Você está na página 1de 79

A bruxa no medievo: origem e imaginário

Modulo 1 do curso História da Bruxaria (UFPB)

Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB-NEVE)


Com colaboração de Lorenzo Sterza
Roteiro:

1. Obras introdutórias
2. Etimologia - bruxa
3. Conceitos (magia, feitiçaria, bruxaria)
4. Historiografia da história da bruxaria
5. A construção do imaginário da bruxa medieval –
iconografia
6. Bibliografia
OBRAS BÁSICAS SOBRE HISTÓRIA DA BRUXARIA
(MANUAIS INTRODUTÓRIOS)
Documentários sobre história da bruxaria
FONTE PRIMÁRIA
Malleus Maleficarum (O
martelo das bruxas), 1486
2. ETIMOLOGIA
Rita Caprini, 2008: A grande parte das terminologias utilizadas hoje em dia para bruxa nas língua
europeias foi construída a partir do séc. XIII, unindo crenças populares e teologia – uma mulher que
pratica magia e que causa malefícios

1.1 BRUXA – PENÍNSULA IBÉRICA


• Origem polêmica, mas existem indícios que tenha origem em dialetos pré-romanos, visto que os
termos utilizados na Ibéria não tem correlato em outras línguas neo-latinas (Claudio Moreno,
doutor em letras pela UFRGS).

• Portugal e Galícia: Bruxa; Espanha: Bruja; Catalunha: Bruija;


• Gasconha: Brouche; Ocitânia: Bruèissa
• Hispano-celta: *bruxtia, derivado de Brixta - Galo-romano (deusa Bricta): encantadora; irlandês
antigo: bricht (encantamento); bretão antigo: brith (magia).

• Primeira documentação do termo em espanhol: séc. XII


• Primeira citação em aragonês (broxa): Ordinaciones y paramentos, 1396.
• Uso corrente do termo em Portugal: 1559 (Houaiss, 1986).
2. BRUXA NA FRANÇA
• Sorcière (feiticeira/bruxa), surgiu em 1160, derivado do latim
sorcerius do séc. VIIII, originado do latim popular sortiarius (aquele
que lê a sorte). Sorcellerie (bruxaria) foi registrada em 1220
(Franco Jr., 2002).
• Inglês: Sorcerer – foi introduzida no inglês durante o séc. XIV,
tornada de uso corrente no século XVI (Russell, 2008).

3. BRUXA NA ITÁLIA
• Strega – derivada do latim striga e stryx (que correspondem ao
grego strygx) – adivinha ou praticante de magia (strige/striga –
pássaro noturno que se alimentava de humanos).
4. BRUXA NA INGLATERRA

Witch, derivado do inglês antigo wicce, feiticeiro, atrelado ao verbo


wiccian – proferir feitiços/encantamentos.
Uso corrente no inglês moderno a partir do séc. XIV (Russell, 2008).

5. BRUXA NA ALEMANHA
• Hexe – bruxa. O seu sentido foi utilizado essencialmente dentro do
referencial do diabolismo e da caça as bruxas, como na Dinamarca
(Caprini, 2008).
• Inglês antigo: hægtesse
• Baixo-alemão: wicken (adivinho); Frísio: wikje (adivinho).
6. BRUXA NA ESCANDINÁVIA
Nórdico antigo: tröllkonu (bruxa); tröllaþing (sabá), trölldomr (bruxaria) (a
partir do séc. XIII, Mitchell, 2001).
Norueguês: Heks; Sueco: Häxa; Dinamarquês: Heks – mesmos usos que na
Alemanha (Caprini, 2008).

7. BRUXA NAS FONTES INQUISITORIAIS E DEMONOLÓGICAS


Maleficium – malefício, maldição
Malleficus, maléfica – malfeitor/malfeitora (Stephens)

Malleficarum – bruxas diabólicas, a partir do século XIII (Schmitt, 2002)


3. CONCEITOS

MAGIA: conjunto de crenças e práticas religiosas relacionadas ao controle da


natureza e do sobrenatural, de caráter variável, polimórfico e regional, geralmente
combatida pelas instituições sociais vigentes no Ocidente desde a Antiguidade.

FEITIÇARIA: (do latim facticius, artificial/fictício) conjunto de crenças e práticas


mágicas do mundo rural europeu relacionadas frequentemente com a adivinhação
do futuro, necromancia, controle climático, curandeirismo e artes amorosas.

BRUXARIA: Um imaginário criado a partir da Idade Média Central sobre as práticas


mágicas e a feitiçaria, cujos membros (as bruxas) seriam participantes de uma seita
coletiva e herética para adorar Satã por meio do pacto diabólico, em uma reunião
especial, o sabá. É o produto mais complexo do discurso antimágico produzido pelas
instituições religiosas do Ocidente.
4. HISTORIOGRAFIA

Principais teorias sobre a bruxaria medieval europeia

1. Teoria romântica: A bruxaria foi uma resistência do paganismo em meio ao


cristianismo medieval

2. Teoria racionalista: A bruxaria foi uma construção mental, uma fantasia

3. Teoria culturalista (História social inglesa e História Cultural): A bruxaria foi


tanto um imaginário criado pelos inquisidores, intelectuais e religiosos, como
um reflexo de crenças, mitos e folclores populares ressignificados pelos valores
sociais da Idade Média Tardia
TEORIA ROMÂNTICA
• O sabá como um fato
concreto: os servos
se vingariam da
ordem religiosa e
social da época.
• A feiticeira como um
18622 a heroína do povo e
da nartureza
Os rituais de
fertilidade
sobreviveram
pela Europa até
o início da
modernidade
1890
A Europa
conservou o culto a
Diana e Janus até o
séc. XVII

1921
TESE RACIONALISTA
A bruxaria é uma
construção mental:
inicialmente temos a
ideia de um pacto
demoniaco (no meio
rural) e depois a ideia de
possessão (no meio
urbano)

1968
• A bruxaria existiu somente
na imaginação dos
europeus: ela é a projeção
dos medos, frustações e
bodes expiatórios da
sociedade. Englobava duas
concepções:
- a popular, que via as vizinhas
bruxas como pessoas danosas
- a erudita, que via as bruxas
como pertencentes a uma
seita herética e secreta
1975
A bruxaria foi o
resultado do pavor
das
camadas dominantes
da Europa baixo
medieval e moderna
ante as práticas
coletivas populares

1978
TESE CULTURALISTA
Ginzburg investiga a
sobrevivência de
crenças e mitos sobre
fertilidade na Itália.
Um grupo de homens e
mulheres
(autodenominados de
benandanti) acreditava
que a abundância das
colheitas dependia de
batalhas entre eles e os
bruxos que desejavam
destruir as colheitas.

1966
. O que

MacFarlane procura compreender a perseguição


às bruxas a partir do meio aldeão e camponês.
Sua conclusão é que as tensões internas da
aldeia eram mais relevantes do que as pressões
externas de juízes e demonólogos

1970
1971

As perseguições às bruxas não partiram


unicamente das elites, mas também do
terror que os camponeses nutriam ante os
malefícios. O que os juízes e demonólogos
enxergaram como bruxaria não era senão o
malefícios secular, velho conhecido dos
camponeses.
1989

O estereótipo do sabá possui um


núcleo folclórico antigo e amplo
pela Europa, de base xamânica e
em vários cultos extáticos, e se
cristalizou a partir do século XIV.
2002

A obsessão sexual dos inquisidores motivou


em parte a escrita dos manuais e a caça das
bruxas, mas a própria autenticação e
construção da fé cristã dependia da crença
nas bruxas
2003
2008
2005
5. A construção do imaginário da
bruxa medieval - iconografia
5.1 A transformação da feiticeira em bruxaa
A figura da feiticeira na Antiguidade

Circe Hécate

Medéia
Circe na obra
de Chistine de
Pizan

BL Harley MS 4431,
1410 d.C.
Um caso: a feiticeira de Endor (1 Sam 28, 7-11).
Necromante e adivinha

• No hebraico ela foi caracterizada como ba´alath (pitonisa, adivinha)


• Na Bíblia aparece a figura do kashaph - mago(a), adivinho(a),
feiticeiro(a), como em Êxodo 22, 18.
• Na versão latina da Bíblia (Vulgata, séc. IV d.C.) a palavra kashaph
foi traduzida como maleficus

• Na Bíblia do rei Jaime I (1611) tanto a palavra kashpah quanto


ba´alath foram traduzidas por witch
A feiticeira de Endor, Otto Van Moerdrecht, séc. XV
Saul bij de heks van Endor, Jacob Cornelisz van Oostsanen, 1526
5.2 O vôo da bruxa: a passagem do
folclore mágico ao diabolismo
Canon Episcopici, 906 d.C.:

“Algumas mulheres pecaminosas são


pervertidas pelo diabo (...) pelo que
acreditam que cavalgam à noite em
animais na companhia de Diana, a deusa
pagã e de sua horda de mulheres (...) tudo
isso acontece somente no espírito, mas
pessoas sem fé acreditam que tais coisas
acontecem também no corpo”.
Ilustração de Palas Atenas descendo do céu. Remigius de
Auxerre (841-908 d.C.)
AS FEITICEIRAS DA IGREJA DE SCHLESWIGER, DINAMARCA/ALEMANHA

• Troescheler, 1952; Davidson, 1987; Castelli, 1993 – o mural pertence ao início do século
XIII (1200-1201)

• Jens Johansen, 1990: a pintura foi realizada em mais ou menos 1450, comissionada por
bispos com fins didáticos

• Wolfang Schild, 2002 (‘Die zwei Schleswiger Hexlein. Einige Seufzer zu Lust und Last mit
der Ikonologie’. Reitera Johansen

• INTERPRETAÇÕES:
• 1. Podem ser referências a companhias femininas da deusa Holda/Diana, mencionadas no
Canon Episcopi (séc. X)
• 2. Ressignificações de Freyja e Frigg no folclore e imaginário cristão?
A transformação das mulheres heréticas (cátaras, valdenses) em
bruxas – a partir do século XIII
Behringer, 2005: A transformação do valdensismo na bruxaria não foi
um processo simplesmente rotulador (apesar de certos traços terem
essa característica). A importância das mulheres no movimento
valdense está muito associada com o papel das mulheres nas artes
mágicas. E o mais importante: não somente para os inquisidores, mas
também para os seus vizinhos – e talvez para eles mesmos, a
sacralidade dos mestres, as jornadas ao outro mundo, as qualidades
xamânicas, serviram como comparações entre os valdenses e a
bruxaria. A mesma região em que emergiu a equalização entre
valdenses e bruxaria, foi uma das maiores de perseguições e
condenações de bruxaria até o século XVII. Mas após 1480 o
valdensismo declinou e perdeu o interesse do imaginário inquisitorial.
• Valdenses do ducado de Saboia (região entre o sul da França e o
noroeste da Itália)
• 1330: livro do inquisidor Bernard Gui (practica inquisitionis haereticae
pravitatis) em seu capítulo sobre os valdenses afirma que eles
adoravam o diabo em forma de gato em outro capítulo, menciona as
feiticeiras e adivinhas que cultuam o demônio).
• Uma mulher valdense julgada em Milão em 1384 e em 1390,
conclamou que tinha experiências extáticas com a Boa Senhora e
seu povo e estava apta para curar e predizer o futuro.
• inquisidor Ponce Fougeyron em 1409: “novas sectas et prohibitos
ritus”
• O papa Alexandre V confirma essa declaração de Fougeyron em 1410,
mas pouco tempo depois em 1437 ele conceitua como maleficia em
1440: “qui vulgari nomine stregule vel stregones seu Waldense
nucupantur”.
Valdenses retratados
como bruxos
Frontispício da edição
francesa de Tratactus
contra sectum
valdensium, séc. XV
Tratactus contra
sectum
valdensium, séc.
XV
Manuscrito
Grenoble (ms 352)
de Le Champion
des Dames (Martin
Le Franc), 1451
Valdenses voando
em vassoura e
bastão
Le champion des
dames, Martin Le
France, 1451
Bruxa voando para
Blåkulla
Knurby kirka, Uppsala,
Suécia, 1490
Bruxas
metamorfoseadas
voando em um galho
Tractatus von den
Bosen Welbern, Ulrich
Molitor, 1495
Albrecht Dürer, 1500 Albrecht Altdorfer 1506 Hans Baldung, 1510
5.3 Outras características da bruxaria diabólica
medieval
As bruxas e os
animais
familiares,
Execução das
bruxas de
Chelmsford,
1589

Controle climático:
Bruxas fazendo chover
Ulrich Molitor, 1489
Catastrofismo: Bruxas provocam um incêndio em uma vila; Infanticídio: bruxas devorando
crianças, Francesco Guazzo, 1608
5.4 A árvore das bruxas: um caso italiano
O mural da fertilidade em Massa Marítima

• No ano de 2000 foi descoberto um mural num banho público na cidade


italiana de Massa Marítima, datado do século XIII d.C. (possivelmente antes de
1265). O mesmo contém uma representação de uma árvore repleta de falos,
logo acima de um grupo de oito mulheres. Segundo o historiador George
Ferzoco o mural representaria uma cena de fertilidade, onde as mulheres
seriam feiticeiras (mais tarde representadas como bruxas, tendo como
respaldo o Malleus Malificarum). O contexto do mural refletiria uma
propaganda política dos guelfos: se os gibelinos tomassem o poder, trariam
com eles perversão sexual e feitiçaria.
• Mattelaer, 2010: O phallus era um fenômeno bem conhecido na Europa
medieval e renascentista e encontra suas raízes na ligação entre a infertilidade
e a impotência de um lado, e a feitiçaria no outro.
“E o que se há de pensar das bruxas que, vez por outra, reúnem membros
masculinos em grande número, num total de vinte ou trinta e os colocam
em ninhos de pássaros ou em caixas, onde se movem como se estivessem
vivos e comem grãos de aveia e de trigo? (...) Pois se um certo homem
contou-nos que, quando perdeu o seu membro, aproximou-se de uma
conhecida bruxa e pediu-lhe que o restituísse. A mulher disse-lhe então
para que subisse numa determinada árvore e que, no ninho que lá se
encontrava, escolhesse o membro que mais lhe agradasse dentre os
muitos que havia. E, quando ele tentou pegar um bem grande, a bruxa
disse:
- Não deves pegar esse aí, porque era de um pároco.”

KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. Malleus maleficarum (O martelo


das feiticeiras, 1486). São Paulo: Rosa dos ventos, 1991, p. 252-253.
Castelo Moos-
Schulthaus,
Itália, séc. XIV
A árvore das bruxas do Benevento

Segundo Pietro Piperno em seu livro Della superstitiosa noce


di Benevento (1639), existiu um culto a uma serpente de ouro
e ao deus Wotan entre os longobardos da região de
Benevento, Itália, durante o século VI d.C. Um século depois,
a árvore foi tombada por São Barbato.
Posteriormente, essa região desenvolveu um folclore sobre
bruxas realizando uma reunião noturna em torno de uma
árvore no Benevento, durante o século XIII, e tornou-se
extremamente popular.
As bruxas de Benevento, anônimo, séc. XVI
As bruxas e a nogueira, Gugielmo della Porta, 1534
A árvore do Benevento,
Enrico Isernia, Istoria della
città di Benevento dalla sua
origine fino al 1894
A dança das bruxas sobre a
nogueira do Benevento, Signor
Pacini, séc. XIX
6. BIBLIOGRAFIA

• BEHRINGER, Wolfgang. How Waldensians Became Witches: Heretics and Their Journey to the Other
World. In: KLANICZAY & PÓCS (Eds.). Communicating with the Spirits, 2005.
• CAPRINI, Rita; ALINEI, Marco. Sorcière, witch, hexe, bruja, strega. In: Atlas Linguarum Europae I/8,
Roma, Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 2008.
• CARDINI, Franco. Magia e Bruxaria na Idade Média e no Renascimento. In: Revista Psicologia USP, v.
7, n. 1/2, 1996, pp. 9-16.
• COLLINS, David J. Magic in the Middle Ages: History and historiography. History and compass 9(),
2011, pp. 410-422.
• GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. SP: Cia
das Letras, 1988.
• GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. SP: Cia das Letras, 1991.
• KLANICZAK, Gábor. A cultural history of witchcraft. Magic, Ritual, and Witchcraft, Vol. 5, Number 2,
Winter 2010, pp. 188-212.
• KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras: Malleus Maleficarum. RJ: Rosa dos
ventos, 1991.
• MELLO E SOUZA, Laura de. A feitiçaria na Europa Moderna. São Paulo: Ática,
1987.
• MITCHELL, Stephen. Witchcraft and Magic in the Nordic Middle Ages.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2011.
• NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e história: as práticas mágicas
no Ocidente cristão. São Paulo: Edusc, 2004.
• RUSSELL, Jeffrey; BROOKS, Alexander. História da bruxaria. São Paulo: Aleph,
2008.
• SALLMANN, Jean-Michel. As bruxas: noivas de satã. Rio de Janeiro: Objetiva,
2002.
• SCHMITT, Jean-Claude. Feitiçaria. In: Dicionário temático do Ocidente
Medieval. Vol. 1. SP: Edusc, 2002, pp. 423-436.
• SMITH, Matthew Ryan. Reconsidering the obscene: the Massa maríttima
mural. Queen´s Journal of Visual & Material culture n. 2, 2009.
• THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia: crenças populares na Inglaterra
(séculos XVI e XVII). São Paulo: Cia das Letras, 1991.

Você também pode gostar