Desde 1877, o Nordeste estava sendo assolado pela grande
seca, uma das piores de sua história. Faltavam alimentos e os
retirantes morriam de fome. Devido à escassez dos alimentos,
os preços subiram vertiginosamente. Os negociantes de outras
províncias, notadamente Pernambuco e Piauí, enviavam ao
Recôncavo baiano emissários com o propósito de adquirir
gêneros de primeira necessidade, entre os quais, a farinha de
mandioca. Estes compradores dirigiam-se aos locais da produção
e ofereciam preços mais altos do que os do mercado local.
Atraídos pela possibilidade de lucros maiores, os grandes
atacadistas soteropolitanos iniciaram uma prática semelhante.
Mandavam seus agentes ao interior para a compra da farinha,
estocavam-na na cidade e contratavam a venda para outras
províncias, especulando com as dificuldades pela qual passa-
vam. Em Salvador, obviamente, premidos pela especulação e
estocagem, os preços deste alimento se elevaram muito acima do
normal ao mesmo tempo em que praticamente desapareciam das
casas comerciais. Enquanto isso, os atacadistas tinham seus
depósitos repletos (Ruy, 1953:313-314).
A 13 de março de 1878, preocupado com o problema, o
presidente da província, Barão Homem de Melo, recomenda à
Câmara Municipal providências urgentes. A 30 do mesmo mês,
este órgão submetia ao presidente uma postura na qual se
regulamentava a exportação da farinha, desde que atendido o
consumo local. No mesmo dia, à noite, uma grande multidão se
concentrou em frente ao palácio da presidência exigindo uma
solução para o problema (Mello, 1878:65-67).
Paralelamente, elevam-se os preços da carne fresca e seca.
Evidentemente, isto ocorre também ligado ao problema da grande
seca bem como aos decorrentes da queda das exportações
platinas. O presidente diligencia, no sentido de que sejam
mandados a Salvador, navios transportando estes gêneros e, na
ocasião, comunica à população reunida que eles já estavam a
caminho.
As medidas adotadas não produziram os efeitos desejados e
a escassez e a alta dos preços continuavam a afligir a
população.
A 1º de junho, a cidade acordou sobressaltada com os
boatos que anunciavam o saque e incêndio das casas
exportadoras de gêneros alimentícios. As patrulhas policiais
foram reforçadas. Uma manifestação popular foi dissolvida pela
cavalaria. Os populares se concentraram, posteriormente, em
frente à casa do comerciante de farinha (atacadista) José Re-
belo Brandão, e apedrejam-na, mas são contidos pelas
autoridades. A "turba", já engrossada, segue aceleradamente
pela ladeira do Taboão, aos gritos de "ao comércio, ao
incêndio, à farinha!" Mais uma vez a cavalaria avança e
consegue conter os insurretos, antes que realizassem seu
intento (Mello, Correspondência...).
A 11 de julho, o Barão Homem de Melo sancionava a lei
provincial que autorizava o governo a subsidiar a farinha.
Esta deveria ser vendida ao consumidor pela quantia de 80 réis
o litro, enquanto seu preço "se conservasse acima do
ordinário".
Os anos finais do século XIX mostram um Nordeste descrente
das soluções legais/oficiais. Abandonado e sofrendo, fornece o
ambiente ideal para a proliferação de "santos", "beatos" e
bandidos. A elite brasileira, em sua quase totalidade, assi-
mila e divulga o problema de forma inversa. Transforma causa
em efeito. Aponta, como razões do atraso e pobreza regionais,
a ignorância, o fanatismo e o ócio, numa imagem que inclusive
hoje muitos acatam. Afinal não podia e nem interessava dizer a
verdade, pois de acusadora passaria a réu.
A tragédia de Antônio Conselheiro, ao mesmo tempo que
mostrava cruamente o drama nordestino, dava elementos para
reforçar as falaciosas explicações da elite. A repressão tinha
que ser brutal para servir de exemplo. Nada de comunidades
isoladas produzindo para o autoconsumo. Os caboclos do
Nordeste tinham que se proletarizar, entrando no circuito
capitalista: ser mão-de-obra ocupada ou ser "exército de
reserva", contribuindo de uma forma nova para a reprodução do
capital.
CONCLUSÃO

No conjunto, o Nordeste era, e não deixou de ser, o


retrato do subdesenvolvimento. A exaustão do solo, causada
pela exploração predatória; a propriedade da terra
monopolizada por uma minoria e a maioria da população se
sujeitando a regimes de trabalho humilhantes ou então
permanecendo desempregada, miserável e faminta, dão uma triste
visão do problema.
A revolução não eclodiu, embora condições houvessem. As
saídas que encontraram foram as migrações e a formação de
comunidades milenaristas.
Mas, como tantos especialistas já registraram, o termo
subdesenvolvimento não deve ser utilizado unicamente para
apontar os aspectos negativos de uma região. Ele deve servir
para mostrar como determinada área chega a tal situação
crítica dentro do capitalismo.
O drama nordestino é brasileiro e também de todos os povos
colonizados de forma exploratória. O capitalismo destrói a
natureza, esgota os recursos, ignora os direitos humanos mais
elementares, como o de prover a todos moradia, alimentação,
vestuário e emprego decentes, enfim, o direito à vida, e
subordina tudo ao lucro em benefício de poucos. O nosso
Nordeste não se explica somente em si mesmo mas, também, no
seu processo histórico, na história brasileira e ocidental.
Portanto, para se entender de fato o problema nordestino,
temos que conhecer a sua gênese. Esse estudo passa pela
expansão e evolução da sociedade européia e, podemos dizer,
ocidental que se entrelaça dialeticamente com os fatores
nacionais e locais. Assim, estaremos desmitificando as teses,
muitas vezes consagradas, que apontam causas absurdas, tais
como clima e etnia, e traremos, para o plano real, o debate
sobre o assunto.
O tema ainda é atual. Ontem tivemos as insurreições, o
fanatismo religioso e o banditismo rural, hoje há a
criminalidade urbana, as favelas e os alagados e os menores
abandonados. Ao aceitarmos passivamente explicações
simplórias, estaremos sendo coniventes e permitiremos
continuadamente a reprodução das desigualdades sociais. Urge
desmascarar os arrazoados mentirosos e dar ao nordestino a
base histórica para que se conscientize, repila os falsos
discursos e atue objetivamente na solução de seus problemas.

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Revisão: Argo – www.portaldocriador.org


INDICAÇÕES PARA LEITURA

Andrade, Manuel Corrêa de - A Terra e o Homem no Nordeste. São


Paulo, Brasiliense, 1973. Esta obra faz uma análise global do
Nordeste a partir de seus aspectos geográficos e históricos.
Expõe muito bem as formas de propriedade da terra e as
relações sociais de produção que encontramos na regiaão.

Eisenberg, Peter L. - Modernização sem Mudança. Rio de


Janeiro, Paz e Terra, 1977. Um dos mais importantes trabalhos
sobre o Nordeste na segunda metade do séc. XIX. Analisa a
crise econômica e social e a transição do trabalho escravo
para o assalariado.

Monteiro, Hamilton de Mattos - Crise Agrária e Luta de Classe;


o Nordeste Brasileiro entre 1850 e 1889. Brasília, Horizonte,
1980. Estudo da violência na sociedade nordestina. Análise dos
movimentos sociais enquanto formas de luta de classes, a
partir da crise da economia local.
Bibliografia

Almeida, Horácio de. Brejo de Areia. Rio de Janeiro, MEC,


1958.

Almeida, José Américo de. A Paraíba e seus Problemas. Paraíba,


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Andrade, Delmiro Pereira de. Evolução Histórica da Paraíba do


Norte. Rio de Janeiro, Minerva, 1946.

Arquivo Nacional. Publicações do Arquivo Nacional. Rio de


Janeiro, 1937, Vol. 34.

Bocanera, Silio. O Teatro na Bahia. Salvador, s.d. .

Cascudo, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio


de Janeiro, MEC, 1955.

Furtado, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo,


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Jofily, Irineu Ceciliano Pereira. Notas sobre a Paraíba. Rio


de Janeiro, Tip. do Jornal do Comércio, 1892.

Mattoso, Kátia M. de Queirós. Bahia: a Cidade do Salvador e


seu Mercado no Século XIX. São Paulo, Hucitec, 1978.

Mello, Homem de. Correspondência. Arquivo Nacional, IJ1427,


SPE/AN.

Mello, Homem de. Fala do Presidente da Província da Bahia.


1878.

Melotti, Umberto. Revolución y Sociedad. México, FCE, 1971.

Monteiro, Hamilton de M. Crise Agrária e Luta de Classes.


Brasília, Horizonte, 1980.

Nabuco, Joaquim. Um Estadista do Império. Rio, Nova Aguilar,


1975.

Pinho, Wanderley. Cotegipe e seu tempo. São Paulo, Nacional,


1937.

Ruy, Afonso. História da Câmara Municipal da Cidade do


Salvador. Salvador, Câmara Municipal, 1953.

Ruy, Afonso. História Política e Administrativa da Cidade do


Salvador. Salvador, Tip. Beneditina, 1949.
Stavenhagen, Rodolfo. Los Classes Sociales en las Sociedades
Agrárias. México, Siglo XXI, 1972.

Wanderley, João Maurício. Fala do Presidente da Província da


Bahia. 1855.

Wolf, Eric R. Las Luchas Campesinas del Siglo XX. México,


Siglo XXI, 1972.

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Sobre o Autor

Hamilton de Mattos Monteiro é Professor de História na Univer-


sidade de Brasília, Doutor em História pela Universidade de
São Paulo, com a tese Violência no Nordeste: 1850-1889 e autor
do livro: Crise Agrária e Luta de Classes, Brasília, Belo
Horizonte, 1980.

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