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Análise Psicológica (2009), 3 (XXVII): 385-407

Transformações psicomitológicas no
Rorschach (*)

LUÍS MIGUEL BARREIROS (**)


MARIA EMÍLIA MARQUES (***)

INTRODUÇÃO assim possível que, não só o Rorschach reflicta o


mundo, mas também que o mundo nas suas
O Rorschach pode ser encarado, em duas variadas facetas metaforize o próprio Rorschach.
dimensões básicas: uma dimensão intra-psíquica, Tal como Lévi-Strauss (1964/1991) já tinha
em que se procura averiguar o funcionamento do estabelecido para os mitos, parece que também
aparelho psíquico do sujeito, o que é feito pela para os temas rorschachianos “não existe um
leitura dinâmica dos fantasmas transmitidos; ou verdadeiro término na análise mítica, nenhuma
numa dimensão inter-psíquica, na qual os fenó- unidade secreta que se possa atingir ao final do
menos transferênciais e contra-transferenciais trabalho de decomposição. Os temas desdo-
entre sujeito e psicólogo traduzem a mútua bram-se ao infinito” (op. cit., p.15).
influência entre os dois sujeitos (Marques, Neste sentido, a unidade da semiologia do
1999/2001). Rorschach é apenas tendencial e projectiva,
Todo e qualquer tipo de objectos podem tratando-se assim de um “fenómeno imaginário
aparecer no protocolo, desde os objectos perten- implícito no esforço de interpretação, o seu papel
centes aos reinos mineral, vegetal, animal até ao é dar ao mito uma forma sintética e impedir que
reino humano. O Rorschach aparece, assim, se dissolva na confusão dos contrários” (Lévi-
como uma espécie de espelho reflector entre os Strauss, op. cit., p. 15). Ou seja, trata-se de saber,
seres humanos e entre os seres humanos e o no Rorschach, como e porque razão se passa de
mundo. A subjectividade de cada ser humano um termo ao seu contrário, de um termo ao seu
parece imprimir, neste jogo de espelhos infinitos, oposto, procurando reter e interpretar esta
um ângulo diferente às relações entre espelhos, passagem. É como se as passagens entre vários
produzindo de cada vez um grau de distorção termos criassem, por um desdobramento ao
(fantasmática) às figuras descritas. Torna-se infinito, a ilusão de uma unidade sempre tempo-
rária, precária e ameaçada, sempre relativa aos
(*) Artigo elaborado a partir da dissertação de temas considerados. E porque as passagens se dão
Mestrado em Psicopatologia e Psicologia Clínica com
o mesmo título, apresentada e defendida no ISPA em
entre termos pertencentes a temas que se contêm e
2008. projectam uns nos outros, qualquer termo das
(**) Doutor em Psicanálise. séries em causa pode constituir um significado
(***) Psicóloga Clínica, Professora Associada do relativo a qualquer outro termo com ele relacio-
Instituto Superior de Psicologia Aplicada. nado. Qualquer objecto que aparece no Rorschach,

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pode constituir o significado apenas parcial para e coeso para se operar, de novo, o espaço do
outro objecto com o qual se relacione. Algumas múltiplo, do infinito finito. Este é o universo da
das relações entre objectos e temas do Rorschach transformação simbólica” (Marques, 1999/2001,
são contidas, lidas e interpretadas por outras p. 208). Na medida em que é um “processo
relações e noutros planos do próprio Rorschach, sígnico”, designá-lo-emos por “processo
numa sempre procurada gradação contínua entre a Rorschach”, a fim de vincarmos a sua natureza
descontinuidade objectal que o compõe. Tal como semiótica, que subjaz à mera apresentação empírica
nos mitos de Lévi-Strauss, esta multiplicidade de do teste. O que designamos por “processo
objectos e temas “oferece algo de essencial, pois Rorschach” a esta luz, está na estreita continui-
está ligada ao duplo caráter do pensamento dade das teses de Chabert (1998/2000) e de
mítico que coincide com seu objeto, do qual Marques (1999/2001). A continuidade que o
constitui uma imagem homóloga mas sem jamais Rorschach reconstitui na semiose ilimitada, opera
conseguir fundir-se com ele pois evolui num outro a partir da descontinuidade dos significantes ou
plano”, podendo concluir-se por esta via que, dos objectos que aparecem nas descrições dos
assim como nos mitos, os temas e objectos do protocolos Rorschach. Tal como Jakobson (1977)
Rorschach “são in-termináveis” (Lévi-Strauss, previa para os fonemas que isoladamente nada
op. cit., p. 15), embora finitos. O Rorschach significam, mas apenas na sua mútua oposição, a
torna-se assim um “sujeito semiótico” (significa mesma hipótese pode ser colocada sobre as
sempre), na medida em que é o seu próprio relações entre os objectos descritos nos protocolos
objecto (relação de objectos). Rorschach. Isto implica, dentro do paradigma
Importa assim entender que consideramos o lévi-straussiano, que o Rorschach pode ser
Rorschach, nesta perspectiva e na sua forma entendido como uma “linguagem”, embora use a
empírica, como um simples efeito de superfície própria linguagem como mediador descritivo das
de um vasto intervalo de significantes consti- manchas. O Rorschach enquanto sistema (de inter-
tuintes materiais do sentido da existência pretação) é o que mais se aproxima da linguagem
humana. Não interessa o facto de serem x cartões (sistema por excelência), na medida em que seja
e estas ou aquelas manchas, isso é arbitrário, tal entendido enquanto operador mítico que, precisa-
como o próprio Saussure (1916/1972) já tinha mente nessa qualidade, detecta mitos pessoais
notado na relação, constitutiva do signo, entre constitutivos do aparelho psíquico do indivíduo.
significado e significante. A apresentação Influenciado pela linguística estrutural de
empírica do teste (os cartões, as manchas, o que Saussure (1916/1972), Troubetzkoy (1939/1949)
se deve ou não perguntar, as reacções que se e Jakobson (1963, 1977), Lévi-Strauss (1955/
têm, o tempo de resposta, etc.) é apenas um /1970) irá desenvolver uma análise consecutiva
conjunto de significantes, eles próprios perten- relativa à mitologia, que culminará numa grelha
centes à cadeia significante enquanto suporte do de duas entradas para análise dos mitos, a grelha
sentido da vida. Esta cadeia significante que, ao sincro-diacrónica. É um procedimento diagramá-
contrário de Saussure, tomou a primazia na tico que estará omnipresente, embora latente, em
teoria linguística desde Jakobson (1977), e foi todas as obras das Mitológicas. A sua explici-
adoptada por autores como Lévi-Strauss (1955/ tação decorreu no entanto de maneira mais clara
/1970, 1950/1988) e Lacan (1966/1998), corres- e metódica em A Estrutura dos Mitos (Lévi-
ponde àquilo que Eco (1973/1997) denomina por Strauss, 1955/1970).
“lei de progressividade do processo sígnico” ou A proposta do autor, exemplificada com o
“semiose ilimitada” (pp. 151-152). mito de Édipo, consistiu em distribuir as acções
É nesta semiose ilimitada que, argumentamos, das personagens em linhas horizontais deno-
o Rorschach labora na sua ilimitada, embora finita minadas, por inspiração na linguística, por
nos temas, produção de significados, “onde se “sintagmas” ou “diacronias”, uma vez que
joga um processo em que a simetria, ao abrir o decorrem segundo a ordem cronológica do
espaço para o múltiplo e o infinito, obriga e tempo linear. Aquilo que as acções diacrónicas
impõe, também, o retorno, o reencontro e a têm em comum, quer em diferentes lugares no
fixação no uno, no indivisível, no unido, integrado mesmo tempo, quer em diferentes momentos

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do tempo no mesmo lugar, foi colocado em como os morfemas estão para os fonemas. Cada
colunas verticais da grelha e denominado por forma difere da que a precede, por um mais alto
“paradigmas” ou “sincronias”. grau de complexidade. Por esta razão, denomina-
Pode-se ver aqui, desde logo, que o mito, remos os elementos que provêm particularmente
segundo esta concepção, se joga numa constante do mito (e que são os mais complexos de todos):
tensão entre os acontecimentos reais e históricos grandes unidades constitutivas” (op. cit., p. 243).
do tempo e os desejos que, fora do tempo, os As grandes unidades constitutivas são os feixes
alimentam e condicionam. O mito fala, portanto, de relações sincrónicas nas colunas verticais da
daquilo que aconteceu algures no passado (mas tabela. Chegámos então aos mitemas, as unidades
um passado que por não ser identificável remete mínimas constitutivas dos mitos: “Como se
para o não-tempo, para a ausência do tempo, para procederá para reconhecer e isolar essas grandes
a sincronia) para explicar um estado de coisas no unidades constitutivas, ou mitemas? Sabemos que
presente (no tempo, na diacronia). O desconheci- elas não são assimiláveis, nem aos fonemas, nem
mento do tempo por parte do inconsciente (Freud, aos morfemas, nem aos semantemas, mas se
1915/1981) encontra-se, portanto, esquematizado situam num nível mais elevado: senão o mito seria
nas colunas sincrónicas da grelha dos mitos de indistinto de qualquer outra forma de discurso.
Lévi-Strauss. Segundo Lévi-Strauss (1955/1970), Será necessário pois procurá-las no nível da
“um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos oração” (op. cit., p. 243).
passados: ‘antes da criação do mundo’, ou A questão agora é a de saber qual a melhor
‘durante os primeiros tempos’, em todo caso, ‘faz técnica para diferenciar os mitemas uns dos
muito tempo’. Mas o valor intrínseco atribuído ao outros, na análise de cada mito e entre os mitos, a
mito, provém de que estes acontecimentos, que fim de os colocar nas colunas verticais da tabela.
decorrem supostamente em um momento do tempo, Lévi-Strauss (1955/1970) usará então “(...) a
formam também uma estrutura permanente. Esta seguinte técnica: cada mito é analisado indepen-
relaciona-se simultaneamente com o passado, o dentemente, procurando-se traduzir a sucessão de
presente e o futuro” (p. 241). acontecimentos por meio de frases o mais curtas
Que lógica preside então à grelha de dupla possíveis. Cada frase é inscrita numa ficha que
entrada para análise dos mitos? A assumpção traz um número correspondente ao seu lugar na
básica do autor é a da íntima relação entre mito e narrativa. Percebe-se, então, que cada cartão
linguagem: “(...) Se os mitos têm um sentido, este consiste na atribuição de um predicado a um
não pode ater-se aos elementos isolados que sujeito. Ou melhor, cada grande unidade consti-
entram na sua composição, mas à maneira pela tutiva tem a natureza de uma relação” (p. 243).
qual estes elementos se encontram combinados. Este ponto é importante para a tese aqui
(...) O mito provém da ordem da linguagem, e faz avançada, pois aqueles que denominamos por
parte integrante dela; entretanto, a linguagem, “objectos míticos” na estrutura dos protocolos
tal como é utilizada no mito, manifesta proprie- Rorschach, consistem na atribuição de predicados
dades específicas. (...) Essas propriedades só a sujeitos detectáveis nas mais curtas frases
podem ser pesquisadas acima do nível habitual possíveis fornecidas pelos sujeitos. Ora, a predi-
da expressão linguística; dito de outro modo, cação de sujeitos constitui uma inevitável
elas são de natureza mais complexa do que as característica das relações interpessoais. Trata-se
que se encontram numa expressão linguística de de um outro modo de ver a definição generalista
qualquer tipo” (op. cit., p. 242). de “objecto”, nas teorias das relações de objecto,
Daqui chega-se à conclusão de que “(...) como dada por Greenberg e Mitchell (1983/2003): “o
todo ser linguístico, o mito é formado por termo tem sido utilizado para descrever quer as
unidades constitutivas; (...) essas unidades consti- pessoas reais no mundo externo, quer as imagens
tutivas implicam a presença daquelas que que delas são formadas internamente”(p. 34),
intervêm normalmente na estrutura da língua, ou acrescentando que o respectivo conceito está “em
seja, os fonemas, os morfemas e os semantemas. concordância com a experiência dos doentes cujo
Mas elas estão para os semantemas assim como mundo pode ser descrito por “objectos” que estão
os semantemas estão para os morfemas e assim activos ou estáticos, vivos ou mortos, que são

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benignos ou malignos, etc. A própria generali- deixa restringir a limites territoriais ou a classifi-
dade do termo indica a variabilidade da experi- cações. Não importa o modo como a encaremos,
ência de cada um com outras pessoas” (pp. 34-35) ela desenvolve-se como uma nebulosa, sem jamais
e admitindo ainda que “um objecto, de acordo reunir de modo durável ou sistemático a soma
com o emprego comum do termo, apesar da sua total dos elementos de onde tira cegamente a sua
durabilidade, pode ser manipulado e modificado. substância, certa de que o real lhe servirá de guia
Pode ser remodelado, pintado de novo, partido em e lhe mostrará um caminho mais seguro do que
dois, reparado ou pode mesmo ser destruído” (p. aqueles que poderia ter inventado. A partir de um
35) tal como os mitos, aliás, na acepção de Lévi- mito escolhido, senão arbitrariamente, mas em
Strauss (1955/1970, 1964). virtude do sentimento intuitivo de sua riqueza e
É assim que para Lévi-Strauss (1955/1970), as fecundidade, e em seguida analisado de acordo
verdadeiras unidades constitutivas do mito com as regras estabelecidas em trabalhos
(unidades que dão sentido às acções predicadas anteriores (...) configuramos o grupo de transfor-
dos sujeitos), na qualidade de mitemas, “não são mações de cada sequência, seja no interior do
as relações isoladas, mas feixes de relações, e (...) próprio mito, seja elucidando as relações de
é somente sob a forma de combinações de tais isomorfismo entre sequências extraídas de vários
feixes que as unidades constitutivas adquirem mitos provenientes da mesma população. Assim,
uma função significante. Relações que provêm já nos elevamos da consideração de mitos
do mesmo feixe podem aparecer em intervalos particulares à de certos esquemas condutores
afastados, quando nos situamos num ponto de que se ordenam sobre um mesmo eixo. Em cada
vista diacrônico, mas se chegamos a restabelecê- ponto desse eixo assinalado por um esquema,
-las no seu agrupamento ‘natural’, conseguimos traçamos na vertical, digamos assim, outros eixos
ao mesmo tempo organizar o mito em função de resultantes da mesma operação, mas agora não
um sistema de referência temporal de um novo mais efectuada por meio dos mitos de uma única
tipo (...) Realmente, este sistema é de duas população, aparentemente diferentes, mas de
dimensões: ao mesmo tempo diacrónico e sincró- mitos que, embora pertencentes a populações
nico, e reunindo assim as propriedades caracterís- vizinhas, apresentam certas analogias com os
ticas da ‘língua’ e as da ‘palavra’” (p. 244). primeiros. Desse modo, os esquemas condutores
Deste modo acabamos por obter uma simplificam-se, enriquecem-se ou transformam-se.
esquematização da tabela mítica na forma do Cada um deles torna-se origem de novos eixos,
quadro abaixo reproduzido. A ilustração do perpendiculares aos precedentes em outros
método de análise mítica pela grelha funciona planos, aos quais logo irão agarrar-se por um
“como se nos fosse apresentada uma sequência duplo movimento prospectivo e retrospectivo,
de números inteiros, do tipo 1, 2, 4, 7, 8, 2, 3, 4,
sequências extraídas de mitos provenientes de
6, 8, 1, 4, 5, 7, 8, 1, 2, 5, 7, 3, 4, 5, 6, 8, sendo-
populações mais remotas ou de mitos inicialmente
-nos atribuída a tarefa de reagrupar todos os 1,
descartados por parecerem inúteis ou impossíveis
todos os 2, todos os 3 etc., sob forma de quadro”
de interpretar, embora pertencentes a povos já
(Lévi-Strauss, op. cit., p. 246). E o “quadro”
passados em revista. À medida que a nebulosa se
tomaria a forma abaixo indicada:
expande, portanto, seu núcleo condensa-se e
1 2 0 4 0 0 7 8 organiza-se. Filamentos esparsos soldam-se,
0 2 3 4 0 6 0 8 lacunas preenchem-se, conexões estabelecem-se,
1 0 0 4 5 0 7 8 algo que se assemelha a uma ordem transparece
1 2 0 0 5 0 7 0 sob o caos. Como numa molécula germinal,
0 0 3 4 5 6 0 8 sequências ordenadas em grupos de transforma-
ções vêm agregar-se ao grupo inicial, reprodu-
É de acordo com tabelas reticulares sincro-dia- zindo-lhe a estrutura e as determinações. Nasce
crónicas desta natureza, que mais tarde o autor irá um corpo multidimensional, cuja organização é
desenvolver a sua metodologia de análise mítica, revelada nas partes centrais, ao passo que na sua
descrita sumariamente segundo os seguintes periferia ainda reinam a incerteza e a confusão”
procedimentos: “[a] nossa empresa (...) não se (Lévi-Strauss, 1964/1991, pp. 12-13).

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Deste modo, todas as relações agrupadas na o passado: “antes da criação do mundo”, ou
mesma coluna apresentam, por hipótese, um “durante os primeiros tempos”, em todo caso,
traço comum que se trata de evidenciar (Lévi- “faz muito tempo” (Lévi-Strauss, 1955/1970) – e
Strauss, 1955/1970). Neste ponto, e uma vez que uma segunda oposição pós-edipiana entre ego e
não vamos seguir até ao fim a demonstração superego – é o presente do aparelho psíquico
pormenorizada de Lévi-Strauss, importa durante o qual os “mitos individuais dos neuró-
acrescentar que o autor prevê que a narrativa do ticos” (Lacan, 1953/1987) compõem e “transfor-
mito (exemplificado com o mito de Édipo) mam” (Bion, 1965/1991) constantemente o
prossiga com a superação de oposições entre as passado.
colunas. Significa isto que, relativamente ao Nesta perspectiva, entenderemos o processo
quadro acima esboçado, por exemplo “a quarta Rorschach como uma emissão de mitos trans-
coluna mantém com a coluna 3 a mesma relação formáveis do presente para o passado (regressão)
que a coluna 1 com a coluna 2. A impossibili- e do passado para o presente (progressão), na
dade de manter em conexão grupos de relações é medida em que a combinatória das percepções e
superada (ou mais exactamente substituída) pela representações de cada cartão fornece uma
afirmação de que duas relações contraditórias constante resposta mutativa aos traumas do
entre si são idênticas, na medida em que cada sujeito. Isto implica entender o Rorschach
uma é, como a outra, contraditória consigo enquanto Complexo-Mítico-Dinâmico-Transfor-
mesma” (Lévi-Strauss, 1955/1970, p. 249). Este mável, no qual as oposições entre [sujeito-prova]
ponto é importante, pois retrata noutro para- e [sujeito-sujeito psicólogo] são manifestadas,
digma um dos importantes conceitos freudianos, substituídas e superadas no processo Rorschach
o de “série complementar”, que prevê que “a enquanto metáfora da segunda tópica do
constituição sexual hereditária apresenta-nos aparelho psíquico. A “exteriorização”, a “mani-
uma grande variedade de disposições, conforme festação” do aparelho psíquico dá-se deste modo
seja herdado, com particular intensidade, um ou no processo Rorschach como o Outro Simbólico
outro dos instintos parciais, sozinho ou em com- da interacção imaginária eu (sujeito)-outro
binação com os outros. A constituição sexual (psicólogo). Nesta perspectiva a tese de
forma, portanto, junto com o factor da experi- Leichtman (1996) que admite o Rorschach como
ência infantil, uma ‘série complementar ’ veículo ou meio de representação entre um
exatamente semelhante àquela que já sabemos emissor e um receptor seria entendida no sentido
existir entre disposição e experiência casual do em que tal “veículo” se caracterizaria pela
adulto” (Freud, 1916-17/1996b, p. 365). emissão e recepção de mitos, cuja combinatória
Ou seja, a “causação da neurose” requer uma transformadora entre percepções e represen-
“disposição devida à fixação da libido”, situada tações trocadas forneceria o valor simbólico das
no domínio da experiência infantil, e uma interpretações.
experiência casual traumática no adulto (Freud, Defendemos aqui que o Rorschach tem por
op. cit.) que a substitui e a expressa por outros função fornecer configurações temporárias
meios. Trata-se da polémica teoria do duplo estabilizadas dos mitos pessoais que o sujeito
trauma no aparecimento da neurose. Interpretada formou até ao momento em que lhe é proposto
em retrospectiva pelo prisma lévi-straussiano, interpretar as manchas.
diríamos que a neurose é uma transformação
estrutural por oposição e substituição entre duas
oposições traumáticas na vida humana com uma O PROTOCOLO RORSCHACH
nova configuração mental como resultado:
oposição traumática entre id e mundo externo, Para podermos exemplificar o paradigma
primeiro; oposição traumática entre ego e super- acima descrito, procederemos ao delineamento
-ego após internalização objectal, depois. Em da grelha psicomítica aplicada ao protocolo de
termos de segunda tópica do aparelho psíquico, Rorschach de Régis, 24 anos, com diagnóstico
há assim uma “primeira” oposição pré-edipiana de esquizofrenia paranóide, publicado in Chabert
entre o id e as exigências do mundo externo – é (1998/2000, pp. 235-240).

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PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ANÁLISE DO PROTOCOLO DE RÉGIS
DO RORSCHACH
Grelha sincro-diacrónica original designada
As configurações temporárias dos mitos por “grelha psicomitológica 1” na qual reproduzi-
pessoais formados são detectáveis através da mos a narração cronológica conforme o protocolo
metodologia agora proposta. Tal metodologia de Régis.
consiste na construção sistemática da denominada Na grelha psicomitológica 1 (Anexo) podemos
grelha sincro-diacrónica ou grelha psico-mítica. verificar que logo no início continuam as duas
A grelha consiste numa tabela de dupla entrada, primeiras colunas do código edipiano (colunas
na qual constam as mais curtas frases possíveis da filiação) por preencher.
relativas ao protocolo do sujeito. A tabela é Tendo sempre em atenção o princípio segundo
formada por dez linhas horizontais relativas aos o qual aqui se trata de mediação de opostos,
ultrapassagem de opostos a fim de construir novos
dez cartões que formam a prova. As linhas são
“objectos psicanalíticos” (Bion, 1962/1991, p.
designadas por linhas diacrónicas, na medida em
68), definidos pelas “hipóteses de definição”
que são reguladas pelo tempo cronológico da
(Bion, 1962/1991, p. 67) geradas na cadeia signifi-
verbalização do sujeito. As frases numeradas dos cante no seio de novas versões míticas da narração
protocolos são distribuídas pelas linhas hori- do paciente, podemos verificar na diacronia
zontais relativas a cada cartão, respeitando narrativa dos cartões comentados um código
sempre a sucessividade cronológica original. espacial caracterizado pela oposição dos signifi-
Cada frase ou oração corresponderá ao que cantes dentro/fora e baixo/alto. No cartão II “um
designaremos por mitemas, significantes, objecto interplanetário entra na vagina” (sentido
objectos psicanalíticos ou elementos alfa, na “fora→dentro” e “alto→baixo”). No cartão IX um
medida em que constituem as mais pequenas “géiser sai do pescoço” (sentido “dentro→fora”) e
unidades de significado constituintes dos mitos no cartão X um “sinal de progresso (procura de
pessoais do sujeito. Estas unidades elementares petróleo no solo)” está “apontado ao céu, à divin-
ou mitemas são organizadas ou arrumadas nas dade” (sentido “dentro→fora” e “baixo→alto”). A
colunas verticais da grelha, que designaremos por ordem cronológica do discurso do sujeito produz
colunas sincrónicas. Tais colunas são a-temporais toda uma série de mediações, ao longo do
e são formadas pelos grandes temas da existência Rorschach, entre, digamos assim, uma “entrada
humana: morte, corpo, sexualidade, filiação inaugural” (acontecimento mítico fundador, inau-
intergeracional, entre outras. Cada mito pessoal gural) e uma “saída final”. Entre esta entrada e
será identificado na medida em que constitua uma esta saída, o Ego de Régis empreende uma longa
relação de equilíbrio temporária entre cada quatro viagem.
colunas, de acordo com a fórmula psicomítica de O Ego de Régis aparece no cartão IX recalcado
Lévi-Strauss (1955/1970). pelo jogo anagramático da linguagem e investido
na figura do “géiser”: “Régis” deslocado, conden-
Neste protocolo analisaremos primeiro os
sado e figurado no anagrama do “géiser” tenta
mecanismos de defesa compostos sobretudo por
fazer um primeiro movimento de “dentro→fora”
mitemas nos domínios anatómico, botânico e
saindo de um pescoço, dimensão oral da sua
animal. Identificaremos dois códigos fundamen- regressão: “(...) o discurso em seu conjunto pode
tais no psicomito de Régis: o código espacial e o tornar-se objeto de uma erotização, que segue os
anatómico. A partir daqui deduziremos o núcleo deslocamentos da erotogenia na imagem
central edipiano do sujeito e, finalmente, corporal. O discurso assume então uma função
identificaremos a relação de equilíbrio entre as fálico-uretral, erótico-anal ou sádico-oral”
quatro colunas centrais do mito pessoal de Régis, (Lacan, 1953/1998, pp. 302-303). O falicismo
de acordo com os procedimentos da fórmula uretral ou o sadismo oral que o investimento no
canónica dos psicomitos inerente à estrutura da “géiser” por Régis parece indicar, desdobra-se
grelha. Construiremos, finalmente, a grelha de mais uma vez segundo o modelo da grelha mítica
quatro colunas relativa ao mito pessoal de Régis sincro-diacrónica de duas entradas na medida em
vigente na altura da administração do teste. que se, com efeito, é necessária a linearidade que

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Saussure (1916/1972) considera constitutiva da géiser que explode a partir de um pescoço (cartão
cadeia do discurso, em conformidade com sua IX) e o mesmo Ego está “preso” no cartão IV na
emissão por uma só voz, e na horizontal em que figura de um monstro que tem dificuldade em
ela se inscreve em nossa escrita, ela não é descolar da superfície da terra, um monstro que
suficiente” pois “não há cadeia significante, funciona como figura mediadora, como termo
com efeito, que não sustente, como que apenso mediador entre o petróleo (fonte de energia para
na pontuação de cada uma de suas unidades, combustão) abaixo da terra, contido no seio da
tudo o que se articula de contextos atestados na terra e a ambivalência afectiva da divindade (deus
vertical, por assim dizer, desse ponto” (Lacan, e o diabo) que acima da terra tudo observa. Este
1957/1998, pp. 506-507). tipo de monstro parece cinestesicamente
A revelação das pulsões de Régis no semelhante aos monstros ctónicos de alguns
investimento da imagem do géiser ao nível do mitos, monstros que saídos debaixo da terra
pescoço, denuncia, em todo o protocolo e em aparentam um andar atabalhoado e zigueza-
termos de código espacial e anatómico, o gueante (as ventosas fixam-se à terra). Estes
denominado deslocamento defensivo de baixo monstros estão classificados na quarta coluna da
para cima, que acontece quando “as sensações e grelha mítica de Lévi-Strauss aplicada à análise do
as inervações e até mesmo os processos de mito de Édipo: “Em mitologia é frequente que os
erecção, que pertencem propriamente aos homens nascidos da Terra sejam representados,
genitais, se [deslocam] para outras regiões no momento da emergência, como ainda inca-
remotas do corpo – como, por exemplo (...) pazes de andar, ou andando desajeitadamente”
para cima, para a cabeça e a face” (Freud, (Lévi-Strauss, 1955/1970, p. 249).
1916-17/1996a, p. 329). Sobre isto temos: no O código espacial desdobra-se ainda noutro
cartão III, uma cabeça de monstro, uma auréola sub-código: o Ego de Régis projecta o conflito
na cabeça de Cristo e um cérebro vermelho; no pulsional ao nível da imagem do corpo e da
cartão V, uma cabeça de caracol; no cartão VI, anatomia na geografia. De um código espacial
os olhos e pulmões; no cartão VII, duas bocas; interno (anatómico), passamos a um código
no cartão VIII, a árvore da vida em cima de espacial externo, a terra com os seus elementos
duas estátuas, portanto acima do órgão da dinâmicos e ocultos: petróleo e géisers. O alto e
cabeça; no cartão IX, cornos e cérebro de baixo são, neste código, definidos através de
rinoceronte, cabeça oculta e testículos no lugar significantes que se situam abaixo ou acima da
dos braços no super-homem e busto de Deus; no superfície da terra. A superfície da terra tornou-se
cartão X, cabeça do diabo com capacetes. Há, agora significante do Ego dividido de Régis. A
no entanto, movimentos inversos de cima para simetria do Rorschach transportou Régis para a
baixo, como no cartão IV, onde aparece uma metáfora da “terra” enquanto significante
cauda de cacto picante e um monstro com defensivo da cisão do seu Ego (cf. Freud, 1938/
ventosas no lugar dos pés. Note-se agora como /1996) e reconstrutor mítico temporário da função
na coluna do cartão IV, onde aparece o mitema sintética do Ego. Abaixo da terra, as pulsões
do “monstro com ventosas no lugar dos pés” recalcadas, acima, a sua sublimação. Abaixo da
aparece também o mitema que constitui o terra, o petróleo a ser explorado, libertado,
elemento culminante da narração do mito acima, a torrente fortíssima do géiser que expele
rorschachiano de Régis: o “géiser”, no cartão IX o substituto do petróleo, a água (também ela
e o petróleo, no cartão X, cujo símbolo da sua subterrânea), bem acima da crosta terrestre
busca surge apontado ao céu, à divindade. (cartões IX e X). E no cartão IV, o código anató-
“Géiser” que, duas colunas à frente, no mesmo mico refere-nos a presença de um significante
cartão IX, aparece associado ao significante oposto às torres de petróleo apontadas para cima
“pescoço”. Portanto, no mesmo eixo semântico e ao géiser de natureza fálica – uma cauda de
do código espacial e anatómico (imagem do cacto, picante, apontada para baixo, para a terra.
corpo), temos mitemas que vectorialmente nos Uma cauda certamente penetrante, escavadora
descrevem as direcções opostas de baixo para da superfície terrestre. Uma cauda que, enquanto
cima e de cima para baixo: o Ego de Régis membro sem cabeça (inverso de um pénis) nos
obtém uma “libertação” sublimada, através de um remete para um super-homem sem cabeça e

391
cujos testículos ocupam o lugar dos braços. O mediadora entre termos opostos. Em termos de
corpo inteiro (com o tronco entre dois testículos) código anatómico na narração de Régis, a cabeça
é agora metáfora do órgão masculino – Ferenczi opõe-se à “traqueia-artéria” e esta opõe-se às
(1924/1993, p. 268) já tinha chamado a atenção “ventosas-pés”. Sendo extremo de duas cadeias
para a “identificação do organismo total com o (“cabeça”→“traqueia-artéria”+“traqueia-artéria”→
órgão genital” enquanto uma das funções do “ventosas-pés”), o termo “traqueia-artéria” torna-
coito. O pescoço sem cabeça (cartão IX), neste -se mediador entre dois extremos (este signi-
feixe de relações, é o oposto complementar da ficante funciona agora como significante ao
cauda picante (cartão IV). A correlação por serviço da função sintética do Ego que, como
opostos, em termos de imagem corporal e código Freud referia, quando não encontra associações
anatómico, liga estes dois significantes de uma verdadeiras não hesita em fabricar uma falsa).
maneira surpreendente: pois um pescoço e uma Estamos, todavia, no âmbito do mesmo código
cabeça constituem uma metáfora de um pénis e anatómico.
um pescoço sem cabeça um pénis castrado Note-se que o cartão que serve de mediador
representado por uma cauda picante (analidade no código espacial anatómico contém um signi-
sádica). Segundo Wisdom (1961, p. 234), até os ficante mediador (“traqueia-artéria”), que
símbolos fálicos ocos (como a chaminé) podem conduz a outro significante que agora medeia
representar simultaneamente um pénis e uma entre dois códigos. As ventosas constituem uma
vagina e, nesta medida, colocamos a hipótese mediação entre o que se situa agora no alto, o
segundo a qual um pescoço, na qualidade de corpo, e o baixo – o subterrâneo –, o qual nos
órgão por onde passam conteúdos, poder conduzirá aos significantes “petróleo” e “géiser”
representar também o órgão feminino. Se assim que defensivamente aparecem invertidos, ou seja,
for, Régis estaria a usar regressivamente a no extremo semântico do código espacial interno
bissexualidade, disfarçada sob conteúdos anatómico (alto).
manifestos de falicidade encobridora de um
“cabeça”-“mísseis”→“traqueia-artéria”→
“conflito subjacente relativo a uma destrutivi-
→“ventosas-pés”→“géiser”, “petróleo”
dade em direcção à mãe e vinda da mãe; e que o
simbolismo pode ser dito inteligentemente Já estamos perante dois códigos: o código
desenhado para nos colocar fora de cena na anatómico, interno, podendo ser lido espacial-
medida em que é exteriormente fálico e interior- mente em termos de imagem do corpo e o código
mente representativo da vagina” (Wisdom, 1961, espacial externo, que pode ser lido em termos
p. 234). Embora aplicada à conversão histérica, a dos significantes que se situam abaixo da super-
hipótese de Wisdom sobre a relação sexual fície da terra e acima dela. A imagem do corpo
sádica, tomada e vivida como introjecto maligno bipartida entre o alto e o baixo está agora inves-
ao serviço da defesa no mesmo indivíduo, poderia tida no código espacial externo. O mesmo par de
estar presente no caso Régis, desde a entrada do opostos atravessa agora dois códigos. Este
objecto interplanetário numa vagina (cartão II) até processo desdobra-se a partir do significante
à explosão orgásmica num géiser metafórico “ventosas-pés”: o monstro que se desloca com
(cartão IX). Na mesma linha de pensamento, a ventosas anuncia uma “libertação” por vir; a
“traqueia-artéria”, significante morfologicamente extrema dificuldade do movimento com ventosas
próximo dos “mísseis” na cabeça e do “objecto sobre a superfície terrestre é o oposto comple-
interplanetário” (⇔“míssil”), serve de mediador mentar da extrema facilidade com que se liberta a
entre o alto e o baixo no código corporal anató- energia antes contida sob a terra: a explosão do
mico, entre a cabeça e respectivos significantes géiser. Por isso, os significantes “géiser-petróleo”
associados e os pés que prendem à terra como vão aparecer ao nível do pescoço, enquanto
ventosas. Esquematizemos: órgão anatómico situado no alto. Sigamos a
“cabeça”→“traqueia-artéria”→“ventosas-pés” cadeia significante, tal como enquadrada pela
tabela mítica, a fim de extrairmos mais conclu-
Este é um dos segmentos da cadeia significante sões. No cartão IX, podemos ver a presença
ou função-alfa, cadeia que descreve a transição enigmática dos duplicados. Muitos significantes

392
aparecem aos pares ao longo dos cartões e na estrutura binária do código espacial e anatómico
mesma célula da grelha do cartão IX podemos nos remetem para a duplicidade da figura
encontrar dois diabos que observam e dois diabólica enquanto situada abaixo e acima da
cérebros na qualidade de órgão da cabeça. O terra (mundo cortado em dois), e para a terra
código espacial inerente à cadeia significante enquanto dividida entre o alto e o baixo
pode ajudar-nos a encontrar resposta para estas relativamente à sua linha de superfície.
presenças. O diabo, enquanto oposto do divino, é A questão que agora se coloca é: porque
considerado pelo senso comum como um ser do razão a rigidez típica da figura da estátua (neste
inferno situado abaixo da terra, em oposição caso de uma mulher, a Virgem, e de um homem,
complementar a Deus, cuja presença é frequente- Deus, aparece no cartão IX precisamente ao
mente conotada, ao alto, no céu. O voyeurismo da nível da cabeça (ao nível do “alto” enquanto
pulsão escopofílica, traduzido pelo significante do significante condensador dos códigos anatómico
“diabo” duplicado, pode indicar uma ambiguidade e espacial interno)? E porque razão o signifi-
afectiva de Régis relativamente à figura paterna. cante da “estátua” é aplicado a um aparente
Mas a cadeia significante “obriga-nos” a identi- substituto do casal parental (“Virgem+Deus”),
ficar a cisão de Régis relativamente a esta figura numa espécie de tentativa de reconstituição da
como uma cisão defensiva do seu Ego, que “unidade parental” (1930/1996)? Segundo a tese
coloca o diabo observador enquanto mau objecto de Freud (1922/1981), a decapitação da cabeça
abaixo da terra e o diabo observador enquanto da Medusa, assim como o medo petrificante de
bom objecto acima da terra. O diabo é uma tomá-la como objecto do olhar, com os seus
figura monstruosa que anuncia também ele a vários cabelos, simbolizava o medo petrificante
explosão por vir. A ambiguidade afectiva relativa da castração, medo derivado da eventual
ao monstro com ventosas sobre a terra marca o observação ou imaginação do órgão sexual
limiar de passagem entre o mau objecto diabó- feminino enquanto castrado (teoria sexual
lico abaixo da terra e o bom objecto acima, na infantil) tendo os cabelos (púbicos) a função de
medida em que se assemelha a figuras divinas do substituição do pénis em falta. Recordamos que
alto (no cartão IX, nesta célula, Régis equipara os o significante da “estátua” aparece no mesmo
“diabos grávidas” a “estátuas daVirgem” e ao cartão IX e na mesma célula da grelha psicom-
“busto de Deus”). A gravidez diabólica anuncia itológica onde se encontra um “super-homem
também um “inchaço” anatómico (código anató- sem cabeça”. Este segmento da cadeia signifi-
mico) enquanto significante contentor de uma cante da narração de Régis indica-nos, portanto, a
energia por explodir. E deveríamos também equiparação entre o “super-homem sem cabeça” e
identificar neste segmento da cadeia significante as figuras divinas em “estátua” através da castra-
a explosão do géiser com o nascimento proveni- ção. Para “provarmos” isto, temos que ter uma
ente da gravidez. Aparecem ainda dois cérebros correspondência em termos de código anatómico e
verdes. O significante “verde” é mais difícil de espacial que nos apresente um oposto complemen-
explicar, mas parece-nos possível classificá-lo tar da castração enquanto ausência de cabeça. Para
como objecto bizarro, no sentido de Bion tal, importa entender qual a função da reunião dos
(1962/1991). Entretanto, o cérebro, enquanto pais na economia libidinal do ser humano.
órgão anatómico da cabeça e possuidor de dois Segundo Klein (1930/1996), “a criança
hemisférios, pode remeter-nos mais uma vez espera encontrar dentro da mãe (a) o pénis do
para o código espacial que divide a terra em dois pai, (b) excrementos e (c) crianças, identificando
hemisférios pela linha do equador. Aqui, a linha todas essas coisas com substâncias comestíveis.
divisória entre o que está abaixo e o que está De acordo com as fantasias (ou “teorias
acima da terra torna a merecer a nossa atenção sexuais”) mais iniciais da criança a respeito do
enquanto significante organizador dos mecanis- coito entre os pais, o pénis do pai (ou seu corpo
mos de defesa de Régis. No mesmo cartão IX, inteiro) se incorpora à mãe durante o acto
Régis refere dois diabos com cornos de sexual. Assim, os ataques sádicos da criança têm
rinoceronte: tendo o rinoceronte um só corno como objecto tanto o pai quanto a mãe, que são
fálico, novamente a cadeia significante e a mordidos, despedaçados, cortados ou esmagados

393
na fantasia. Os ataques dão origem à ansiedade positivamente pelo seu conteúdo, mas
de que o indivíduo seja punido pelos pais em negativamente pelas suas relações com os outros
conjunto. Essa ansiedade também é internali- termos do sistema. A sua mais exacta
zada em consequência da introjecção sádico- característica é serem o que os outros não são”
-oral dos objetos e, assim, já é dirigida para o (p. 198). O oposto de cada significante no
superego primitivo. A minha experiência mostra sistema dos psicomitemas Rorschach implica
que essas situações de ansiedade nas fases precisamente que o seu significado esteja sempre
iniciais do desenvolvimento mental são as mais no significante onde o primeiro não está e no
profundas e poderosas. Também descobri que o significante que o primeiro não é. Um
sadismo uretral e anal, que logo se soma ao significante obtém o significado deslocado
sadismo oral e muscular, desempenha um papel noutro significante, construindo assim uma
importante no ataque fantasiado ao corpo da significação parcial, transitória: “a palavra
mãe. Na fantasia, os excrementos transformam- contém a significação; inversamente, a
se em armas perigosas: o acto de urinar é significação contém a palavra que se descobre
equiparado a cortar, furar, queimar e afogar, ou não” (Bion, 1970/1991, p. 117).
enquanto a massa fecal é encarada como armas Os psicomitemas rorschachianos formam
e mísseis. Num estágio posterior da fase que assim sistemas de forças contraditórias sempre
acabo de descrever, esses modos violentos de em transformação, através de significantes-
ataque dão lugar a agressões ocultas pelos -charneira que ligam, “soldam”, códigos
métodos mais refinados que o sadismo pode diferentes. A nossa grelha psicomitológica
criar, e os excrementos passam a ser igualados a rorschachiana funciona também segundo a
substâncias venenosas” (p. 251). conceptualização de Bion. A mudança de códigos,
Os “mísseis” que alguns psicomitemas do neste caso entre o espacial e o anatómico e sua
Rorschach indicam estar ao nível da “cabeça” recíproca, corresponde ao conceito de “mudança
ficam assim ligados, por inversão (transformação) catastrófica” enquanto relação “transformada”
dos significantes do código anatómico e espacial com mudança de “vértice”. A relação recíproca
de Régis, à analidade sádica da “cauda de cacto entre contentor e conteúdo no sistema ♀♂ prevê
picante do monstro” (cartão IV). Agora já pode- mudanças catastróficas sempre que um
mos lançar uma nova hipótese sobre o enigma do significante ou elemento alfa passa a conter
“mundo cortado em dois” (cartão IX), do “objecto outro quando antes era contido e sua recíproca:
interplanetário na vagina” (cartão II), da “França isto verifica-se na grelha sempre que o código
cortada em duas” e do “totem cortado em dois” muda – mudança de vértice – e um significante
(cartão VI) ou do “sinal de progresso (procura de transita para o seu oposto através de um
petróleo no solo) apontado ao céu, à divindade” significante mediador – figura mediadora na
(cartão X): constituem significantes da angústia fórmula canónica dos mitos de Lévi-Strauss
suscitada pela possibilidade de punição dos “pais (1955/1970). Deve dar-se atenção, ainda, ao
em conjunto” sobre o sadismo da criança. facto de os códigos anatómico e, sobretudo,
É de notar que continuamos a seguir a espacial, serem manifestações da proeminência
mudança de “vértice” (Bion, 1965/1991) entre da contrapartida mental da visão ou do vértice
estes dois códigos, a transformação de um visual: afinal, as “imagens mentais prestam-se
código noutro através de significantes-charneira, elas próprias à transformação em diferentes
significantes ou figuras intermediárias entre meios” (Bion, 1965/1991, p. 92). Note-se como
opostos consecutivos – recordemos a assumpção no caso aqui analisado o código anatómico se
básica da linguística estrutural importada por tornou um meio transformado de manifestação
Lévi-Strauss (1955/1970, 1964/1991) e Lacan do código espacial e este um meio transformado
(1966/1998) para as ciências sociais e a da manifestação do vértice visual, vértice através
psicanálise, assumpção através da qual Saussure do qual a nossa análise contentora (continente) e,
(1916/1995) se referia ao valor dos signos nela contidos, os protocolos de Régis (conteú-
dizendo destes que “quando dizemos que dos), se transformaram mutuamente.
correspondem a conceitos, subentendemos que No cartão X aparecem aranhas e flores.
estes são puramente diferenciais, definidos não Retornemos à divisão dual imposta pelo código

394
espacial através da linha da terra ou superfície definição de Bion já considerada, contém um
terrestre. As “aranhas” e as “flores” são seres elemento puro da sensação (elemento-beta).
vivos que se encontram sobre a superfície da Havendo proximidade entre os significantes de
terra. Residem, portanto, numa zona mediadora “soutien” e “busto” podemos tornar a encontrar a
entre o alto e o baixo. Depois aparece a presença da mãe fálica persecutória no extremo
cinestesia do sadismo de origem muscular sob a superior (alto) do código espacial, agora imbuída
forma de “aranhas esmagadas”. Recordemos a de uma concepção imaculada da gestação e do
tese de Abraham (1922/2000), segundo a qual a nascimento: sendo o busto uma figura humana
aranha remeteria simbolicamente para o medo da considerada em termos de peito e cabeça mas
mãe fálica castradora. Não se trata de uma sem braços, torna-se possível ver como a
interpretação fixista, no sentido em que a aranha ausência de braços implica uma castração, na
teria sempre que remeter, como que num medida em que estes tinham sido substituídos
dicionário, para o significado “congelado” da imediatamente antes pela deslocação dos
figura materna. Trata-se de verificar que na testículos de baixo para cima (tudo na mesma
nossa interpretação dinâmica do jogo entre célula do cartão IX). Não obstante o fantasma da
mitemas do Rorschach o significado da aranha união parental estar presente na narração de
parece remeter também para a mãe. O “esmaga- Régis, a conjunção da Virgem e do busto de Deus
mento” dá-se sobre algo que vem da terra, as parece indicar a presença de uma mãe fálica
“flores” e sobre algo que se encontra em cima auto-fecundante e de um pai passivo e castrado.
das flores, as “aranhas”. As “flores”, com as suas Isto liga-se na mesma célula à presença de
raízes abaixo da terra remetem-nos agora, “diabos grávidas” o que reforça, por sua vez, a
através da cadeia significante, para a “árvore da possibilidade da função da mãe enquanto mau
vida” no cartão VIII: aqui vamos encontrar o objecto para Régis.
“fogo da terra” – significante do inferno e, A “unidade parental” (Klein, 1930) tem que
portanto, do “diabo” já considerado –, abaixo da se traduzir, em termos de projecção no código
“árvore da vida”. Isto concorda ainda com a espacial, na conjunção entre o alto e o baixo.
afirmação através da qual a “árvore da vida” se Além do cartão IV já analisado, no qual se dá
encontra acima das “estátuas da catedral de uma descida de cima para baixo até à conjunção
Paris” (ligadas às figuras divinas de Deus e da mediadora no significante do monstro sobre a
Virgem, no cartão IX). Assim sendo temos, terra, também o cartão VI se revela agora como
abaixo da figura mediadora da superfície terres- um cartão de conjunção. Une o alto e o baixo
tre, Deus e a Virgem (casal parental unido) e o sob a figura mediadora de dois pássaros num
seu contrário, o Diabo. O Diabo representa, beijo. A oralidade (alto) de dois pássaros (seres
agora, o medo persecutório das retaliações do que se movem no alto) a beijarem-se à distância
casal unido sobre Régis. A zona de ambivalência (disjunção) é substituída na diacronia imediata-
afectiva do código espacial, a superfície terrestre mente seguinte do mesmo cartão VII pela
enquanto significante mediador, “evacua” descida dos mesmos à superfície terrestre
psicoticamente os maus objectos internalizados, (mediação entre o alto e o baixo), lugar onde se
fazendo com que tudo o que seja filho do interior dão as mãos (conjunção). A conjunção do código
da “terra” tudo o que brote da superfície anatómico (mãos unidas) tem o seu corres-
terrestre, seja sadicamente esmagado: recorde-se pondente no código espacial (pássaros na terra,
que é na superfície da terra que se movimenta sobre uma rocha). A mudança de “vértice” é
desajeitadamente o “monstro” com “ventosas” possível através do isomorfismo dos dois
nos “pés”, ventosas que, enquanto elemento do códigos dominantes no protocolo de Régis.
código anatómico, anunciam o vínculo O cartão VII continua a ser um desenvolvi-
persistente ao casal unido. Além disto, a ligação mento do cartão VI. O cartão VI revela-se como
entre os significantes “aranhas azuis” e “par de um cartão de mediação potencial através da
soutien azul” (cartão X) leva-nos a reforçar a figura da conjunção de opostos, por excelência: a
tese da maternalidade do símbolo da aranha e, cruz. O significante “cruz” é um significante-
além disso, permite-nos classificar o “azul” -charneira entre o alto (vertical) e o baixo (hori-
como objecto bizarro, no sentido em que, pela zontal). A cadeia significante oferece a Régis a

395
possibilidade de colocar as “asas” na linha coluna contendo a “auréola” de “Cristo” – as
“horizontal” da “cruz”. Isto é congruente com o “flores” e “aranhas” (cartão X), do esmagamento,
desdobramento do segmento seguinte da cadeia afinal, dos pais unidos e sua retaliação fantasmati-
significante, no cartão VII, onde Régis irá colocar zada. Note-se o eixo semântico de opostos em
dois “pássaros” (seres com “asas”) sobre a linha torno destes significantes: os dois tipos que discu-
horizontal da superfície terrestre, sobre “duas tem estão associados, no mesmo cartão, à cabeça
pedras”. O mesclar dos códigos espacial e (órgão anatómico do alto), atrás da qual cada
anatómico (“horizontal” da “cruz” e “asas” na indivíduo esconde um cérebro vermelho – tam-
“cruz”) no cartão VI, desdobra-se no cartão VII. bém no cartão VII dois seres do reino animal, dois
Os “pulmões” e o “amendoado” dos “olhos” na pássaros, fazem boca a boca à distância. A cadeia
vertical da “cruz”, pelo seu contorno morfológico significante liga dois cartões através de dois
externo, anunciam a sua posterior substituição opostos complementares, mediante a conjunção de
pelos “testículos” no cartão IX. A “cruz na placa dois códigos, o anatómico (duas cabeças discutem
de insectos” (“cruz” “esmagada”) remete-nos para – disjunção) e o anatómico-animal (bocas de
a cinestesia do “esmagamento” posterior, no pássaros unidas – conjunção). Os significantes de
cartão X: as “aranhas esmagadas” são seres que ambos os códigos transformam-se entre si através
vivem ao nível da “superfície da terra” enquanto da projecção defensiva no código espacial: é no
figura mediadora entre o alto e o baixo, entre o alto que tudo se passa.
vertical e o horizontal, no fundo enquanto símbolo Todo o processo de análise até agora realizado
dos “pais unidos” (Klein, 1930). tem que ser sintetizado em oposições funda-
O cartão V é também um cartão de conjunção mentais em equilíbrio pertencentes a códigos.
entre o alto (“borboleta”) e o baixo (“caracol”). Defendemos que estas oposições temporaria-
No entanto, a “cabeça de caracol” permite a mente estáveis são as que formam versões
posterior subida ao serviço do recalcamento no temporariamente estáveis de psicomitos indivi-
código espacial e anatómico, potencializando duais no seio de estruturas psicopatológicas.
desde logo as funções já analisadas que a Quando os significantes transitam na cadeia
“cabeça” irá desempenhar quando agregada a significante ou função alfa para outros códigos,
outros significantes. Embora situado no baixo determinada versão psicomítica transforma-se
(superfície da terra sobre a qual se arrasta), noutra e a estrutura psicopatológica passa a
relativamente ao alto onde a “borboleta” se apresentar uma configuração narrativa diferente.
movimenta, a cinestesia do movimento do Detectámos então dois códigos estruturadores
“caracol” contém já em si a mediação anunciada da narração rorschachiana de Régis: o código
na linha da superfície da terra enquanto ambiente espacial externo constituído pelo eixo semântico
no qual se desloca. do baixo-alto e o código anatómico interno,
O cartão III reconduz-nos novamente à concep- também ele espacializável na medida em que
ção sádica do coito enquanto teoria sexual infantil: disposto segundo o alto e o baixo da imagem
uma cabeça com coroa de sangue. Note-se como corporal. Pode dizer-se que, de um modo geral,
um dos mitemas ou significantes bloqueou a os significantes do discurso de Régis se articu-
associação livre mais tarde explorada nos cartões lam segundo o eixo semântico do baixo-alto na
IX e X: não se trata de uma “auréola”, pois imagem corporal. Neste sentido, importa come-
“Cristo tinha uma”. O divino irá no entanto apare- çarmos por isolar uma figura mediadora e ver
cer ao nível da “cabeça” (no alto do código como, a partir desta, outras figuras mediadoras
anatómico), mais tarde. Por agora, a cabeça repre- vão surgindo na narração enquanto forma de
senta uma racionalização defensiva inacabada, ultrapassagem de opostos. Isto deve ser feito
imperfeita – uma inteligência degradante dos segundo a lógica da fórmula canónica dos mitos
civilizados, civilizados que, na medida em que de Lévi-Strauss (1955/1970), fórmula que nos
discutem, apresentam um “cérebro vermelho” por ajuda a melhor definir o que entendemos por
detrás da “cabeça”. O “vermelho” enquanto psicomito individual enquanto formação tempo-
elemento beta pode assim deixar antever na cadeia rária do inconsciente, tradutora da denominada
significante a futura cinestesia do “esmagamento” “equação etiológica” ou “série complementar” da
da “cruz” (cartão VI) – que se encontra na mesma neurose (Freud, 1916-17/1981).

396
Importa, deste modo, explicar a lógica qualquer narração uma longa série de figuras
subjacente à fórmula dos mitos, na perspectiva de mediadoras. Importa destacar, para começar, uma
Lévi-Strauss (1955/1970). Para o autor, “todo delas, aquela que mais tenha impressionado a
mito (considerado como o conjunto de suas nossa atenção durante a análise da narração,
variantes) é redutível a uma relação canônica do aquela que tenha produzido a Transformação mais
tipo: Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y) na qual, dois notória entre o Vértice da narração rorschachiana
termos a e b sendo dados simultaneamente do do paciente e o Vértice da compreensão possível
mesmo modo que duas funções, x e y, destes daquele que procede à análise do discurso
termos, afirma-se que existe uma relação de sintomático. Qualquer uma das figuras media-
equivalência entre duas situações, definidas doras na cadeia significante conduz às outras.
respectivamente por uma inversão de termos e de Por isso, fica resolvida a questão da arbitrarie-
relações, sob duas condições: 1ª que um dos dade da razão pela qual se escolhe uma e não
termos seja substituído por seu contrário (na outra figura mediadora em determinada narração
expressão acima: a e a-1); 2ª que uma inversão do Rorschach. Para que a figura mediadora entre
correlativa se produza entre o valor de função e o oposições possa existir, tal implica a ocorrência
valor de termo de dois elementos (acima: y e a). A simultânea das duas outras condições referidas
fórmula acima adquirirá todo seu sentido se nos por Lévi-Strauss, nomeadamente a transfor-
recordarmos que, para Freud, são exigidos dois mação de um elemento no seu contrário (a em a-)
traumatismos (e não apenas um, como se tem a e a substitução (transformação) entre um valor
tendência de acreditar, tão frequentemente) para de termo (a) e um valor de função (y).
que nasça esse mito individual em que consiste Note-se ainda que a fórmula no seu geral é a
uma neurose. Tratando de aplicar a fórmula à ilustração de uma metáfora e não de uma analogia.
análise desses traumatismos (dos quais se Se fosse uma analogia, tal implicaria a recusa da
postulará que satisfaçam respectivamente às sua transformação dinâmica e assumiria esta
condições 1 e 2 acima enunciadas), chegar-se-á expressão: Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fy(a). A analogia
sem dúvida a dar, da lei genética do mito, uma é estática e não dinâmica. A proporção das
expressão mais precisa e rigorosa” (p. 263). relações entre os seus componentes é absoluta,
Na fórmula do mito individual, Fx(a):Fy(b):: não deixando qualquer “resto”. O “resto” que
Fx(b):Fa-1(y), o símbolo “:” pode ler-se “opõe-se constiturá aquilo que Lévi-Strauss colocará do
a” e “::” pode ler-se “tal como”. O símbolo “::” lado do “significante flutuante” (Lévi-Strauss,
(tal como) designa também ele uma segunda 1950/1988, p. 34), enquanto desfasagem
oposição entre termos, embora tratando-se de insanável entre significante/significado e como
uma oposição que faz equivaler entre si as duas tal fundamento da função simbólica (Merquior,
oposições da fórmula. “Resolve-as”, “anula-as”, 1975). Por outras palavras, o “resto” que sempre
como que temporariamente. Para que uma nova sobra de uma relação entre os componentes da
oposição estabilizadora surja na cadeia fórmula e que constituirá material significante
significante (= cadeia de oposições da fórmula para produção de mais significados: a metáfora.
mítica), algo tem que acontecer. Podemos, para A fórmula no seu geral constitui a expressão do
tal, reparar que um termo, o termo “b”, transitou tropo da metáfora enquanto eterna produção de
da segunda componente da primeira oposição da novos significados. A quarta componente da
equação para a primeira componente da segunda fórmula dos psicomitos corresponde aos ele-
oposição. Passou de um domínio de acção, o mentos não-saturados (ξ) de Bion, na medida em
domínio y, onde os valores concretos das suas que o universo da significação caminha sempre à
acções se actualizam, para um segundo domínio, frente daquilo que constitui o Ego do testado. A
o domínio x. Ora, assim sendo, este termo b, saturação é relativa e expressa por “Ψ (ξ)” (Bion,
mediando entre dois domínios da função, cons- 1962/1991, pp. 95-96), correspondendo neste caso
titui a nossa figura mediadora. Note-se que se a à estabilidade temporária das oposições resolvidas
figura mediadora é o elo de conexão entre uma na fórmula. O encontro de determinado
longa cadeia de mediações (cadeia significante, significado parcial pelo sujeito na interpretação da
cadeia mítica ou função alfa), então teremos em mancha ou a execução de determinada acção

397
por parte do Ego, via identificação projectiva ou exercício de procurar na cadeia significante ou
qualquer outro mecanismo de defesa, durante a psicomítica um segmento onde os significantes ou
narração, constituem sempre uma “realização mitemas se manifestem enquanto valores de termo
apropriada” (Bion, 1962/1991, pp. 95-96), traduzidos por oposições nítidas. Ao nivel do
relativa porque constituinte de uma versão cartão IX aparecem as figuras de Deus, Vírgem e
mítica, versão existente entre outras do universo o Diabo. A fórmula psicomítica obriga-nos, então,
mítico (sistema ♀♂). Em termos linguísticos, o a colocar os opostos do seguinte modo:
operador de abertura da fórmula, o último Fx(diabo): Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(y)
membro Fa -1 (y), constitui uma metonímia
(inversão da relação todo-parte) que traduz a Sendo um valor de função e não de termo, a-1
designa um domínio de acções e não uma figura
capacidade de desenvolvimento da cadeia
concreta da narração de Régis. Por isso preferimos
significante para novas mediações.
colocar o seu valor como “divino” e não como
Como consideração geral poderemos consi-
“deus”. Enquanto valor de termo a=diabo e a-
derar que, nos desenvolvimentos da fórmula, o 1=deus, mas o inverso também se poderia fazer,
Ego de Régis é representado pela figura
porque as transformações dos termos entre si
mediadora b. Isto porque a viagem (passagem de
conduzem ao mesmo resultado. Também podería-
uma função a outra) que o Ego de Régis
mos ter começado por procurar a figura mediadora
empreende através dos disfarces, das máscaras,
b, mas sendo várias as figuras mediadoras
no fundo através dos significantes dos códigos
enquanto avatares do Ego de Régis, a tarefa
animal e botânico, constituem os seus mecanis-
tornava-se mais difícil. Trata-se agora de, entre
mos de defesa. A projecção do Ego de Régis nos dois opostos nítidos da cadeia significante,
diversos significantes será, assim, representada procurarmos os significantes mediadores que lhes
pelo valor de termo a e de função a-1, na medida estejam ligados com maior proximidade.
em que as contradições das figuras que Régis A questão que se impõe agora é: qual a função
encarna durante a sua narração se traduzem em do diabo ou o que faz o diabo, i.e., Fx(diabo)?
oposições entre si. Considerar a figura media- Neste segmento da cadeia significante sabemos
dora b como a mais aproximada representação que seja qual for a função ou acções do diabo,
do Ego, e colocá-la necessariamente como este será substituído por uma figura (y) cujas
mediadora de dois opostos, leva-nos a tecer a acções se desenrolarão num domínio a -1 de
consideração generalizada de o valor de termo a acções benéficas, divinas, Fdivindade(y). Aqui
[em Fx(a)] e o valor de função a-1 [em Fa-1(y)] temos que invocar o código espacial subjacente à
ao qual se opõe, poderem constituir a projecção defensiva de Régis. Já vimos que o
representação mais aproximada possível do Id, diabo, sendo uma figura associada ao “fogo”
para a primeira, e do Superego para a segunda, (cartão VIII) debaixo da terra, implica uma
isto em termos da segunda tópica freudiana. situação de contenção (baixo). O diabo, e o que
De acordo com a fórmula, só podem assumir ele representa em termos de pulsões sexuais e
valores de termo os significantes expressamente seus avatares, reside contido abaixo da linha de
enunciados (Lévi-Strauss, 1985/1987, p. 64): neste superfície da terra. Depois vamos encontrar a
caso, no contexto da narração do protocolo mesma figura do diabo na posição voyeurista de
Rorschach, os animais, plantas, objectos ou observação de um géiser em libertação (cartão
figuras antropomórficas. Os valores de função IX). A função de contenção deu lugar à função de
designam o possível campo ou domínio da sua libertação. Para mais, o diabo encontra-se
acção. Enquanto valor de função pode aparecer, associado à figura de deus, na medida em que é
naturalmente, o código espacial enquanto código expressamente identificado por Régis com a
por excelência estruturador da projecção defensiva “estátua da Vírgem” e o “busto de Deus”. Isto
do Ego de Régis e outros valores como os de leva-nos a ponderar sobre a ambivalência de
“esmagamento”, “libertação”, “conflito ou discus- Régis a respeito da eventual bondade ou maldade
são”, “morte”, “alimentação” ou “educação”. inerentes à desejada libertação catártica
Tendo presente a fórmula dos psicomitos, (géiseriana) das suas pulsões sexuais. Basica-
Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y), façamos agora o mente, podemos dizer que o que estava contido

398
em baixo passou a estar libertado em cima (código as duas colunas opostas já identificadas na
espacial). Agora passemos à fórmula novamente: tabela. Esse significante terá uma determinada
Fx(diabo): Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(y), função na oposição a uma das colunas e outra
vai dar lugar a: função na oposição a outra das colunas e, ao
opôr-se a uma e a outra das colunas em simul-
Fcontenção(diabo):Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(y?) tâneo – “duas relações contraditórias entre si
Mas em que figura (y) se dá a libertação? são idênticas, na medida em que cada uma é,
Estamos no alto do código espacial e anatómico como a outra, contraditória consigo mesma”
(cabeça e pescoço), e no psicomitema da célula (Lévi-Strauss, 1955/1970, p. 249) –, opera uma
da grelha em consideração, Régis indica-nos estabilização temporária que permitirá identificar
que a libertação géiseriana se dá na figura de um um mito pessoal precariamente configurado.
suposto “super-homem” dubiamente caracterizado, A pergunta a colocar agora será: que
primeiro, sem cabeça e, logo a seguir, com mediações defensivas conciliadoras teve o Ego
cabeça e um pescoço onde explode o géiser, tudo de Régis de investir, a fim de resolver a contra-
observado por “dois diabos grávidas” (cartão IX) dição entre uma contenção pulsional tida como
semelhantes à “estátua da Vírgem” e ao “busto má e a sua libertação desejada? Esta é a questão
de Deus”. Os “diabos grávidas” reforçam a tese fulcral a que o psicomito de Régis tenta
da contenção dos significantes que remetem responder. Todo o protocolo de Régis constitui
para debaixo da linha da terra, para dentro da uma narração sucessiva sobre as vicissitudes
terra, e o géiser para a sua libertação. O que este pulsionais de um Ego atormentado que descreve
“super-homem” realiza é, basicamente, a conclu- um percurso que vai da prisão do recalcamento
são de um processo de libertação, uma catarse pulsional à tentativa da sua libertação.
libertadora sendo isto conotado com uma acção Pelo caminho Régis houve um “monstro”,
imbuída de valores divinos (valor de função a-1). cujas “ventosas” (cartão IV) o fixam ao conti-
Talvez por isso mesmo tenha que ser um super- nente da terra materna, continente que o atrai e o
-homem. O que antes oprimia (diabo), depois assusta. Um monstro que se desloca projectiva-
liberta (super-homem de características divinas). mente no código espacial e anatómico, sabendo
Teremos assim a seguinte fórmula: que para deixar o baixo da terra-mãe em direcção
Fcontenção(diabo):Fy(b):: ao cimo da “cabeça” libertadora (cartão IX), tem
Fx(b):Fdivindade(super-homem) que pagar o preço do sofrimento inerente à
No contexto da tabela psicomítica rorschachi- ansiedade de separação dos pais (“cabeça de
ana a apresentação da fórmula acima transcrita monstro com coroa de sangue”, “Cristo”, no
far-se-á do seguinte modo: cartão III). O Ego de Régis vive na ambiguidade
da bondade versus maldade dos pais, ele próprio
Filiação subestimada Filiação sobrestimada ora assume figuras diabólicas, ora divinas. O
(contenção) (libertação)
“monstro”, enquanto figura compósita e agrega-
Cartão I dora de vários significantes (cabeças, asas,
Cartão II
Cartão III
pássaros, ventosas, cruzes, estátuas, etc.), serve
Cartão IV neste protocolo Rorschach como metáfora de
Cartão V todas as outras figuras mediadoras. O “monstro” é
Cartão VI
Cartão VII a figura mediadora da Transformação, por
Cartão VII Fogo excelência, Transformação que vai desde as
Cartão IV Diabo Deus, Virgem pulsões primárias subterrâneas diabólicas ao alto
Dois diabos observam Estátua da Virgem, busto de Deus
Dois diabos grávidas Super-homem da “inteligência degradante dos civilizados”
Géiser (cartão III). “Inteligência” por saber que só através
Cartão X
do auto-conhecimento (“cabeça”) se chega à
libertação pulsional “géiseriana”, “inteligência
Note-se que deixámos à direita duas colunas degradante dos civilizados” porque a essência do
livres. Isto porque trata-se de descobrir em processo civilizacional reside na iluminação
seguida qual o significante que irá mediar entre sublimatória, que deixa obrigatoriamente no

399
escuro o segredo das pulsões mais íntimas do “monstro” se desloca com ventosas num movi-
indivíduo. Para Freud, as vicissitudes de uma mento que tanto transmite uma sensação
pulsão até à sua sublimação percorriam as etapas cinestésica de fixação à terra, de dificuldade de
da “reversão a seu oposto”, “retorno em direção libertação da terra como de contenção do que se
ao próprio Eu do indivíduo”, “repressão” e encontra no interior da terra. A contenção
finalmente “sublimação” (Freud, 1915/1996, p. realizada pelo monstro é um domínio de acção
132). É isto que se passa na narração de Régis e é compativel, aliás, com o esmagamento de animais
isto que a fórmula dos psicomitos enquadra no que vai aparecer posteriormente no cartão X.
mito pessoal de Régis. A “inversão no seu oposto” O próximo passo é descobrir em que consiste o
traduz o conflito das pulsões e escolhas objectais domínio de acções (y) do monstro, quando se opõe
do Ego de Régis, figuradas nos significantes ao recalcamento diabólico, à contenção diabólica
mediadores da narração. Toda a inversão ou das pulsões. O periclitante andar do monstro,
mediação entre dois opostos implica sempre um como que a ”coxear”, a balbuciar como um ser
retorno em direcção ao Eu do indivíduo, porque acabado de nascer da mãe-terra já nos deixa
toda a mediação constitui um investimento do Ego adivinhar (conforme analisado mais atrás) que seja
na resolução de um conflito. Toda a mediação a libertação o seu valor de função ou domínio de
feita é, simultaneamente, um recalcamento, na acção. Mas é a “lógica” da estrutura da fórmula do
medida em que determinado conflito fica psicomito de Régis que tem que nos guiar, a fim
associado a outra corrente associativa de ideias de confirmarmos esta hipótese (recordemo-nos
que se torna prevalecente. E tudo isto constitui um que os cartões representam segmentos da cadeia
processo de sublimações parciais sucessivas significante que se “dobram” sobre si próprios
(mediações parciais), que se estabelecem na num processo de “semiose ilimitada”, o
relação do aparelho psíquico com o mundo denominado “processo Rorschach”). Ora, sendo o
externo e que se estabilizam temporariamente em “super-homem” o valor de termo (y) expressa-
diversas versões de mitos pessoais do indivíduo. mente referenciado por Régis na narração do
Passemos novamente à fórmula dos psicomitos a protocolo e sendo no “pescoço” do “super-
fim de concretizarmos mais valores. A fórmula homem” que se dá a libertação géyseriana anagra-
Fcontenção(diabo): Fy(b)::Fx(b):Fdivindade(super- mática das pulsões (cartão IX), podemos concluír
-homem) fica, então, com a seguinte aparência: que a libertação é o domínio de acção y do mons-
Fcontenção(diabo):Fy(monstro):: tro no segundo membro da primeira oposição da
Fx(monstro):Fdivindade(super-homem) fórmula [Fy(b)=Flibertação(monstro)]. Uma
figura mediadora que, simultaneamente, contém e
Primeira constatação: o “monstro” transitou liberta é uma figura que expressa uma das
de uma Função y para uma Função x. O mesmo é características mais prementes do inconsciente,
perguntar: qual a função deste monstro, ou seja, segundo Freud, o não respeito pelo princípio de
que acções (y e x) desempenhou este monstro na não-contradição (Freud, 1915/1991). Por isso, já o
narração de Régis? A análise ao nível deste defendemos, as sucessivas mediações traduzidas
segmento da cadeia significante obriga-nos a pela fórmula dos psicomitos na cadeia significante
identificar as acções num domínio x como sendo rorschachiana constituem formações do recalcado
as acções desenvolvidas num domínio de a caminho da sublimação.
contenção já identificado anteriormente (o A versão temporariamente estacionária
domínio do diabo). A fórmula fica assim: construida pelos mecanismos de defesa de Régis
Fcontenção(diabo):Fy(monstro):: toma então a seguinte aparência mítica:
Fcontenção(monstro):Fdivindade(super-homem) Fcontenção(diabo):Flibertação(monstro)::
Fcontenção(monstro):Fdivindade(super-homem)
Agora temos que encontrar na narração de
Régis um psicomitema de algum cartão que Retenhamos a última apresentação da fórmula.
“empiricamente” verifique a dedução imposta Seguidamente apresentamos a nova configuração
pela fórmula do mito individual estabilizado. da tabela psicomítica de acordo com a sucessão
Podemos encontrá-la no cartão IV, no qual o cronológica dos significantes mais marcantes:

400
Filiação subestimada Filiação sobrestimada
(contenção) (libertação) Monstro contentor Monstro libertador

Cartão I
Cartão II
Cartão III Cabeça de monstro com coroa de sangue
Cristo
Inteligência degradante dos civilizados
Cartão IV Monstro c/ ventosas Monstro c/ ventosas
Cartão V
Cartão VI
Cartão VII
Cartão VIII Fogo
Cartão IX Diabo Deus, Virgem Cabeça
Dois diabos observam Estátua da Virgem, busto de Deus
Dois diabos grávidas Super-homem
Géiser/pescoço
Cartão X Flores campestres por
baixo das aranhas esmagadas

Note-se que a figura mediadora do monstro se função de “libertação” da figura mediadora ou


encontra à direita da primeira oposição filiação valor de termo do “monstro” (quarta coluna). E à
subestimada/filiação sobrestimada. E precisamos, função de “libertação” na “filiação sobresti-
de acordo com a lógica da fórmula psicomítica, mada” (segunda coluna), oporemos a função de
de duas oposições que se anulem entre si uma “contenção” da figura mediadora ou valor de
terceira oposição surge para que se gere uma termo do “monstro” (terceira coluna). É a figura
identidade de relações estável. Para tal, teremos mediadora ambivalente que permite a transição
que nos regular pelas funções nas quais os signi- dinâmica entre as duas funções opostas da
ficantes se expressam, e as funções são as de primeira oposição e o consequente desenvolvi-
“contenção” e “libertação”. Assim sendo, à mento do psicomito no aparelho mental. A tabela
primeira função de “contenção” na “filiação adquire agora a seguinte aparência, de acordo
subestimada” (primeira coluna), oporemos a com a última expressão da fórmula psicomítica:
Filiação subestimada Filiação sobrestimada
(contenção) Monstro libertador Monstro contentor (libertação)

Cartão I
Cartão II
Cartão III Cabeça de monstro com coroa de sangue
Cristo
Inteligência degradante dos civilizados
Cartão IV Monstro c/ ventosas Monstro c/ ventosas
Cartão V
Cartão VI
Cartão VII
Cartão VIII Fogo
Cartão IX Diabo Cabeça Deus, Virgem
Dois diabos observam Estátua da Virgem, busto de Deus
Dois diabos grávidas Super-homem
Géiser/pescoço
Cartão X Flores campestres por
baixo das aranhas esmagadas
Sinal de progresso (procura
de petróleo no solo) apontado
ao céu, à divindade

A apresentação cronológica dos significantes da tabela psicomítica e, consequentemente, da


ficou subvertida, na medida em que sobreveio a fórmula, também nos diz que a ambivalência
apresentação lógica inerente à fórmula do mito afectiva de Régis luta pela libertação do núcleo
pessoal agora construído, apresentação lógica edipiano, diabolizando-o, mas também teme uma
latente no discurso manifesto de Régis. A leitura excessiva liberdade que possa aniquilar os

401
conflitos inevitáveis inerentes ao Édipo. Isto na de um super-homem de características divinas
medida em que o monstro mediador tenta libertar sob observação de “dois diabos grávidas”.
Régis do diabo edipiano castrador, mas, simulta- A questão a que o mito pessoal de Régis
neamente, também cerceia uma idealização exces- tenta responder é assim a de saber como se
siva do Édipo, idealização que poderia chegar ao libertar de uma contenção pulsional (duas
ponto de o divinizar (no cartão X, uma contenção colunas centrais da fórmula onde impera a figura
num esmagamento de aranhas coexiste com uma do monstro), gerindo simultaneamente a
libertação fálica apontada ao céu e à divindade). ambivalência inerente aos vínculos de amor
Embora consideremos esta uma formação (coluna da filiação parental sobrestimada;
pessoal mítica caracterizadora dos conflitos vínculo L, de Bion) e ódio (coluna da filiação
psíquicos de Régis, tal não implica que a fórmula parental subestimada; vínculo H, de Bion)
não adquira outras variantes. Para chegar a esta relativos ao complexo familiar salvaguardando a
variante pessoal estacionária do psicomito de integridade do aparelho mental?
Régis, procedemos a algumas explicações do
processo de formação de mediações. O processo
analítico, ou eventualmente a administração de CONCLUSÃO
mais protocolos Rorschach, certamente fariam
aparecer outras variantes da fórmula, traduzindo De um modo geral podemos referir como
outras formações psicomíticas na galáxia psico- vantagens da análise do Rorschach segundo a
mítica do aparelho mental de Régis. Poderiam ser metodologia para detecção de mitos individuais,
versões desta variante como poderiam também ser que estes agregam em si a dinâmica operada
outras variantes que viessem a englobar aquela entre a simetria e o valor simbólico no espaço
que aqui expressámos. A problemática freudiana virtual Rorschach, dinâmica que constitui o
da análise terminável ou interminável (Freud, “universo da transformação simbólica”
(1937/1981) pode ser encarada nestes termos. (Marques, 1999/2001, p. 208).
Qual a versão mítica que melhor responderia às A transformação simbólica explana-se na
necessidades do paciente é uma problemática fórmula canónica dos mitos, que inclui no seu
que só a dinâmica da relação analista-analisando quarto membro o valor simbólico responsável
e a administração de Rorschachs sucessivos pela conflitualidade assimétrica no universo
poderia responder. Isso significaria analisar outros ideal das simetrias opostas mas sempre
segmentos da cadeia significante ou mítica superadas. É o quarto membro da equação que
estruturadora do aparelho psíquico de Régis. representa a pulsão dinâmica do universo mítico
O mito pessoal de Regis parece assim indicar, que, caso contrário, permaneceria estático no
através duma projecção do complexo de Édipo, reino das simetrias perfeitas.
que duas correntes contrárias se debatem nos É este universo Rorschach de transformação
seus fantasmas sobre o complexo familiar. As simbólica que, defendemos, se desenvolve “como
relações de filiação aos pais são sobrestimadas, uma nebulosa” (Lévi-Strauss, 1964, p. 13) no
na medida em que a bondade libertadora destes universo dos psicomitos. Aquilo a chamámos
se projecta numa boa figura divina (Deus, “processo Rorschach”, assente num processo
Vírgem). As mesmas relações de filiação são semiológico mais vasto, constitui a transformação
subestimadas na medida em que estes são simbólica que o teste empírico permite que se
maldosamente fantasmatizados como figuras manifeste. O sujeito submetido à situação de
diabólicas. Todos os outros significantes prova, vive o processo Rorschach através da
considerados conduzem, conforme a análise já formação de mitos pessoais ou psicomitos.
feita, a estes significantes nucleares edipianos. O universo dos mitos pessoais do Rorschach é
De um modo geral, as duas outras colunas onde um universo que opera entre contracções e
se arrumam todos os outros significantes anali- expansões e onde “o desenvolvimento e o
sados são encabeçadas pela figura mediadora do crescimento impõem que se desfaçam e refaçam,
monstro que, ambivalentemente, ora contém ora num sem-cessar permanente, e face a elementos
liberta as pulsões, num movimento ascendente estranhos e disruptivos, novas relações, novas
que culmina na libertação explosiva géiseriana significações, mas sempre num processo que

402
reconduz de novo ao encontro com o igual, mas núcleo e conectar-se-ão a outros mitemas com os
um igual idêntico, donde modificado e transfor- quais formem oposições sem ambiguidade. Todo
mado, estabelecendo novas relações continente- o mitema mediador é um potencial agregador de
conteúdo” (Marques, 1999, p. 207). outros mitemas. É o caso do Monstro no mito
As contracções e expansões do universo pessoal de Régis que desempenha funções de
psicomítico do Rorschach processam-se de mediação também noutros significantes do código
acordo com o conceito de “cadeia significante”, espacial, por exemplo, na superfície terrestre
conforme foi identificado no protocolo de Régis. onde medeia entre os significantes do petróleo
A cadeia significante é sempre uma porção do abaixo da terra e do céu para onde as torres
processo semiológico inerente ao processo petrolíferas apontam. Outro núcleo mítico pessoal
Rorschach e é formada pelos mitemas ou frases poderia nascer a partir daqui.
numeradas dos protocolos Rorschach. A O universo psicomítico da grelha expande-se
sucessividade cronológica dos mitemas que na medida em que uma cadeia agrega novos
aparecem no protocolo é preenchida nas linhas significantes, contrai-se na medida em que os
horizontais diacrónicas da grelha psico-mítica perde. No universo psicomítico nada se perde,
de cima para baixo e da esquerda para a direita. nada se ganha, todos os mitos pessoais se trans-
Os espaços vazios na grelha relativos a alguns formam. As cadeias significantes que conectam
cartões podem ser preenchidos por outros novos significantes ou mitemas formam novos
mitemas de outros cartões num processo de continentes, as que os perdem tornam-se
alternância regressiva/progressiva do aparelho conteúdos de outros continentes. Formam-se
psíquico. Assim, novos temas aparecem, à assim novas relações continente-conteúdo.
medida que os mitemas se reagrupam ou se Estas “novas relações continente-conteúdo”
rearranjam em novas séries. Os novos temas que traduzem-se, afinal, pelas múltiplas “versões
se constituem formam as denominadas colunas míticas”, versões que correspondem às transfor-
sincrónicas verticais, colunas que subvertem a mações de um suposto “mito originário” ou
ordem original que aparece no conteúdo “objecto perdido”. De notar que a “realidade
manifesto do discurso do sujeito. Estas séries ou última” – “O” de Bion – neste paradigma não só é
colunas correspondem ao conceito cartesiano de a última inatingível como também a primeira. A
série de enumeração de elementos, ao conceito transformação K→O, a transformação que leva do
bioniano da função alfa, ao chunk milleriano, ou “saber a respeito” da realidade psíquica ao
ainda à cadeia significante lacaniana. A subversão “tornar-se” a própria realidade psíquica, significa
da ordem dos mitemas originais na criação de assim a transformação do “saber a respeito” de
novas colunas, corresponde ao conceito freudiano determinada versão do mito individual da mente
da “razão oculta” ou função intelectual que exige do indivíduo particular ao “tornar-se” a realidade
unidade. O cruzamento das cadeias significantes da própria versão do mito que o anima: “As
forma a rede da grelha psico-mítica e nesta pode qualidades atribuídas a O, os vínculos com O,
graficamente observar-se a explanação do todos são transformações de O, sendo O” (Bion,
referido conceito de “enxertagem” de mitemas de 1965/1991, p. 140). As qualidades ou versões de
uma cadeia significante noutra. Esta “O” são as versões do mito original ou mito único.
“enxertagem” mostra a expansão da grelha, na Este constitui o ideal inatingível das versões que
medida em que uma cadeia significante ou cadeia se desenrolam no espaço virtual Rorschach.
psicomítica que agregue mais mitemas de outras Depois de Kris (1956), e na senda deste,
cadeias faz aumentar o número de mitemas inter- autores houve que entenderam o mito individual
relacionados, fazendo aparecer um núcleo duro como uma formação inconsciente ao serviço
que formará um futuro mito pessoal. Os mitemas dos mecanismos de defesa do ego. Importa
mais fortemente relacionados por oposições, esclarecer que, em nossa opinião, tal posição se
temporariamente resolvidas por mediações, mantém, embora ressalvando o pormenor de o
formam o núcleo duro de um novo mito pessoal. continuum das variantes do mito, através do
É o caso das oposições entre Deus e o Diabo qual o aparelho psíquico tinge as suas transfor-
mediados pelo Monstro no mito pessoal de Régis. mações, não estar estritamente ao serviço de
Os mitemas mais ambíguos ficam na periferia do mecanismos de defesa. As variantes do mito

403
individual assumidas pelo aparelho psíquico Bion, W. R. (1970/1991). A atenção e interpretação – O
constituem a essência da maior aproximação acesso científico à intuição em psicanálise e grupos.
possível à verdade que o indivíduo é capaz de Rio de Janeiro: Imago Editora [Orig: 1970].
atingir, “tornando-se” a realidade da versão Chabert, C. (1998/2000). A psicopatologia à prova no
mítica que o anima. Foi o que Régis conseguiu Rorschach. Lisboa: Climepsi [Orig: La psychopa-
fazer na altura do seu protocolo, ao tentar tologie à l’épreuve du Rorschach, Dunod, Paris,
1998].
unificar a imagem corporal fragmentada através
do mitema mediador do Monstro. Esta posição Eco, U. (1973/1997). O signo (5ª ed.). Lisboa: Editorial
reenquadra o que Bion (1965/1991) já referiu, Presença [Orig: 1973].
segundo o qual “existe uma profunda diferença Ferenczi, S. (1924/1993). Thalassa, ensaio sobre a
entre estar a ser ‘O’ e a rivalidade com O. Esta teoria da genitalidade (1924). In S. Ferenczi (Ed.),
última é caracterizada por inveja, ódio, amor, Psicanálise 3 – Obras completas. São Paulo:
megalomania e o estado conhecido pelos Martins Fontes.
analistas como acting-out que pode ser Freud, S. (1915/1981). The unconscious (1915) (J.
diferenciado da acção; isto é característico de Strachey, A. Freud, A. Strachey, & A. Tyson,
‘estar a ser’ O” (p. 141). Como distinguir deste Trans.). In S. Freud (Ed.), On the history of the
psycho-analytic movement, articles about
modo o mito individual agido (acting out), como
metapsychology and other works (1914-1916)
resistência, do mito individual em acção (Vol. S. E., 14, pp. 141-216). London: The Hogarth
(acting)? Pela distância que o separa do mito Press / Institute of Psychoanalysis [Orig.: 1915].
originário. Esta espécie de “distância topológica”
Freud, S. (1915/1991). The Unconscious. In S. Freud
entre versões míticas “mede-se” pela capacidade
(Ed.), On metapsychology – The theory of
generativa de uma versão relativamente a outras. psychoanalysis (Vol. 11 / S. E., 14). London:
Quanto mais uma versão mítica individual for Penguin Books (Orig.: The unconscious (J.
capaz de gerar outras versões alternativas, mais Strachey, A. Freud, A. Strachey & A. Tyson,
antiga é – mais perto do “mito originário” se Trans.). In S. Freud (Ed.), On the history of the
encontra – residindo nas camadas mais psycho-analytic movement, Articles about
metapsychology and other works (1914-1916)
profundas do aparelho psíquico, sendo a sua
(Vol. S. E., 14). London: The Hogarth Press /
resistência à generatividade de novas versões Institute of Psychoanalysis [Orig.: 1915].
mais fraca. Em contrapartida, quanto menos
uma versão mítica individual for capaz de gerar Freud, S. (1915/1996). Os instintos e suas vicissitudes
(1915). In S. Freud (Ed.), A história do movimento
novas versões míticas alternativas, mais longe do psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e
“mito originário” ela se encontra, mais recente é, outros trabalhos (1913-1916) (Vol. S. E., 14). Rio
sendo a sua resistência à generatividade de novas de Janeiro: Imago Editora.
versões mais forte.
Freud, S. (1916-17/1981). Lecture XXIII – The paths to
A fragmentação dos mitemas fornecidos no the formation of symptoms / [Part III] General
protocolo Rorschach por Régis, indica que este theory of the neurosis (1917 [1916-17]) (J. Strachey,
vivia uma versão mítica pessoal próxima de um A. Freud, A. Strachey, & A. Tyson, Trans.). In S.
suposto mito originário estruturado em termos Freud (Ed.), Introductory lectures on psycho-
pré-edipianos, no caso, de natureza psicótica. analysis (1916-1917 [1915-1917]), Part III (Vol. S.
E., 16, pp. 358-377). London: The Hogarth Press /
Institute of Psychoanalysis (Orig.: 1916-17).

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404
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405
ANEXO

406
GRELHA PSICOMITOLÓGICA 1 (Protocolo de Régis)
I 1. Insecto 2. borboleta
II 3. Concorde 4. Objecto inter (a mesma
(avião) planetário que coisa..., o nada)
entra na vagina (2ª Prot.)
III 5. Dois tipos 6. cabeça de monstro 7. cada tipo tem 8. inteligência
que discutem c/ coroa de sangue, um cérebro degradante dos
não uma auréola, vermelho por civilizados
Cristo tinha auréola detrás da cabeça
IV 9. Monstro 10. traqueia-artéria
negro, simétrico, do monstro c/
c/ cauda de cacto, ventosas nos pés
mãos de pinças,
picante
V 11. Borboleta c/
cabeça de caracol
VI 12. Cruz 13. cruz c/ dois olhos 14. cabeça c/ olhos 15. folha (França cortada em
e pulmões na vertical maus, não respira de palmeira duas, estandarte ao
e asas na horizontal; mas tem pulmões, p/educar meio; Bretanha ao
cruz na placa de insec- é imortal subdesenvolvidos lado, tomawak em
tos; insectos em formol baixo; totem cortado
em dois) (2ª Prot.)
VII 16. dois pássaros 17. pousados s/ duas (O nada; morto,
que fazem boca a pedras, unidos pelas depois do nada; o
boca à distância mãos, como vagões niilista agarra-se
ao nada) (2ª Prot.)
VIII 18. Ratos rosa 19. Estátuas da cated. 20. fogo da terra
na engorda (só Paris; Árvore da vida debaixo da árvore
comem, como em cima delas; Mãos da vida
porcos) para fixadas na catedral e
serem comidos na árvore da vida
IX 21. dois diabos c/ 22. de cada lado 23. c/ um cérebro 24. super-homem (Mundo cortado em
cornos de rinoce- um géiser verde de rino- sem cabeça com dois, sentado sobre
ronte ceronte testículos no lugar um falo, representado
dois braços;na cabeça duas vezes, duas
o super-homem tem partes do mundo)
dois cérebros verdes (2ª Prot.)
de rinoceronte, o
géiser sai do pescoço
e dois diabos obser-
vam; diabos grávidas;
diabos em estátua;
diabos<=>estátua da
Virgem e busto de
Deus
X 25. uma aranha 26. sinal de progresso 27. flores campestres 28. um par de 29. com uma lagarta 30. dois pintainhos 31. cabeça do diabo
azul de cada lado; (procura de petróleo no por baixo das soutien azul vermelha de cada lado em baixo com dois capacetes
duas aranhas azuis solo) apontado ao céu, aranhas esmagadas ou mísseis
à divindade
RESUMO ABSTRACT

Procuramos estabelecer, através do processo-resposta We try to reach the personal myths through the
Rorschach, o acesso aos mitos pessoais, pelo que Rorschach response-process. To identify the personal
propusemos uma metodologia assente na construção de myths in Rorschach we proposed a methodology based
uma grelha, que denominamos por grelha psicomítica, on a psycho-mythic grid underlying the narrative of
enquanto estruturadora da narrativa Rorschach. the tested subject.
Através de uma revisão teórica onde procurámos Through a theoretical review which sought to
estabelecer a natureza e essência do mito, tal como establish the nature and essence of the myth as
está expresso no paradigma lévi-straussiano e na expressed in the lévi-straussian and psychoanalytic
psicanálise, avançámos os pressupostos epistemo- paradigm, we have made the epistemological
lógicos subjacentes à construção da grelha psicomítica assumptions underlying the construction of the
rorschachiana identificadora dos mitos pessoais no
Rorschach psycho-mythic grid identifying the personal
aparelho psíquico.
O material usado como exercício de demonstração myths in the psychic apparatus.
foi num protocolo retirado de uma das obras de Chabert The material used as a demonstration exercise
(1998/2000), de um indivíduo de nome Régis, consisted on a protocol taken from a Chabert’s
diagnosticado como sendo uma esquizofrenia paranóide. (1998/2000) work about a man named Regis who
Na aplicação da grelha a este protocolo, o was diagnosed with paranoid schizophrenia.
Rorschach foi entendido como um processo semiótico In applying the grid to the protocol the Rorschach
assente numa constante transformação de mitos test was seen as a semiotic process based on the
pessoais entre si. A dinâmica desta transformação foi transformations between personal myths. The dynamic
demonstrada através da fórmula canónica dos of those transformations was demonstrated by the
psicomitos, de Lévi-Strauss (1955/1970) e do conceito canonical formula of the psycho-myths (Lévi-Strauss,
de série complementar ou equação etiológica das 1955/1970) and the concept of complementary series
neuroses, de Freud (1916-17/1981), enquanto or etiology equation of the neurosis (Freud, 1916-
conceitos subjacentes à grelha dos psicomitos. 17/1981) underlying the concepts of the psycho-myths
Seguindo as transformações dos psicomitos de
grid. We concluded in the end with the identification
Régis determinámos qual o mito pessoal prevalecente
que presidia ao seu aparelho mental na altura da of the prevailing personal myth presiding temporarily
aplicação da prova. to the Regis’s mental apparatus at the time of the test.
Concluímos com o conceito de “transformações We finished with the concept of psycho-
psicomitológicas” enquanto paradigma de análise do mythological transformations as a paradigm for
Rorschach. analyzing the Rorschach.
Palavras chave: Mito pessoal, Rorschach, Transfor- Key-words: Personal myth, Psycho-mythological
mações psicomitológicas. transformations, Rorschach.

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