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A Serpente
do Paraíso
HISTÓRIA DE UMA BUSCA PELA INDIA
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MIGUEL SERRANO
Apresentação
Nietzsche
Eu o vi.
A SERPENTE
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Eu e a Serpente
Passaram-se os anos, até que uma noite, ao ir dormir, ou não sei bem se já
dormindo, vi na minha frente o rosto moreno e barbudo de um homem coberto de
peles, que me sorria. Despertei violentamente, atemorizado.
Desde aquele dia, a sensação de frio em minhas costas se fez persistente. Não
podia conversar sobre isto com ninguém, porque os fenômenos eram inexplicáveis na
linguagem corrente. Como poderia dizer que seres invisíveis me subiam pela coluna
vertebral, ou que o cérebro se dividia ao meio e todo o corpo se tornava redondo,
perdendo a sensação de simetria, de lados e arestas, ao mesmo tempo em que alguém
entornava em meu interior a caixa que continha todas as palavras, mesclando-as e
pronunciando-as a grande velocidade?
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Desde aquele dia, a sensação de imobilidade se repetiu, ainda que nunca mais
eu visse a ninguém. Ao chegar a manhã, uma vibração gelada e ao mesmo tempo
ardente subia desde meus pés, pela coluna vertebral e algo assim como vários centros
interiores repetiam o movimento vibratório, tal qual uma música tênue de sinos de
outro mundo. Quedava paralisado sobre a cama, sem dormir já, porém sem poder
despertar tampouco. Neste estado, via às vezes a criada que entrava no quarto com o
desjejum e o deixava sobre o velador. Em vão, tentava despertar, mover-me; algo me
empurrava para dentro, até regiões da sombra, até um nada aterrorizante.
Algum dia, uma destas realidades deverá impor-se, haverá que escolher-se
uma destas duas vidas. Ou pode ser que se descubra um equilíbrio entre ambas.
Parece-me intuir que mais além, no interior, tudo permanece igual, sem
modificações, sem idade. Ainda que eu envelheça, se vou ali, reencontrarei sempre
aos companheiros invisíveis, os fantasmas mais reais que toda realidade.
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Seus olhos são azuis e ele conserva as maneiras do passado. Quando fala da
vida, é de uma vida de antanho. Só quando submerge nos seus sonhos, transcende o
tempo.
Primeiro lhe examinei com mente clara e sentido crítico; porém eu não tinha
muito que escolher. Comecei por perguntar. A resposta foi desusada: havia entrado
em relação com a Serpente.
Um ano passei à espera de ser aceito. Enquanto isso, convivi com o grupo que
rodeava o Mestre. A Ordem era secreta e se dizia originária da longínqua Índia; ou
melhor, do Tibet. Interpretava uma lenda expressa em símbolos. Não possuía outra
filosofia ou método que não a aplicação destes símbolos, os quais concentravam
vibrações cósmicas. A antiqüíssima Ordem himalaica guardava ainda esta sabedoria.
A Ordem era de guerreiros e não de santos, de magos ativos, que disciplinavam suas
hostes para tomar de assalto a eternidade.
Nesta mesma noite, tracei o símbolo sobre meu coração, encerrando-o num
círculo... É realmente estranho, porém, sempre que traço pela primeira vez sobre
meu peito um símbolo novo, entregue por meu Mestre, uma corrente vibratória me
percorre interiormente, como se o símbolo fosse confirmado por seres invisíveis e
distantes.
Devo ter me perguntado depois se acaso não foi um erro. Tratei de provocar
fenômenos que até então se haviam produzido espontaneamente. Por outro lado, o
Mestre e a Ordem os interpretavam e eu tentava me apegar àquelas interpretações,
como se nestas coisas e nestes mundos pudesse, em verdade, existir um guia. Quis ou
acreditei ver determinadas coisas. Fui prisioneiro inconsciente de prejulgamentos e
fórmulas e me custou anos chegar a desfazer-me destas elaborações mentais.
Quem pôs esta água ao meu alcance? Quem veio em minha ajuda neste
momento? Era isto também um processo subjetivo, arquetípico? Não sei. O enigma
permanece até hoje.
Tudo isto ficou atrás no tempo; mas então já se começou a tecer algo que
ainda perdura. Essa túnica ou essa larva da morte, não morreu; está em mim, semi-
criada, sobrenatural ou monstruosa, atendida por mãos invisíveis, na espera de ser
continuada ou reconstruída alguma vez. O corpo seguiu sua vida em direção à
destruição, as energias se vão, não sei para onde; porém, acolá, espera um barco, uma
forma, um remo ilusório, para caminhar pelas águas da Maior Ilusão.
O Mestre viveu uma grande fantasia neste mundo. Se nada foi certo, pouco
importa. Ele sonhou coisas sobre-humanas, incríveis, prisioneiro de mitos
gigantescos. Faz-me mais querido o fato de que ele jamais tivesse essa mística
complacente dos brandos. Para ele a aventura era uma guerra real e sem quartel.
Viveu e morreu envolto nas sombras de feitos sobre-humanos.
Era desde lá, então, de onde o Mestre recebia seus sinais e seus símbolos.
Eu pensei que naquele lugar talvez me pudessem explicar melhor todas estas
coisas. “Se a verdade se guarda em alguma parte, terá que ser ali”, me disse.
E foi deste modo como a busca na Índia chegou a impor-se como uma
necessidade.
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A BUSCA
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A SERPENTE É ANDRÓGINA
Cheguei a Índia num verão de fazem já muitos anos e logo iniciei minha
peregrinação através de homens e paisagens.
Mas, para alcançar até a copa da árvore, até a sala do palácio e ao trono, há
que descer primeiro às raízes, onde se enrola e dorme a Serpente.
Como chegar tão longe? O caminho é longo, escabroso. Shiva, o Mestre dos
mestres, o Senhor do Yoga, o indica.
MÃE E AMANTE
Muito tinha ouvido falar de Ananda Mai, a Mãe, antes de vir a Índia. Sabia de
sua vida, de seu misticismo, de seus poderes. Diz-se que ela vive envolta em paz e
felicidade, alcançando este centro único e indivisível, mais além do eu individual.
Depois de cruzar uma zona de bosques, onde a luz se reflete sobre as cascas
ressecadas e grossas figueiras estendem seus ramos, me encontro junto ao Ashram da
Mãe. É uma casa como qualquer outra, junto ao caminho que se continua até as
alturas do povoadozinho himalaico de Mussorie.
Arcos de flores pendem sobre muros e através das portas chega uma música
de tablas, atabaques e pianos de vento. Estão cantando. As pessoas circulam com
liberdade. São homens vestidos com a cor açafrão dos mendicantes, semi-desnudos,
com rostos ascéticos ou pupilas iluminadas. As mulheres se agrupam separadamente.
Constantemente entram e saem novos visitantes; vem com frutas e grinaldas e
partem com as mãos juntas e o rosto inclinado.
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A duras penas consigo entrar no grande hall. Busco um lugar separado onde
possa sentar e observar. Fico junto a um homem jovem, de barba um pouco
avermelhada e de cabelo comprido até os ombros. É magro e contempla com os olhos
semicerrados o assento da Mãe. Como ele, cruzo minhas pernas. O hall está cheio de
gente e, através dos cânticos, voam pétalas de rosas que caem sobre o rosto e os pés
da Mãe. Novos grupos entram e se prosternam à seus pés, depositando ali frutos,
flores, presentes. Ela toca as cabeças prostradas, põe grinaldas, devolve os frutos e
todos partem felizes.
Agora a Mãe canta; mas, de repente, deixa de fazê-lo. Se queda imóvel como
uma estátua. Ao seu redor, tudo silencia: os timbales, o piano de vento, as tablas, as
pequenas campainhas celestiais se calam. Os discípulos deixam de abaná-la. Ela,
sentada ali, no meio de amplo hall, com as pernas cruzadas, o cabelo sobre os
ombros, as mãos juntas repousando em seu regaço, deixou de ser o que era. Seus
olhos se fecharam, sobre seu rosto caem os anos, os séculos. Uma grande palidez
começa a cobri-la. Em meio ao silencio, uma incrível transformação acontece. A, até
um momento atrás, mulher sedutora, sem idade, há deixado de ser mulher, começa a
perder seu sexo. Seu rosto, sua expressão, reflete algo dramático, angustiante.
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Observo suas mãos. São iguais, com as mesmas pulseiras simples em torno do
pulso; estão serenas, repousando; porém algo fundamental há mudado, são e não são
as mesmas. O cabelo sobre os ombros já não é o de uma mulher, a pele já não
transmite polaridade alguma. Algo partiu deste corpo, algo deixou de ser. Seria
impossível agora sentir atração por um fio deste cabelo, por um dedo de suas mãos,
por esses lábios exangues, duros, de pedra. É a esfinge, é a morte. Uma grande paz se
estende por seu rosto. No ambiente, faz um instante tenso, cruzados de correntes, de
perfumes, vida amor e paixão, algo se dissolveu, a paz se fez; se poderia até escutar a
batida dos corações, se todos os corações não se houvessem detido, o zumbido de
uma mosca, se até as moscas não estivessem imóveis. Sinto que em mim se fez
também a paz e contemplo a esta pedra, a este abismo que nada diz, que a nada
incita. E dou graças a Mãe por tirar-me assim, de um só golpe, das torturas do
samsara, por abrir meus olhos e deixar-me quieto na borda da angústia. Sem virar o
rosto, sei que ao meu vizinho acontece o mesmo.
O calor inclemente do meio dia se faz sentir. A maioria dos homens se retira
às pequenas celas ou aos quartos, para repousar. Meu amigo, o francês, me deixa num
deles. Preparam-me um lugar no chão. Tiro a camisa e me deito. Fecho os olhos.
Trato de dormir. Por um momento, consigo. Vejo verdes copas de árvores, figueiras
de Buda. Desperto. O calor me abrasa. Volto a cair na sonolência. Não sei quanto
tempo passei assim. O solo é áspero. Abro novamente os olhos. Junto a mim há um
homem abanando-me. O abanador é de esteiras umedecidas e o ar traz perfumes de
sândalo. Alguém está recitando orações em sânscrito. As salmodias caem em meio ao
calor como uma água refrescante. O rosto do homem junto a mim é largo e sorri ao
ver-me abrir os olhos. Do outro lado se encontra, estendido, um inválido. Começa a
falar-me; conta-me que, faz alguns anos, teve um acidente e quebrou a coluna
vertebral. Consultou toda classe de médicos. Estava desenganado. Agora a Mãe lhe
deu esperanças. Disse-lhe que viverá. O homem está amarrado pelo peito com
correias. Umas talas na espádua o mantém com o busto erguido.
A Mãe me receberá as quatro. Lavo o rosto com água fresca e entro num
pequeno quarto. Meu amigo francês está ali. Outro jovem, vestido com um dhoti e de
peito nu se senta no chão. A Mãe se acha sobre um estrado, coberta com um lençol
branco e almofadas. Junto a ela há uma mulher velhíssima, vestida com panos de cor
açafrão e com a cabeça completamente raspada. Mãos, pés e rosto são pequenos e
parece uma múmia. É a mãe da Mãe.
Ananda Mai só fala bengala e híndi. O jovem junto a ela se faz de intérprete.
É ela quem fala, dizendo:
- Te vi entrar esta manhã. Sabe? Ontem a tarde pensava em meu irmão, que
morreu quando eu era menina. Se parecia muito com você. Hoje de manhã acreditei
que era meu irmão quem entrava.
O GRANDE EGO
Desejo visitar o ashram do Swami Sivananda. Sei que ele esteve no Kailash faz
alguns anos. Lendas e rumores correm sobre este swami, como sempre. É do sul, de
Madras; foi médico em Malaya e seguramente terá um conceito distinto da
experiência do Yoga. Renunciou à vida de família e a sua profissão para retirar-se aos
Himalaias. Depois fundou este ashram, ou monastério, o qual chamou Universidade
da Selva e Sociedade da Vida Divina. Aqui vive, rodeado de discípulos, de árvores, de
colinas e de macacos. O ashram possui um ginásio para o Yoga físico, um estúdio de
fotografia, uma imprensa, um hospital, uma maternidade e uma escola. As habitações
do Swami ficam na parte baixa, junto ao rio. Em outra ribeira do Ganges se levanta
um templo moderno, o Gita Bhavan; mais acima, remontando a corrente e sempre na
ribeira oposta, se encontra Lakshman Jhula, com um pequeno templo, mais antigo.
Tiramos os sapatos e descemos uma escada estreita até o refúgio. Está escuro
aqui embaixo. Meus olhos tardam em se acostumar. A luz penetra por uma janelinha
alta. Agora, vejo um homem sentado com as pernas cruzadas sobre um pequeno
estrado, no chão. Estão lhe dando uma massagem, nos pés e braços. Um discípulo
mantém um pano úmido sobre sua cabeça raspada. O swami permanece com os olhos
e a boca levemente entreabertos. Há outros homens reclinados neste local. Um odor
estranho impregna o recinto. Provém talvez de umas frutas amontoadas num canto,
de algumas ervas e mangas maduras demais. Através dos muros de pedra se filtra o
ruído das ondas do Ganges, que golpeiam quase ao nível da janela mais alta. Estamos
abaixo d'água, a milhares de anos de distancia, na Atlântida submersa. Este odor é o
das frutas da Atlântida. Desse swami se solta também um perfume estranho, de
morte, de ressurreição. Vem de uma tumba muito funda, abaixo do mar, traz sobre si
a marca da Serpente e da Árvore. O cheiro das frutas e de seu corpo me embriagam.
Posso perder aqui os sentidos, porque reconheço tudo isso, pois também já estive
debaixo d’água. Sei o que acontece a este swami porque também eu já permaneci
enterrado vivo.
O swami faz estalar uma língua seca. Abre seus olhos e mira acima, até a luz
do Ganges. Sorri tenuemente, com um sorriso infinitamente triste, infinitamente
desamparado.
Agarwati me consulta para saber se quero perguntar algo, pois ele conseguiu
um tradutor. Sorrio-lhe também com doçura e lhe digo que não... Para que?
Cruzo pela primeira vez as águas do Ganges. Deixo cair minha mão pela borda
e apalpo a água, tomo-a entre meus dedos.
-Você é diferente – diz – você pode viver como nós, por isso quis convidá-lo a
tomar chá, modestamente...
O jovem swami olha mais além, através da porta, mantendo seu sorriso fixo.
Os macacos se balançam sobre a janela.
Vamos visitá-lo agora, em sua habitação junto ao rio. Ali está, com seus
monges e alguns visitantes. Junto à sua volumosa figura se inclina um jovem monge
de beleza clássica. Moreno, com cabeça raspada. Revisa cartas e as passa ao Swami,
que as lê rapidamente e as devolve, ditando alguma resposta. Acena-me para que eu
me sente ao seu lado. Penso que chegou o momento de perguntar-lhe aquilo para o
qual eu vim e que levo dentro de mim o dia todo.
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-Quando esteve lá, viu alguma ermida, algum monastério habitado por
brâmanes?
Recordo que meu Mestre me dizia que era dentro onde seus mestres
habitavam... O monte estava perfurado... E uma luz especial inundava o recinto...
Também me lança uma fruta. Pego-a no ar e lhe olho nos olhos. Noto que há
um relâmpago de bom humor, uma certa cumplicidade. Agora Sivananda se levanta,
toma um dos instrumentos, umas varetas de metal, largas, com guizos, e começa a
dançar e a cantar. Move seu corpo volumoso, sua carne solta, seus peitos. Porém ele
está longe disto, está vivendo o mito, representando seu papel.
Estamos tão longe de todo o conhecido que seria superficial pretender julgar
com nossos valores e dizer que aqui há uma tremenda vaidade, um diabólico
orgulho, um grande Ego. Este seria um quadro traduzido do nosso; porém não é a
essência, não é a verdade. Talvez o que exista nisso tudo seja bondade, ingenuidade,
uma alma de criança que vive ou trata de reviver um mito, de ressuscitar um passado
real de deuses que, por desgraça, está morto.Sem dúvida, não sei, prefiro não julgar.
Porque não sei nada, absolutamente nada.
Muito cedo, pela manhã, discípulos e visitantes vão praticar Yoga numa sala
sobre a colina. Nessa mesma hora, o jovem Sidananda estará em profunda meditação
em sua pequena cela, com seus olhos voltados ao interior, até outros mundos. Não
creio que pratique ainda o Yoga físico, mesmo que nela seja um mestre. Do outro
lado do rio, o Swami Sukhdevananda pode estar visitando de novo a Atlântida
submersa. Em toda a Índia, por caminhos e montes, os peregrinos meditam, entoam
orações, sonham, se lavam, invocam seus deuses. O Swami Sivananda talvez durma.
-Você quer meditar no templo? – pergunta – Fiz aqui minha morada durante
minha permanência no ashram, a espera de ser iniciado pelo Sivananda.
OS MONSTROS REGOZIJANTES
Agora passo por Haridwar, uma das sete cidades sagradas da Índia, nas
margens do Ganges. Milhares de peregrinos vêm banhar-se aqui, nas suas águas.
Mais abaixo, nos grandes cais e banhos públicos, onde o rio corre amplo e
majestoso, todo um povo está se banhando. Há templos e música. As vacas e os
burricos se misturam com a multidão. Desde altos corrimãos, uns rapazes mergulham
de cabeça nas águas. Famílias entram na correnteza, de mãos dadas. Porém não há
alegria. Tudo é silencioso, como um sonho, tudo é rito, liturgia legendária, algo que
vem se repetindo desde os séculos. Sobre as águas o sol está se pondo. As cúpulas se
refletem, rosadas, sobre suas superfícies.
Pouco a pouco meus olhos se fecham. Entre sonhos, continuo vendo esse
manto açafrão e aqueles auto-retratos monstruosos, cheios de malícia diabólica.
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Sem dúvidas que há também diferenças. Ainda que ambos vivam rodeados de
mulheres, no caso de Krishna o mito é pagão em sua forma, ainda que seu sentido
simbólico possa ser o mesmo. O sol marcha através do firmamento rodeado de
estrelas.
É o Cristo da Atlântida.
Desde as profundas águas do novo dilúvio – que bem pode ser de fogo – desde
o rio, desde o mar, emergirão a Serpente Alada, a Pomba. E Elas serão o que uma vez
foi o homem.
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OS LUGARES SANTOS
Alguém me golpeia. Sinto um ruído seco e vários homens junto a mim caem
ao solo. Uma sombra passa por entre os corpos. É alguém que foi possuído pelo deus,
um homenzinho de longa juba, de sobrancelhas arqueadas, de olhos borrados. Tira a
camisa e as calças. Fica assim meio nu frente à estátua de Krishna e começa a se
contorcer e a bailar. Exclamações de júbilo saem da multidão. Cresce o canto, o ritmo
aumenta até o delírio. O homenzinho se dobra, arqueia. Com as mãos nas cadeiras,
está bailando uma dança profana, acompanhada com sons guturais produzidos pela
sua garganta, por sua cabeça. Baila diante de Krishna, é possuído pelo deus azul.
Salta, se enruga, se lamenta, se queixa. A multidão se agita ao compasso anímico
desse acontecimento.
Assim segue esta história doce e tremenda até a meia-noite, até que o deus
azul tenha nascido. Nasce dentro dos espectadores, naturalmente e também à força, a
puxões, aos empurrões, dilacerando e amando.
Fui ver o rio Yamuna, o que conheceu a infância de Krishna, o mesmo que
levantou suas ribeiras para beijar os pés do infante e separou suas águas para abrir-
lhe o caminho. Aqui também dormia a serpente Kali-Naga. Aqui Krishna combateu.
Perto, fica Gokula e os fiéis vão em peregrinação através destes lugares santos.
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Algo frio me toca o rosto. É um pequeno sapo que saltou sobre mim. Não
me mexo, tão abstraído estou. O sikh já dorme junto à sua espada. Mais além uma
mulher se queixa, os camelos bufam. Pouco a pouco também vou caindo no sono,
caindo mais e mais num profundo Krishna.
Este amor tem sempre algo de proibido. É um amor ideal, à margem dos
trabalhos e dos dias, é uma fusão mais além do imediato, nos jardins, na antiga
floresta de Vrindavan. Na noite, longe do esposo, na loucura da dança, no mistério
do eterno feminino e do eterno masculino. Radha voltará logo do jardim até sua casa
e será ali a esposa fiel do pastor, até que não sinta de novo o chamado. No
cumprimento deste mistério é possível que o esposo se sinta satisfeito, porque o
amante azul, o menino divino, é também filho e sua esposa dará à luz a um deus.
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Fui ver o Taj Mahal ao amanhecer. Na verdade, não fui, pois dormi perto dele,
sobre a relva. Contemplo-o desde diferentes ângulos. Subo ao pórtico da entrada. O
Taj Mahal é como um domo alvo, rosado ao amanhecer, com uma só entrada, com
muros trabalhados com pedras semipreciosas, que imitam flores de jardins edênicos.
Sua cúpula redonda, seu corpo total, se levanta sobre um grande terraço de mármore
quadrangular. O Taj Mahal é um círculo no meio de um quadrado. É uma mandala.
Em Fatepur Sikhri canta o pássaro das ruínas. O faz desde a manhã até o meio
dia. Seu grito se repete monótono, sempre no mesmo compasso. O pássaro não é
visto, estará entre os arbustos deste deserto ou parado sobre os tetos de pedra
vermelha, sobre os capitéis e pilastras em ruínas da cidade do grande mongol, Akbar.
O calor paralisa a vida, a luz refulge com o vermelho da velha cidade. Aqui
estão gravados em pedra os pensamentos de um filósofo que quis compreender o
efêmero, introduzir-se através de seus resquícios, observar a eternidade valendo-se
do intelecto. Vão intento! Sobre a simetria do assimétrico, sobre o equilíbrio do
irregular, hoje canta o pássaro da morte.
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O CANSAÇO
Não posso dormir. Quando o faço, é só por um breve instante, para despertar
banhado em suor, com fortes angústias. O sikh veio e me recomendou um médico
ayurvédico, da antiga medicina tradicional indiana. O esgotamento e o mal estar vão
aumentando. De algum lugar me sobe um cansaço e uma repulsa por tudo isto, pela
Índia, pelo ambiente, pelos odores, especialmente por estes perfumes doces,
estranhos, pelo pó dos caminhos.
Por fim, chega o médico. Está aqui, junto ao meu leito. Olha-me sem dizer
nada e, depois de um tempo, se vai. Faz deste modo pelo espaço de uma semana, ou
quiçá mais. Às vezes me fala. Não é este um doutor ayurvédico, é um médico indiano
alopata, mas como só um indiano pode chegar a ser.
E segue falando:
-Deixemos que sua enfermidade se esgote por si só. Logo vou descobrir do que
se trata. Conte-me algo de suas experiências internas. Não foi ainda a Khajuraho?
Quando se encontrar melhor, lhe passarei um comentário sobre o Bhagavad Gita,
feito desde um ponto de vista mais atual, também algo sobre o Raja Yoga, o Yoga
Kundalini, escrito por um médico, o doutor Vasan Rele... Também esses velhos
deuses de Khajuraho jogavam seu grande jogo tântrico com o Kundalini... Libido, lhe
chamariam hoje em dia...
Durante o dia vejo o sikh dormindo num canto, sobre o chão. Busca os lugares
mais frescos e assombreados. É meu servente e está aqui para o que eu possa
necessitar. Também, de tempo em tempo, entra o intocável, que varre o chão e cruza
de cócoras todo o quarto, vai e vem, varrendo desta forma, levantando nuvens de pó
que me asfixiam.
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Decido enviar-lhe uma mensagem. Conto-lhe que estou enfermo e lhe peço
que pense em mim. Depois me esqueço completamente. E continuam os dias e a
febre. Um macaco se mostra pelos vidros. Olha-me e me faz um trejeito. Ergo-me um
pouco e o contemplo diretamente nos olhos. Não me diz nada. Não há a menor
correspondência. Um cachorro, um gato, até um destes lagartos que se equilibram
pelas paredes me entenderia melhor, saberia o que me acontece, me devolveria um
pensamento. Estou certo de que o homem não descende do macaco. Se há alguém
que sabe disso ainda melhor do que nós é o próprio macaco. Melhor, nós
descendemos do cachorro. Sinto que os cachorros são meus irmãos. Os cachorros nos
acompanham silenciosos, mudos, nos sentem, nos compreendem. Vão conosco desde
há muito tempo, pela história. O cavalo nos abandonará, porém não o cachorro.
Entre o latido de sua vida e a nossa há algo em comum. Sem dúvida, os indianos não
sabem disso. Seus deuses macacos, seu deus Hanuman. E agora, ao olhar o rosto deste
macaco, grudado no vidro deste quarto, posso ver quão pouco se preocupam os
deuses conosco. Na verdade, nada temos em comum com os deuses.
Mas, como os cães nunca foram deuses, eles vão conosco, eles nos
compreendem. Neste mundo de deuses da Índia, o cão não tem lugar.
É curioso, mas desperto melhor. Já não tenho febre. Dois dias depois recebo
uma mensagem do Swami Sivananda, na qual me diz haver recebido a minha e
ordenado orações por minha saúde. Tudo isto coincidindo com minha visão, com
meu sonho e com minha melhora.
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Nem sequer me importa se o Swami não for honesto, que não leve vida santa,
que não medite, que não o tenha feito nunca, que não tenha ido jamais à floresta e à
montanha, que lhe agrade boa comida, a adulação e o bom viver. Nada disto me
preocupa, pois está na superfície. Mais além, no fundo, há um oceano, um mar
enorme como uma montanha, um senhor, um rei. Tudo junto: rei e bispo glutão.
Tudo junto como a vida, como a Índia.
Não posso negar que, se minha cabeça pensa uma coisa, minha intuição
advinha outra. E esta última é a que acerta. A resposta, a tenho agora. Já não
necessito ver mais a Sivananda em Rishikesh, porque o vi agora para sempre. E esta
visão certeira me melhorou.
Com sua carta me manda uns pós vermelhos, de sândalo, para que os passe no
rosto e umas folhas dos Himalaias. Passo o sândalo entre as sobrancelhas e acendo
uma varetas que perfumam meu quarto. Já não me molesta seu cheiro.
O médico dirá que a malária foi vencida, que a febre se foi. A convalescença,
como sempre, é um regresso à vida.
Passam os dias até que a porta se abre e entra um homem gordo, de astracã.
Parece um muçulmano. No entanto, é um hindu, que se oferece a ensinar-me o híndi
e o sânscrito; também quer vender-me algo. Quando descobre que estive doente e
que convalesço, depõe sua atitude de ave de rapina.
-Sim, penso ir a Almora – lhe explico – Desejo conhecer esta cidade que é a
porta na peregrinação ao monte Kailash.
-O Kailash está longe e nas mãos da China... Deixe isto para mais adiante. Vá
se recompor na Caxemira. Ali você pode alcançar Amarnath, nos Himalaias, a
caverna onde se encontra o lingam de gelo de Shiva.
Sim, irei a Amarnath, visitar Shiva em sua guarita de neve. Já estou bem, já
me sinto de novo forte. A esperança de novas aventuras me dá forças.
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OS ANJOS DE GELO
Sem dúvida que o mais solitário dos picos é o do K2. Longe, separado, no meio
do deserto, se ergue como um anjo das estepes. A aldeia mais próxima fica a seis dias
de viagem de suas encostas. Se parece só com o Nanga Parvat, um dos cumes mais
belos e solitários, superando em altura suas irmãs brancas. A luz golpeia sobre suas
vertentes. O Kanchenjunga é talvez mais belo ainda. Porém, há outros cumes quase
desconhecidos em Hunza e no Pamir: o Rakaposhi, por exemplo, que se empina
desde o rio Hunza. Desde o antigo Turquestão se podia ver o alto pico do Pamir
levantando-se soberbo e isolado.
Porém os deuses falavam. Eram os deuses dos altos picos, dos cumes
himalaicos. Aqueles que o homem também escutaria depois. Porque as velhas raças
povoaram de deuses estes soberbos cumes. São os deuses da Índia, o Kanchenjunga, o
Anapurna, o Nanga Parvat, o Kailash, sagrada morada de Shiva e de sua esposa
Parvati.
Detrás dos antigos jardins de Shalimar, num pequeno vale, talvez o mesmo
onde Shiva revelou em sonhos ao sábio Vasupgupta os sutras da filosofia Trika, vive
hoje o Swami Laxmanju, filho de sábios brâmanes. Este jovem swami permanece em
meditação num local separado e idílico. Como seus progenitores, aprofunda-se na
filosofia Trika, que é um shivaismo típico da caxemira.
Vou vê-lo uma tarde, andando por caminhos distantes. O Swami vive no alto
de uma casa de madeira levantada sobre pivôs. Para chegar até seu refúgio é
necessário subir uma escada pendente.
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Recebe-me coberto com uma túnica longa. Seus pés estão desnudos e sua
cabeça raspada mostra uma mecha fina na nuca. É jovem e seus olhos negros,
profundos, parecem penetrar as sombras que já se estendem.
O Swami Laxmanju citou a Abhinava, agora se cala. Mas, o que pensa ele? O
mesmo que seu ilustre antecessor? Aí onde o Trika responde e justifica a criação, as
formas, o mundo, a soma infinita dos números, o Vedanta silencia, não explica, nega
a realidade como um sonho, como o sonho de Avidya, de Maya. O Vedanta não
explica o mistério, o aparente engano do nada. O Trika recorre a imagens, a
comparações com o oceano e com as ondas. Comparações todas tão caras à alma e ao
clima da Índia.
Digo:
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-Não há nada mais perigoso que a imagem, que a comparação com o visível
para explicar o invisível. Parece tão certo, tão exato, tão seguro e por sua natureza
mesma tem que ser incerto, inseguro. Tenho uma tremenda desconfiança da imagem,
do que parece certo.
Escolhi uma pequena casa-bote sobre o lago Dahal, para viver, num local
afastado, junto a uma grande plantação de lotos, que cobre toda a água até uma
pequena ilha vizinha. Tenho uma shikara à minha disposição, espécie de canoa, com
a qual me traslado pelo lago, brandamente, até chegar aos canais que levam à cidade.
Remadores alegres me transportam, rindo ou cantando. A maior parte do dia passo
sem mover-me, dentro desta casa-bote, com madeira entalhada, mobiliada
confortavelmente, coberta de almofadas persas, afegãs, turcas. A casa-bote se acha
amarrada a uma ponta de terreno atapetada de flores, que leva à terra firme. Por aqui
transitam meninos e um ou outro lavrador.
Esta tarde contemplo como o anoitecer chega sobre as colinas azuis. Mais
além está o Tibet e se estendem as estepes da Ásia Central. Os trans-himalaias e o
Kailash, e também Amarnath, a gruta que guarda o lingam de gelo de Shiva.
O sol cai sobre estes montes. O lago e os lotos se tingem de vermelho. Uma
canoa coberta de flores cruza ao lado. Desliza-se sobre o lago límpido, evitando o
verde das algas, acariciado pelas mãos, os dedos de lotos. O barqueiro canta. Um
menino lhe faz coro. Sua voz se eleva pura, com as inflexões e as cadências do
Oriente.
Cai a noite. Sobre almofadas, durmo. Entre sonhos, acredito estar ouvindo
uma flauta distante. As notas desta flauta se fazem cada vez mais agudas, se
aproximam. Abro os olhos. A flauta não desaparece, não deixa de soar; é como se um
pastor fosse caminhando por esta faixa de terreno que, junto à minha casa-bote, se
estende sobre o lago. Os sons são distantes no tempo, como do deus Pan. O som desta
flauta da caxemira vem do abismo dos tempos. O que a está tocando talvez seja um
deus, um menino-deus azul, ou um pastor menino, que chegou aqui, até esta noite
perfumada de flores e lotos, cruzando as planícies da Ásia Central, por Iskandaria, a
antiga, desde a cidade dos césares gregos, através dos desertos nevados do Karakorum
ou do passo do Kayber.
Então recordo um sonho de muitos anos atrás, mais de vinte. Tão logo se
abriam as névoas, sobre uma ilha distante, quiçá a ilha de Chiloé, vinha avançando
uma carreta, dando solavancos. A paisagem estava coberta de musgo e de grandes
árvores de troncos nodosos. Dentro de carreta ia um rapaz com gorro de peles.
Estávamos no norte e no sul do mundo. Esse menino também tocava uma flauta e, ao
passar junto a mim, me sorria de modo especial, cheio de conhecimento. Seus olhos
profundos e alegres me olhavam, como se quisessem dizer algo que eu sabia.
42
A TUMBA DE JESUS
Fui ver a essa tumba. Muito poucos sabem da sua existência e do lugar onde se
encontra. Custa chegar. O lugar se chama Rozaball e a rua, acredito, Khanyar.
Era de tarde. Na luz do crepúsculo os rostos dos homens, das mulheres e das
crianças desta rua tomavam um caráter sagrado. Eram velhíssimos, de persas ou
quem sabe judeus de outros tempos. Acredita-se também que as tribos perdidas de
Israel emigraram até a Índia. Os olhos profundos das jovens tem brilho bíblico. Elas
usam camisões largos e se adornam com jóias primitivas. As crianças contemplam um
ponto distante e se inclinam até a luz e a sombra que rebate sobre as pedras. Há uma
atividade lenta, de entardecer, nesta rua de Rozaball.
Sobre a parede deste recinto se acha uma inscrição, traduzida do sharda. Diz:
Se abrirmos esta tumba da caxemira, veríamos, por acaso, que também está
vazia?
44
O SWAMI DE ASHAHABAL
A pergunta eu fiz ainda sem dormir, mas a resposta veio quando eu já dormia.
Terá o Swami alguma coisa a ver com ela? Talvez nem eu nem ele tenhamos
respondido. Quiçá a resposta proceda destas zonas em que nem ele é ele nem eu sou
eu. Talvez venha dessa região em que somos um, em que somos nada, ou em que
talvez estejamos em Jesus. Ninguém respondeu. Ou respondeu Jesus quando era nós.
O lugar onde o Swami vive se encontra isolado, sobre umas colinas suaves. É
um local formoso. Por um momento contemplo a linha dos montes e dos bosques de
pinhos. Milhares de flores silvestres cobrem a pradaria e perfumam o meio-dia. Há
aqui entrada rústica sobre a qual se lê a seguinte inscrição: “Sri Ramakrishna
Mahasammela Ashram – Naghdandi – Ashahabal.”
Conto-lhe meu sonho noturno. Ele volta a fixar sua mirada sobre colinas e
pinheiros, inteligentemente agora, e diz vagarosamente:
Isso é tudo.
46
-Seu sonho é curioso... Há pessoas que crêem nos sonhos... Em Benares vive
Gopinath Kaviraj, é um escritor de renome, menciona em um de seus livros uma
instituição muito antiga chamada ‘Jnana Ganj’. O mestre de Gopinath Kaviraj parece
que foi iniciado num desses secretos ashrams do Himalaia... Vá ver Gopinath Kaviraj,
vá a Benares...
47
A CAVERNA
Seguirei o conselho do Swami Ashahabal; mas antes devo escalar os picos dos
deuses, subir os altos Himalaias, a Amarnath, trono de Shiva, santuário do lingam de
gelo.
Meu guia será Kamala, um muçulmano alto, magro, de perfil aquilino, olhos
inteligentes e simpático, que tem esse nome de mulher. Encontramo-nos em
Pahalgam, a trinta milhas de Srinagar, ponto de partida para as peregrinações a
Amarnath. Ishmakan, cidade pequena sobre um cerro, fica no caminho de Pahalgam,
o rio Lidder corre por aqui.
Acredita-se que Shankaracharya tenha sido quem criou todos estes locais de
peregrinação na Índia, os quais, partindo do cabo Comorin, cruzam o subcontinente
em todas as direções. Pensa-se que pode haver um objetivo de unificação e de
extensão do hinduísmo. Com efeito, ano após ano, os hindus do Punjab, ao norte,
baixam até o sul, para banharem-se nas águas dos três antigos mares que se juntam
no cabo Comorin; os drávidas do sul sobem até as neves do Himalaia, em busca dos
santuários de Shiva e Vishnú.
Estou escalando a pé e com dificuldade. O rio Lidder corre agora a 600 metros
abaixo e nós subimos de 270 a 3.600 metros. Os cavalos se detêm com freqüência. Ao
fim, chegamos ao pico desta costa empinada e, outra vez, se estende ante nós uma
longa pradaria, coberta de flores pequenas, azul claro, como as mariposas que estão
voando nesta tarde das alturas.
Em alguma parte, cai o sol. Os peregrinos pararam atrás; mas sobre uma
rocha, pendurado sobre o abismo, vejo um monge, com seu manto açafrão, que se
apóia em seu cajado e contempla as cores do crepúsculo. Está abstraído, orando,
sonhando, quem sabe, enquanto o vento lhe verga como a uma folha.
Volto para minha barraca. Os peregrinos repetem canções dos vales e dos
desertos ressecados pelo sol.
49
O gelo refulge com o sol, fere a vista e a atmosfera pura, delgada, enche de
uma alegria especial. Aqui, sentado sobre o gelo, se encontra outro ser estranho. É
um swami de olhos doces, de barba crespa e de manto cor de açafrão. Ao me ver
avançando com dificuldade sobre o gelo, se põe de pé e continua ao meu lado sem
dizer uma palavra. Pouco a pouco nos vamos aproximando a uma montanha frontal
em que, de repente, aparece uma sombra. É a caverna de Amarnath, o refúgio, o
santuário, a guarita do deus Shiva, de seu lingam de gelo, de seu símbolo lendário.
Alguém se encontrou com alguém a quem buscava faz tempo, ali, na sala do
palácio, no topo da Árvore da Vida, na caverna de Amarnath. E a alegria do
reencontro se expressa em lágrimas de gelo, em pétalas de neve.
Ungido com sândalo, com o rosto cruzado pelas linhas de Shiva, me despeço
desta visão última do gelo. E ao sair da caverna, ouço que um homem coberto de
peles, de olhos febris, me grita: ‘Kailash! Kailash!’ E estendo um braço até a parede
frontal que encerra o recôncavo, apontando até as planícies trans-himalaicas do
outro lado, até o Tibet.
51
O CRISTO DA ATLÂNTIDA
Uma nova onda de judeus chega à Índia ao redor do século IV da nossa Era e
outra, a última, nos séculos XVIII e XIX.
Os judeus que chegam a Kerala nos primeiros anos da nossa Era foram
recebidos por um dos imperadores Perumal. Desceram em Thiruvanchikulam,
capital dos antigos imperadores do Kerala, hoje Cranganore. O imperador lhes
entregou ali, em Garur, uma aldeia mais ao sul, terras onde construíram suas casa e
sinagogas. Trezentos anos depois, o imperador concedeu a José Rabban, o chefe da
comunidade judia, o título de Srinandan-Moplah e lhe fez nobre de seu reino. Os
judeus foram chamados Anjuvarnar, a quinta casta, fora das quatro castas do
hinduísmo. A ordem do imperador foi gravada num prato de cobre, segundo o
costume, e escrita em Vattezhutu, a antiga escrita popular ao sul de Tanjore.
Isto, supondo que os judeus negros tenham vindo de fora; porque existe a
lenda de que os judeus são originários da Índia e da raça Dravídica. Como os ciganos,
que pertencem às castas baixas do hinduísmo, os judeus haveriam partido um dia da
Índia em direção ao Ocidente. A extraordinária força de persistência em
comunidade, de defesa contra toda mistura, teria sua raiz no sistema de castas hindu.
Tanto ciganos como judeus não se misturam com outros povos por este atavismo.
Pertenceriam, assim, à raça ‘mediterrânea’, que haveria partido da Índia num tempo
longínquo. O regresso dos judeus à Índia, a terra remota dos antepassados, seria como
a dos parses, que retornam também em busca de seu tronco comum ário, empurrados
pelo instinto, no momento de sua tragédia.
Do mesmo modo que os judeus e quase um século antes, conta a lenda que
Jesus, o Cristo, também veio a Índia, ‘terra de seus antepassados’.
Cristo pertencia à seita dos essênios, da qual João, o Batista, seria um dos
membros. João batizou ao Cristo num rio, numa cerimônia parecida a que ainda hoje
se cumpre diariamente entre os hindus, durante suas abluções nos rios sagrados.
54
O texto diria: ‘Jesus veio à Índia com a idade de 14 anos e depois de 16 largos
anos de concentração, lhe foi dado ver à Shiva, o grande deus. Depois disso, retornou
a seu país e começou a pregar. Mas seus compatriotas materialistas e embrutecidos
conspiraram contra Ishainath e lhe crucificaram. Ishainath, o que viu à Deus, entrou
em Samadhi por meio do Yoga, o qual o fez para o bem dos três mundos.
Acreditando-lhe morto, os bárbaros o enterraram na tumba, mas um dos seus gurus,
o grande Chetan Nath, que se achava em meditação na vizinhança das regiões baixas
dos Himalaias, pode ver as torturas a que Ishainath era submetido e, fazendo seu
corpo mais leve que o ar, cruzou as terras dos israelenses. Era um dia duro, com
trovões e relâmpagos, porque os deuses estavam enfurecidos e o mundo tremeu.
Chetan Nath tomou o corpo de Ishainath da tumba e o despertou do Samadhi,
trazendo-o consigo à terra sagrada dos arianos. E estabeleceu ali um ashram, nas
regiões baixas dos Himalaias e instaurou o culto do lingam e o yoni, o culto de Shiva.
Ishainath abandonou seu corpo por vontade própria, por meio do Yoga, aos 49 anos,
no ashram estabelecido por ele.’
Neste estranho documento, Jesus seria chamado Ishai Nath. Jesus, ou Jeshua é
hebreu. Em grego é Issoas e em línguas da Índia é Eeshai ou Isha, que significa Deus.
Ainda hoje Jesus Cristo é chamado ‘Ishaimashi’ entre os cristãos que falam
híndi e urdu, na Índia.
55
Jesus é, assim, Shiva e Krishna. Ele é, então, o mestre dos meus mestres, como
diz a canção dos Nath, o que eu busco através dos picos e dos gelos. O Cristo da
Atlântida...
O que é a Atlântida?
Onde? Sobre as águas, num quadrado redondo, num espaço sem espaço, num
tempo sem tempo, na ‘cavidade entre o cérebro e o crânio’, nesse vazio, em nenhuma
parte, jamais.
Flor, roda, ‘chakra’ em sânscrito, vem a ser algo assim como um centro de
energia, ou talvez de consciência. Um gânglio, um ‘plexo psíquico’ situado ao longo
de uma coluna vertebral invisível. Cada chakra tem sua cor, suas letras, seu animal
simbólico ou seu deus.
É lógico que estes nadis e chakras têm um sentido muito mais sutil e espiritual
que o conceito de nervo, gânglio ou plexo. Os nadis são linhas sutis de direção do
corpo etérico por onde vai a força vital ou prâna (a libido, da psicologia
contemporânea).
57
Enquanto vivemos, estamos dentro do pequeno corpo, que por sua vez está
dentro de outro maior, o Universo. Viajar fisicamente pelo cosmos em veículos
espaciais será como trasladar-se de um órgão a outro. Ir em viagens astrais, mentais,
ao sol e a lua, como fazem os yoguis da Índia e meu Mestre, é viajar de um órgão
psíquico do macrocosmo, de um chakra, a outro: uma viagem psíquica pelas
constelações, mas sempre dentro do grande corpo mental.
Vide e morte são as duas faces opostas de um círculo. Dentro e fora. Não pode
haver comunicação entre os mortos e os vivos, ninguém dali pode vir informar-nos
porque as concentrações devem ser em direções opostas. Na vida, não há espaço para
os mortos e na morte não pode havê-lo para os vivos.
A única solução possível talvez se encontre nessa ciência antiga: o Yoga, que
permite que a Serpente desenrole-se num extremo e permaneça simultaneamente
enrolada no outro. Estar vivo e morto a um só tempo, dentro e fora, no eu em si-
mesmo, no Ser.
Ainda existiria esta pequena senda, esta passagem velhíssima, oculta, de fogo
gelado.
59
Murti, a imagem, que fora proibida pelo budismo,volta, retorna com força
avassaladora. A imagem é Maya, o Universo mesmo. O artista, o escultor anônimo, a
intui, a capta. É o mesmo através de toda Índia, nesse movimento que vem desde a
época de ouro da arte Gupta, até o grande renascimento medieval, que se representa
no Trimurti de Elefanta, nos trabalhos de Ellora, Belur, Bhubaneswar, Puri, Konark e
Khajuraho.
Quem foram estes escultores, esses semideuses anônimos, que traçaram estas
formas incríveis? Somariam aqui mais de uma dezena? Os rostos, as formas, são
sempre os mesmos, em milhares de esculturas. Os artistas parecem ater-se a um
canon preciso, a uma simbologia do sinal e do gesto, tal como na dança hindu.
60
Quem foram? Eles conheciam o grande segredo. Sabiam que a Mãe, Shakti, a
Primigênia, amanheceu um dia olhando-se num espelho e logo em outro e em outro.
E assim se produziu o mundo. Eles são também um espelho.
Detenho-me junto aos muros dos templos e toda uma manhã e uma tarde
observo suas inquietantes imagens. Todas as formas do amor carnal se encontram
aqui reproduzidas. A amada é fervorosa no amor, busca a seu amante, segura sua
cabeça com ternura entre as mãos, a envolve com seus músculos, dobra suas cadeiras,
se inclina, se dobra. Seu rosto expressa o êxtase, na contemplação do amado, na busca
e no desejo de fazê-lo sábio, de aperfeiçoá-lo, levando-o até um ponto que só ela
parece conhecer, enquanto seu corpo e sua alma se perdem totalmente na entrega e,
talvez, no prazer inefável que não se nomeia. Outras mulheres ajudam o par central;
são as servidoras, as forças concomitantes. O Amado as incorpora no círculo do gozo,
as acaricia enquanto possui sua Amada, sua consorte divina. Mas estranhamente, o
rosto das servidoras, que ajudam o casal, mantém um rosto sereno, inescrutável,
como oficiantes de um rito. Ainda que Ele as acaricie tão sabiamente, seus rostos não
refletem senão arroubamento, serviço, paz, cumprimento de um supremo ofício,
devoção. E o rosto e o corpo do Amado são também a expressão mesma da ausência.
Acha-se com os olhos entornados, sonhando, presente só num extremo da corda,
sustentando ali a Amada, dando-lhe proteção com divina ternura. Ele aprecia seu
sacrifício, a dor de haver entrado no fogo, a entrega, a angústia desse prazer, dessa
sabedoria, dessa técnica que ela aperfeiçoa e cultiva para poder libertá-lo. Ela baixou
totalmente ao humano, à carne, por serviço, por amor-piedade. É assim a criação, o
mundo; há descido para redimir o Pai, que ainda sem necessitar de redenção, a
necessita. É a filha de Deus, que redime o Pai, amando-o. E Ele, mais além dela, mais
além de tudo, no outro extremo da corda, também a ama com ternura infinita; a ama
como a si mesmo. O Amado está imóvel, rodeado, ubíquo, entregue ao grande jogo e
mais além dele, sustentando sua Amada entre seus braços, penetrando-a, levando-a
de novo dentro de si e tendo-a ao mesmo tempo fora, para sempre. É este um
mistério insondável, expresso em imagens pelo inconsciente de todo um povo, por
seu conhecimento intuitivo.
Sem dúvida, a Índia já esqueceu este sentido. E às vezes parece como que
envergonhar-se dessa grandeza: haver conseguido desnudar o segredo, junto com o
corpo.
O mundo foi concebido como Khajuraho, com a única diferença de que esta
criação foi no começo e aqui sucede no final. Krishna diz: ‘Eu sou o desejo, a luxúria
que procria.’ Isso foi no começo. O Pai se une com sua Filha, que é sua Esposa e
procriam um Filho, que é o mundo. A união sexual talvez seja o reflexo, na Maya
inferior, desse mistério supremo, a imagem projetada no último espelho, o de aqui
embaixo ou o daqui de fora.
62
Os homens que praticavam este amor secreto deviam ser versados no Yoga.
As mulheres, por seu lado eram treinadas desde a adolescência na arte ‘amatório-
mística’. A diferença com as gueixas japonesas, é que na Índia é arte religiosa e, por
isso, não perdura, ao romper-se a conexão, o fio. A mulher era ensinada não a
satisfazer o homem fisicamente, senão a tocar seus centros íntimos, seus chakras,
impulsionando-os até si mesmo, até o Ser. A mulher ensinava o homem a deixá-la, a
abandoná-la, a incorporá-la em si, a desposar-se com sua própria alma. E ela também
aprendia, talvez, a deixar o homem e a dissolver-se na Mãe Natureza, em sua própria
essência.
Sabemos que tudo isso vem de muito longe; mas aqui, em Khajuraho, no
período medieval, reaparece como um culto secreto a Shiva, como reação à tendência
bhakti ou devocional, que havia invadido a Índia. É o Tantra, com os cultos Kaula e
Kapalika, que se praticavam em Khajuraho e em seus arredores, pelo ano 1065 depois
de Cristo. Kaula é também Shakti, a contraparte feminina, a Serpente; seu oposto é
Akula, ou Shiva. A união de Shiva e sua Shakti produzem o Inkaula, o Andrógino. O
rito por meio do qual se lograva isto é o Kolamarga.
Para o yogui tântrico a mulher deverá ser primeiro reconhecida fora, aceita,
como único caminho possível para chegar a incorporá-la à própria alma. Haverá que
desposar-se com ela, porém nas bodas mágicas.
65
AS BODAS
A união dos opostos tem talvez a forma e o som da sílaba Om. Quando os
extremos se unem, cada um cumpre o desejo do outro.
O ROSTO DO DESPOSADO
Pelo rosto do Desposado estão caindo duas lágrimas de pedra. Uma é dele,
outra é dela.
A CANÇÃO DO SUFI
Há essa hora, num ponto preciso deste universo fechado, desse grande Mela,
ou reunião de seres incríveis, se produz uma catástrofe. Alguém se assustou, ninguém
sabe por que, e o terror coletivo acendeu como uma labareda. Alguém caiu, uma
multidão enlouquecida lhe passou por cima, outros mais foram derrubados, centenas
deles e a morte fez sua colheita. Muitos peregrinos morrem no Kumbha Mela de
Allahabad.
70
Vejo passar agora aos feridos em macas improvisadas, aos moribundos e aos
mortos; anciãos e crianças, homens e mulheres. Aqui se reproduz a tragédia da vida
toda. Uma anciã vaga chorando, pedindo proteção. Perdeu todos os seus; é do
extremo sul da Índia, não conhece ninguém. Tomo-a pela mão. Não sei falar sua
língua, não sei o que fazer com ela. Todos estão enlouquecidos, cegos, aturdidos, não
sabem o que pensar, o que dizer, não sabem por que isto aconteceu. Mas a calma e a
reflexão voltam logo a este povo feito para o sofrimento, com tanta capacidade para
suportar as desgraças, porque tudo haverá sido para melhor, se dirão; porque os
mortos neste dia e neste local serão abençoados pelos rios sagrados, pela conjunção
dos astros e dos rios.
Ao meio dia visito o campo dos yoguis e dos sadhús. Ali se acham todos os
mestres conhecidos da Índia, acompanhados de seus seguidores e discípulos. Um
exército de magos e santos, vivendo em tendas. Visões estranhas de homens em
transe, com o olhar estrábico, como mortos ou como ressuscitados num tempo sem
tempo. Queimam-se perfumes de outro mundo naquela ilha visitada por curiosos e
devotos, por milhões de seres. Os swamis, os yogas, se juntam neste dia a orar, a
repetir os mantras. Assemelha-se a um coro de vozes apagadas e milenares. Oram
pelos que morreram no Kumbha Mela, pelos que já partiram.
Entre esses gurus também se encontra Ananda Mai, a Mãe e se diz que
Sivananda logo virá e também o Swami Laxmanju, da caxemira. Mas eu não os vi.
BENARES, A SANTA
As ruas de Benares não tem nada a ver com o mundo terrestre, são algo
indescritível, que escapa a qualquer comparação ou imagem. Alucinam, aterrorizam,
são repulsivas, sedutoras, fascinantes. Aquele que andar por ela com o coração e a
alma abertos, deverá estremecer-se como ante a mais pura e grandiosa poesia
cósmica. A miséria da criação, a grandeza de um espírito triunfante sobre a miséria, a
caridade, a misericórdia, a piedade não cristã, também cósmicas, não humanas senão
divinas, flutuam, transitam por estes corredores da alma que são as ruas de Benares. E
também um riso estrondoso, uma gargalhada tremenda, que tudo agita e parece
dizer: “olha, funde-te nesta farsa, nesta dor, nesta miséria, nesta grandeza, porque
nada disso é verdade, nada é certo, porque todos nós somos comediantes, dentro da
grande comédia, da grande Maia”.
Nestas ruas estreitas, cruzadas por árvores imensas, com ramas que chegarão
aos céus e raízes nos infernos, saltam os macacos e transitam as vacas solenes. Há que
esperar que elas passem, que se dignem a deixar-nos o caminho. As tendas se
aglomeram, concentrando-se também aqui o comércio da seda, dos bordados de
ouro, das maravilhas do artesanato da Índia: os sáris de Benares, as telas trabalhadas
com esta arte delicada, os teares famosos desta cidade. Também junto ao rio, se
levantam palácios faustosos construídos pelos maharajás dos distintos reinos da
antiga Índia. Davam refúgio em seus saguões aos peregrinos. É esta a vida promíscua
da Índia, na qual tudo se faz em comum, rodeado de gente, onde se vive, se ama, se
come, se dorme e se morre em comunidade e, sem dúvida, só, aparte, separado. Cada
maharajá, ou rico comerciante, construiu um palácio. Do outro lado do rio, solitário,
se ergue o palácio do Maharajá de Benares, que não pertence à casta kshatriya, mas a
bramânica, sendo a representação direta de Shiva na terra, segundo a crença.
Porém, mais do que a nenhum outra coisa, a Benares se vem para morrer.
Junto às águas sagradas, o hindu espera esgotar seu carma, liberar-se, ou melhor,
alcançar uma encarnação superior para a próxima vida. Daí estes rostos iluminados,
sobrepostos à dor da carne, à miséria do mundo, não vendo já as sombras, pois já
cruzaram a cortina da sujeira e dos fedores, para aposentarem-se no ouro da luz, na
pérola, no diamante dos lotos.
O carma, ou lei de causa e efeito, que faz com que as ações de hoje
produzam efeito amanhã, numa próxima encarnação, é uma lei puramente mecânica,
para os budistas, não assim para os filósofos vedanticos. Os efeitos dos atos são
computados e pesados dentro de Maia, da Criação, por Brahma Isvara, ou Brahma
polarizado, criador, o Demiurgo. Os efeitos do carma se verão na próxima
encarnação do ser individual e no próximo Kalpa para a humanidade inteira. Carma
quer dizer ato. Para alguns velhos vedantistas existirá um carma coletivo. A ação de
cada um repercutirá na humanidade inteira.
74
Para que o carma possa cumprir-se, para que possa esgotar-se, se faz
necessária uma Grande Roda; a pequena roda de uma vida não basta. Fazem-se
necessárias cinco mil rodas, cinco mil vidas. Eis aqui, então, a diferença fundamental
que nos separa para sempre deste mundo da Índia. Porque eu não tenho mais do uma
vida e isto ainda que eu chegue a pensar o contrário, ainda que chegue a convencer-
me da verdade da idéia da reencarnação – que realmente parece ser certa – porque
uma coisa é crer com a mente, com a razão e outra é levar a idéia no sangue. Ainda
que eu diga que acredito na reencarnação, minha alma, meu sangue, não a aceitam.
Ali, no coração, no sangue, tenho uma só vida e nada mais. Ao contrário, o indiano
moderno, ainda que diga não crer na reencarnação, em seu sangue, na raiz do seu ser,
é portador de cinco mil vidas e todas elas lhe sobem à superfície nos momentos
fundamentais, especialmente no momento da morte.
Badarayana afirma que aquele cujos atos foram muito maus, não sobem até a
lua, mas descem a uma região chamada Samyama, ou morada de Yama. Algo assim
como um inferno. Os Puranas mencionam várias classes de infernos. Desde lá, a alma
regressará a terra, talvez ao corpo de um monstro, de um anão ou um leproso de
Benares, para cumprir com seu carma, esgotá-lo, beber o cálice amargo até o fim.
Para liberar-se.
Os sábios, quando morrem, vão mais longe que a lua, seguem o Caminho
dos Deuses. Eles entram na chama, na lua crescente, no dia crescente, na Precessão
Norte, no ar, no sol, no mundo dos deuses e no relâmpago. Mas não são estas as
moradas da alma, senão guias que a transportam.
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Quando o morto chega ao relâmpago, é posto nas mãos de alguém que não é
um homem. E este ser o conduz ao mundo de Varuna, logo a Indra e a Prajapati ou
Isvara, o Brahma Criador, polarizado, o ‘Logos Espermáticos’. Aqui a alma
permanece até que realize em si o verdadeiro conhecimento. A alma participa de
todos os poderes de Brahma, os compartilha, menos o poder de criar o Universo.
Supõe-se que esta alma não volta mais a Terra, ao menos neste Kalpa ou ciclo.
Aqui em Benares foi onde Buda pregou pela primeira vez, há 2500 anos. O
Sermão de Benares, pronunciado em Sarnath, perto da cidade santa, trouxe a Buda
seus primeiros ‘samanas’ ou monges.
Deixo para a manhã do dia seguinte minha visita ao Pandit Gopi Nath
Kabiraj, objetivo verdadeiro de minha viagem.
Gopi Nath Kabiraj vive não muito longe da sede da Sociedade Teosófica de
Benares. Passa-se por uma grade e segue-se por um jardim descuidado, até entrar na
sala de dois pisos onde habita. Uma escada estreita leve a sua morada. Fiz-me
anunciar dando meu nome e o Pandit me recebe sentado sobre um lençol, nu da
cintura para cima, rodeado de livros e papéis com anotações. O cordão branco do
brâmane, do ‘nascido duas vezes’, lhe cruza o peito.
77
Gopi Nath Kabiraj tem rasgos marcados, fortes, agradáveis. Sua barba está a
meio crescer e branqueia, como seu cabelo. Seus olhos são grandes e inteligentes.
Indica-me que me sente sobre o lençol. Espera minhas palavras com certa tensão.
- Sim, tudo isso existe. Em algum ponto, como você diz. Veja isto.
É a foto de um homem com barbas longas, coberto com um manto.
- Este yogui tem oitocentos anos de idade e reside em algum lugar dos
Himalaias, num desses ashrams secretos que você busca, num Sidha Ashram.
- Não ria, eu vi a estes homens, eles vem visitar-me em corpo astral. Coisas
muito interessantes acontecem. Não faz muito, em 1940 ou 1941, na revista “Journal
of Bihar and Orissa Research Society”, um alemão, viajando pelo Tibet, descreve
interessantíssimas experiências e se refere a sociedades ocultas.
Nessa mesma tarde, marcho num pequeno cachê ou ‘tonga’, puxado por um
magro cavalo, debaixo da chuva de monção, através de ruelas e despenhadeiros, até
dar, ao fim, com a casa onde vive Sudhir Ranjau Bhaduri, o astrólogo.
Já sabe quem sou, pois Gopi Nath lhe enviou uma mensagem. Sabe também
o que busco. Sudhir Ranjau é um ancião enxuto, pequenino, de rosto espiritual.
Disse-me:
- Não vou fazer seu horóscopo porque você não o necessita. O que você
requer é que eu lhe diga que não continue buscando fora o que já possui dentro de si.
É ali onde está o Kailash, é ali onde se encontram os mestres do seu Mestre.
- Creio que deveríamos dar a nosso hóspede uma prática para que possa
caminhar para dentro, o que lhe parece?
Voltei a visitar Gopi Nath, mas não pude conversar com ele, pois estava em
seu dia de silêncio. Só eu falei. Contei-lhe minha entrevista com o astrólogo e lhe
expliquei a prática que me havia dado. O Pandit juntou suas mãos e aplaudiu. Depois
escreveu sobre um papel: “visite o Swami Bhumananda, que vive em Kalikashram,
em Kamakhya, perto de Gauhati, no caminho para Assam. O mestre desse swami foi
iniciado num Sidha Ashram, num monastério secreto dos Himalaias. Ele poderá dar-
lhe informações muito valiosas”.
Antes de partir de Benares vou visitar meu amigo, o francês, no ashram que
a mãe, Ananda Mai, tem nesta cidade. É um ashram grande, sobre o rio, com um
dispensário para os enfermos e os pobres. A extraordinária mulher se encontra ali,
rodeada sempre de música e flores. Levanta-se e se vai, se afasta cadenciadamente
através de uma pequena porta. Ao ir fechá-la, se volta um segundo e me olha nos
olhos intensamente. É um olhar obscuro, de abismo, de mar.
Vou ver meu amigo, ali embaixo, em sua cela subterrânea. Está seminu,
agoniado como eu por este calor úmido da monção. No seu quarto não há nada, além
de uma fotografia pequena da Mãe, Ananda Mai. Vejo esta foto que parece partida
em duas por uma fina linha negra e me aproximo para contemplá-la. Descubro que a
linha é um fio de cabelo e lhe pergunto com o olhar.
Permanecemos em silêncio um bom tempo. Faz muito tempo que não nos
víamos, desde nosso primeiro encontro em Dehra Dun, a mais de um ano.
Contemplo-lhe. Está fraco, transparente, com sua barba crescida e vermelha. Conta-
me que a Mãe lhe aconselha ir por dois anos ao seu ashram de Almora e ficar lá em
total silêncio. Agrega:
O vale de Kullu está habitado por uma raça antiga, procedente talvez do
Rajastão. Seus traços arianos são muito marcados: os ‘gadhi’, pastores nômades dos
altos cumes. Vestem um roupão de lã branca e uma espécie de saiote que lhes cai
sobre as pernas desnudas. Em torno da cintura amarram grossas cordas.
Regressei antes que o vento adquirisse essa força espantosa dos cumes,
baixando por um abismo coberto de rochas desmoronadas. Pretendo cortar caminho
e chegar ao refugio antes que se faça noite. Mas a descida é difícil. De repente, escuto
um assobio agudo e, desde o alto deste abismo, vejo que uma figura vem movendo-se
com incrível rapidez. Rapidamente, passa ao meu lado. É um homem que desce,
saltando de rocha em rocha. Descubro que nem sequer toca o penhasco. E não deixa
de fazer soar seu assobio estranho. Parece um lama, um monge. Muito rápido, se
perde, abaixo. Sento-me um instante sobre o penhasco, acreditando ser vitima de
uma alucinação.
82
O Vale dos Deuses se chama assim porque cada aldeia desta região adora um
deus distinto, a um Rishi.Já vi como se castiga um deus, o ‘rishi manú’, porque não
pode fazer chover e o arroz não basta e os espíritos do arroz se encontram em perigo
de não poder surgir, de não entrar na Grande Roda. O deus será preso num templo
de milhares de anos, em Manali, entre os bosques cheirosos. O templo está dedicado
a deusa Kali, a devoradora. Visitei-o e contemplei uma pedra negra, como mesa de
altar, manchada pelas sombras dos séculos. Aqui se realizaram sacrifícios humanos.
Lá fora, o sacerdote ou ‘intérprete’ de deus caiu em transe, enquanto se batem os
tambores freneticamente. Solta espuma pela boca, treme como uma folha. Está
vestido com um tecido grosseiro para proteger-se do clima dos cumes e seu cabelo
flutua, solto pelos ombros. Agora assegura que choverá.
Todas as mulheres desta região se vestem com cores fortes, tem olhos
profundos e traços perfeitos. São alegres e muitas vezes cantam sobre os arrozais. O
povo inteiro bate tambores e faz soar flautas durante as noites de estio, entre os
bosques e através dos montes. Nas alturas mais empinadas, se encontram pastoras
jovens e solitárias, olhando as distancias, os cumes, os ventisqueiros, tecendo sobre
uma rocha ou debaixo de grandes árvores, envoltas na música de seus deuses.
83
Um dia, escalava eu por uma vertente quase vertical, como só tem estes
cumes himalaicos,e cheguei a me encontrar numa situação difícil, equilibrando-me
por segurar uma touceira com uma das mãos, com um pé num terreno movediço e
sem poder avançar nem retroceder, na borda do abismo profundo. Sem saber como
sair do mal passo, me pus a esperar. A ajuda chegou por meio de uma gentil figura de
pastora. Seguramente me havia visto e deslizava ágil pela pendente lateral. Veio até
mim e me estendeu a mão. Essa mulher jovem me guiou com precisão através da
empinada encosta, sempre rindo melodiosamente. Seu lenço de cabeça vermelho se
mexia ao vento, diante de mim. Via freqüentemente suas pernas desnudas, deixadas
ao descoberto no esforço de escalar. Quando nos detivemos, observei seus olhos
fundos, alegres, convidando-me a outra aventura mais excitante ainda e mais
perigosa, ali mesmo, na pendente cortada a picareta, no meio de pinhos selvagens,
crescendo na borda do abismo. Também sorri e a deixei naquela altura, flutuando ao
vento, entre duas profundidades.
Passei a mão pelo rosto. Estava úmido de suor gelado. Esperei um tempo.
Não sei quanto. Depois bebi água e sai afora, na noite. Aspirei profundamente o ar
das alturas. Os ventisqueiros brilhavam com uma luz de outro mundo.
Não estou certo de que minha decisão daquela tarde no Vale dos Deuses, nos
Himalaias, tenha sido correta e na verdade não fosse uma tentação, a justificação de
uma debilidade suprema. Em todo caso, também pesava nela minha aspiração de
alcançar até o monte Kailash, na aventura não cumprida em busca da misteriosa
Ordem, desse monastério secreto existente em algum ponto destas cordilheiras, onde
deveria encontrar os mestres do meu Mestre.
AS PORTAS DO TIBET
Esta cidade era a grande porta de entrada ao Tibet. Por aqui chegavam as
caravanas carregadas de mercadorias. Nas ruelas vejo os tibetanos, alegres e fortes,
andarem com seus grandes punhais ao cinto e com seus moinhozinhos de oração. Há
bandeiras agitando-se em todas as colinas para serem rezadas pelo vento. O “Om
Mane Padme Hum” se escuta em muitas bocas. Os moinhos de oração dos templos e
casas são postos em movimento por bonzos, pelos fiéis ou pela água.
OS OLHOS DA PANTERA
Do alto norte, quase fechado agora por inundações e desmoronamentos,
bloqueadas as passagens que levam ao Kailash, deverei baixar ao extremo sul
peninsular, passando primeiro por Orissa e Madras. Para esta última cidade tenho o
endereço do Swami Janardana, chefe espiritual de uma organização com muitos
adeptos no Chile: o Sudha Dharma Mandalam, talvez a única organização esotérica
conhecida da Índia atual. Janardana crê nos Sidhashrams e se refere a um ponto
misterioso nos Himalaias, onde vive o novo messias, Bhagavan Sri Mittra Deva. Em
todo caso, será interessante visitá-lo e falar com ele.
Orissa é uma terra velhíssima. A raça que habita esta zona pratica antigos
costumes e o tantrismo da Serpente da Atlântida está vivo aqui, nas selvas e costas.
Toda uma tarde e uma noite caminho desde Puri, através da selva e do
deserto, até as ruínas do templo de Konark. Quando, morto de cansaço, quero atirar-
me sobre algum matagal, meu guia nativo me impede, advertindo-me do perigo das
serpentes e dos tigres de Bengala. Vou seminu e transpirando copiosamente. De
tempo em tempo, os aldeões dos vilarejos que cruzamos partem à machadadas
grandes cocos para dar-me de beber seu delicioso leite. As chuvas de monção fizeram
intransponíveis os caminhos de Puri a Konark e só me será possível chegar até lá a
pé. Na noite escura, sem estrelas, ouço o soar de tambores e os cantos ou lamentos de
homens ocultos na sombra.
Não sou capaz de regressar novamente a pé, andando por selvas e areias. O
dia todo vou , agora, jogado dentro de uma pequena carreta, enquanto um carreteiro
que canta e se queixa, dirige os bois ao largo de uma praia atormentada pela luz e
pelo calor úmido.
88
Ficarei alguns dias aqui, junto ao mar. Nado nu nestas águas mornas, sou de
novo feliz, como nos mares e nos rios da minha pátria. Na Índia tudo é sacramental.
Os banhos são cerimoniais, litúrgicos, sem alegria, sem saúde primitiva. Em
Allahabad e em Benares havia desejado, às vezes,mergulhar-me de cabeça na água e
nadar energicamente, cruzar de uma margem a outra, sentindo a alegria do sangue
jovem e, vencendo a corrente, dominar as ondas. Mas, como, se este rio vem da
cabeça de Shiva? Ah, a liturgia matou a alegria de um povo,lhe sugou o sangue e a
vida! Sem dúvida, compreendo, com um estremecimento, que há outro sangue
transmutado, outra energia misteriosa nestes corpos, uma energia lenta,invencível,
que lhes dá uma alegria distinta, não primitiva como a alegria que ainda sinto, senão
elaborada, velha, legendária como um veneno, misturando-se já com a corrente do
Espírito.
Quando me afasto, esse rosto ainda continua olhando-me com suas pupilas
fixas.
Sem dizer uma palavra, sempre olhando fixamente, essa mulher penetra ao
centro do meu quarto. Não sei se fechei a porta ou se esta se fechou sozinha. Estamos
agora aqui, olhando-nos nos olhos e respirando entrecortadamente. Consigo vê-la
bem. É escura, como o barro, como a argila e o limo. Em seus tornozelos finos leva
pulseiras de prata pesada, de cobre. Também em seus pulsos e em suas orelhas. Uma
argola lhe atravessa o nariz fino. Sobre o antebraço há tatuagens com estranhos
símbolos. Sua boca não é grossa, seus lábios são perfeitos. O cabelo lhe cai sobre os
ombros e está úmida de um azeite pesado. Entrevejo seus dentes branquíssimos,
parelhos e fortes. E nesse rosto escuro, aqueles dois olhos terríveis, imensos, fixos,
debaixo de umas pálpebras alongadas, com pestanas como asas de pássaros, negras,
semi cobrindo-os. Dali saem raios suaves, que enchem todo o quarto e me envolvem.
Penso que o que esta mulher quer é iniciar-me nas práticas do amor bruxo,
do amor fatal. Vem de debaixo da terra, de seus próprios torrões, do fundo do mar,
como a raiz do arroz, também como uma pedra preciosa e intocada, como uma safira
azul ou uma pluma de pavão real.
E essa noite permaneço ali, com uma estátua do Carro do Sol de Konark,
também com uma bacante louca e sagrada dos jardins de Vindravan.
90
O SWAMI JANARDANA
Não deixa de ser curioso que esta seita religiosa da Índia, quase
desconhecida aqui, tenha pego com vigor no Chile. Há algo nessa secreta cidade
himalaica da Hierarquia que desperta ecos conhecidos na alma do povo que deu vida
a ‘Cidade dos Césares’. Por outra parte, sua similitude com as construções da
Teosofia, familiares a nós, a fazem mais acessível do que a pura abstração vedantica.
A Teosofia também acreditou descobrir, com Annie Besant, um messias no jovem
Krishnamurti, uma espécie de Bhagavan Mitra Deva para nossa época. Eu mesmo
ando por aqui em busca de um ashram secreto nos Himalaias, onde se conserva a
ciência dos símbolos esquemáticos e onde viveriam os mestres do meu Mestre. Tudo
isto pareceria estar assinalando um sonho arquetípico e legendário em nossa alma.
Sorri vagamente.
O CAMINHO DO SUPERHOMEM
Enquanto Sri Aurobindo permanecia em seu retiro o ashram com seu nome se
desenvolvia graças ao talento organizador da Mãe,à suas incríveis faculdades. Ela
edificava o culto desse homem, tirava dele o máximo partido, enquanto ele
permanecia silencioso, oculto, talvez prisioneiro. Lendas que circulam afirmam que
Sri Aurobindo havia morrido muito antes, sendo substituído por outro. O jovem
Aurobindo Ghose era muito moreno, com a cor de Bengala. O velho venerável, de
barbas patriarcais, que só se mostrava uma vez por ano a seus fieis e que não falava,
era quase branco, transparente, volumoso.
94
Essa seria uma historia fantástica. A verdadeira pode ser muito mais terrível e
profunda. A meu entender é a historia de um mito feito carne em dois seres
humanos: Sri Aurobindo e a Mãe.
Ela foi a ativa, pois ativo é o principio feminino, ela é a que cria o ashram,
mundo terrestre, o templo. Ele se imobiliza num segundo piso, se silencia. Sua ação é
em outra esfera. Ela deverá ser Shakti, Maia e sobretudo, Kali. Ele, não sabemos bem
quem foi.
E não sabemos por que a idéia desse pensador foi a seguinte: o homem, tal
como é, é só um elo na cadeia evolutiva, um elo até o Superhomem.
E para isso, para criar o novo veiculo do Superhomem, Sri Aurobindo se retira
definitivamente a uma cela no segundo piso do ashram, de onde já ninguém voltaria
a vê-lo, nem saberá o que ali acontece, ou o que ali lhe acontece. De escura que era
sua pele, se aclara. Sem embargo, sua mente parece anquilosar-se, ao revés do que se
espera, se produz um descenso no nível intelectual. Bem pode ser que ao final não
seja senão o zero arquetípico, o Ancião dos Dias, o Princípio Eterno, o Vazio de Gelo.
Já nada tem ele há ver com o que a Mãe faz no piso de baixo, com sua atividade no
ashram, na Criação. A Mãe o usa a seu capricho, o move, o agita. Mas tampouco lhe
move, nem o usa, nem o agita, pois ele está além, muito mais além. Já não é nada,
nem sequer ele mesmo.
Será deste modo, ou será que Sri Aurobindo extremou sua experiência e
caminhou demasiado só, sem guias, por esse caminho estreito como o fio de uma
navalha? Em todo o caso, sua aventura é inquietante e muito pouco comum. Eis aqui
que houve um homem que se entregou de cheio, totalmente, a criar o novo corpo
para o surgimento do Superhomem, desse Anjo terrível.. E o fez por meio do Yoga,
da ciência da Serpente, que talvez ele conhecesse melhor por proceder das terras de
Bengala, perto dos cumes dos Nagas. Mas talvez ele a desconhecesse...
Diz-se também que a Mãe lhe roubou os poderes, valendo-se da magia negra,
na qual é expert, que se aproveitou das forças vitais desse homem e as incorporou,
deixando-lhe convertido numa forma vazia.
Nada sabemos.
95
O RAMANA MAHARISHI
No grande templo de Madurai, assisto a cerimônia de colocar os deuses para
dormir, enquanto os brâmanes sopram umas enormes trombetas, repartem doces e
leite e recitam mantras. Nessa atmosfera carregada de fumaça de sândalo, entre
pilares de pedras e entalhes antigos, vejo mudar a roupa a Meenakshi e a Shiva, seu
esposo. O grande templo é dedicado a Meenakshi ou Parvati. Agora os desnudam e
os vestem com roupas de dormir. Os ídolos são abanados, banhados, alimentados,
antes de deitarem em seu santuário noturno. Ali dentro, se fundirão sem fundirem-
se, iniciando os jogos noturnos, os segredos da divina alcova.
Visito seu ashram e sua tumba, pois tampouco Ramana Maharishi foi
incinerado. Há uma grande paz neste ashram. Na sala central, sobre o sofá que usava
para deitar-se, se instalou agora uma foto sua, colorida, de corpo inteiro e em
tamanho natural, de modo que parece estar presente.
A força invencível do hindu nasce de que ele está ainda conectado à natureza
inteira, de que não a rechaça, de que vai por sua linha total. Devido a isso o hindu é
invencível. Pode ser invadido, mas com o tempo é ele quem invade, quem triunfa,
como a selva, como o mar.
Penso que ninguém como o hindu está preparado para sobreviver a uma
catástrofe. A cidade, a civilização urbana, lhe são ainda alheias, sua civilização é de
selvas e montanhas. A casa lhe é algo estranho, sobreposto. Só foi um teto que lhe
protegia das chuvas de monção. Por dentro estava vazia. Ainda hoje, o hindu não
sabe decorar o interior de uma casa. Não entende a casa. Uma catástrofe que destrua
as cidades e o obrigue a voltar à selva, encontrará o hindu completamente preparado.
A sua, é uma civilização da natureza.
98
Em nenhuma outra parte como aqui podem ver-se rostos tão antigos. Tão
pertencentes aos séculos, a historia. Olhos que já desapareceram da terra,
negríssimos, como carvões acesos, com pestanas copiosas. Sobrancelhas diabólicas ou
de deuses. Narizes de persas, de acádios, de gente do passado.
Em tudo isto talvez possa encontrar-se uma explicação para essa falta de
maneiras do indiano, falta de formas individualizadas, de sentido de espaço interior,
de perspectiva. O indiano carece do sentido da beleza apolínea. Seu sentido de beleza
é o do bosque, do rio, da arvore. Seu sentido, numa palavra, é abismal. O indiano se
desentende da forma, não as entende. Fascina-lhe, em troca, uma cascata. Todo o
individual, o corpo mesmo, será muito facilmente consumido pelo fogo.
Nada do que aqui vejo me emociona num sentido estético. Estou também
um pouco exacerbado com a profusão, com o numero e a quantidade. Por outro lado,
tudo aqui é arquetípico, um swami é igual a outro swami, um homem santo igual a
outro homem santo.
99
- O Vedanta nos diz que a vida é ilusão, que também o é o eu. Como poderia
existir a morte se não existe a vida? Para alcançar a salvação, que é a paz do
conhecimento, se faz necessário o contato com os sábios.
O mesmo Krishna Menon esteve só uma vez em contato com seu mestre,
oriundo de Calcutá. E isto lhe bastou.
Mas o Swami Krishna Menon também paga um carma pois está sofrendo
dores numa perna e deverá recorrer a medicina ayurvédica tradicional, com
massagens, azeites e compressas de ervas. Retirar-se-á por um mês da vida publica
para seguir um tratamento.
O CABO COMORIN
Com a cabeça apoiada nas mãos, penso em quantas coisas estão afundando
no mundo, como este sol vermelho. As mesmas cenas que estou vendo, dentro em
pouco não serão senão imagens de um sonho distante, quando as novas realizações
ponham em dúvida os poderes sobrenaturais de Hanuman, que pôde voar sobre este
estreito séculos atrás. A Era do Átomo, das viagens interplanetárias, fará também
minhas aventuras nos picos himalaicos parecerem como fora de moda, como os
relatos de viajantes do século XIX reproduzidas no século XX.
O RIO
Desde os cumes dos Himalaias, desci até o Cabo Comorin. Descubro que em
ambos os extremos há templos. Acima, em Amarnath, está o santuário do Shiva de
gelo, aqui, abaixo, no Cabo Comorin, se encontra o templo de Kanya Kumari, a
Princesa Virgem.
Banho-me com os peregrinos vindos dos mais distantes locais. As águas dos
três velhos mares me recebem como a um rio.
103
KRISHNAMURTI
Krishnamurti foi o messias que Annie Besant, fundadora da Escola Teosófica
de Adyar, descobrira para nosso tempo. O Bhagavan Mitra Deva da Teosofia.
Terrível destino deste homem que fora eleito para messias salvador do
mundo. Ele ainda não pôde se livrar desta violência feita sobre sua infância, por
mestres como Leadbeater. Sua reação contra guias e mestres, contra toda classe de
imposições, pode ter origem neste trauma de sua infância. Mas Krishnamurti tem
sido um ser de valor extraordinário, ao resistir a tentação suprema do poder e
riqueza, renunciando a tudo aquilo que lhe brindava com seu papel de messias e com
a adoração dessas massas trans-humanas de psicopatas, que perambulam pelo mundo,
ávidas de entregar-se ao primeiro guia semi-divino que se lhes apresente.
Recordo meu primeiro encontro com ele. Foi na ocasião desta viagem a
Índia. Voava eu da França para a Inglaterra. Lia um livro de Krishnamurti,
precisamente, tratando de encontrar paz para minha mente cheia de memórias do
que deixava para trás. Depois, andei por uma rua solitária de Londres. Um homem
vinha em sentido contrário, pela mesma calçada. Trazia a cabeça descoberta. Nunca
havia visto Krishnamurti antes, mas o reconheci no ato, supus que fosse ele. Ambos
nos detivemos, estendendo-nos as mãos ao mesmo tempo.
Dizem que quando Krishnamurti escreveu seu livrinho “Aos Pés do Mestre”,
quando acreditava no Mestre e se entregava ao amor de Maitreya, seu rosto tinha um
halo sublime. Sua natureza estava feita para o amor, para a entrega, para a
obediência; mas ele se cortou destes fluxos, talvez de seus mais profundos fluxos,
para seguir um caminho intelectual, duro, inclemente. Em termos hindus, se diria
que, sendo essencialmente um Bhakti-Yoga, tratou de transformar-se em Gnana-
Yoga. Violentou sua natureza. Tudo isto por causa do trauma de sua infância. Mas
talvez a coisa não seja tão simples.
104
“A mente não pode funcionar sem o cérebro, mas a mente cria o cérebro...”
“Querer eternizar a alma, o amor, nossas vidas, é como aquele que edifica
seu refugio junto ao rio, num pequeno espaço e não salta nesta corrente da vida, que
não tem princípio nem fim. A vida não tem princípio nem fim, tampouco a mente
livre. Só liberando a mente dos pensamentos, das recordações, das idéias aprendidas e
transmitidas, se pode alcançar aquele estado sem princípio nem fim e viver o
eterno...”
Krishnamurti fala agora como iluminado. Suas palavras são poesia criadora.
Segue:
105
“E escutar... Quem escuta seu filho, sua esposa, seu amigo? Escutar é
também uma arte, escutar a postura do próprio corpo, a atitude, os gestos, os ruídos,
a música que faz a própria vida e que circula ao nosso redor...”
Penso que também algum dia eu deverei chegar a amar a morte, a desejá-la
como a uma bela mulher, a amá-la como a uma mulher morta. Não desejo morrer
senão quando minha morte tenha o rosto da Amada.
Krishnamurti segue:
“Todos os problemas fundamentais da vida não tem nunca resposta, não tem
solução. A resposta, a solução de um problema, se acha no reconhecimento de que
não a tem, se encontra na confrontação mesma do problema, na aceitação de que não
há resposta nem solução. Assim passa com a vida, assim passa com a morte...”
- Pode-se matar, pode-se cometer um crime, num ato puro como o de amar?
- Sim ,pode-se – responde – mas sempre que isso não deixe manchas na
mente, sempre que a mente permaneça intocada... O amor tampouco deveria deixar
manchas, uma vez que se viveu, que se haja ‘cometido’, como a um crime...
- Você lê?
- Não, nunca.
- Sonha?
- Só quando como algo pesado... Não sonho porque
olho o mundo. Se alguém olha com seu consciente e seu inconsciente, então não
deixa nada para o sonho, nada para a noite... Simplesmente repousa...
Perguntei a Krishnamurti:
Sinto que algo fica vazio nele, que um vazio se faz em torno dele e em torno
da flor, algo se subtrai e se junta em outro lugar que não é ali. Talvez no presente.
Agora Krishnamurti está olhando minhas mãos. Ficarei sem elas, penso, sem
minhas mãos invisíveis.
Sorri.
Digo-lhe:
- Você afirma que não se deve seguir mestres, que não se deve pregar, ensinar,
nem aprender. Por que prega então, por que fala?
- Dou meu pensamento como a flor dá perfume. A flor não pode deixar de dar
perfume...
- Diga-me, e se cansa?
- Sim, um pouco...
107
Sinto grande simpatia por este homem, contemplo seus traços, que expressam
todo o drama da vida de um ser superior e valente. Krishnamurti é uma dessas
pessoas cumes da nossa época. Ainda que não declare, seu pensamento é indiano,
sem dúvida, com raízes na filosofia Vedanta e grandes similitudes com o Zen
Budismo. Adoece também da debilidade expositora de todo o Oriente. Seu
pensamento escrito parece fraco, balbuciante. Krishnamurti é também um brâmane
pregador, que dá lições ao mundo, que se contradiz fazendo o oposto do que ensina,
quer dizer,pregar, ensinar. Não creio que ele veja esta contradição. O indiano nunca
vê. E não lhe importa. Seu pensamento não é racional, vem de outras zonas.
Mas Krishnamurti não está bem fisicamente desde faz algum tempo. E isso,
talvez, porque na vida chegou a encontrar-se frente a uma muralha, a um topo.
Assim como uma vez para ele foi necessário renunciar a ser Messias, pareceria ser-
lhe necessário agora uma nova renuncia para poder seguir avançando, talvez para
seguir vivendo. Ele prega o abandono total do formal, aceita o amor e o crime, porém
ele mesmo segue sendo ainda um hindu do sul, naturista, que toma água com mel,
que vive como um asceta, dentro das formas estabelecidas para um guru e um
pregador. Não sei se ele haverá amado de verdade, estou seguro, sim, de que nunca
cometeu um crime.
Agora bem, para poder avançar, para seguir, ele deveria renunciar a seus
discursos, deveria amar ou matar, deixar de ser um pouco o Messias que ele todavia
é, ser totalmente um homem, descendo ao homem, chegando com as raízes ao
inferno. Necessitaria renunciar pela segunda vez.
108
É ISTO HISTERIA?
- Tudo isto é insuficiente, por certo. Em especial quando não se podem evitar
conclusões filosóficas. A debilidade essencial queda então ao descoberto, toda uma
estrutura velha, retrógrada já... Não quer dizer isto que eu seja um espiritualista e que
esteja afirmando ou acreditando, por exemplo, que algum dos sentidos físicos
perdurem depois da morte, não. Assisti em Bombay a essa escola moderna de Yoga
onde se medem as pulsações de um homem em transe, ou se lhe faz um
109
- Talvez tenhas razão – digo – como tu, penso que nada disto agrega nem
quita o mistério da morte, que pode consistir em ‘olhar o corpo de fora’. Estamos
encerrados dentro de um corpo, sem escapatória possível, como nessa Roda da Vida
(lhe mostro sobre o muro do quarto uma Roda da Vida Tibetana, colocada dentro do
ventre de um grande demônio). Morrer seria ir à outra face do circulo. Pode ser
também que seja despertar.
- Não sei – diz ele – porém me preocupa a ciência do Yoga. Esses antigos
homens sabiam algo que parece haver se perdido agora. Como conheceram eles a
colocação exata dos plexos, à milhares de anos atrás? Teríamos direito a pensar ou a
crer, então, que não se equivocarão tampouco no resto do que declaram, do terceiro
olho, por exemplo, e desse vazio cuja existência afirmam em algum ponto do
cérebro...
Ele me escuta com atenção. Quando de novo se faz silencio, se senta na minha
frente, me olha inquisitivamente e me diz:
- Você sabe, estes são fenômenos da histeria. Claro que histeria é tão só uma
palavra... Você teve, no passado, alguma enfermidade grave, um acidente ou algo
semelhante?
O IRMÃO DO SILÊNCIO
Essa noite dormimos num lugar chamado Srinagar. Faz calor e nossos catres se
estendem ao ar livre, fora do refúgio. Vejo Nailwal orar antes da saída do sol,
repetindo com unção seus mantras.
Vou vestido à moda indiana, para não chamar atenção. Gente extraordinária
esta, que peregrina até o alto santuário himalaico. Colorida multidão de fiéis com
pupilas iluminadas ou com expressão de paz ou resignação. Anciãos, mulheres e
crianças. Uma jovem mãe, muito bonita, com um longo manto açafrão, carrega seu
filho pequeno sobre seus ombros, enquanto se apóia num longo bastão. Vai descalça
e seu rosto, suas mãos e seu cabelo solto e flutuante, revelam refinamento e
aristocracia. Mais além, transportam sobre um palanquim, a um velho homem. O
número de seus serviçais faz ver que é um rico comerciante. Chama-me a atenção
um jovem que anda com dificuldade, apoiando-se em seu cajado. Uma de suas pernas
se vê inchada e tumefacta. Nailwal, que já fez averiguações, me diz que esse homem
teve um acidente no caminho. Arrastando-se, com olhos brilhantes, o homem
continua até as alturas.
113
Essa noite chegamos a Joshimath. Este é o ponto mais importante na rota. Seu
nome é uma corrupção do sânscrito Geotir Math. Geotir significa luz e Math
monastério. O Monastério da Luz, mais exatamente o Monastério da Iluminação. O
nome foi dado por Shankaracharya, afirmando-se que neste local ele obteve a
iluminação, enquanto subia para Badrinath. Já falamos deste extraordinário Pandit.
Oriundo do sul da Índia, iniciou no século VIII da nossa Era a grande reforma do
hinduísmo, melhor dito, a grande contra-ofensiva do hinduísmo bramânico contra o
budismo. Foi praticamente o criador da filosofia Vedanta Advaita, do monismo
extremo. Se lhe atribui também a instauração de todos os lugares de peregrinação na
Índia, desde Amarnath, na caxemira, desde Badrinath e Kedarnath nestes locais, até
o templo de Kanya Kumari, no extremo sul, no Cabo Comorin. Desde modo,
Shancaracharya afiançou a unidade espiritual da Índia. Desde há séculos, massas
humanas se mobilizam através de toda Índia Santa, tal como fizeram durante a Idade
Média européia os peregrinos que iam à Santiago de Compostela. Assim como então
surgiram as canções dos peregrinos e a arte romântica, aqui também se marcam as
pistas seculares em pedras e hinos sacros.
Usando de seus poderes de Yoga, desprendeu seu corpo sutil e o fez entrar no
corpo físico de um rei moribundo, para poder assim conhecer a intensa experiência
da vida sexual que aquele velho rei acumulara durante sua longa vida. Ao fim de seis
meses, Shankaracharya retornou para responder a pergunta daquela mulher.
Cada um dos ali presentes vai contando algo, por turno. Quando chega o
momento de falar a um jovem, que se acha junto a mim, coberto com um grosso
cobertor, este começa a narrar suas experiências com gestos um tanto desarticulados
e bruscos. À medida que o faz, ponho redobrada atenção. Porque este homem está
narrando minhas próprias experiências. Disse:
- Vê, do outro lado, essa pequena trilha que se encarapita e se perde nas
montanhas? Leva ao Vale das Flores. Milhares e milhares de flores belíssimas
crescem lá.
Olho esta trilha e penso que poderia mudar minha rota. Essa mulher
estrangeira, ali morta, conhecia o segredo e o caminho até os imortais.
Mas Nailwal me disse que não é ainda a época, que as flores crescem um
pouco mais tarde.
Até muito tarde contemplo o céu, até quando o frio das neves, trazido pelo
vento, me obriga a retirar-me.
Dormi junto ao fogo aceso no refúgio. Pouco a pouco névoas brancas se vão
abrindo. Encontro-me numa pequena ponte pendurada. Devo cruzá-la e sinto
vertigem. Abaixo, ruge a correnteza. Avanço com esforço, enquanto um movimento
de pêndulo balança a pequena ponte. Chego ao outro lado e ponho o pé na trilha da
montanha, que também balança, como a ponte. Compreendo que só poderei andar
por ele se sou capaz de adaptar-me a esse vai e vem rítmico, movendo meu corpo
como se fosse dançando, dentro de um grande pêndulo invisível. “Devem ser outra
vez as vibrações”, penso. O caminho sobe mais e mais. Curiosamente vou me
sentindo leve, de modo que quando chego ao cume, o faço quase sem tocar o solo.
Cheguei. Olho abaixo e vejo um vale que se estende coberto de flores. Desço. Estou
entre as flores e descubro que são de pedras preciosas, de esmeraldas, rubis e
turquesas. Pássaros e abelhas que voam pesadamente, que tem também asas de pedra
azul, vão pousar sobre elas. Todos adotam a forma de silaba OM. Uma felicidade
muito grande me invade. Repouso por um momento ali, me perco nesta vida
silenciosa. Parece-me ouvir crescer os talos de esmeralda, sentir como flui a seiva do
rubi líquido sob a terra. Poderia conversar com os pássaros e as abelhas de asas
pétreas. Assim permaneço longo tempo, com a cabeça entre as mãos, até que alguém
me toca suavemente o ombro. Levanto a vista e vejo um rosto que creio reconhecer.
Disse-me: ‘aqui morri’. Contradigo-lhe: ‘recordo que foi em nossa pátria...’
117
Está me indicando agora com sua mão os cumes nevados que cercam este vale.
“Ali iremos um dia, juntos. Ali crescem lírios de fogo...”
Acrescenta: “Chegou a hora de nos separarmos outra vez; mas antes, vou te
ensinar a olhar as flores.”
As rosas, os pássaros e as abelhas que voam não são mais de pedra azul, senão
de carne viva. Detemos-nos junto a um roseiral. “Observe estas rosas. Se movem.
Você nota? É porque sentem que você as olha e te respondem. Dirás que é o vento ou
uma brisa suave que passa através delas. Assim é, mas, sabes que a flor é tecida pelo
vento, que é brisa imóvel por um instante? O vento move o vento porque sentiu teu
olhar e o devolve. Suave é a rosa. Toque-a. Quanto se assemelha à face de uma
criança, de uma mulher, à minha... Acaricie-a... Passou o tempo,as rosas se abrem,se
desfolham já, uma a uma as pétalas caem... Assim morre uma flor... Se funde na
terra... Eu sei porque assim também morri... Se a flor recebe teu olhar, então ela
morre em estado de graça, em estado de amor; morre desposada contigo, morre de
noiva... Mas há outras rosas... Não se abrem, se secam pouco a pouco sobre o ramo da
roseira. Suas pétalas não são varridas pelo vento. Quando caem na terra estão secas,
são como de pedra. O que se passa com estas flores? Por que são tão diferentes? Não
sei, não o saberemos nunca. Duram mais que as outras, mas não se abrem, não dão
perfume... Talvez conheçam alguma ciência antiga que lhes permita durar; algo que
se guarda por aqui, neste vale escondido, um segredo... Você pode escolher entre
estas rosas, entre estes dois caminhos...; mas tem que se decidir, não pode percorrer
ambos... Creio que te ensinei a olhar as rosas...”
Vai partir, percebo em toda sua atitude, em sua figura, que já é a imagem do
abandono que se repete na eternidade. Corro atrás dela e lhe grito: “Escuta-me...! Em
todas as rosas que olhei desde que partiste, em todas as flores, em todos os rostos que
eu já amei, que acariciei como a rosas, estavas tu, em todos eu vi somente a ti, no
fundo, como um vento dilacerante...!”
Minha voz cresce, se multiplica nos montes, sobe aos cumes de gelo e ali
balança os talos dos lírios de fogo...
- Não se pode confiar nesta gente. Há milhares destes ‘sadhus’ que são uns
facínoras, fugitivos da justiça, hipócritas, ociosos, que adotam o hábito açafrão do
mendicante só para proteger-se ou para viver da caridade alheia, sem trabalhar. A
Índia necessita trabalhadores, braços, não estes parasitas. Para cada sadhu honrado,
há milhares que não o são. Faz pouco, enquanto andava em serviço por estas
montanhas, chegou a minha casa um destes pretensos homens santos. Minha mulher
lhe abriu a porta e lhe deu de comer. O ‘sadhu’ lhe roubou o relógio e várias rúpias...
Depois eu soube que este homem havia cometido um assassinato e era um fugitivo da
justiça. Faz algum tempo, em Badrinath, apareceu um Yogue, ao parecer de prestígio.
Instalou-se entre duas rochas, na entrada de uma caverna e ali ficou, suportando as
inclemências do tempo e da neve. Os fiéis começaram a visitá-lo e a levar-lhe
alimentos. O homem tinha suas extravagâncias; mas no fim, eram aceitas, como a
todo homem santo, até que ultrapassou os limites. Um dia começou a pedir leite de
mãe,leite de mulher,declarando que este era seu único alimento. Algumas mulheres
devotas lhe levaram seu leite em taças, mas o santo varão recusou, declarando que o
leite deveria ser tomado diretamente do peito da mulher... Quando a notícia chegou
aos meus ouvidos fui falar com o ‘sadhu’. Encontrei-lhe ali, tal como me haviam dito,
em meditação. Quando lhe perguntei sobre o assunto,não negou nada,aceitou o fato,
acrescentando que era um mistério que eu não poderia entender... Fiz-lhe sair de
Badrinath sem maiores escândalos...Há também alguns ashrams nos baixos
Himalaias, ali, em Rishikesh, onde se vive da credulidade das pessoas e os monges
passam bastante bem. Para encobrir suas falcatruas tratam com delicadeza e cortesia
a nós, agentes do Serviço de Inteligência e a polícia do distrito, nos adulam, nos
enchem de regalos... Você conhece alguns destes ashrams de Rishikesh...
Enquanto avançávamos nessa manhã, ia pensando nesse swami que bebia leite
de mulher, entre as neves, diretamente nos peitos das mães. Bem podia ser,me digo,
que Nailwal não tivesse entendido, que nenhum de nós estejamos preparados para
entender. Para chegar muito alto, para encontrar com os ramos da Árvore, os cumes
de Badrinath, as raízes tem que ir também muito abaixo. O significado de tudo muda.
A luz de ontem é a sombra de hoje. Qualquer um pode ir a Badrinath, como Nailwal,
penso. Ele já veio muitas vezes, todos os anos, talvez. Mas chegar assim aos cumes é o
mesmo que não fazê-lo.
119
Vários homens levam, numa cangalha, a uma mulher velhíssima, cuja cabeça
raspada cai para o lado e se move como um pêndulo. A anciã está agonizando e os
homens tratam de apressar-se, iniciando um difícil trote até as alturas, para alcançar
o topo da passagem, desde onde já se vê Badrinath, antes que a mulher morra e seu
último alento o receba Badri, Vishnú, o deus preservador. Um pouco mais atrás se
arrasta o homem com a perna tumefacta, gangrenada seguramente. Firma-se com as
duas mãos em seu cajado e seu olhar é incrivelmente estranho a tudo que o rodeia,
impregnado deste ar puro de outro universo. Detenho-me a esperá-lo. Quero chegar
com ele ao topo. Agora vejo acercar-se a um jovem com um manto alvo, como as
neves destes cumes. Caminha cambaleando. Vê-se que o cansaço já o venceu
totalmente. Como estou parado no caminho, ele passa junto a mim. Vejo seu rosto
moreno, sua barba nazarena, a expressão de cansaço supremo marcado em sua face.
Ao passar faz um esforço e um leve sorriso se insinua em seus lábios, enquanto seus
olhos luminosos se colocam em mim por um instante. Quanto há neste olhar, quanta
grandeza! O jovem leva um livro numa mão e na outra, nada. Sustenta-se na rocha
lateral, a ponto de cair, e segue. Eu desejei ajudá-lo; mas em seu olhar, na sombra do
seu sorriso, ele me pediu que não o fizesse.
Também chegou aqui a bela mãe com seu filho sobre os ombros. Vem
cantando com uma voz suave. Seus pés finos são uma só chaga, sangram destroçados
pelas pedras. Seu filhinho vai repetindo muito lentamente o nome de sua mãe.
Talvez tenha frio, talvez fome.
Daqui, Nailwal me leva para visitar a outro swami, que vive numa cova alta,
quase em meio da parede montanhosa; permanece desnudo durante a época das
peregrinações e também já muito entrada a estação. O Swami Parmanad Addhoot
Maharaj, está sentado na posição de lótus, sobre um monte de palha. Curiosamente,
mantém junto a si um tinteiro e uma folha de papel. Pergunto-lhe o que faz com eles
e ele me diz que escreve seus sonhos.
- O sonho nos prova que existe outra vida fora desta. Ademais, que esta vida é
também um sonho. Às vezes, os sonhos difíceis, dolorosos, nos parecem reais. Só
quando despertamos nos damos conta de que tudo aquilo não era mais que um sonho
e nos alegramos... Igual sucederá com a vida. Ao morrer nos daremos conta que
estávamos sonhando, que nada daquilo pelo que tanto nos afanamos e que nos fez
sofrer, tinha realidade. Despertamos, aquilo não era mais que um sonho. Também
nos alegramos. Sabemos que um sonho não se pode dirigir, geralmente é absurdo,
desconexo. Assim é também a vida. Vão intento é querer dar-lhe sentido, querer
dirigi-la. Também ela é absurda e desconexa, ainda que um pouco menos que um
sonho da noite. O mesmo sucederá com o novo despertar, com a morte: é pouco mais
real que a vida... Tudo se repete como num jogo de espelhos, como numa espiral
gigante; o que é acima é abaixo e vice-versa...
O Swami move sua cabeça na sombra. Logo fica em silencio. Sinto frio nestas
alturas. Minha roupa é fina, do sul da Índia. E eu não possuo ainda o poder de
produzir fogo interno como o Swami Parmanad Addhoot Maharaj.
Descemos por uma pequena trilha talhada na rocha, que de novo nos leva ao
templo. Sento-me na escadaria convivendo com este povo alucinado. Rodeiam-me
mendigos, enfermos, santos, talvez bandidos, magos e poetas. Nailwal se foi, por fim
me deixou só. Foi cumprir com seus ritos de brâmane e de homem profundamente
religioso e honesto. E, deste modo, até mim pode chegar o poeta, o que foi afastado
de mim no caminho.
121
Nailwal se tornou meu amigo após esta larga peregrinação. Não quer que eu
regresse das alturas sem passar antes por sua casa de Pauri. Deseja apresentar-me a
sua esposa e a seu filho pequeno. Pauri é uma bela cidade de montanha, com uma
ampla vista até os grandes Himalaias, que estendem seus cumes na distância. É
emocionante a acolhida que Nailwal e sua família me dispensam. Esse brâmane
ortodoxo me faz servir uma comida especial, preparada por sua esposa e oferecida
por ela mesma. Nailwal não come, se senta ao meu lado e me olha comer, com uma
expressão de complacência em seu rosto. Fala-me:
- A vida para um Karma-Yoga como eu, consiste em cumprir com seu dever,
com seu ‘dharma’. Isto basta, o resto o fará deus, que tudo vê... Penso agora que é
absurdo que alguém não possa comer com um estrangeiro, nem recebê-lo em sua
casa. Estou feliz em ter a você aqui, de que o sirva minha esposa e de que almoce sob
meu teto. Todos os homens são irmãos, na realidade, todos resistimos com igual
inteireza ao sofrimento... Nailwal me ensina os jogos que comprou para seu filho; os
olha com ternura como se neles visse o seu próprio menino.
Penso neste nobre amigo, neste filho da Índia, reto, honrado, cumpridor
extremo de seu dever, que foi comigo por cumes e penhascos, guiando um
estrangeiro até o mais recôndito e privado santuário de seus deuses, incorporando-o,
de certo modo, aceitando-o com generosidade, na câmara de sua própria alma.
Nailwal levanta sua mão morena e me mostra os Himalaias que se estendem por
centenas de milhas, como uma cadeia de gigantes brancos, de titãs que refulgem
silenciosos, cobrindo todo o horizonte:
Aprofundo minha vista no horizonte claro e penso que este enorme povo, que
criou uma mitologia gigantesca como os cumes que o cercam. Seus cumes estão
unidos a sua alma. Um pico é a garganta de Shiva, que domina o veneno da Serpente.
Outras são o trono de Vishnú e a morada de seu Messias, de seus imortais. Cada pico
tem uma estória, é um símbolo vivo e palpitante. Um povo assim está condenado ao
eterno, ao desmedido, ao dionisíaco, ao abismo. Para poder sujeitar-se, para não
perder-se para sempre nos abismos, teve que se emaranhar ferreamente dentro das
fórmulas e prejuízos de uma teocracia anquilosada. Porém, à maior estreiteza
terrestre, mais amplitude metafísica. Este povo carece de medidas reais para a alma e
está, por isto, condenado à solidão total neste mundo, à incompreensão. Sua medida
real é a dos altos cumes, é seu pensamento. Sua filosofia grandiosa como os cumes.
Também nós, no Chile, temos picos puros, mas ainda não os incorporamos à nossa
alma, ainda não tiramos de suas entranhas de pedra os deuses, os titãs, que talvez se
assemelhem aos da Índia. Porque pode ser que o rosto dos titãs ocultos na pedra dos
Andes seja o mesmo que os hindus fizeram surgir do coração de seus Himalaias.
123
Como poderei partir da Índia sem falar com a irmã Raihana? A ela me levou
Sunya Bhai, o Irmão do Silencio.
Achava-me doente quando vim, sofria dores agudas. Nada me acalmava, nem
os mais poderosos sedativos. Raihana se sentou na obscuridade e começou a cantar,
com uma voz muito bela, velhos mantras, antigas vozes sânscritas. Fui assim me
envolvendo com um ritmo encantado, adormecendo, até que a dor cedeu. Depois me
deixou um cristal mágico. Este cristal tem a cara de Surya, o sol. Olhando-o
fixamente posso descobrir em seu fundo todo o Universo. Astros, planetas, galáxias,
estão dentro desse rosto de cristal. Submirjo-me ali e reflito. Descubro toda a
evolução do pensamento da Índia, desde seu extremo dualismo, no qual o um e o
dois não se tocam jamais, até o extremo monismo, em que tudo é um e somente a
ilusão, a ignorância, faz crer no dois, no três e no quatro.
124
“Nada existia então, nem o que é, nem o que não é. Não existia o firmamento,
nem o céu mais distante. O que cobria Tudo? Acaso o abismo das águas em que
descansa? A morte não existia, nem tampouco nada imortal. Não existia a luz,
portanto o dia e a noite não se alcançavam. O Uno respirava por si mesmo, sem
alento, fora dele não havia nada. As sombras estiveram no começo e elas eram um
mar sem luz. O gérmen que repousa coberto pela casca foi feito nascer pela força do
calor. O amor veio logo no começo a envolvê-lo todo e foi a semente surgindo da
Mente. Só os poetas, remexendo em seus corações, encontram às vezes o laço entre o
que é e o que não é. Esse raio que foi projetado através, veio de baixo ou de cima?
Houve portadores de sementes, poderes, forças auto criadas. Houve abaixo e acima.
Quem, em verdade, sabe como isto se fez? Quem o projetou, de onde nasce esta
Criação? Os deuses vêm depois desta Criação. Quem então conhece de onde ela
procede? De quem esta Criação vem? Onde foi feita ou não foi? O Grande Vidente,
no mais alto céu, talvez o saiba. Porém talvez tampouco Ele o saiba.”
Acaso Deus não seja consciente, acaso Ele esteja sonhando o mundo, um mau
sonho, um pesadelo. De dentro dessas águas profundas, onde não existe nenhum
centro, tudo vem e ninguém sabe como, nem por que. Não o souberam há milhares
de anos os sábios védicos. E se teme que tampouco o saiba Deus.
Ao olhar este cristal tão fundo, tão claro e transparente, tão cheio de sombras,
de luzes que se movem, parece-me descobrir que é o rosto da Irmã Raihana que se
junta ao fundo com o rosto do Irmão do Silencio. Ambos estão sendo cruzados pelo
rio antiqüíssimo da Criação, pelas águas já velhas do mistério. E ouço o que me
dizem: “Cale, não fales, não perguntes, envolve-te no silencio de teu coração, porque
é ali onde os poetas descobrem às vezes o laço entre o que é e o que não é.”
125
O REGRESSO
126
Aqui estou de novo, como há anos atrás. Contemplo nos muros os quadros
pintados pela mão do Mestre, o Monte Kailash, o lago Manasarovar. Quanta
influência exerceu sobre minha vida este ser. Ele me lançou na longa aventura de
peregrinar entre dois mundos. Observo o Livro da Ordem. Está aberto e posso ler
meu nome, o verdadeiro, o que foi extraído das sombras de um passado remoto. Há
uma espada junto ao livro. Leio também os nomes dos irmãos, dos mestres, daqui e
de lá. Olho estas páginas, olho o Mestre e me sinto incrivelmente só, deixado de lado
por minha própria vontade, fora já destas criações mentais e imponentes arquétipos.
O Mestre está inclinado sobre uma folha e escreve. Tem mais de oitenta anos, nesta
época. Não interrompe seu trabalho quando chego. Escreve versos. Este homem sem
idade, deixou de viver em prosa para submergir-se totalmente no ritmo dos poemas
cósmicos.
- Não pude chegar, Mestre. Não estou tampouco seguro de que existam...
- Para que a árvore chegue até o céu deverá descer com suas raízes aos
infernos...
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- Mestre, eu me consumirei como uma vela acesa pelos dois lados, entre o céu
e o inferno... Porque não pretendo ser nada mais que um homem...
- Hás caído! Porém pode ser que ainda te quede uma última possibilidade.
Escuta-me, te vou dizer algo... Tu não podes separar-te de tua essência, de teu mais
fundo coração. E sabes que é teu mais fundo coração? É Cristo. E sabes o que Ele é? A
renúncia... Só na renúncia serás feliz...
primeira tarde:
segunda tarde:
A ÚLTIMA FLOR
Neste momento, quero convencer-me de que ouço uma voz e de que capto
uns pensamentos formulados por alguém; porque sempre pensei que deveria
encontrar-se ali esse Ser. E porque o penso, nisso acredito, ainda quando não vejo a
ninguém. E falo a mim mesmo, como se em realidade me falasse aquela pessoa, que
deveria ter vindo. E ainda que só seja eu quem está falando, me convenço de que não
sou. E digo, ou me dizem:
- Olhe esta flor, aqui, em minha mão... Salta! Entre nela, fique aqui!...
Por fim, estou fora. Vejo meu corpo imóvel e pálido como morto. Frente a
mim está Ela. Estou em sua mão, dentro de sua flor. Diz-me: “Uma vez te ensinei a
olhar as flores, agora te ensinarei a escutá-las. São tuas próprias flores, porque o
jardim esteve sempre dentro de ti. Percorramo-lo... Escuta sua música.”
E ouço então a música do Universo, que não é outra que a música de minhas
próprias flores, dos meus lótus. Tudo vibra em uníssono. E vou com Ela, de flor em
flor, de pétala em pétala, subindo desde muito abaixo. E ainda que vou de mãos dadas
com Ela, sei que também estou dentro de sua mão, muito pequeno, dentro de sua
flor.
131
terceira tarde:
A MORTE MÍSTICA
Como estou em sua mão, dentro de sua flor, ao aproximar-se Ela, para aspirar
seu perfume, me vejo junto a um Rosto imenso como o mundo. Introduz-me em sua
boca e me despedaça com seus dentes, me tritura com deleite, até reduzir-me a uma
pasta de sementes de lótus.
O VAZIO
Está morto um dos meus “eus”. Cumpriu-se assim a Boda. Aqui estou agora,
igual e, não obstante, diferente. De novo com minha estatura normal e tendo junto a
mim a morta do Vale das Flores. Ambos somos de um tamanho humano, mas há algo
diferente em nós, ainda que não pareça a primeira vista; eu o descubro de algum
modo.
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