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ÍNDICE
Apresentação 3
Roxane Helena Rodrigues Rojo (LAEL/PUC-SP)
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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
APRESENTAÇÃO* *
* A possibilidade de organização tanto desta coletânea como do evento que a gerou deve-se,
em boa parte, aos subsídios CNPq (Bolsa Pesquisador/Pesquisa Integrada) e FAPESP
(Organização de Evento e Estágio de Pós-Doutoramento no Exterior), a quem
agradecemos.
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que o convidamos então, sem mais demora, a adentrar conosco este mundo da
escrita visto pelos olhos daquele que com ele faz seus primeiros contatos.
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alguém que pode ler ou escrever, não é possível subtrairmo-nos a seu efeito1,
nem concebermos qual é a relação que aquele que não sabe ler tem com
esses sinais que, para nós, apresentam-se como transparentes. Ou ainda, não
podemos mais recuperar a opacidade com que esses sinais antes se
apresentavam também para nós.
Talvez seja o caráter irreversível dessa operação que atinge nossa
própria percepção que nos leve, portanto, a supor que a escrita é transparente
para aqueles que não sabem ler. Ou melhor, a supor que ela se torne
transparente pela simples apresentação ou exposição de relações entre letras
e sons, quer sob a forma de sílabas, quer sob a forma de palavras, quer sob a
forma de textos ou do que se supõe que umas e outros "querem dizer".
O que acabo de dizer parece contrapor-se ao que Emília Ferreiro e
Teberosky (1979 e outros) tiveram o mérito de mostrar, isto é, que a criança já
sabe sobre a escrita antes mesmo da alfabetização e que o reconhecimento
desse saber deve orientar as práticas escolares. Na verdade, penso que é a
pressuposição de transparência da escrita que explica pelo menos parte das
dificuldades do alfabetizado-professor em atribuir algum saber sobre a escrita
ao alfabetizando. Ao projetar sobre o alfabetizando sua própria relação com a
escrita, o alfabetizado fica impedido de "ler" os sinais - orais ou gráficos - em
que o primeiro deixa entrever um momento particular de sua particular relação
com a escrita.
Se isso faz algum sentido, qualquer metodologia deve começar por ser
uma interrogação sobre o que é aprender, o que é ensinar e o que aprender
tem a ver com o ensinar, quando está em jogo essa transformação pelo
simbólico.
É a partir dessa reflexão que me arrisco a propor uma metodologia do
mistério, isto é, a suspensão da transparência como estratégia que torne
possível a formulação de questões. Não é demais lembrar que a suspensão
da transparência ou da "naturalidade" está na origem da indagação científica.
Como suspender a transparência, depois de tê-la declarado processo
irreversível? A resposta a essa pergunta está em deslocar esse efeito de
transparência de seu lugar de "evidência fundante", para usar uma expressão
de Pêcheux (1988) e submetê-lo ao mesmo tipo de indagação a que foi
submetida a relação entre significante e significado por filósofos e lingüistas
(ver, a propósito, Lahud, 1977).
Todas as pesquisas reunidas neste volume, de uma maneira ou de
outra, remetem a essa indagação sobre como algo se torna outro ou passa a
se apresentar como outro à percepção e à interpretação, transformando assim
o sujeito em alguém que "lê", isto é, que vê o que não estava lá.
Além de não se apresentar por si próprio, não há, com efeito, nada no
que se apresenta como escrita que aponte para a oralidade que ela passa a
"representar" para o alfabetizado. Em seu texto, Cagliari soube mostrar de
forma eficaz, colocando-nos diante de exemplares de um sistema de escrita
não alfabético, como sua opacidade de "coisa" resiste a tentativas de decifrá-
1 Essa observação deve ser relacionada com o que Eni Orlandi (1990) tem definido como
"injunção à interpretação".
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2 Para uma crítica mais alentada e profunda da concepção da escrita como representação da
oralidade, ver Mota (1995).
3 Para uma discussão mais geral sobre os pressupostos do ensino-aprendizagem que
qualificam a aquisição da linguagem oral como "natural", ver de Lemos (1991).
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4 Refiro o termo "acontecimento" ao sentido que lhe dá Pêcheux (1990), lembrando ainda que,
através dele, recupero e reformulo o que afirmei em trabalho anterior (1982: 136), isto é,
que a "linguagem [é um] objeto que se refaz a cada instância de seu uso".
5 Uma exposição mais detalhada desta proposta no que diz respeito à aquisição da linguagem
oral encontra-se em de Lemos, 1992.
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éta/eu/e/a/a/
o papai tabaia
papai faz filme
essa/essa amiga papai.
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11 Em sua tese de mestrado, Maldonado (1995) mostra que erros como dómo por "durmo",
que incidem sobre verbos com alternância vocálica do português, resultam da colocação de
flexão na forma - no caso, "dorme" - que ocorre no turno precedente da mãe.
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instaura relações com objetos, relações que são significadas como referenciais,
o texto escrito pode entrar em relação com o texto oral, ganhando uma
significação que vem a ser interpretada como referência a ele.
Nesse processo de ressignificação que incidiria fundamentalmente
sobre cadeias de textos-discursos e não, sobre unidades como palavras e
sílabas, letras e fonemas - produtos desses processos -, o papel do outro seria,
como na aquisição da linguagem oral, o de intérprete. Lendo para a criança,
interrogando a criança sobre o sentido do que "escreveu", escrevendo para a
criança ler, o alfabetizado, como outro que se oferece ao mesmo tempo como
semelhante e como diferente, insere-a no movimento lingüístico-discursivo da
escrita.
Gostaria de terminar, trazendo para a reflexão do leitor um episódio de
que participei mais como observadora perplexa do que como interlocutora.
Diante da insistência da mãe de uma criança, sucessivamente reprovada na
primeira série do primeiro grau, aceitei "avaliar" a sua escrita. Sem saber muito
o que fazer, peço a ela que escreva alguma coisa. Numa impecável letra
arredondada, em ortografia correta, ela escreve : "A casa é de Maria". Diante
da aparência de cartilha dessa escrita, peço então para ela que escreva
alguma coisa sobre a irmã. Com dificuldade, entre várias interrupções, numa
letra apertada, ela escreve algo em que, dada a "troca de letras", os problemas
de separação de palavras, mal pude reconhecer a frase "Minha irmã bateu ni
mim". Mas, só aí, pude perceber sua escrita em movimento em um texto em
que ela não se apresentava como excluída, como na frase da cartilha e na letra
da professora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Milton do Nascimento
UFMG/CEALE
1 Não vou me referir a nenhuma destas pesquisas em particular, a não ser para ilustrar ou
mostrar alguma conseqüência do aspecto teórico ou metodológico abordado.
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2 Estes dados estão à disposição do público, com fichas por temas e por cruzamento de temas.
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com que tipo de escrita ela vai trabalhar ou o momento em que a criança entra
efetivamente na escola -, os alfabetizandos utilizam de maneira crucial os seus
conhecimentos da língua na construção e organização das sucessivas
representações gráficas da fala, que os conduzem ao domínio das regras
oficiais de escrita.
Portanto, um pressuposto central é este: de que o conhecimento
lingüístico é básico, é um elemento determinante, constituinte essencial, da
construção do conhecimento sobre a escrita pela criança. Isso corresponde a
dizer que a construção do conhecimento da escrita é essencilamente mediada
pela competência lingüística do aprendiz. Ela é um dos fatores determinantes -
condição de existência - da elaboração das hipóteses e estratégias por ele
utilizadas na construção de seu conhecimento sobre a escrita.
Concepção esta que nos leva a considerar a aprendizagem da escrita
como tendo características que a distinguem de outros tipos de aprendizagem.
A construção de conhecimento sobre a escrita é um tipo de aprendizagem que
tem características específicas em relação a outros tipos de aprendizagem.
Este foi um ponto muito discutido, pois é comum, no campo da Psicologia ou
de uma certa Psicologia, afirmar-se a universalidade da dinâmica dos
processos de aprendizagem.
Note-se que o fato dos pesquisadores em questão assumirem que o
conhecimento lingüístico do alfabetizando é um fator constitutivo essencial no
processo de construção de seu conhecimento da escrita, não implica que todos
concordem teoricamente em aspectos que concernem à gênese desta
competência. Este é um ponto bastante controverso. Como este conhecimento
é construído, qual sua base, qual sua modalidade de construção, quanto a isso
há bastante divergência no grupo de pesquisadores. Há muitos pesquisadores,
lá e fora de lá, que realmente colocam este conhecimento lingüístico, esta
competência, como central e como fazendo parte do objeto pesquisado.
Mas sejam quais forem as particularidades das teorias sobre aquisição de
linguagem com que operam, os pesquisadores da UFMG, ao colocarem os
conhecimentos lingüísticos do alfabetizando como fator essencial no processo
de aquisição da escrita, estão incluindo a linguagem oral como um dos
elementos constituintes do objeto de pesquisa. Pois dizer que é essencial o
conhecimento lingüístico, implica dizer a centralidade da atuação lingüística, do
desempenho lingüístico na oralidade. E isto evidencia a necessidade de
programarmos mais pesquisas do tipo das que Soares (1989: 108) chama de
pesquisas de intervenção, em que o pesquisador intervêm no processo de
alfabetização, introduzindo um ou mais elementos novos ou variáveis.
Se estamos colocando que toda a construção do conhecimento sobre
escrita é intermediado e tem como base a atuação lingüística do sujeito, seja
como ponto de referência, seja como condição de aprendizagem, e se
tomamos o processo de alfabetização daquela sala de aula particular, daquele
colégio tal como ele é organizado, é impossível simplesmente observarmos
como as crianças utilizam este seu conhecimento da linguagem oral. Temos de
intervir, reorganizar. Isto se torna um ajuste necessário no objeto a ser
pesquisado - o processo de alfabetização -, principalmente porque, citando
Cagliari (1986: 99) em sua maneira contundente de dizer, „a incompetência dos
professores de alfabetização em lidar com a linguagem oral é tão trágica que,
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3 Esta pesquisa, hoje, já está com mais de 850.000 dados - todos computados e com
disquettes à disposição no Banco de Dados - obtidos a partir de redações de crianças
selecionadas em termos de tipo de colégio (classe não privilegiada/classe privilegiada; rede
privada/rede pública), de série e idade, de sexo do informante (masculino/feminino) e pelo
tipo de método adotado na alfabetização (global/não global).
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4 No grupo de Minas Gerais, a Profª Magda Soares já está levando a efeito este tipo de
pesquisa.
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Note-se que estas convenções são invariantes, isto é, não admitem excessões.
Além disso, nos exemplos acima, as convenções funcionam nos dois sentidos,
no que se refere a fonema/grafema. Note-se que é possível que a convenção
funcione apenas no sentido grafema/fonema: o grafema s no contexto
V_______V só pode representar o fonema /z/, como em 'casa', 'rosa',
'miserável', etc. Mas o fonema /z/, no contexto V______V, pode ser
representado também pelos grafemas z ('reza') ou x ('exato') e no contexto
V_______V, o grafema s pode representar tanto /z/ ('trânsito') quanto /s/
('ânsia').
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II
Para se ler um texto escrito é preciso, antes de tudo, saber decifrar o que
está escrito. No mundo, ainda há vários sistemas de escrita que ainda não
foram decifrados (disco de Faistos, linear A, Maia, escrita de Mohenjo-Daro, da
Ilha de Páscoa, etc. (Jensen, 1970; Cagliari, 1987)). Ao tentarem uma
decifração, os cientistas começam a fazer hipóteses sobre o sistema,
procurando qualquer evidência que os ajude a ir, aos poucos, descobrindo tudo
o que precisam saber para ler este sistema de escrita. Esse foi o trabalho
realizado por muitos sábios que, nos últimos duzentos anos, decifraram muitos
sistemas antigos de escrita, como o egípcio, o cuneiforme, o linear B, etc.
(Doblhofer, 1962).
1 Meu objetivo, neste texto, é discutir fatos e não teorias. Sinto-me, portanto, à vontade para
dizer o que penso. Mas sei, também, que não existe análise sem teoria por trás, definindo o
ângulo pelo qual se comenta os fenômenos. Neste caso, há toda uma orientação lingüística
de minha formação.
2 Uma vez que pretendo, apenas, comentar certos fatos da aquisição da leitura e da escrita por
crianças na alfabetização e não, discutir teorias ou interpretações diferentes, não faço, aqui,
uma revisão da literatura a respeito do assunto tratado. A curiosidade do leitor, porém, será
recompensada, se este se dispuser a realizar essa tarefa, uma vez que há muitos trabalhos
interessantes a respeito, sobretudo os da linha cognitivista, socio-interacionista ou do chamado
”construtivismo”.
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Uma pessoa qualquer que vive no meio urbano, mesmo sendo uma
criança, logo percebe que a escrita é uma realidade do mundo em que vive. Ao
tentar entender melhor como a escrita é, essa pessoa começa a fazer
especulações a respeito do uso desse objeto e de sua estrutura interna e
organização externa, como, aliás, faz com qualquer coisa do mundo que queira
conhecer.
Assim como o cientista anda por vários caminhos até chegar à verdade e
decifrar um sistema de escrita antigo, assim também, uma criança envereda
por muitos caminhos, até chegar a descobrir o que precisa saber para decifrar
e ler o nosso sistema de escrita e poder escrevê-lo adequadamente.
O sábio progride à medida que compara o que já fez com uma nova
descoberta. A criança procede da mesma maneira. Por essa razão, é
importante que as descobertas parciais já feitas sejam explicitadas, registradas,
para que possam ir se constituindo em elementos com os quais as pessoas
vão construindo o seu conhecimento a respeito do objeto que investigam e
estudam.
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alunos, esse ”caminho” até que é ”suave” no começo, mas depois, quando
acaba a cartilha e se vêem na situação de terem de lidar não apenas com
elementos já dominados, como na cartilha, mas com o novo e desconhecido,
então, não sabem mais progredir, aprender, e a escola, que parecia tão
organizada, torna-se uma enorme confusão para essas crianças. Aquilo que
parecia tão organizado na cartilha, torna-se um caos fora dela e o aluno,
geralmente, não tem mais a quem recorrer.
Por outro lado, aquele aluno que tem seu espaço para revelar suas
hipóteses, através de sua iniciativa, em trabalhos escolares, parece, no
começo, em meio a um enorme caos. Mas, aos poucos, vai aprendendo a
organizar seus conhecimentos e a adequá-los à realidade e, aos poucos, tudo
vai achando seu lugar e sua razão de ser, de tal modo que esse aluno acaba
aprendendo não só o que deve, em termos de conteúdo, mas também aprende
a aprender: aprende como ele, do jeito que é, deve fazer para construir seus
conhecimentos. A escola precisa se preocupar antes com a aquisição do
processo de aprendizagem e depois com os resultados obtidos pelas crianças.
Alfabetizar pelas cartilhas (isto é, pelo BABEBIBOBU) é desastroso e,
quando o aluno aprende e progride nos estudos, faz isto apesar da escola.
Para outros alunos, o método é catastrófico e sem solução para os seus
problemas, dificuldades e perplexidades, ao tentarem construir os seus
conhecimentos na alfabetização.
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(spelling), quando quer esclarecer seu interlocutor que não o entendeu ou não
sabe escrever o seu nome. Um falante de português, por outro lado, é levado a
dizer a palavra silabando-a. Falantes não alfabetizados são levados, em geral,
a repetir a palavra como um todo, confiando na semântica e não na fonética.
As pessoas ouvem um indivíduo, querendo saber como se escreve uma
palavra, perguntar: ”‘cachorro’ se escreve com X? ‘úmido’ se escreve com H?”
ou, se estiver em fase de alfabetização: ”‘cachorro’ se escreve com CA de
‘caneca’? ‘hoje’ se escreve com O de ‘homem’?”, etc. Isto não ocorre só na
escola; ocorre também em casa, no trabalho, enfim, onde se precisa escrever.
O modelo da escola fica na vida. Esses modos de se referir ao sistema de
escrita, impregnados na cultura, revelam métodos de alfabetização e processos
de uso do conhecimento sobre a escrita e a leitura que as pessoas usam na
sociedade. A maioria das crianças, quando entram na escola para se
alfabetizarem, já tomaram contato com este tipo de comportamento alguma vez
em sua vida e, não raramente, esperam que a escola faça exatamente isso
(mais do que as crianças, seus pais têm essa expectativa e tudo que é
diferente, parece inadequado).
XI
Apesar da sílaba ser uma unidade fonética muito evidente e saliente para
qualquer falante, a linguagem não é só sons; é também significados. Por isso,
algumas crianças, além de aprenderem que se escreve com letras e que as
letras representam consoantes (articulações) e vogais (sonoridades), escrevem
apresentando problemas de segmentação. Aqui também, será a ortografia
quem irá dar a palavra final. A complexidade e a riqueza deste assunto, como
tópico de pesquisa, pode ser visto em trabalhos de Abaurre (1989a, 1989b).
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Uma outra perspectiva apoiada no caráter alfabético das letras e que leva
alguns alunos a escreverem errado é a observação da própria fala, quando a
fala apresenta formas lexicais diferentes daquelas contempladas pela
ortografia. Isto se deve, basicamente, à variação lingüística, ou seja, ao modo
como se dizem as palavras em diferentes dialetos. É o caso do aluno que fala
DRENTU, PRANTA, PATIO, PSICRETA e tem que escrever ”dentro”, ”planta”,
”patinho”, ”bicicleta” e assim por diante. O mesmo se aplica a questões de
concordância: ele diz: OZOMI TRABAIA, UZLIVRU, NOIZ VAI... e tem que
escrever: ”os homens trabalham”, ”os livros”, ”nós vamos”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abaurre, M. B. (1989a) Oral and written texts: Beyond the descriptive illusion of
similarities and differences. Mimeo, inédito.
3 A própria autora tem dito e enfatizado que seu trabalho não resulta num método de
alfabetização. Mas, como ela o chama de ”psicogênese da leitura e da escrita” e trabalha
numa linha piagetiana construtivista, fica muito fácil para seu leitor concluir que, se aquilo
que ela diz é a maneira natural como as crianças adquirem o conhecimento da leitura e da
escrita, seguindo as várias etapas e estágios mostrados pelas suas conclusões de
pesquisa, então, esse é o caminho que a escola deve seguir. De fato, apesar dos protestos
da autora, muitos professores alfabetizadores viram, no trabalho de Emília Ferreiro, não
apenas uma pesquisa acadêmica, mas uma proposta metodológica de alfabetização e
relutam muito, ou mesmo ficam muito frustrados, quando ouvem que ”devem seguir Emília
Ferreiro”, mas ”sem o seu método, porque ele não existe”.
4 O construtivismo piagetiano não é a única teoria psicológica a querer explicar a gênese do
conhecimento. Há outras teorias psicológicas (filosóficas e lingüísticas), com propostas
muito diferentes. O trabalho de Emília Ferreiro, seguindo o construtivismo piagetiano, é uma
hipótese que tenta interpretar os dados colhidos e observados, de determinado modo,
procurando aplicar à realidade assim configurada uma das várias teorias psicológicas sobre
o conhecimento. O construtivismo tem se mostrado uma boa teoria em muitos casos e,
desde Piaget, tem evoluído, enfatizando, mais recentemente, o lado social e interacionista,
onde o conhecimento é algo compartilhado já na sua construção e não se reduz apenas a
uma tarefa solitária do indivíduo.
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Cagliari, L. C. (1988) A leitura nas séries iniciais. Leitura: Teoria & Prática, 12:
4-11, ano 7, dezembro. P. Alegre: ALB.
Jensen, H. (1970) Sign, Symbol and Script. London: George Allen & Unwin
Ltd.
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INTRODUÇÃO
* Este texto é uma versão ampliada e revista de uma comunicação de mesmo título,
apresentada em 1990 no I Simpósio de Neuropsicologia, em Campinas, S.P.
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retomada do objeto, como se servisse para garantir sua posse. E essa posse é
garantida pela "leitura" do próprio nome. Esta observação se deu cerca de
quatro meses após a entrada da criança para a escola, ocasião em que seus
objetos foram marcados com seu nome e em que sua curiosidade a respeito
dessa escrita foi satisfeita com explicações como "Eu tô escrevendo Lia aqui,
prá todo mundo saber que isso é da Lia", ou "Eu tô pondo o seu nome prá
ninguém pegar sua lancheira". Explicações como essas vão levar a criança a
constituir a idéia de que "a escrita do nome próprio num objeto torna-o
propriedade pessoal", de que Lia vai-se servir bastante quando, por volta dos
quatro anos, aprende a escrever o próprio nome, conforme se pode ver no
"caso da borracha da Tânia". Trata-se do seguinte:
(9) (4;01;15) - Lia encontra em casa uma borracha que T.
esquecera. Chega-se, toda feliz, para a mãe, dizendo: "Adivinha o
que que a Taninha esqueceu aqui?" M: "Num sei. O que?" L: "Oh!
(mostrando) A borracha dela! Agora é minha!". Tento argumentar
que não, Lia insistindo que sim. Falo que T. ficaria triste, etc. Lia,
então, resolve guardar a borracha para T. e leva-a para o quarto.
(10) (4;01;16) - Lia, no quarto, escreve o próprio nome na borracha
da T. Depois vem até à copa para me mostrar: "Oh! Escrevi Lia na
borracha da Tânia. Agora ela é da Lia, é minha, tá?" Quando peguei
a borracha das mãos dela, ela me mostrou o nome escrito: "Aqui, e
aqui eu fiz essa outra" (virando a borracha para mostrar o A). De um
lado da borracha, que é branca, ficou algo como um LIT, sendo que
o que parece um T está na beiradinha da borracha. Do outro lado Lia
fez o A . Minha suspeita é que Lia tentou fazer o A, mas, como
estava muito na beirinha, acabou virando a borracha e fazendo o A
do outro lado. Mais tarde, comento o fato com o pai, na presença de
Lia, mostrando-lhe a borracha e dizendo que Lia dizia-se a dona e
tinha até escrito o nome para garantir a posse. L: "É. Agora tem o
meu nome e é minha!" O pai passa a argumentar com ela: "Então,
se você escreve Lia na boneca da Tatiana, a boneca fica sendo
sua?" Lia hesita, parece pensar antes de responder: "Não." P: "E se
você escrever Lia no carrinho do Dico, o carrinho fica sendo seu?" L:
"Não." P: "Então?" L: "Eu escrevi Lia prá Taninha não perder... que
assim o F. num pode pegar que é da Tânia. É prá Tânia saber que a
borracha é dela."
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Nos dois exemplos acima, uma escrita já pronta serve como suporte para
"leituras" que traduzem um interesse da criança e parecem ter como objetivo
convencer o outro a ceder a esse interesse -- a escrita adquire, então, um
"poder", que vai além do simples poder de garantir a posse. A escrita é
invocada, "lê-se" o argumento, à sua autoridade não se espera contestação. A
origem dessa idéia de "poder", "autoridade" da escrita, pode ser traçada não
apenas a partir da idéia de que a escrita do próprio nome "garante a posse",
mas também da idéia de que a escrita pode determinar o comportamento do
adulto e/ou da própria criança, constituída em situações comuns na vida da
criança nesses dois anos e pouco de exposição a inúmeras leituras do mais
variado tipo de material escrito. A participação ativa da criança em eventos de
escrita em que se lêem bulas, receitas, instruções de como montar um
brinquedo novo, etc., e se age de acordo com o que a escrita diz, teria uma
contribuição na constituição dessa idéia de "poder" e "autoridade" da escrita.
Três meses mais tarde, Lia passa a se valer também do "agir como se
escrevesse" com um objetivo de "impor a autoridade da escrita", convencendo
o adulto de algo que lhe interessa. A primeira observação acontece aos
3;07;18, pouco depois de uma "briga" com o pai. Lia anuncia que vai escrever
uma carta para o pai e ouço-a dizendo, enquanto rabisca: "Papai. Eu adoro
você. Mas num pode ficar brigando comigo não!" Dada a ausência do pai no
momento (o que justificaria uma carta) e a distância em que se encontrava a
mãe, pode-se tomar o que Lia diz "por escrito" mais como um desabafo. Mas
ela se propõe a escrever uma carta e cartas têm destinatários - Lia sabe disso
porque vivencia a troca de cartas com os avós distantes. Usa-se, então, a
escrita para convencer a alguém ausente de algo que é do interesse próprio...
A observação que se segue mostra claramente essa tentativa de
convencimento a partir da "autoridade" da escrita:
(13) (3;O7;28) - Mãe e Lia conversam sobre hora de ir para a cama
(à noite). L.: "Eu devia ir prá cama cedo, né? Eu queria ir cedo!" M.:
"Então! Tá na hora! Agora tá cedo. O Pablo já foi dormir." L.: "Não!
Eu queria ir cedo. Junto com você." M.: "Mas a mamãe vai prá cama
é tarde!" L.: "Então eu queria ir tarde, junto com você e o papai." M.:
"Mas menina precisa ir prá cama cedo, prá crescer e ficar forte!"
(Enquanto conversávamos, Lia rabiscava formas circulares no papel
em que, antes, ela estivera fazendo "as letras de todo mundo" e ia
virando a folha. Neste ponto da conversa, ela faz zigzags pequenos,
no canto superior da folha, e mostrando-os, diz: "Oh! Está escrito
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aqui: 'Menina vai prá cama tarde para não crescer!'" (com entonação
de quem lê).
Para a criança, portanto, a escrita não se constitui como essa coisa fria,
que serve à memória, que quebra barreiras de espaço e tempo, que permite a
burocracia, etc. (ver Stubbs, 1980, sobre as funções da escrita para o adulto
letrado). A escrita se constitui como "mágica", como "poder". Ela aproxima,
permite a interação e a interlocução. Ela dá poderes a quem a manipula,
oferecendo argumentos irrefutáveis. Ela também serve de consolo:
(16) (3;11;19) - Lia, aflita com a reação do cachorro do avô a uma
tempestade, fala com ele: "Num precisa ter medo! Chuva é só uma
nuvem que bate na outra! Chuva é água! É só água, viu, Norman?
Num precisa ter medo!" (apropriando-se do que lhe disse a mãe
quando ela mesma teve medo de uma tempestade, algum tempo
antes). Pouco depois, diz "Vô contá uma historinha prá você,
Norman." Vai ao quarto e volta com o livro Tuca, vovó e Guto. Senta-
se ao lado do cachorro e passa a "ler" para ele, reproduzindo o texto
conhecido de inúmeras leituras.
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presta à referência a objetos que são propriedade de alguém, uma vez que
"Esse é da Lia" também é utilizado em referência a objetos que pertencem à
criança. Num processo especular, a criança vai retomar o gesto e a fala do
adulto em referência às letras, constituindo-as como foco de sua atenção.
Por um período de cerca de cinco meses, a criança deixa de se interessar
pelos livrinhos. Não que a escrita deixe de ser objeto de sua curiosidade ou de
"leituras". Nesses cinco meses, as atividades envolvendo a escrita se dão em
torno de outros materiais portadores de texto. Incorporando o modo de falar do
adulto ao fazer uma leitura em voz alta, Lia vai produzir "leituras" que se
constituem numa série ininteligível de sons, mas que se diferenciam da fala por
uma entonação interpretada pelo adulto como "de leitura". Lia traz portadores
de texto, que entrega à mãe com um pedido - "Lê!"; ou toma das mãos do
adulto portadores de texto, anunciando "Ia lê!" ("Lia lê"), passando então a
vocalizar, enquanto olha a escrita, com entonação de quem lê. Quando o
adulto lê para ela, a criança às vezes repete em coro a leitura, ou completa as
sentenças, no caso de textos já conhecidos. Aos 2 anos e 2 dias, Lia pega um
dos seus livros favoritos e produz sua primeira leitura inteligível, após anunciar
"Vô lê": uma leitura baseada nas ilustrações, em que a entonação de quem lê
está ausente e em que marcas de oralidade se fazem presentes; uma "leitura"
que em nada se assemelha às leituras que a mãe fazia desse mesmo livro,
mas que parece incorporar os comentários da mãe sobre as figuras: "Aí...veste
a calça...aí...veste a buza...aí veste a buza (apontando a blusa na figura)... Aí
tá penteano o cabelo... Aí pôs chinelo... Aí... Aí...(hesita, vira a página)" "Aí, o
que, Lia?", pergunto. "Tabô." (fecha o livro).
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(22) (3;00;09) Lia encontra uma ficha em que está escrito LEÃO, e
mostra-a, dizendo, entusiasmada: "Esse é meu!" "Por que?",
pergunto-lhe. Lia aponta a letra L e diz "A minha letra! Esse é meu!",
ou seja, a presença da letra L na palavra serve de índice da escrita
do nome "Lia". Pouco depois, Lia pede que eu escreva "papai".
Quando lhe mostro PAPAI, Lia olha, parece em dúvida, pergunta:
"Que que é esse?" Aponto a escrita e leio "Papai". Lia, espantada:
"Mas por que que num tem a letra do papai? Num tem a letra do
papai!" .
Lia parece, nessa ocasião, estar trabalhando já com uma hipótese de que
as letras têm proprietários, na base de um por letra, uma hipótese que contou
com a colaboração ativa do adulto em sua construção. Chamo a atenção do
leitor para o fato de que o adulto, no início, ofereceu à criança mais de um
nome em relação à cada letra apresentada (ver exemplo (20)), mas logo
estabeleceu uma "regra", consistentemente utilizada, que relacionava um só e
mesmo nome para cada letra. Essa "especialização" parece ter orientado a
atenção da criança para o aspecto figurativo das letras, levando-a a discriminar
umas das outras, conforme Ferreiro (1985) aponta. Mas essa "especialização"
também parece ter contribuído para que a idéia de que "a letra pertence a uma
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A PRODUÇÃO DE ESCRITA
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2 Na verdade, o projeto integrado tem objetivos mais amplos, que incluem a comparação de
processos de letramento emergente e de construção de linguagem em sujeitos de camadas
sociais, econômicas e culturais diversas. Assim, foram também colhidos dados de interação
familiar de dois outros sujeitos (P. e A.), de graus de letramento diversos. Neste texto,
analisaremos apenas os dados de H., que apresentam mais claramente processos de
letramento emergente. Para uma visão dos dados contrastivos dos três sujeitos, ver Rojo
(1995a; 1995b, em prep.).
3 Estamos qualificando os universos de investigacão (família; escola) como de "diferentes graus
de letramento", a partir dos diversos tipos de usos de escrita (emprático, homílico, para
transmissão de conhecimento coletivo acumulado, institucional (Ehlich, 1983)) que nestes
universos se apresentam. Qualificamos de baixo grau de letramento (BGL) aquele universo
onde os usos de escrita, quando existentes, têm caráter unicamente emprático (para
orientação temporo-espacial e usos mnemônicos) e de alto grau de letramento (AGL),
aquele universo que apresenta o conjunto dos usos identificados. O grau médio de
letramento (MGL) apresenta privilegiadamente alguns destes usos, mas não todos. Em
nosso caso, do sujeito A. (MGL), marcadamente usos institucionais (escrever/ler para o
trabalho; escrita escolar). Insistimos, aqui, no fato de que graus de letramento não se
equacionam, de nosso ponto de vista, a classes sociais. Pelo menos, não totalmente. É
óbvio e previsível que classes sociais menos favorecidas terão também, em sua maioria,
menores oportunidades de letramento e vice-versa. Mas esta não é a totalidade da questão,
que aqui se encontra equacionada ao histórico de letramento de cada sujeito, determinado
por uma inserção cultural, ao mesmo tempo, mais restrita e mais ampla. Logo, esta
abordagem nada tem a ver, como já se tentou sinalizar em algumas das exposições desta
nossa posição, com uma postura bernsteiniana.
4 O recorte que analisaremos neste texto vai de 02;01,17 até 03;05.
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sujeito. E o que pudemos notar é que, durante todo o período investigado (de
02;01,17 até 05;04,10), naturalmente, o jogo mais freqüente na interação
mediada por objetos-portadores de texto é o jogo de contar histórias. Mas a
instanciação destes jogos não se faz sem a mediação de jogos, anteriores na
construção da oralidade, tais como os de nomeação, reconhecimento e
dramático (Lier, 1985).
Segundo Lier (1985: 49), nos jogos de nomear e nos jogos de
reconhecimento, o que se negocia é
"...os contínuos sonoro e experiencial. Neles são desenvolvidas as
faces auditiva e articulatória do som da fala. Dentro dos jogos de
reconhecimento de objetos (do tipo "cadê X?"), um dos parceiros (a
mãe) recorta o contínuo sonoro enquanto o outro (a criança) recorta
o contínuo experiencial. Nos jogos de nomeação (do tipo "o que é
isso?") ocorre exatamente o inverso. Tais jogos poderiam também
ser entendidos como jogos de reversibilidade de papéis a nível
vocal.
Já os jogos dramáticos têm por marcação específica
"...perguntas do tipo 'como é que X faz?'. Sua característica
específica é a de proporcionar participações motoras ou sonoras
através de onomatopéias. Esse novo trabalho desenvolvido pelo par
interacional representa o primeiro passo em direção à síntese das
faces auditiva e articulatória do som que continuam a ser
trabalhadas dentro dos jogos de nomeação e reconhecimento de
objetos. (...) No jogo dramático se processa o elo entre a
comunicação mais primitiva na história da criança e a comunicação
verbal que vai emergir dentro do mesmo sistema comunicativo, onde
começará a se organizar como veículo dominante." Lier (1985: 50)
Para maior clareza, vejamos um exemplo, colhido aos 02;01,17:
(1) (...)
C1: (Pega o livro A Galinha Ruiva e começa a folhear deitada no colo da mãe)
M1: Que livro é este?
C2: A pilú.
M2: Quê?
C3: A pilú.
M3: Que que tem aí?
C4: A au-au.
M4: Tem au-au?
(...)
M5: E cadê o perú?
C5: Pilú tá qui. Ó pilú. (apontando no livro)
M6: E cadê a galinha?
C6: Ó galinha. (apontando)
M7: O que que a galinha tá fazendo?
C7: Galinha tá comenu pão da pipiu.
M8: A galinha tá comendu u pão do piupiu?
C8: É...
M9: Como é que a galinha fala?
C9: Có, có, có, có.
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(risos)
M10: Que mais tem aí?
C10: Ó au-au! Au! (imitando latido)
M11: Ó au-au!
C11: Ó galinha... Ó ga-linha... Ó pilú... Ó pipiu... (apontando as figuras no livro). Tá
comenu pipiu da galinha.
M12: O que que ele tá comendo?
C12: Da pipiu tá comenu... da ga/, da galinha.
M13: Pão da galinha?
C13: Da pão da galinha.
M14: Cumé que a galinha fala?
C14: Có, có, có, có.
M15: "Quem qué, qué, qué comê meu pão?"
C15: Eeeuuu! (risos)
M16: Você qué?
C16: Qué.
M17: Vocé qué cumê o pão da galinha?
C17: É.
M18: Hum... E quem tá comenu o pão da galinha?
C18: É a galinha tá cumenu pão. Podi ragá? (Mexendo na borda do livro)
(...)
5 Estes processos encontram-se definidos em de Lemos (1985: 18) como (a) "o processo de
especularidade ou de incorporação pela criança de parte ou de todo o enunciado adulto no
nível segmental; (b) o processo de complementaridade interturnos, em que a resposta da
criança preenche um lugar 'semântico', 'sintático' e 'pragmático' instaurado pelo enunciado
imediatamente precedente do adulto; (c) o processo de complementaridade intraturnos
em que o enunciado da criança resulta da incorporação de parte do enunciado do adulto
imediatamente precedente e de sua combinação com um vocábulo complementar". Na base
dos processos de complementaridade estaria uma especularidade diferida, que levaria,
gradualmente, a criança a uma situação de reciprocidade em relação ao adulto,
dependente, "...em grande parte, do desenvolvimento de sua capacidade de representar as
intenções, a atenção e o conhecimento de seu interlocutor. Em outras palavras, de sua
capacidade de instanciar uma perspectiva estruturante, papel que, no início, cabe
fundamentalmente ao adulto." (op.cit., p. 19)
6 Segundo Lier, Palladino & Maia (1991: 16-17), "...os elementos trazidos para a interação na
estrutura da permuta são simetrizados quando se estabelece um consenso entre os
participantes a respeito desses elementos. Consenso aqui é entendido como acordo relativo
que se expressa através da aceitação de um dado objeto para negociação e pela
subseqüente realização de operações semelhantes sobre tal objeto o qual vai,
gradualmente, se constituir em objeto de conhecimento. (...) Pode-se dizer que o processo
de simetrização corresponde aos momentos de estabilização de conhecimentos, ou seja,
de consenso entre os participantes da interação a respeito de um dado objeto e que os
movimentos que antecedem ou sucedem tais momentos constituem o processo de
assimetrização, que deve ser entendido, portanto, como o momento de tentativa de
ajustamento entre as ações da mãe e da criança em que elementos específicos dos
repertórios individuais estão sendo negociados para se transformarem em elementos de
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conhecimento comum". As autoras advertem ainda que "...a relação entre esses dois
processos não é hierárquica, mas de simultaneidade. Um objeto ou um atributo de um
objeto pode estar sendo simetrizado enquanto outro é assimetrizado". (op. cit., p. 16).
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(2) (...)
M1: Como é? Essa é a história da...? Alice. (virando as páginas, até chegar ao
início da história)
C1: Da Alice. "Tati, tati, tati".
M2: Quem é esse? (apontando a figura no livro)
C2: Tati.
M3: Esse é o coelho.
C3: Tati, quelho! Ô qué mais! (virando a página)
M4: A Alice caiu num buraco beeeem fundo, né? Daí, quem ela achô lá embaixo?
Quem foi? (aponta a figura) Quem é esse? Coelho...
C4: Ó coleu! Achô lá embaxo du home.
M5: (Vira a página e aponta para outra ilustração) AÍ, ó, tá caindo num buraco bem
fuuuundo. AÍ, o coelho falava assim:...
C5: "Tati, tati..." (vira a página)
M7: "Eta! Eu tô atrasado! Tô atrasado!". AÍ, ela achô uma portinha bem
piquinininha (apontando). E aí ela tinha que ficá bem piquinininha, quinem a
portinha, né?
(...)
M8: Ói a porta! Ela tá grande de novo atrás da porta. (apontando)
C6: É.
M9: E aí, que mais?... E aí ela ficô...
E aí, ela chorô muito, chorô muito; chorô muito, chorô muito, e fez um laaaago de
lágrimas (passando o dedo no contorno da lago da ilustração). AÍ ela viu o coelho
de novo. Que que fala o coelho? (virando as páginas, parando numa ilustração e
apontando)
C7: Ele robô áua.
M10: Ele robô a água?
C8: É.
M11: Ele derrubô a água?
C9: É.
M12: É?
C10: Ele caiu, home.
M13: É... Ele fala assim: "é tarde, tô atrasado", né? (vira a página)
C11: Ele caiu.
M14: Ó ela nadando na água com o ratinho... (apontando) Hum, aí ela ficô
nadando na água com o ratinho, né? (vira a página)
Olha, quanto bicho! AÍ eles se juntaram todos na beira do lago pra contá história.
Que bicho tem aqui? Cadé o ratinho?
C12: Ratinho num tá qui.
Nadô. Ele nadô, ratinho. (apontando o lago)
M15: Ele nadô, o ratinho?
C13: Ratinho nadô.
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(...)
Como vemos neste exemplo, colhido cerca de um mês mais tarde, o
processo de superação que, futuramente, a nosso ver, vai levar das "proto-
narrativas" (dialógicas) às narrativas de tipo "estória" (monológicas) (Perroni,
passim) já se encontra mais avançado. A criança apresenta uma situação de
maior reciprocidade para o jogo de contar, sem uma simples simetrização dos
jogos mais primitivos propostos pelo parceiro na negociação de sua
participação no jogo de contar. Há vários indícios disto nesta amostra. As
nomeações/reconhecimentos/dramatizações negociadas aqui pelo adulto, ou
não são simetrizadas, ou, se o são, não o são por meio de procedimentos
simples de complementaridade.
A nomeação do portador negociada em M1 é simetrizada em C1 por meio
de uma complementaridade intraturno, onde a retomada desta nomeação é
imediatamente seguida da dramatização da fala de um dos participantes
principais da história (Coelho Branco), numa síntese, por recontextualização,
do nome da história com a fala de um de seus participantes principais. Como
se vê em C2, a fala típica deste participante passa a nomeá-lo. Está superada
a negociação "dramática" do exemplo (1) e a situação para o "jogo dramático"
dentro do jogo de contar - que retoma as vozes e falas dos personagens
centrais - é de reciprocidade, como indicam a complementaridade interturno em
C5 e a variação da fala do personagem em M7/M13.
Outras negociações de nomeação/reconhecimento, como as em M4/C6 e
M14/C14, são simetrizadas não por meio de uma simples complementaridade
interturno, mas intraturno, onde o que é acrescentado pela criança é a ação ou
a situação da ilustração em questão. A retomada especular deste acréscimo
em M15/C15 é também significativa.
Por outro lado, a negociação ("jogo dramático") não simetrizada presente
em M9/C13 é também indicativa da superação, por parte de H., destes jogos
mais primitivos no desenvolvimento em favor do jogo de contar.
Como ficará claro nos exemplos e comentários presentes no item 3. deste
trabalho, não julgamos que este processo dialético de superação opere apenas
nesta passagem do desenvolvimento, mas sim, que esta seja a dinâmica
própria de toda a relação interação oral/letramento emergente durante todo o
processo investigado.
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(3) (...)
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7 Note-se que, em C4/C5, é a própria criança que negocia o papel que o adulto passa a ter, a
partir de M6, de propor a negociação de papéis e contra-papéis no jogo.
8 Assumindo todas as implicações da releitura Benveniste/Bakhtin que a autora articula no
artigo.
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(4) (...)
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P2: "A Aventura de Três Patinhos na Floresta. Era verão e o tempo estava lindo."
(lendo e apontando, seguindo o texto escrito como dedo)
"As flores alegravam os campos. Nas águas de uma lagoa, três patinhos
amarelos brincavam e mergulhavam. Não sabiam os pobrezinhos que ali por perto
morava uma raposa desalmada. Queria duas coisas: chupar ovo de galinha e
comer patinho amarelo!"
Essa era e história que ele estava escrevendo. (apontando as letras impressas)
C2: (Fica atenta e faz sinal de assentimento com a cabeça)
Éééé...
P3: "Deu um sorriso: 'a história estava ficando ótima!'"
C3: (Olha para o copo perto do pai e aponta)
Quélo qui.
P4: Não. Aquele não. Aquele é ruim.
C4: Quélo bebê.
P5: Não. Aquele é do papai bebê. (Aponta para o texto) Qué que leia?
C5: (Faz gesto negativo com a cabeça)
Não. Cabô! Agora cabô.
(...)
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texto, que passam a ser, para ela, índices de sua diferença em relação ao par
mais desenvolvido.
Este momento é precedido, em nossa amostra, por uma intensificação
quantitativa destas práticas monológicas por parte da pré-escola10, devido à
mudança de escola que se verificou aos 02;08,29. Teríamos aqui, novamente,
um momento de superação dialética das práticas anteriores, este sim, agora,
aproximando definitivamente a criança das práticas narrativas letradas de sua
subcultura, responsáveis, no dizer de Lemos (1988) pela concepção do "ato de
ler como um 'outro modo de falar'", diríamos, monologizado (gênero
secundário, no sentido de Bakhtin, 1979b). No polo da afirmação e da
preservação dialética (DR) encontram-se todas as práticas/jogos anteriores no
desenvolvimento, que, como veremos em (5), não desaparecem (são
preservadas/modificadas) em suas "leituras" posteriores (a partir de 03;05). No
polo da negação dialética (DP), encontra-se, neste seu "silêncio" de 6 meses, a
prática monológica de leitura (do texto/ilustração), que já traz em si, embutida,
uma "fala letrada" (bookish-talk) muito mais aproximada das práticas de
produção/reprodução de textos do letramento mais avançado.
Este momento de negativa e de silêncio, de superação, já não se
caracteriza mais, empiricamente, por relações sincréticas de "colagem" de
recontextualizações: à polifonia sincreticamente atualizada, segue-se um
momento de "afonia", de perda de voz do sujeito, que, a nosso ver,
corresponde a um momento tenso de internalização dos(s) discurso(s)
(letrado(s)) do outro, responsável por um grande salto qualitativo no letramento
emergente e, inclusive, pela intensificação em nossa amostra (cf., a respeito,
Rojo, 1990), da busca da criança/adulto pelo "o quê e como está escrito", pela
materialidade da escrita (no dizer de Ferreiro, a "base alfabética" e a
"diferenciação icônico/não-icônico") - aquele objeto, afinal, responsável, por
"um outro modo de falar" do par mais desenvolvido.
Numa interpretação lacanianamente autorizada por Paín (1996),
poderíamos arriscar que talvez seja esta falta instalada na ignorância "sabida"
que possa vir a dar lugar ao desejo de saber e seja responsável pelo salto
qualitativo, identificado também nas pesquisas de Luria (1929), entre a escrita
imitativa ou de brinquedo e os momentos seguintes de construção de um saber
mais aproximado da tradição cultural de sua espécie.
O processo terminado de superação deste "silêncio" grávido de
letramento, aparece, em nossa amostra, a partir de 03;05, onde H. passa a
discriminar "histórias que sei“ e “histórias que vou contar do meu jeito",
"histórias de boca/histórias de livro". A primeira "história de livro que sei"
aparece justamente aos 03;05, no exemplo (5) abaixo, numa coleta onde I, M e
C interagem, "lendo", hora uma(s) hora outra(s), vários portadores. A leitura de
C é do portador Gato que Pulava em Sapato, intensamente lido e relido a
pedidos, durante o mês anterior, pelo pai, em episódios book-reading noturnos
e cotidianos, diarizados fora da situação de coleta.
10 Estas práticas escolares também foram acompanhadas no Projeto. Cf., a respeito, Nogueira
(1995).
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(5) (...)
C1: (Sentada na cama junto com M e I, "lendo" um livro, que abriu na primeira
página, deixando a capa no final)
M1: Peraí. Vamo começá de novo que eu perdi o começo.
I1: É, também.
M2: Ah, começa de novo.
C2: O Mimi era muito queridinho...
(vira a página)
e daí/ ele tinha uma linda cestinha.
(vira a página)
E daí/ ele.../ e daí a dona perguntava:
"- Não suba no telhado!"
E daí, ele ficô muito zangado.
(vira a página)
"- Que dóga!"
(vira a página)
E daí, muito tite.
(vira a página)
"- Que vida!"
E daí, ele fu... e daí, ele pulô de cabeça e entra nesse buraco. (apontando a
ilustração)
(vira a página)
E daí/ ele mesmo, mesmo, mesmo/ escorregô.
"- Socorro! Socorro!" ele falô.
(vira a página)
E daí/ a dona falava:
"- Viu? Eu combinei que você ia nu telhadu!"
"- Será que ele morreu?/ Não morreu, só quebô a perninha!"
(vira a página)
E daí/ veio oo... o dono dos bicho.
"- Será que eli vai sará?"
"- Vaaai... Eu cuido dele." o dono falô.
(vira a página)
E daí, eli sempi, sempi, sempi, ficô médio. O dono cuidô bem. E daí/ ele mesmo,
mesmo, mesmo, falô que, que, que, todo dia, ele mesmo, ia no telhado. Todo dia!
(vira a página)
E daí/ ele... ele não era o verdadeiro gato.
I2: Não era o verdadeiro gato?
C3: Hum-hum. (confirmãndo)
(vira duas páginas juntas)
E as coisa dele que... que... que... táva no porta-mala/ não servia pa eli mais...
Até ele tá nas coisa deli! (apontando, na ilustração, um retrato de Mimi guardado,
com as outras coisas, no armário)
(vira a página)
AÍ.../ E aí, a dona aperrrrrrtava a mão de tanto ele corrê... (imitando a ilustração
no gesto, apertando as duas mãos)
E daí, ele falô:
"- Não se ocupe, dona!"
(vira a página)
E daí/ ele foi correndo pra os... para o telhado.
(vira a página)
E daí/ ele foi mais longe. Foi aqui, foi aqui, foi aqui, e foi aqui, foi aqui, foi aqui.
(apontando as várias posições do gato na ilustração).
(vira a página)
E daí/ ele mesmo...
Foi a dona perguntava p'as amiga:
"- Aquele é meu gato!"
(vira a página)
E daí/ ele pulava em sapato mesmo! E... acabô-se!
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(Fecha o livro)
I3: Nooossa! Que história, hein? (juntas)
M3: Nooossa! Que história bonita! ]
I4: Cê sabe contá direitiiinho!
M4: Qual ôtra que ce sabe contá?
(...)
11 Note-se que a criança equaciona este articulador narrativo ("e daí") ao ato de virar a página e
a uma cadência suprasegmental, responsável "pelo ato de ler como um outro modo de
falar". Para maiores detalhes desta análise, ver Rojo (1996).
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para ceder voz ao personagem: "ele mesmo, mesmo, mesmo, falô que, que,
que, todo dia, ele mesmo, ia no telhado. Todo dia!".
Outras recontextualizações da fala letrada (bookish-talk) do par mais
desenvolvido, tais como "ele tinha uma linda cestinha" e "ele não era o
verdadeiro gato"12, em C2, e "ele foi correndo pra os... para o telhado"13, em C3,
fazem com que este salto qualitativo implique um avanço considerável do
letramento de H. e a aproxime mais fortemente das práticas e estruturas de
escrita do letramento avançado de sua subcultura letrada.
Na falta de documentação das interações referidas acima (só diarizadas,
mas não registradas em video), se rediagramassemos (5) de tal forma que o
leitor pudesse comparar o texto escrito original do portador, suas ilustrações e
o discurso interno recontextualizado por H. no exemplo, poderíamos ver que,
embora a referência básica da criança continue sendo a ilustração - agora não
mais como algo a ser "narrado", mas como "senha" do discurso do outro
internalizado -, este discurso do outro, ou mesmo, a criança em sua
recontextualização, recupera, em mais da metade das páginas, algumas
estruturas textuais literais, "passaportes" para a fala letrada.
Poderíamos também ver que o discurso direto do personagem ainda
detêm um privilégio na internalização. Podemos, a se verificar, na falta de
documentação, atribuir tal privilégio à voz do adulto internalizada (e a sua
seleção de segmentos textuais) ou a um mecanismo da criança que
privilegiaria, na internalização, tais segmentos.
Tanto é visível que as práticas anteriores (sobre a ilustração) não foram,
nesta monologização, completamente negadas (mas sim, parcialmente
preservadas), que algumas atuações dêiticas da criança, sobre a ilustração,
são notáveis em C2 ("e entra nesse buraco") e C3 ("Foi aqui, foi aqui, foi aqui,
e foi aqui, foi aqui, foi aqui. (apontando as várias posições do gato na
ilustração)"), preservando práticas/jogos anteriores no DLO.
Assim, o que podemos concluir da análise desta amostra é, por um lado,
que se mantêm, na análise, a interpretação dialético-materialista do processo
e, por outro que, nesta interpretação, necessitam revisão as noções de
"colagem/combinação livre" e "arcabouço" (novamente sincréticas), propostas
anteriormente para a análise destes mecanismos de monologização (cf.
Perroni, passim e de Lemos, 1992b).
Conforme de Lemos (1992b), prefaciando a publicação em livro do
trabalho de doutoramento de Perroni (1983):
"... outra [dessas] forma[s de narrar] é aquela em que domina um
procedimento de colagem, ou em que fragmentos de várias estórias
contadas pelo adulto se sucedem no interior de arcabouços
concretos (em oposição aqui à noção de macro-estruturas
abstratas). Tem-se aí, portanto, um movimento na direção da
significação que não se completa, em que o fragmento que sucede a
outro fragmento não o determina. É como se nessa fala apropriada
93
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14 Para uma análise mais em detalhe sobre a presença e o valor de movimentos sincréticos na
construção da monologização, ver Rojo (1996).
94
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Sem dúvida, só há, neste processo "...a voz do outro", mas muitos
lugares/papéis/perspectivas - como esperamos ter demonstrado neste artigo -
foram "...aberto[s] para a criança" nesta história: "...na linguagem“ e nas formas
do letramento de sua subcultura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, M. (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. SP: Hucitec, 1981.
- (1974) Hacia una metodología de las ciencias humanas. In M. Bakhtin
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Angela B. Kleiman
IEL/UNICAMP
Este trabalho tem por objetivo dar a conhecer dois projetos de pesquisa
cujo objetivo é investigar o fenômeno de letramento, mediante a análise da
interação entre sujeitos letrados e não letrados em contexto escolar 1. Interessa-
nos investigar como se dá o processo de tranformação social através da
linguagem, transformação esta que seria decorrência da introdução de
analfabetos adultos na cultura letrada.
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A INTERAÇÃO E O LETRAMENTO
A INTERAÇÃO E A APRENDIZAGEM
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2 De fato, esse compromisso e vontade política não mudou. O que mudou, e radicalmente, é a
disponibilidade de verbas para a Educação. A cidade praticamente não tem indústria e seu
orçamento depende do repasse das verbas federais e estaduais.
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D: Tem vei que (xxx) tomá remédio em casa/ meió que í no médico
(x) tem vei que remédio em casa é meió que do médico
5 V. Kleiman, 1992, 1994, para uma análise mais abrangente do episódio em questão.
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/.../
D: Eu tenho uma tia (xxxx) que num deu remédio pra ela (x)
Remédio dela é remédio do mato.
/.../
P1: E não é um remédio?
D: Não um remédio (xxxx) Só remédio de planta.
P1: Então (x) essa planta (x) ela tá usando como um remédio para
ela (x) E você num acha que é remédio?
D: É, (x) É um remédio.
P1: Então“ (x) É uma planta.
D: Mas num é passada por médico
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caseiros, ou „de mato“, eram, em alguns casos („tem vez“), melhores do que os
receitados por médico. Semelhante é a função deste recurso, quando introduz
como „conclusão“ do argumento da professora („então é uma planta“, isto é,
„há remédios de plantas“) aquilo que é, de fato, a premissa na argumentação
do aluno.
6 Terminada essa aula de leitura, perguntamos a D. se não gostaria de escrever o que ele
pensava sobre remédios. Ele ditou para a investigadora o seguinte texto (cuja ortografia e
concordância nominal e verbal foram normatizadas):
Remédio da planta
Eu gostaria do remédio das plantas porque é melhor de que da farmácia.
Eu não vou com a cara dos médicos por que os mais velhos dizem que o remédio
do mato é tripo mais melhor.
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Este breve panorama sobre as questões que nos ocupam nos projetos
que desenvolvemos sobre a escrita, o letramento e a aprendizagem mostra
como esse campo de investigação é fértil, tanto para o estudo de questões
teóricas, ligadas à imponderável resignificação de sentidos na interação,
quanto para questões aplicadas, ligadas ao significado político do letramento e
da aquisição de escrita no contexto brasileiro.
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Os remédios do mato são mais saudáveis, primeiro lugar. Minha avó foi curada
com remédio das plantas.
7 Ratto (op.cit.) aponta para conclusão semelhante em relação às estratégias argumentativas
de sujeitos não escolarizados que imitam modelos letrados, pois, para tal processo de
imitação emergir, é preciso a conscientização lingüística anterior, que, por envolver um
processo de reflexão e comparação com o discurso do outro, constituiria um dos pré-
requisitos para a aprendizagem.
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POSFÁCIO*
* No evento que deu origem a este volume (ver Apresentação), Bernardete Abaurre tinha o
papel de debatedora. Por isto, neste texto, Abaurre levanta observaçãoes, reflexões e
discussõs sobre aspectos variados dos trabalhos expostos nos textos anteriores. Optamos
por manter assim esta contribuição justamente no sentido de o texto final não „fechar“ o
volume, mas abrir vias de reflexão para seu leitor [nota da organizadora].
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russo, escreve quase sempre em língua russa, usando, pois, o alfabeto cirílico.
Perturbou-me enormemente o fato de que, embora a carta fosse escrita em
inglês, o desenho das letras trazia as marcas evidentes de um gesto e de um
ritmo característicos da escrita cirílica. Eu lia, assim, enunciados da língua
inglesa, mas o que via, em termos gráficos, era um desenho que criava em
mim a expectativa da língua russa.
As considerações de Cagliari, ao me recordarem esse momento de
perturbação, fizeram-me também refletir sobre o grande mistério que deve ser,
para as crianças, algo que para os adultos talvez pareça trivial: o desenho
preciso das letras, as equivalências funcionais entre desenhos alternativos e as
mínimas diferenças de traçado que podem ter função opositiva. Se para nós,
que usamos há décadas um mesmo sistema alfabético, essa interpretação
parece óbvia, isso se deve ao fato de que aprendemos a atribuir a todas as
variações no desenho das letras um determinado valor funcional no âmbito do
sistema de representação. Para as crianças, às voltas com o aprendizado
desse valor, a grande variação que caracteriza não só o traçado das letras,
mas também os diferentes estilos de letras e as caligrafias individuais, constitui,
provavelmente, um dos grandes mistérios da escrita...
Parece-me importante insistir sobre esse aspecto, justamente porque é
prática freqüente solicitar às crianças que façam certas atividades com a
escrita que pressupõem uma diferenciação já elaborada e consolidada relativa
ao traçado das letras. Assumimos, apressada e equivocadamente, que esse é,
para o aprendiz, um dos aspectos mais transparentes da escrita alfabética. Na
verdade, talvez seja um dos mais opacos, o que nos autoriza a supor que
muitas crianças podem passar grande parte do seu tempo buscando o sentido
de tantas variações no desenho dos símbolos escritos.
Talvez o que falte, na reflexão de Cagliari, seja a explicitação dessa
opacidade. Ele parece por vezes acreditar em uma transparência que os seus
próprios dados insistem em negar. Não é nem um pouco óbvio que as crianças
vejam a escrita como nós a vemos, muito menos que a segmentem, analisem
e interpretem à nossa maneira. Elas parecem, isto sim, estar sempre em busca
de pistas que as ajudem a delimitar porções significativas para os recortes que
fazem do material escrito, recortes esses com quais passam a trabalhar.
Estas considerações dão-me a oportunidade de dizer que minha própria
pesquisa em aquisição da escrita tem-se voltado especialmente para o estudo
dos procedimentos utilizados pelas crianças para segmentar a escrita, tomada
inicialmente como um conjunto de blocos ou porções não-analisadas,
separadas por espaços em branco. Sabemos hoje que essas porções são
identificadas de maneira diferente por diferentes crianças, que, em diferentes
situações e por diferentes motivos, manipulam-nas em um processo contínuo
de recorte e atribuição de significado aos elementos da escrita. Nesse sentido,
o trabalho pioneiro de E. Ferreiro e A. Teberosky, registrado em seu livro A
Psicogênese da Língua Escrita, tem o grande mérito, dentre outros, de alertar
os próprios lingüistas para a maneira opaca como se apresenta, para as
crianças, a representação escrita da linguagem. Pode-se dizer que a
consciência desse fato aumentou o interesse da Lingüística pelos dados da
aquisição da linguagem escrita, uma vez que eles passaram a ser vistos como
preciosa fonte de indícios sobre a natureza do trabalho realizado pelas crianças
com a linguagem.
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passou a ser feita após a introdução dessa nova modalidade, com repercussão
tanto na fala como na escrita. Assim, uma diferenciação entre noções como
falar, dizer, responder, argumentar, retrucar, repetir e outras semelhantes,
obviamente vinculadas às atividades com a própria linguagem, parece ter sido
introduzida, na língua Shuar, mais ou menos concomitantemente à prática da
escrita. Este é um exemplo evidente de como o processo de letramento de uma
sociedade ágrafa leva a alterações significativas no próprio componente lexical
da língua dessa sociedade e é um bom exemplo, também, do que acima
afirmei: os efeitos da introdução da escrita mostram-se de maneira mais
transparente quando determinada sociedade começa a escrever a sua própria
língua.
Não obstante tais observações, cumpre deixar claro que o mesmo
problema continua a existir em sociedades complexas como a nossa, em que o
uso da escrita remonta já a alguns séculos. O texto de Kleiman levou-me, pois,
a refletir muito sobre esta questão. Os dados apresentados, assim como a
própria natureza das situações acompanhadas, lembram-nos a todo momento
que, em sociedades complexas, a vida de praticamente todos os indivíduos é
constante e diferentemente atravessada por atividades de escrita e de leitura.
Claro está que, para a maioria das pessoas que não escrevem e/ou não lêem,
esse contato acaba também ocorrendo, grande parte das vezes por vias muito
indiretas. Afinal, mesmo os analfabetos estão em freqüente contato com
pessoas alfabetizadas que, em maior ou menor grau, já manifestam na própria
fala a influência das estruturas e do léxico característicos de situações
particulares de escrita. Como determinar, então, até que ponto esse contato
prévio - que é lícito pressupor tenha existido - deixa ou não suas marcas nas
escolhas lingüísticas dos sujeitos observados?
A questão que vejo como a mais instigante no (e para) o trabalho de
Kleiman é a de saber o que este termo, letramento, inclui ou exclui, em uma
sociedade complexa como a nossa. Como já disse, penso que fica
relativamente mais fácil definir os limites do que se irá constituir em dado
pertinente para uma pesquisa sobre o letramento e seus efeitos
sociolingüísticos, em situações extremas, como aquelas que representam a
passagem de um estágio sem escrita ao estágio subseqüente em que ela
passa a ser utilizada socialmente. Por outro lado, são também
interessantissimas as situações como as contempladas na pesquisa de
Kleiman, em que é necessário pressupor que a vida, a língua e a cultura de
todos os indivíduos já trazem também muitas marcas - diferentes embora! - das
atividades de leitura e de escrita praticadas pela sociedade de um modo geral.
Nesse sentido, como já foi aliás apontado por de Lemos, é importante registrar
que os eventos de escrita que o projeto de Kleiman está tendo a oportunidade
de focalizar e analisar trazem também as marcas, nas próprias opções feitas
pelos sujeitos, da história individual de seu contato com o mundo e com a
linguagem dos indivíduos letrados. Cabe verificar, portanto, como essa história
é contada, de diferentes maneiras e através dos mais variados indícios, nessas
escritas singulares.
Finalmente, ainda sobre o trabalho de Kleiman, gostaria de dizer que os
dados aí privilegiados, tendo em vista o caráter etnográfico de que se reveste
sua coleta, precisam ser abordados a partir de categorias de análise que
garantam uma reflexão teórica rigorosa. Nunca é demais lembrar o risco que se
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contínuo fônico, a partir apenas dos símbolos utilizados, quase nada tinha a ver
com o que eu posteriormente ouvi, não por falta de prática de transcrição por
parte da aluna, mas por limitações do próprio sistema de transcrição utilizado.
Todas essas minhas longas considerações pretendem simplesmente
justificar o interesse que sempre trago para a análise dos aspectos fônicos
envolvidos em qualquer situação de produção de fala. Por esse motivo, ao ler
os trabalhos de Rojo e Mayrink-Sabinson, perguntei-me o tempo todo sobre
como teriam de fato sido enunciados os turnos dos vários diálogos tomados
para reflexão. Ambas as autoras preocuparam-se em encaixar, nas
transcrições ortográficas dos dados, aqueles aspectos mais salientes da
pronúncia, que por um motivo ou outro acabam por chamar mais a atenção de
quem registra por escrito algum episódio de fala. São momentos em que, de
certa forma, subverte-se o próprio sistema de escrita utilizado, na tentativa de
não perder informações intuitivamente tidas como relevantes para a
compreensão do que será posteriormente analisado. Sempre deixamos de
registrar tantas informações importantes, no entanto, sobretudo no tocante à
prosódia...
A propósito, vale lembrar que não é raro observarmos, em trabalhos
(acadêmicos ou não) sobre alfabetização, tentativas de utilização da escrita
ortográfica do português para representar a pronúncia de crianças falantes de
modalidades socialmente estigmatizadas. Nessas situações, é comum o
transcritor procurar registrar os levantamentos das vogais finais átonas, bem
como segmentos ou inteiras sílabas que "desaparecem" na fala de tais
crianças. Nossa escrita, sem dúvida, presta-se ao registro dessas (e de outras)
variações da pronúncia com relação à suposta norma. O que é
interessantíssimo comentar, no entanto, é o fato de freqüentemente poderem
ser observadas as mesmas variações na fala dos professores; daqueles,
inclusive, que são falantes da modalidade de prestígio. Afinal, determinados
processos fonológicos que modificam ou suprimem segmentos são comuns à
fala de todos, em português, e independem das modalidades em questão!
Verifica-se então que, nesses casos, o sistema de escrita da língua acaba
sendo usado de forma a marcar, com conotação negativa na fala de uns,
aquelas mesmas variações de pronúncia que apaga, na fala de outros... É o
caso de nos perguntarmos se isso não ocorreria pelo fato de já ouvirmos
"ideologicamente" a fala de uns e de outros, a partir dos seus papéis sociais.
Penso que seja esse o caso, de fato, e creio que esse procedimento
aparentemente inconsciente por parte de alguns pesquisadores merece alguma
reflexão.
Voltemos, porém, aos trabalhos de Rojo e de Mayrink-Sabinson, que
deram margem a todas essas minhas reflexões, que espero sejam pertinentes
no contexto desta discussão. No trabalho das duas autoras volta,
insistentemente, uma questão que já mencionei anteriormente e que também
foi focalizada por de Lemos, em seu texto deste volume. Refiro-me à questão
da segmentação, dos recortes feitos pelas crianças no material fônico ou
escrito com o qual estão em contacto durante o processo de aquisição da
linguagem oral e escrita. Observando os dados de Lia, por exemplo, sujeito da
pesquisa de Mayrink-Sabinson, parece-me muito evidente, em vários
momentos, que há um constante movimento nas duas direções: da escrita para
recortes fônicos e do fônico para recortes gráficos, na escrita. Assim, se
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pesquisas. Dos muitos trabalhos já lidos que focalizam essa relação, concluo
que a grande maioria tem procurado caracterizar as estruturas da oralidade a
partir das estruturas da escrita, pois somente a partir de tal pressuposto podem
ser apontadas como "tendências" da oralidade a menor ocorrência de
estruturas subordinadas, de voz passiva, de nominalizações, etc.
Tentando colocar o problema em outros termos, o que quero dizer é que,
para entender a maneira como funcionam na linguagem oral os elementos
pronominais, por exemplo, é necessário pensar imediatamente em um outro
tipo de relação que aí se estabelece entre linguagem, contexto de enunciação
e interlocutores, pois é exatamente essa relação de natureza bem diferente da
estabelecida pela escrita que vai licenciar, por assim dizer, o uso de pronomes.
Da mesma forma, é essa mesma natureza diferente - de uma relação que
sabemos constitutiva da própria linguagem! - que pode nos ajudar a entender
os fatores, muitas vezes discursivos ou mesmo pragmáticos, que nos levam a
nominalizar, passivizar, coordenar, subordinar, enfim, as estruturas lingüísticas,
quando falamos ou quando escrevemos. Partir, portanto, da própria natureza
da relação entre o lingüístico, o discursivo e o pragmático parece-me via muito
mais indicada para um melhor conhecimento das opções que, em última
análise, caracterizam a forma que assume a linguagem em suas modalidades
oral e escrita. Trata-se, mais uma vez, creio eu, de privilegiar o processo e não
o produto como lugar inicial de investigação, para que se possam vislumbrar as
questões mais relevantes a servirem de quadro de referências conceituais no
âmbito das quais devem ser feitas quaisquer outras perguntas específicas
sobre os dados. É necessário, em suma, mudar o olhar que vimos lançando,
até o momento, sobre a relação oralidade/escrita. Há que formular,
urgentemente, as perguntas prévias...
É hora de passarmos ao texto de Nascimento. Meu contacto inicial com
as pesquisas sobre aquisição da escrita desenvolvidas por pesquisadores da
UFMG deu-se em 1989, em reunião da Associação Brasileira de Lingüística,
realizada na UFRJ, quando o próprio Nascimento apresentou o trabalho que
hoje mencionou aqui. Da participação de Nascimento neste volume, quero,
desde logo, resgatar uma noção várias vezes utilizada por ele para fazer
referência a diferentes momentos das pesquisas do grupo que representa: a
noção de movimento.
Assim, sua preocupação ao referir-se ao texto de 1989 foi sobretudo a de
marcar o fato de que as suas pesquisas e as dos colegas têm manifestado a
constante preocupação em definir como provisórios os resultados obtidos em
cada etapa. Essa consciência da provisoriedade é decorrente de uma saudável
postura de indagação constante frente aos dados, ou, dizendo de uma outra
maneira, de permanente insatisfação com as categorias e conceitos que a
própria teoria lingüística coloca previamente à nossa disposição para uma
abordagem preliminar dos fenômenos a serem investigados.
Digo que tal atitude por parte desses investigadores — aqui explicitada e
assumida por Nascimento — é academicamente salutar porque o que ela
traduz, na verdade, é que não há certezas preliminares ou adesões irrestritas e
acríticas a determinadas teorias. Algumas dessas teorias, por outro lado, são
utilizadas, nessas pesquisas, de forma a possibilitar uma reflexão sempre
produtiva sobre os dados, dado o seu potencial heurístico.
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indícios, em nossos dados da escrita inicial, que sugerem uma certa dificuldade
na grafia de sílabas ditas "complexas". Essas sílabas são, na verdade, aquelas
que apresentam um onset ramificado, ou seja, as que apresentam dois sons
consonantais em posição pré-nuclear, e que são comumente representadas
como CCV. As crianças freqüentemente omitem a segunda consoante ou
colocam-na imediatamente após a vogal do núcleo. Que conclusão tirar desses
dados, já registrados em praticamente todas as pesquisas sobre as primeiras
manifestações de escrita alfabética? Ora, o que eles parecem indicar é que as
crianças, quando passam a admitir mais uma posição estrutural na análise que
vêm fazendo dos constituintes silábicos, não estão simplesmente trocando a
letra de lugar, já que são exatamente esses lugares ou posições estruturais
que elas estão delimitando, em sua análise! Se os lugares não estão ainda
estabelecidos, que sentido teria falarmos de troca, nessas circunstâncias?
É perfeitamente possível sustentar, acredito, com base em estudos sobre
percepção de sons, que as crianças em fase de aquisição da linguagem
demonstram capacidade para diferenciar holisticamente um "som" de outro
"som" (e o termo não é aqui usado no sentido de segmento), sem
necessariamente analisá-lo em constituintes menores. Assim, é razoável supor
que as crianças percebam como diferentes, na fala, coisas como fraco e farco,
o que não garante absolutamente que elas, ao tentarem escrever fraco,
produzam FRACO e não FARCO... Mais uma vez, perceber a diferença fônica
não implica necessariamente analisar uma unidade hierarquicamente mais
complexa do que o segmento, como a sílaba, em seus constituintes menores, e
ordená-los segundo uma seqüência pré-estabelecida... Esse momento de
análise da sílaba em estruturas mais complexas do que CV é um momento
muito importante, freqüentemente ignorado tanto pelos pesquisadores como
pelos professores, que costumam ver nas escritas como FARCO (por FRACO),
PIRMO (por PRIMO) e tantas outras, apenas casos de "troca de lugar das
letras".
Perceber, portanto, que é necessário introduzir nas pesquisas a questão
da maneira como as crianças vêm lidando, em suas escritas iniciais, com as
próprias estruturas silábicas, foi um movimento a meu ver muito significativo
nos trabalhos do grupo aqui representado por Nascimento, pois é esse
movimento que vem permitir uma redefinição, no âmbito desse projeto, das
próprias categorias de análise inicialmente tomadas como relevantes para
análise dos dados.
A análise da sílaba que anunciei nas considerações feitas nos parágrafos
precedentes não é ainda colocada nesses mesmos termos, nos trabalhos do
projeto da UFMG, que, pelo texto de Nascimento, apenas reconhecem a
necessidade de levar em conta a questão da estrutura silábica na análise dos
dados. Mas afirmo a grande importância desse movimento da pesquisa na
direção da sílaba, porque esse passo abre perspectivas para uma discussão
interessantissima, fundada nos pressupostos teóricos dos modelos fonológicos
não-lineares. Esses modelos atribuem à silaba um nível autônomo nas
representações fonológicas, o que permite que tal unidade possa ser tomada
como estruturante, em seu nível hierarquicamente superior, das seqüências de
segmentos a ela vinculados. Poder entender a sílaba como um domínio
específico no componente fonológico do português, a partir da sua posição nas
representações hierarquicamente organizadas, é, em última análise, dispor de
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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