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Um ensaio sobre
Kant e o erro dos escolásticos*
Transcendents or transcendentals? An essay on Kant and the
Scholastics’ mistake
Gustavo Barreto Vilhena de Paiva
gustavo.barreto.paiva@usp.br
(Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil)
Resumo: O termo “transcendental” tem sido Abstract: The term “transcendental” has
de fundamental importância para a discussão been of fundamental importance to the
produzida nos mais variados campos da filosofia discussions produced in the many fields of
contemporânea. Isso se deve, em larga medida, Contemporary Philosophy. This is mostly due
ao fato de a filosofia de Kant ser a inegável e to the fact that Kant’s philosophy has been
constante referência para autores dos séculos the undeniable and constant reference to
XIX a XXI. Daí se derivou uma problemática authors from the 19th to the 21st century.
projeção da noção de “transcendental” sobre Hence is derived the problematic projection
a filosofia de autores escolásticos medievais. of the notion of “transcendental” over the
Embora estes últimos se valessem do termo philosophy of medieval scholastic authors.
“transcendente”, eles nem mesmo conheciam o Although the latter would use the term
termo “transcendental”. A confusão entre ambos “transcendent”, they did not even know the
os termos não poderia ser mais prejudicial para a term “transcendental”. The confusion of both
leitura de autores medievais. could not be any more harmful to the reading
of medieval authors.
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v20i2p179-200
* Este trabalho foi escrito durante a disciplina “História da Filosofia Contemporânea”, ministrada na pós-
graduação do Departamento de Filosofia da USP pela profa. Maria Lúcia Cacciola, no segundo semestre
de 2012. No entanto, a ideia para o texto já vinha sendo desenvolvida desde fins de 2011, quando
o tema aqui tratado foi levantado pelos professores Rodrigo Guerizoli (UFRJ) e José Carlos Estêvão
(USP) durante uma discussão decorrente da leitura de um texto de minha autoria para o seminário
do Centro de Estudos de Filosofia Patrística e Medieval de São Paulo – CEPAME. Sendo assim, agradeço
profundamente aos três professores, assim como a meus colegas no centro de estudos, pelas sugestões
e pelo incentivo para a elaboração deste artigo. Por fim, destaco também um agradecimento a meu
colega Adriano Martinho Correia da Silva (USP), que me apontou o texto RIJK, L. M. de. “The Aristotelian
Background of Medieval transcendentia: a Semantic Approach”. In: PICKAVÉ, M. (Hrsg.). Die Logik des
Transzendentalen. Festschrift für Jan A. Aertsen zum 65. Geburtstag. Berlin, New York: De Gruyter,
2003, pp.3-22. Nesse texto, Rijk argumenta que o latim escolástico “transcendens” é mais corretamente
traduzido pelo inglês “transcendent” e não por “transcendentals”. É precisamente essa tese (no caso
do português) que pretendo defender aqui, porém sigo outro caminho em minha argumentação que
não aquele de Rijk. Este argumenta a partir da distinção entre uma “transcendência” platônica e outra
aristotélica que teriam influenciado diferentemente a filosofia medieval. Somente em sua conclusão, Rijk
se volta para Immanuel Kant e sugere que sua obra deva ser levada em consideração nessa discussão:
“Há um intervalo tão grande entre o pensamento kantiano e os pressupostos filosóficos básicos antigos
e medievais que se deveria evitar verter ‘termini transcedentes’ por ‘termos transcendentais’” (p.22,
grifo do original). No presente texto, de minha parte, busco defender uma tese semelhante a partir da
própria Crítica da razão pura de Kant – isto é, defendo-a por um ponto de vista historicamente posterior.
Entretanto, não espero mais do que produzir um trabalho que possa complementar, em alguma medida,
aquele elaborado por Rijk.
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Gustavo Barreto Vilhena de Paiva
I. O problema.
Um dos conceitos que se mostraram mais relevantes no desenvolvimento da
filosofia contemporânea foi o de “transcendental”. Tendo por fonte principal a obra
de Immanuel Kant, essa noção se mostrava relevante, ainda na segunda metade do
século XX, em textos como o artigo Wahrheitstheorien de Jürgen Habermas, no qual
a “situação ideal de fala” – condição ideal para qualquer situação de comunicação
real que possa resultar em um juízo tido por verdadeiro – é caracterizada, mesmo que
com algumas ressalvas, justamente como “transcendental”1. Em outras palavras, na
filosofia da linguagem, a noção de transcendental se mostrou de grande importância
para a compreensão da comunicação. Tão interessante e problemático quanto o seu
uso no tratamento da linguagem, porém, é a utilização desse mesmo conceito para o
estudo da filosofia produzida antes do próprio Kant. Com efeito, se a caracterização
atualmente mais comum do transcendental é aquela proveniente da Crítica da razão
pura, o termo não é de modo algum uma invenção de Kant. Pelo contrário, de certo
modo, ele já era de uso comum na filosofia há pelo menos seiscentos anos – mas
somente de certo modo. Isso porque o termo latino “transcendentalis” se deriva
de “transcendens”, particípio de “transcendo”, porém unicamente os dois últimos
circularam de início.
Segundo Hinrich Knittermeyer, somente nos séculos XVI e XVII o termo
“transcendental” (no latim, “transcendentalis”) se tornou mais corrente no
vocabulário filosófico e, ainda assim, de maneira bem caracterizada, pois
exclusivamente “transcendente” ou “transcendentes” (“transcendentia”) eram
utilizados como substantivos, enquanto “transcendental” fazia o papel do adjetivo
a eles correspondente2. Ora, na versão latina da Crítica da razão pura3, tanto
“transcendens” como “transcendentale” são utilizados por Kant, mas cada um
com significados distintos e muito especializados, como veremos mais adiante. Tal
distinção traduz, respectivamente, os correspondentes em alemão “transzendent”
1 HABERMAS, J. “Wahrheitstheorien”. In: _________. Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des
kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Surkhamp Verlag, 1984, pp.187-225.
2 KNITTERMEYER, H. Der Terminus transszendental in seiner historischen Entwicklung bis zu Kant.
Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwürde der Hohen Philosophischen Fakultät der
Universität Marburg. Marburg: Buchdruckerei von Joh. Hamel, 1920, p.135. Vale citar, como fonte
para o estudo da noção de “transcendente” entre os séculos XIII e XVIII (incluindo a interessante
derivação da noção de “supertranscendente”) o artigo de DOYLE, J. P. Between Transcendental and
Transcendental: the Missing Link?. The Review of Metaphysics, 50.4, 1997, pp.783-815.
3 No que se segue, utilizarei três edições da Crítica da razão pura de Kant: KANT, I. Kritik der reinen
Vernunft. Herausgegeben von Wilhelm Weischedel. 2 Bd. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag,
1974; KANTII, I. Opera ad philosophiam criticam. Vol. 1 – cui inest Critica rationis purae. Latine
vertit Fredericus Gottlob Born. Lipsiae: Impensis Engelhard Beniamin Schwickerti, 1796; e KANT,
I. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.
Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2001. As
traduções da Crítica da razão pura citadas a seguir serão sempre retiradas desta edição portuguesa.
4 Para notar tal correspondência basta comparar uma mesma passagem nas edições alemã e latina.
É o caso, por exemplo, das páginas B352-3 da edição alemã e 231-3 da edição latina citada na nota
anterior.
5 GILSON, É. “Avicenne et le point de départ de Duns Scot”. Archives d’histoire doctrinale et littéraire
du Moyen Âge (1927), pp.89-149.
6 GILSON, É. Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales. Paris: Vrin, 1952, pp.97-8.
7 WOLTER, A. The Transcendentals and their Function in the Metaphysics of Duns Scotus. St. Bonaventure:
The Franciscan Institute, 1946. Podemos adicionar como exemplos desse uso anglofônico do termo
“transcendentals”: AERTSEN, J. A. Medieval Philosophy and Transcendentals. The Case of Thomas
Aquinas. New York – Köln: Leiden: Brill, 1996; e Medieval Philosophy as Transcendental Thought.
From Philip the Chancellor (ca. 1225) to Francisco Suárez. Leiden: Brill, 2012 Em contrapartida,
como foi dito, Rijk (em “The Aristotelian Background of Medieval transcendentia: a Semantic
Approach”) propõe a utilização de “transcendent” como tradução inglesa do latim “transcendens”.
segundo a qual não é contraditório (e, portanto, Deus pode fazer com) que uma coisa
seja conhecida por um intelecto humano como existente sem que ela realmente
exista. Para Muralt, era só uma questão de tempo – nesse caso, bastante tempo – para
que essa proposição resultasse em uma filosofia que dispensa qualquer acesso à coisa
em si, restringindo o conhecimento a um discurso sobre fenômenos, como ocorre
em Kant. Dessa maneira, toda a filosofia moderna se torna um longo desenrolar da
chamada “hipótese ockhamiana” que culmina em Kant e, em particular, nas Críticas.
Assim, para Muralt, toda a filosofia moderna já está contida nas filosofias de autores
escolásticos como João Duns Escoto ou Guilherme de Ockham10. O problema dessa
proposta é que ela precisa, curiosamente, admitir que Guilherme de Ockham não
desenvolveu a sua própria tese até o fim. Com efeito, como o mesmo Muralt afirma,
Ockham em momento algum deixa de considerar que o conhecimento intelectual
tenha um objeto real e, portanto, diga respeito à realidade11. Assim, Ockham admite
que é possível que um conhecimento não tenha um correlato na realidade fora da
alma, mas ele de maneira alguma afirma que essa seja a regra. A meu ver, isso
gera um grande problema para a tese de Muralt, pois, segundo este último, Ockham
defende o exato oposto do que Kant defenderá e, mesmo assim, tudo o que Kant
defendeu já deveria estar contido na filosofia de Ockham. Essa anomalia ocorre porque
Muralt está deixando de lado um dos eventos mais relevantes na história da filosofia
entre a escolástica e Kant: o profundo e detalhado desenvolvimento do ceticismo
dos séculos XVI e XVII, que encontramos em Michel Montaigne ou Pierre Charron, por
exemplo. Já tendo sido tomado por Gilson como irrelevante para o desenvolvimento
da filosofia12, o ceticismo dos quinhentos e dos seiscentos foi apontado como um dos
mais importantes fundamentos históricos de toda a filosofia produzida a partir do
século XVII no livro seminal de Richard Popkin13. Ora, é exatamente esse ceticismo
desenvolvido no decorrer de séculos que tornou tão patente o abismo que há entre
a elaboração do conhecimento científico e a pretensão do acesso a uma realidade
fora do sujeito por meio desse conhecimento14. Não há como superar a barreira do
ceticismo em uma tentativa de aproximação entre os escolásticos e Kant, pois nela
está a origem da fundamental diferença que há entre um autor escolástico – digamos,
João Duns Escoto – e o autor das Críticas: para o primeiro, todo conhecimento legítimo
remete a uma realidade fora do intelecto e é dessa remissão que ele retira seu
10 Idem, p.140.
11 Idem, p.141.
12 GILSON, É. The Unity of Philosophical Experience. San Francisco: Ignatius Press, 1999 (1937), p.94.
13 POPKIN, R. The History of Scepticism. From Savonarola to Bayle. Oxford: Oxford University Press,
2003.
14 O papel do ceticismo dos séculos XV a XVII na elaboração dessa incapacidade de se atingir qualquer
realidade externa por meio da ciência, que, de uma maneira ou outra, marcará a filosofia posterior,
fica claro nos primeiros 11 capítulos do livro de Popkin, isto é, até o estudo da obra de Descartes
(Idem, pp.3-173).
caráter verdadeiro (ainda que tal remissão não seja imediata), enquanto que para o
segundo um conhecimento só é legítimo se respeitar os seus limites e não pretender
atingir nada (isto é, nenhuma coisa em si mesma) para além do sujeito.
Nesse caso, chegamos a uma situação bem interessante. O que em Kant é
um equívoco no conhecimento – a saber, a aplicação dos conceitos às coisas para
além do sujeito – é a regra para os escolásticos. Em outras palavras, aquilo que Kant
denomina de uso transcendente dos conceitos está, de certo modo, próximo daquilo
que os escolásticos de fato almejavam para os seus conceitos transcendentes, como
“ente”, “bom”, “uno”, “verdadeiro”. Assim, ao que parece, não é sem razão que
Kant reserva o termo “transcendente” para essa desmesura que os escolásticos
cometiam, dado que eles mesmos se utilizavam dessa palavra (transcendens) para
denominar os seus conceitos mais gerais. Por outro lado, Kant resguarda o termo
mais recente “transcendental” para aquele campo do conhecimento que, segundo
ele, fornece as regras para o uso correto do entendimento. Destarte, vemos que Kant
parece estar perfeitamente ciente do fato de que ele se utiliza de uma nomenclatura
nova e reserva o termo mais antigo exatamente para as doutrinas mais antigas. Daí
começamos a perceber o quão filosoficamente ilegítimo e problemático é traduzir
o latim medieval “transcendens” por “transcendental”! Ao mesmo tempo, somos
levados a notar o quão razoável é seguir Kant e traduzi-lo por “transcendente”.
O que pretendo nas próximas páginas é, primeiramente, mostrar como Kant
caracteriza aquilo que ele denomina inicialmente de Transzendentalphilosophie der
Alten, mas termina por descrever como não sendo mais do que um equívoco de tipo
bem preciso, a saber, aquele que, mais adiante em sua obra, ganhará o nome de
uso “transcendente” dos conceitos. Em seguida, tomarei o já referido João Duns
Escoto como exemplo de um autor escolástico para mostrar como a sua concepção do
termo “ente” exige um retorno às coisas fora da alma15. Com isso, pretendo ensaiar
um argumento para defender uma tese bem restrita: o termo escolástico latino
“transcendens” é bem traduzido por “transcendente” e não por “transcendental”,
pois a primeira tradução evita equívocos de caráter histórico-filosófico provocados
pela segunda.
procedimento dos antigos, uma vez que, para esses últimos, as categorias eram
aquelas de Aristóteles que Kant já mostrou serem falhas (ou seja, a “substância”
e os acidentes, como “qualidade”, “quantidade”, “relação” etc.). Mas, para além
dessas categorias, esses antigos propunham certos conceitos puros do entendimento
que eram a priori com respeito a qualquer objeto de conhecimento. Em outras
palavras, para os antigos, além das categorias de Aristóteles (que, de certo modo,
já são anteriores aos objetos), haveria conceitos puros do entendimento igualmente
anteriores aos objetos e anteriores às próprias categorias.
Nesse mecanismo, Kant já vê um equívoco, a saber, o aumento indiscriminado
do número de categorias e, portanto, a quebra da regra segundo a qual estas últimas
seriam os únicos conceitos a priori com relação ao conhecimento. Ou seja, um
primeiro erro dos antigos seria o fato de eles não identificarem os conceitos puros
do entendimento com as categorias, mas tornarem aqueles primeiros anteriores a
estas últimas, quebrando, assim, o próprio papel metafísico da categoria enquanto
conceito a priori do conhecimento. Sendo assim, Kant considera que esse mecanismo
de adição de conceitos puros do entendimento para além das categorias gerou somente
resultados tautológicos e, no mais, deploráveis para a metafísica – voltaremos a isso
mais adiante. Por ora, notemos que, embora faça essas ressalvas, Kant busca apontar,
com base na sua própria tábua das categorias, uma certa legitimidade da listagem
de conceitos puros do entendimento feita pelos antigos. Nesse caso, quais seriam
esses conceitos puros dos antigos? “São eles enunciados na célebre proposição dos
escolásticos: Quodlibet ens est unum, uerum, bonum” (B113). Essa fórmula parece
ter se originado por volta do começo século XIII, quando lemos, por exemplo, em
Alexandre de Hales, que “unum, uerum et bonum conuertuntur cum ente”17 – isto
é, tal como todo ente é uno, verdadeiro e bom, cada um desses três é, por sua
vez, um ente. Ou seja, os antigos a que Kant se refere aqui, se não são os próprios
escolásticos, são, pelo menos, aqueles cujo pensamento foi mais claramente expresso
por estes últimos. Dessa maneira, aquele capítulo da “filosofia transcendental dos
antigos” a que Kant se refere nesse trecho da sua obra é, precisamente, o momento
em que os escolásticos propuseram que termos como “ente”, “verdadeiro”, “bom”
e “uno” são conceitos puros, anteriores às categorias de Aristóteles e a priori
com respeito a qualquer objeto. O interessante dessa caracterização que Kant
faz da concepção escolástica desses conceitos mais comuns é o fato de que ela
é, curiosamente, bastante aproximada do projeto desenvolvido por ele próprio. É
como se os escolásticos também estivessem buscando estabelecer os conceitos a
17 WOLTER, A. The Transcendentals and their Function in the Metaphysics of Duns Scotus, pp.1-3.
Para um estudo aprofundado e recente sobre a noção medieval de transcendens (incluindo uma
consideração sobre o fundamental papel de Filipe Chanceler para a introdução e estabelecimento
de “ens, unum, verum, bonum” como noções igualmente comuníssimas), cf. AERTSEN, J. A.
Medieval Philosophy as Transcendental Thought, 2012.
Como vemos, por um lado, é dito nesse trecho que os conceitos puros escolásticos
– esses supostos transcendentais – de alguma maneira se resolvem na tábua das
categorias da Crítica e, em particular, nas categorias da quantidade. Isso ocorre
porque, supõe-se, a enumeração escolástica dos conceitos puros teve a sua origem
e fundamento em uma falsa interpretação de alguma das regras do entendimento
que, estando acessível a um estudioso, mas não sendo totalmente compreendida por
ele, o teria levado a enumerar equivocadamente certos supostos conceitos puros do
entendimento (B113). Nesse caso, como vemos, a falsa interpretação disse respeito
à categoria da quantidade descrita por Kant. Porém, o autor da Crítica é ainda mais
minucioso na sua demonstração dessa derivação equivocada dos conceitos “ente”,
“uno”, “verdadeiro” e “bom” a partir das categorias da quantidade.
Para fazê-lo, Kant mostra como os conceitos de “uno”, “verdadeiro” e
“bom” podem ser compreendidos a partir de cada uma das três categorias sob a
classe da quantidade, tal como descrito na sua tábua. Ora, essas categorias são
três: a unidade, a pluralidade e a totalidade. Dessa maneira, o que Kant busca é
uma forma de reconduzir os conceitos de “uno”, “verdadeiro” e “bom” para as
categorias de “unidade”, “pluralidade” e “totalidade”, mesmo que para isso elas
devam sofrer certas modificações. Assim, todo objeto é “uno” na medida em que
possui uma “unidade” bem caracterizada, a saber, uma unidade da síntese dos
diversos do conhecimento. Kant explica essa “unidade da síntese dos diversos dos
conhecimentos”, como a “unidade do tema num drama, num discurso, ou numa
fábula” (B114). Essa “síntese do diverso” havia há pouco sido descrita por Kant
como, “na acepção mais geral da palavra, o ato de juntar, umas às outras, diversas
representações e conceber a sua diversidade num conhecimento” (B103). Assim, não
importa que essa diversidade esteja patente ao sujeito por uma análise do conceito
ou que, pelo contrário, este último seja ainda confuso – qualquer que seja o caso,
todo conceito é fruto de diversas representações que ganham unidade enquanto
objeto neste conceito (ibidem). Dessa maneira, os objetos de fato possuem uma
unidade; esta última, porém, é uma unidade de tipo muito preciso: uma unidade
qualitativa (B114).
Ela é qualitativa, nos diz Kant, por tratar, em termos quantitativos (e, portanto,
homogêneos), de elementos heterogêneos do conhecimento considerando este
último de um ponto de vista qualitativo, a saber, como princípio de conhecimento
(B115). Como veremos, é por esse mesmo procedimento que Kant consegue
reconduzir os outros dois conceitos puros escolásticos às suas categorias, a saber,
descrevendo quantitativamente conhecimentos tomados qualitativamente enquanto
princípio de outros conhecimentos. Destarte, o conceito de “verdade” se refere à
“pluralidade” do objeto, na medida em que este último é tomado como um conceito
do qual se podem extrair diversas consequências verdadeiras. No entanto, essa é
uma pluralidade qualitativa, pois não estamos aqui nos referindo a uma pretensa
grandeza do objeto, mas à realidade objetiva que ele adquire ao ser o princípio
comum de diversas consequências verdadeiras. Quanto ao conceito de “bom”, Kant o
iguala à “perfeição” (Vollkommenheit) e afirma que essa perfeição característica do
objeto é justamente o fato de se poder reconduzir a ele todas aquelas consequências
que dele se extraiu, ou melhor, o objeto é perfeito (bom), porque a sua pluralidade
(verdadeiro) é reconduzida à sua unidade (uno). Essa perfeição, portanto, é uma
totalidade ou uma integralidade, não quantitativa, mas qualitativa, pois mais uma
vez não se fala aqui de uma totalidade de partes, mas da integralidade de um objeto
enquanto princípio e unidade de conhecimento (B114-5).
O interessante é que essa descrição feita por Kant é totalmente coerente
com a maneira pela qual ele apresenta a tábua das categorias, uma vez que lá a
terceira categoria de cada classe é apresentada como uma ligação entre a segunda
categoria e a primeira (B110). Na classe da quantidade, isso significa que a categoria
da totalidade será uma ligação da pluralidade com a unidade. Como vemos, isso é
exatamente o que ocorre com a unidade qualitativa (uno), a pluralidade qualitativa
(verdadeiro) e a totalidade qualitativa (bom), dado que esta última é fruto da
recondução da pluralidade do objeto à sua unidade – ou, quiçá, poderíamos dizer
que o objeto é bom ou perfeito, na medida em que a sua verdade é reconduzida à sua
unidade. Para Kant, isso não é expresso senão na definição do conceito, na qual são
agregadas a unidade dos diversos que o compõem, a pluralidade das verdades que se
extraem dele e a integralidade de tudo o que dele se extraiu como recondutível à sua
unidade. Ou seja, na definição do conceito há o critério da própria possibilidade do
conceito, a unidade que o constitui, a pluralidade que dele se segue e a recondução
desta última àquela unidade, de maneira que esses três juntos “constituem o que é
requerido para a elaboração de todo conceito” (B115).
Pois bem, isso tudo parece muito coerente. No entanto, há aqui um grande
problema! Como vimos acima, Kant considera que esses conceitos puros destacados
pelos escolásticos geram somente tautologias. Ora, é exatamente isso o que ocorre
aqui, uma vez que a explicação do “uno”, do “bom” e do “verdadeiro” em termos
de “unidade qualitativa”, “pluralidade qualitativa” e “integralidade qualitativa” não
nos permite mais do que reafirmar logicamente a “concordância do conhecimento
consigo próprio” (B116) sem, porém, possibilitar a aplicação desses conceitos a
objetos quaisquer. Dito de outra maneira, o “uno”, o “verdadeiro” e o “bom” não
devem estar na tábua das categorias porque eles não dizem respeito à aplicação dos
conceitos à intuição da sensibilidade e, portanto, não dizem respeito ao conhecimento.
Pelo contrário, eles simplesmente reafirmam tautologicamente a identidade do
conhecimento consigo mesmo abstraído de qualquer objeto de conhecimento.
Essa observação nos conduz àquele que parece ser, para Kant, um grave erro dos
escolásticos na sua tentativa de enumerar os conceitos puros do entendimento.
Como vemos, esses conceitos dizem respeito unicamente à possibilidade de um
conceito qualquer do entendimento, abstraído de qualquer objeto de conhecimento.
Nesse caso, se os escolásticos diziam que todo “ente” é “uno”, “verdadeiro” e
“bom”, o termo “ente” deveria se referir somente a algo enquanto conhecido pelo
entendimento. De fato, se voltarmos ao trecho da Crítica da razão pura destacado
acima, notamos que, para Kant, os escolásticos de fato consideravam esses conceitos
“apenas no sentido formal, como dizendo respeito somente à exigência lógica de todo
conhecimento” (B114). O problema, nos diz Kant, é que eles não se contentavam
com isso, pois “inconsideradamente se convertiam esses critérios do pensamento em
propriedades das coisas em si próprias” (ibidem)! Em outras palavras, na proposição
escolástica “quodlibet ens est unum, uerum, bonum”, há uma ambiguidade
problemática no termo “ens”, pois ele denomina, por um lado, um conceito possível
qualquer abstraído de todo objeto e, por outro lado, ele inadvertidamente ultrapassa
as barreiras do conhecimento e termina por remeter também às próprias coisas em
si. Esse é, sem dúvida, um dos maiores equívocos que se pode cometer, segundo
Kant, na elaboração do conhecimento.
De fato, como se torna patente na dedução transcendental dos conceitos puros
do entendimento, as categorias só servem para produzir conhecimento na medida em
que puderem ser aplicadas à experiência, isto é, a uma intuição empírica possível.
Somente dessa maneira elas podem dizer respeito às coisas, ou seja, unicamente
enquanto uma coisa é dada ao sujeito como objeto de uma intuição empírica. Destarte,
os conceitos puros do entendimento geram conhecimento exclusivamente quando
aplicados às coisas tais como elas nos são dadas empiricamente pela intuição sensível
(B147-8). Portanto, há um limite claro no uso das categorias: elas dizem respeito às
coisas tal como elas nos aparecem nas intuições – isto é, a fenômenos (B34) – e não às
coisas em si mesmas, anteriores a qualquer intuição. Decerto, esse limite na aplicação
das categorias redunda em um limite do próprio conhecimento, que diz respeito a
fenômenos e não a coisas em si. Dito isso, podemos perceber o quão desastrosa seria,
na produção do conhecimento, a tentativa de aplicar conceitos puros do entendimento
não somente aos objetos dados empiricamente, mas também às próprias coisas em
si independentemente de qualquer intuição sensível. Tão grave é esse equívoco
na elaboração do conhecimento que Kant reserva para ele uma nomenclatura bem
precisa. Dessa maneira, se utilizar das categorias aplicando-as aos fenômenos que
nos são dados pelas intuições empíricas – de maneira a produzir conhecimento –
é fazer um uso “imanente” (immanent) dos conceitos puros do entendimento. Já
aplicar esses mesmos conceitos puros para falar do que está para além da intuição
empírica e que, portanto, não nos é dado por fenômenos – ou seja, para falar das
próprias coisas em si mesmas – é fazer um uso “transcendente” (transzendent) dos
conceitos puros (B352 e B383). Nesse último caso, nenhum conhecimento é gerado
e, se buscamos a produção de conhecimento, é só inadvertidamente que elaboramos
conceitos transcendentes. Ora, esse é precisamente o erro no qual, segundo Kant,
incorriam os escolásticos, que, não contentes em tomar “uno”, “verdadeiro” e “bom”
por exigências lógicas do conhecimento, consideravam o “ente” como a própria
coisa em si mesma e afirmavam que esta última, independentemente de qualquer
conhecimento, seria “una”, “verdadeira” e “boa”. Ou seja, os conceitos puros dos
escolásticos pecavam por ser inadvertidamente, segundo Kant, não imanentes, mas
transcendentes.
Com efeito, como vimos na primeira parte do presente texto, esse era
exatamente o termo que os próprios escolásticos utilizavam para se referir a
esses seus conceitos mais comuns: transcendens. Assim, Kant parece reservar o
termo escolástico “transcendente” (transcendens / transzendent) justamente
para denominar o erro que ele os acusa de terem cometido, enquanto reserva o
termo mais recente “transcendental” (transcendentalis / transzendental) para a
doutrina correta, que ele próprio apresenta. Ou seja, Kant parece querer refletir a
novidade que ele introduz nas categorias na novidade do termo que ele utiliza para
denominar sua nova doutrina. Ele reserva o termo antigo para o erro antigo e toma
o termo novo para a nova doutrina correta. O interessante é que a sua avaliação da
doutrina escolástica dos termos transcendentes não é de todo desautorizada pela
contemporânea historiografia da filosofia dos séculos XIII e XIV. Decerto, por um
lado, os escolásticos não possuíam a pretensão que Kant lhes imputa de enumerar
conceitos a priori com respeito aos objetos, dado que para eles todos os conceitos,
de uma maneira ou de outra, provinham da sensação. No entanto, por outro lado,
eles certamente cometeram aquilo que o autor das Críticas considerou um erro,
pois, para os escolásticos, aqueles conceitos mais comuns são, de fato, predicados
das próprias coisas e, assim predicados, nos permitem conhecê-las. Para mostrar
como isso ocorre, podemos tomar como exemplo a doutrina dos transcendentes
desenvolvida na obra de João Duns Escoto18.
conhecer é conhecer as coisas elas mesmas, uma vez que essa remissão às coisas
possui um seguro lastro filosófico.
O que primeiro devemos notar é que, para Duns Escoto, “nenhum conceito real
é causado no intelecto do viajante senão por aquilo que naturalmente move nosso
intelecto”, a saber, “o fantasma (ou o objeto reluzindo no fantasma) e o intelecto
agente. Portanto nenhum conceito simples é naturalmente feito no nosso intelecto
agora, senão aquele que pode ser feito pela virtude destes”, ou seja, do fantasma
e do intelecto agente21. Esse trecho, sem dúvida, está escrito em uma linguagem
extremamente técnica e merece ser estudado detalhadamente. De início, atentemos
para a expressão “intelecto do viajante” (intellectus viatoris). O viajante, aqui, é
aquele que ainda não atingiu a sua pátria, isto é, que não retornou à sua origem –
portanto, vemos que o “intelecto do viajante” é o intelecto humano após a queda e
antes do retorno a Deus na beatitude. Em outras palavras, ele é o intelecto humano
no estado presente, durante a vida terrena ligada ao corpo. Isso explica igualmente
o uso da expressão “nosso intelecto agora”, ao fim da passagem: “agora”, isto é,
durante esta vida terrena corpórea. Sendo assim, vemos que o conhecimento natural
a que Duns Escoto se refere aqui é o conhecimento que se obtém pelo corpo – ou
melhor, pelos sentidos – com a ação das potências naturais da nossa própria alma
(destarte, sem nenhuma influência sobrenatural de Deus ou anjos).
Dito isso, está claro na passagem que o conhecimento está sendo tomado como
um certo movimento, dado que as causas do conhecimento são descritas como seus
“motores” (motiva) – esse movimento é, nomeadamente, a passagem do intelecto
da ignorância ao conhecimento no momento em que um conceito é feito nele pelas
duas causas motoras. Essas duas causas, por sua vez, são claramente enumeradas:
um fantasma no qual o objeto reluz e o intelecto agente. Mas o que são elas?
“Fantasma” é simplesmente o termo técnico pelo qual se nomeia a “imagem” de
um objeto, pela qual conhecemos este último no nosso sentido da imaginação. Com
efeito, a imaginação é um dos sentidos internos humanos e tem por função reunir
todas as sensações de um objeto em uma imagem comum pela qual conhecemos
esse objeto enquanto um objeto singular. Mas essa imagem sensível singular – o
fantasma – não basta para o conhecimento, pois é necessário que o próprio intelecto,
ao agir, transforme essa representação singular do objeto que está na imaginação – o
fantasma – em uma representação universal do objeto que fique no intelecto. A esta
última se dá o nome de “espécie inteligível” e diz-se que o intelecto a abstrai do
fantasma.
Feito isso, essa espécie, ao ser impressa pelo intelecto agente no próprio
intelecto enquanto este último está, não agindo, mas passível para recebê-la
21 Duns Escoto. Ordinatio I, d.3, p.1, q.1-2, n.35 (ed. Vaticana, vol.3, p.21). Todas as traduções dos
textos de João Duns Escoto são de minha autoria.
24 SONDAG, G. “Universel et natura communis dans l’Ordinatio et dans les Questions sur le
Perihermeneias (une brève comparaison)”. In: HONNEFELDER, L., WOOD, R., DREYER, M. (eds.).
John Duns Scotus: Metaphysics and Ethics. Leiden - New York - Köln, Brill, 1996, pp.385-391.
25 Duns Escoto. Ordinatio I, d.3, p.1, q.1-2, n. 71 (ed. Vaticana, vol.3, p.49).
26 Duns Escoto. Ordinatio I, d. 3, p.1, q. 1-2, n. 72 (ed. Vaticana, vol. 3, pp.49-50).
outro anterior a ele, pois ele é de imediato distinto e determinado – ou seja, ele
não é somente um conceito simples, mas é um “conceito absolutamente simples”
(conceptus simpliciter simplex), isto é, um conceito apreendido por um único ato
de inteligência simples e que não se pode resolver em outros conceitos. Dentre os
conceitos deste tipo, o mais geral e primeiro é o conceito de “ente”27. Sendo assim,
quando buscamos compreender um conceito simples abstraído dos sentidos, o que
fazemos é formular proposições a partir dos outros conceitos contidos nesse conceito
simples e com os quais podemos resolver este último. Para fazê-lo, nos utilizamos
das outras duas operações do intelecto – a composição de proposições e a elaboração
do discurso silogístico. O primeiro passo nessa busca pela definição do conceito é
a formulação de uma proposição que predique o conceito absolutamente simples
mais geral daquele conceito simples cuja definição procuramos alcançar. No nosso
exemplo, o que primeiro fazemos é produzir o juízo: “o homem é um ente”.
Isso, porém, só é possível porque
nada é concebido distintamente senão quando se concebe tudo o que está na sua
razão essencial. O ente se inclui em todos os conceitos quiditativos inferiores”
– tal como “homem”, no exemplo acima –, “portanto, nenhum conceito
inferior é distintamente conhecido senão quando se conhece o ente. Porém,
o ente não pode ser concebido senão distintamente, pois possui um conceito
absolutamente simples. Ele pode, portanto, ser concebido distintamente sem
outros, mas estes outros não o podem sem ele. Portanto, o ente é o primeiro
conceito distintamente concebível28.
todos os que são comuns a Deus e às criaturas são tais que convêm ao ente enquanto
este é indiferente ao finito e ao infinito – de fato, são infinitos enquanto convêm a
Deus e finitos enquanto convêm às criaturas; portanto, eles convêm ao ente antes
que o ente se divida nos dez gêneros e, por consequência, qualquer um desses é
transcendente30.
29 Duns Escoto. Ordinatio I, d.8, p.1, q.3, n.115 (ed. Vaticana, vol.4, p.207).
30 Duns Escoto. Ordinatio I, d.8, p.1, q.3, n.113 (ed. Vaticana, vol.4, p.206).
31 Duns Escoto. Ordinatio I, d.8, p.1, q.3, n.115 (ed. Vaticana, vol.4, pp.206-7).
realidade32. Nesse caso, Duns Escoto parece se aproximar muito de Kant e, de certo
modo, parece escapar à crítica deste último acerca da Transzendentalphilosophie der
Alten. Sendo assim, como pode ocorrer de um conceito sem qualquer correspondente
imediato na realidade poder falar sobre as coisas reais? Essa dificuldade se dissipa
quando atentamos para o que vimos há pouco, a saber, que Deus é um ente infinito
e a criatura é um ente finito. Decerto, não há algo que seja “o ente” e que seja
superior a Deus ou às criaturas, mas tanto Deus como as criaturas são realmente
entes, porém cada um a sua maneira: Deus é infinitamente, enquanto que a criatura
é finitamente. Ou seja, eles são distintamente – e, ainda assim, eles são. Dessa
maneira, o conceito de “ente” é realmente dito de ambos, pois ambos realmente
são, mesmo que de maneiras profundamente diferentes.
Isso se torna ainda mais claro quando consideramos a maneira pela qual o
“ente” é predicados dos conceitos inferiores. Vimos anteriormente que, para
Duns Escoto, o conceito absolutamente simples de “ente” é predicado de todos
os conceitos quiditativos inferiores. Ora, os conceitos quiditativos são aqueles
obtidos por abstração e que expressam de maneira universal a essência das coisas.
Eles dizem algo, portanto, realmente sobre elas. De fato, Duns Escoto nos diz que
“ente” é predicado in quid de todas as essências (seja de Deus ou das criaturas)33,
o que é o mesmo que dizer que o “ente” predica “a essência do sujeito pelo modo
da essência”34, ou seja, quando predicado de um sujeito, o ente diz algo sobre a
própria essência do sujeito. Sendo assim, quando o conceito de “ente” é predicado
daqueles conceitos inferiores abstraídos a partir das sensações causadas por coisas
existentes, se está apontando para o fato de que aquilo realmente é. Portanto, para
Duns Escoto, o conceito de “ente” diz algo sobre as próprias coisas. Ora, nesse caso,
todos os conceitos que o acompanham (nomeadamente, os demais transcendentes)
igualmente dizem algo sobre coisas reais. Quando digo que “Deus é um ente infinito”
estou realmente falando de algo existente fora da minha alma; da mesma maneira,
quando digo que “o homem é um ente finito” estou realmente descrevendo homens
individuais que existem realmente fora do meu intelecto. Isso porque, como vimos
32 Duns Escoto. Ordinatio I, d.8, p.1, q.3, n.82 (ed. Vaticana, vol.4, p.190).
33 Duns Escoto. Ordinatio I, d.3, p.1, q.3, nn.158-61 (ed. Vaticana, vol.3, pp.95-100). Vale notar que,
nesse trecho de sua obra, o tema é posto de maneira bem mais complexa do que deixa transparecer
a minha descrição, uma vez que também são abordados os casos em que o conceito de “ente” é
predicado de diferenças, como na proposição “racional é um ente”. Nesse caso, a predicação do ente
é in quale e não in quid. Entretanto, não há necessidade, na minha argumentação, de adentrarmos
os meandros da discussão proposta por Duns Escoto, uma vez que pretendo aqui somente destacar
que, pelo menos em alguns casos – nomeadamente, quando predicado de essências –, o conceito de
“ente” é dito da própria quididade da coisa abstraída dos sentidos e, portanto, da coisa conhecida
enquanto algo real. Para um estudo detalhado da noção de “ente” em Duns Escoto, ver o já citado
WOLTER, A. The Transcendentals and their Function in the Metaphysics of Duns Scotus e CROSS, R.
‘Where Angels Fear to Tread’: Duns Scotus and Radical Orthodoxy. Antonianum, 76, 2001, pp.7-41.
34 Duns Escoto. Quaestiones in Isagoge, q.12, n.15 (ed. SBU, vol.1, pp.57-8).
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