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Resenha de Teoria da Literatura: Uma Introdução de Terry Eagleton

No capítulo introdutório, Eagleton apresenta algumas das definições mais


comuns de “literatura”. A primeira possibilidade é a de definir literatura como escrita
imaginativa, ou seja, que não é literalmente verídica. Porém, isso pode ser facilmente
contestado se se levar em conta que há ensaios, sermões, autobiografias que, apesar de
não serem ficcionais, estão inclusos dentro daquilo que se chama literatura. A
incompletude dessa definição se mostra também na distinção entre fato e ficção, que é
muitas vezes questionável, já que ela não era efetivamente aplicada: os romances e as
notícias de jornais não eram claramente fictícios nem claramente factuais. Além disso, se
a literatura inclui muitos dos escritos factuais, também exclui muitos fictícios como as
histórias em quadrinhos, as piadas, etc. E, se a literatura se caracterizasse como “escrita
imaginativa”, poderíamos estar afirmando, implicitamente, que os escritos científicos são
destituídos de criatividade e imaginação!
Outra definição possível é a de que se faz literatura a partir do emprego peculiar
da linguagem, ou seja, a literatura intensifica a linguagem cotidiana gerando uma espécie
de “desconformidade entre os significantes e os significados” (p. 3) e chamando a atenção
sobre si mesma. Essa perspectiva é típica dos Formalistas Russos, grupo de intelectuais
que aplicaram a linguística ao estudo da literatura na tentativa de tornar a análise e crítica
literária mais “objetiva”. Segundo os formalistas, a literatura não deveria ser analisada
por outro viés que não o da linguagem, já que a literatura nada mais é que uma
“organização particular da linguagem” operando com leis, estruturas e mecanismos
específicos que deveriam ser estudados em si.
A obra literária não era um veículo de ideias, nem uma reflexão sobre a
realidade social, nem a encarnação de uma verdade transcendental: era um
fato material, cujo funcionamento podia ser analisado mais ou menos como
se examina uma máquina. Era feita de palavras, não de objetos ou
sentimentos, sendo um erro considera-la como a expressão do pensamento
de um autor (p. 4)

Preocupavam-se, portanto, com as estruturas da linguagem, do como se diz e não


o que se diz, sendo que o conteúdo simplesmente ocasiona o exercício formal. Embora
afirmassem a relação entre a literatura e a realidade social, não cabia ao crítico literário
analisar e estudar essa relação.
Posteriormente, os formalistas perceberam que os “artifícios” usados pelos
autores para gerar o efeito de “estranhamento” eram “funções” dentro de um sistema
textual global. Esses “artifícios” ou “funções” intensificavam, distorciam a linguagem
comum, transformando o que era cotidiano em algo não familiar. Mas, o que seria essa
“linguagem comum”? Por trás desse termo, existe a ideia de que existe uma única
linguagem “comum” ou normal”, ignorando a natureza heterogênea da língua. Outro fator
que pode interferir nesse julgamento do que seria uma “linguagem comum” é de que um
texto muito antigo pode nos gerar estranhamento e soar poético simplesmente pelo seu
arcaísmo, mas não saberíamos dizer se ele é de fato “poético” ou não pela pura análise
estrutural do texto. Teríamos de recorrer aos discursos daquela sociedade sobre o que
seria literatura.
Porém, os próprios formalistas tinham consciência dessa questão. Mas o que na
verdade eles tentavam definir não era “literatura” mas a “literariedade” e afirmavam que
a essência do literário estava em “gerar estranhamento”. Portanto, eles relativizavam o
uso da linguagem e esse “estranhamento” só se tornaria nítido no contraste dos discursos.
O contexto mostra-me que é literário, mas a linguagem em si não tem
nenhuma propriedade ou qualidade que a distinga de outros tipos de
discurso (...). Pensar na literatura como os formalistas o fazem é, na
realidade, considerar toda a literatura como poesia. De fato, quando os
formalistas trataram da prosa, simplesmente estenderam a ela as técnicas
que haviam utilizado para a poesia (p. 9)

Talvez, generalizar a linguagem além de sua finalidade pragmática seja uma


operação envolvida no que se chama de literatura. A partir dessa perspectiva, poderíamos
definir literatura enquanto discurso não pragmático, referente a um “estado geral das
coisas”, sendo um tipo de linguagem autorreferencial. Porém, o que é dito não é menos
importante do que como aquilo é dito: o conteúdo é relevante para se obter o efeito geral.
Assim, nessa concepção, a definição de literatura está à mercê do modo que alguém opta
por ler e não da natureza, da essência do que é lido.
Nesse sentido a literatura poderia ser definida de acordo com “as várias maneiras
pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita” (p. 13), não existindo uma “essência”
da literatura e não importando como esses textos nascem, e sim o modo pelo qual as
pessoas os consideram. O termo literatura, portanto, seria um termo antes funcional que
ontológico: refere-se ao papel de um texto “num contexto social, suas relações com o
ambiente e suas diferenças com esse mesmo ambiente, a maneira pela qual se comporta,
as finalidades que lhe pode ser dadas e as práticas humanas que se acumularam à sua
volta” (p. 14).
Entretanto, se considerarmos que a literatura tem a ver com uma leitura “não
pragmática” e considerar que as piadas não são lidas pragmaticamente mas também não
são tidas como literatura, tem-se um problema. Além de talvez não ser tão nítido o que
seriam as maneiras pragmáticas ou não pragmáticas de se relacionar com a linguagem. A
própria literatura (e as outras artes) já teve um tratamento prático enquanto função
religiosa. Talvez, a distinção entre “prático” e “não prático” só seja possível nesse estado
da nossa sociedade, em que a literatura (e as outras artes) não exercem mais uma função
prática. Constatado isso, essa definição do literário pode ser, na verdade, historicamente
específica.
De qualquer forma, é certo que os julgamentos de valor tem estreita relação com
o que se considera literatura, “não necessariamente no sentido de ser ‘belo’ para ser
‘literário’ mas sim de que tem de ser do tipo considerado belo” (p. 15-6).
A expressão ‘bela escrita’ (...) é ambígua nesse sentido: denota uma
espécie de escrita em geral muito respeitada, embora não nos leve
necessariamente à opinião de que um determinado exemplo dela é
‘belo’ (p. 16)

Mas, considerar que literatura é um tipo de literatura altamente valorizada pode


significar que qualquer coisa pode tornar-se ou deixar de ser literatura, dependendo do
julgamento de cada sociedade em cada contexto histórico, tornando a ideia de literatura
pouco “objetiva” e mutável. Nesse sentido, interpretamos as obras sob a luz dos nossos
interesses e valores e quando lemos obras de autores como Shakespeare ou Homero,
estamos, na verdade, lendo diferentes Shakespeares e diferentes Homeros à medida que
nossos interesses e valores mudam, encontrando elementos que ora podem ser valorizados
ora desvalorizados.
(...)
Portanto, a definição de literatura, do que ela seja e do que espera dela está
estritamente lidados a juízos de valores que, por sua vez, mantém uma relação íntima com
as ideologias sociais.

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