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Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras

Licenciatura em História

Ano Lectivo: 2014/2015

Unidade Curricular: História Moderna (Economia e Sociedade)

Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na


Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais" de 1758)

Professor Auxiliar da Unidade Curricular: Doutor João Ramalho dos Santos Cosme;

O aluno: Carlos Daniel Gonçalves Pereira, n.º 50373.

Lisboa, 28 de Maio de 2015


[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

Introdução

As Memórias Paroquiais, no seu conjunto, são fundamentais para construir uma


imagem mais concreta, daquilo que era a realidade portuguesa em meados do século
XVIII dentro do panorama histórico-cultural e de determinados aspectos relacionados
com a personalidade, que acabaram por chegar até aos nossos dias. A partir de um
panorama mais concreto, vamos debruçar-nos na questão de um território que possui
grande centralidade devido à sua proximidade com Castela, referimo-nos ao Distrito da
Guarda e, mais concretamente, à antiga vila de Gouveia. A evolução é bastante notória
nesta região através de dois acontecimentos fulcrais que tiveram repercussões locais e
territoriais, profundas marcas que condicionaram o futuro, conforme nos explicam os
párocos nos seus extensos e desenvolvidos testemunhos, de cariz belicista: a guerra da
Aclamação do Rei D. João IV e Independência de Portugal (1640-1668) e a guerra de
Sucessão de Espanha (1702-1714). As consequências foram evidentes, sobretudo pela
imparável desertificação e abandono que se verificou. A economia entrou em regressão,
o tráfego comercial foi cada vez menor também devido a características não mediatas,
ou seja, decorrem da geografia e do clima que impera na Zona Interior Centro de
Portugal Continental: território extremamente seco e árido, temperaturas díspares com
Invernos e Verões muito rigorosos.
Num quadro geral, sabemos que a maior parte do terrenos serão destinados ao
cultivo do centeio (ainda que pobre), do trigo (apesar da sua presença ser menos
relevante) e do milho grosso de regadio. Realça-se a cultura da batata e as produções de
floresta e rios que asseguram a sustentabilidade destas comunidades. As actividades
comerciais são menos importantes devido à pequena projecção que tinham nos centros
urbanos, pela ausência de contactos com os restantes mercados e a omnipresença da
guerra. As muralhas, as praças militares, os pelourinhos e determinados equipamentos
religiosos conseguiram contornar o retrocesso e dotar as vilas e cidades de alguma
dinâmica1. Transportar todas estas características, para aquilo que era considerado o
Portugal de Antigo Regime e estabelecer um paralelismo com a História Local, à luz da
economia e da sociedade da Época Moderna serão alguns dos objectivos relevantes a
que este trabalho de investigação se propõe.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias Paroquiais, Gouveia, São Pedro, São Julião.

1
CAPELA, José Viriato e MATOS, Henrique, As freguesias do Distrito da Guarda nas Memórias
Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Colecção Portugal nas Memórias Paroquiais de
1758, Braga, Minhografe - Artes Gráficas, 2013, pp. 9-10.
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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

Organização social, administração e estrutura económica das duas freguesias da


vila de Gouveia: São Julião e São Pedro.

As Memórias Paroquiais de 1758 foram redigidas com auxílio de inúmeros


párocos de todo o território continental, que recorriam à prática do inquérito para
obterem informações fidedignas sobre o conhecimento geográfico do reino português. O
modelo de interrogatório era composto por vinte e sete questões, formuladas de acordo
com a realidade da época. Desta forma, e num contexto mais particular, tentaremos
comentar os aspectos que são pertinentes conforme a documentação que chegou até nós.
Relativamente às freguesia de São Julião, sabemos que ela está integrada no concelho
de Gouveia, no Bispado de Coimbra e na Comarca da Guarda, ficando localizada na
região da Beira Alta. Possui uma Igreja Matriz com sacrário, a freguesia de São Julião
tem mais de duzentos anos e a de São Pedro ainda é mais antiga, sendo desconhecida a
datação concreta. A partir da informação que nos é facultada, temos ideia de que D. José
autorizou o referido pároco a desempenhar as suas funções como sacerdote desde o ano
de mil setecentos e cinquenta e dois.
Quanto às características populacionais, a freguesia é ocupada por cento e oito
vizinhos e quatrocentas e quarenta pessoas. Este número é plausível, contudo, é
importante realçar a sua natureza que envolve preceitos religiosos como é o caso do rol
dos confessados, ou seja, o valor exacto é deduzido a partir da Quaresma, estando
afastado de qualquer observação pelas autoridades civis. O lugar de São Cosme de
Alrrote detém um pároco que está encarregue da distribuição do pasto espiritual. O
pároco retira todos os anos em frutos certos cerca de cento e setenta mil réis, mais cinco
menos cinco mil réis depois de o pároco ter auferido a pensão. O mesmo relator faz
alusão à instalação de uma Companhia de Padres nesta mesma vila, que acabou por
impedir a Igreja de fazer cobrança de impostos, nomeadamente o dízimo, sobre terras da
sua jurisdição. Em Rio Torto existem cinquenta propriedades cultivadas pelos
paroquianos, os dízimos são recolhidos pela Companhia supra citada que poderia obter
lucros de cinquenta mil réis ou mais. O pároco de São Julião recebe ainda duzentos mil
réis concedidos pelo Papa Bento XIV. Aqui fica localizada a capela de São Mamede.

Nos aspectos económicos, a maioria das actividades comerciais baseava-se na


produção agrícola e hortícola. São colhidas quantidades apreciáveis de milho, feijão e
centeio. Somos confrontados no final da descrição com uma tradição que envolvia a vila
de Manteigas e Gouveia. No dia de São João Baptista, os manteiguenses deveriam
encher um púcaro de água na fonte de São Pedro e levá-lo às escadinhas do Pelourinho

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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

da vila precedente, logo pela manhã jurando ter sido consumida a água depois da meia-
noite. Além disso, teriam de levar consigo a quantia de duzentos e cinquenta réis, para
que pudessem pastar com o gado nas partes limítrofes dos dois concelhos serranos,
ficando livres de qualquer punição. O próprio pároco confirma que a celebração deste
contrato é recorrente e é uma prática muito antiga 2.
Concentremos as nossas atenções na freguesia de São Pedro. As características
ligadas ao foro administrativo mantêm-se, porém, o pároco introduz um novo elemento:
a sua localização geográfica - Beira Alta e associação ao Mosteiro de Santa Clara de
Coimbra. Na sua datação histórica, somos confrontados com a informação de que São
Pedro remonta aos princípios do século XVII, cento e cinquenta anos antes da
realização do inquérito3. A vila está sob a alçada do rei (refere-se concretamente a D.
José I) e nela existe a tradição de que os marqueses de Gouveia foram donatários. Nas
questões populacionais, o agregado é representado por duzentos e quarenta vizinhos e
novecentas e vinte pessoas. Geograficamente, está situada na zona montanhosa da Serra
da Estrela através da qual é possível observar as demais freguesias que compõem o
concelho gouveense. A Igreja paroquial está situada no centro da cidade e o padroeiro
da mesma é o Apóstolo São Pedro. O sacerdote refere a necessidade de uma intervenção
premente no edifício religioso, os planos de restauração estão delineados e orçados em
nove ou dez mil réis, pagos pela população local.
Na parte sul existe um convento de religiosos que pertencem à Ordem de São
Francisco, também designado por Convento do Espírito Santo e cujos aspectos
arquitectónicos estão ligados aos Templários, não tem orago e é muito antigo, contudo,
sofreu algumas obras para conservação patrimonial. A Nascente fica situado o Colégio
da Companhia de Jesus, em perfeitas condições e que terá sido fundado por António de
Figueiredo Pereira. Nele habitam alguns professantes, não há um valor exacto sobre as
rendas, mas estas poderão chegar aos sete ou oito mil réis anuais. Possui um hospital
sob a orientação do provedor da Santa Casa da Misericórdia de Gouveia que tem mais
de duzentos anos, todos os anos é cobrada uma renda no valor de cem mil réis. Podem
ser encontradas indicações a várias capelas dentro da freguesia de São Pedro,
nomeadamente, Nossa Senhora de Vera Cruz, São Lázaro, Senhora do Porto, Santa
Cruz, São Mamede, São Miguel e São João Baptista. No interior da Igreja de São Pedro
estão três capelas particulares: Santo António, Senhora dos Prazeres e Senhora da
Alegria.

2
Cf. Ibidem, Idem, p. 308-309.
3
Tendo em conta que as "Memórias Paroquiais" começaram a ser redigidas em 1758, é provável que São Julião tenha
sido constituída como freguesia em 1608. As datas que os párocos apresentam em cada documento são distintas.
3
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Economicamente, as actividades são de cariz agrícola, recolhem-se milhos e


centeios, predominando também o sector manufactureiro, particularmente com a
indústria dos lanifícios. O poder local e judicial é gerido por um juiz, uma câmara e uma
cadeia, sob autoridade dos corregedores da Guarda. A edilidade gouveense usufrui da
regalia de a vila de Manteiga todos os anos lhe mandar por altura do São João a quantia
de duzentos e cinquenta réis de feudo e um púcaro de água da fonte de São Pedro. Caso
recusassem o pedido estipulado ficariam impedidos de pastarem com os rebanhos na
Serra da Estrela. Todas as semanas é realizado um mercado e uma feira, normalmente às
quintas-feiras, livre de tributação. Existe serviço de correios, chegando a
correspondência de Viseu ao Domingo e com retorno ao Sábado de manhã 4.
Imprescindível é o chamado "Monte Aljão" no desenvolvimento da agricultura.
Cobre um extenso complexo territorial (uma légua de longitude e meia de latitude) e é
ladeado pelo Rio Mondego. Pertence aos moradores do concelho e está repartido em
courelas, conforme o número de habitantes que o utilizem. O seu aproveitamento é
regulamentado por um sorteio trienal a fim de que possa ser desfrutado por todos.
Chega a render anualmente duas mil medidas de centeio e os pastos abonam a favor da
vila, da calçada e para as fábricas das duas igrejas e misericórdia concelhia. Na parte sul
de Gouveia (distante a três léguas) nascem três importantes rios: Mondego, Alva e
Zêzere. Na parte nascente nasce uma ribeira que percorre o meio da vila, auxiliando a
fertilização das várias plantações. Em redor estão situadas quinze casas de moinhos,
pisões e tinturarias.

A Sociedade e a Economia da vila de Gouveia na Época Moderna

Até ao momento actual da redacção deste trabalho, viemos a analisar os aspectos


económicos e sociais das duas freguesias que integravam a vila de Gouveia (São Julião
e São Pedro). Focalizemos, a partir de agora, a nossa atenção, numa perspectiva mais
abrangente sobre a realidade gouveense no seu todo, nos alvores do Antigo Regime
português. Em Gouveia funcionava a sede concelhia, juntamente com um termo e dez
judiarias. Numericamente, a vila atingiria os cento e setenta quilómetros quadrados de
superfície, albergando diversas freguesias nos vales escarpados e nas planícies. No que
diz respeito à constituição do tecido populacional, a vila detinha 358 fogos, ou seja, dos
1647 fogos apurados, cerca de um quinto da população residia na sede do concelho 5. A
par desta estratificação social havia um intenso dinamismo económico ligado,

4
Ibidem, Idem, pp. 310-311.
5
NETO, Margarida Sobral, "A vida económica e social de Gouveia na Época Moderna. Um contributo
para o seu estudo", Revista Portuguesa de História, t. XXXV, Coimbra, 2001-2002, p. 248.
4
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

particularmente, à agricultura, pecuária, produção artesanal e comercial, que por um


lado possibilitava a manutenção desta economia "inter-regional" e por outro aproveitava
o que a terra tinha de melhor. O próprio Carvalho da Costa realça a riqueza dos
principais recursos da Vila 6. Da Serra da Estrela obtinha-se madeira e lenha que
posteriormente seriam utilizadas no fabrico de carvão. A flora e fauna existentes
serviam de complemento alimentar para as pastagens dos rebanhos de ovelhas e cabras.
A transumância era crucial na vida dos pastores, este fenómeno era sazonal e implicava
a mudança do gado devido às constantes alterações climatáticas. No fundo essa
preocupação residia na influência que tais oscilações pudessem ter na qualidade de vida
daqueles animais7. Estas saídas temporárias tiveram reflexos em toda a vida social e
comunitária, senão vejamos: as longas jornadas provocaram a ausência de elementos do
sexo masculino, referimo-nos à figura paternal, nestes casos, o"testemunho" passava
para os filhos mais velhos que recebiam do pai uma árdua tarefa.
Parecerá impossível idealizar uma tal correspondência para os elementos
femininos, mas a verdade é que também as mulheres participavam no desempenho de
funções, normalmente reservadas ao "chefe de família", quer fossem sociais ou
económicas. Houve disparidades ao nível da descendência, com uma diminuição das
procriações e o evidente aumento no intervalo do número de crianças. O mais
surpreendente no meio deste cenário é que o quadro demográfico manteve-se
inalterável. Culturalmente, foram adoptados novos hábitos e costumes, nomeadamente
na alimentação, vestuário e linguagem. O distrito ficou marcado pelas intensas
"caravanas" de pastores e rebanhos que percorriam as ruas dos concelhos em busca de
novas paragens, que obviamente lhes dessem algum proveito. Entre os destinos mais
requisitados podemos referir a zona do Alto Alentejo e a vila de Idanha-a-Nova, em
Castelo Branco.
Na contemporaneidade, este tipo de ocupação profissional não tem merecido o
valor mais aprazível, talvez pela importância que se foi desvanecendo. No entanto, à
época, havia um enorme apreço pelo grupo pastoril. Asseguravam o respeito pelos seus
animais e eram encarados como guardiões da segurança de todo o povo. O poder central
depositava neles total confiança, concedeu-lhes o direito de posses de armas, passagem
por canadas (caminhos ancestrais ladeados por muros que eram seguidos, normalmente,

6
Vide COSTA, Carvalho da, "Corografia Portuguesa e Descripçam do Reyno de Portugal", Lisboa,
1706-1712, p. 373 cit. in. NETO, Margarida Sobral.
7
Sobre estas questões, veja-se AMARAL, Abílio Mendes do, "Os pastores da Serra da Estrela -
Etnografia - Foro - Transumância", Beira Alta, Vol. XXIX, Fasc. III, Viseu, A.D.V., 1970, pp. 355-399.
5
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

pelo gado transumante) e áreas de pasto. Este mecanismo revitalizou a região


envolvente administrativa e economicamente8.
Os ribeiros, montes, regatos, encostas e campos forneciam uma diversidade
indeterminável de recursos, sobretudo a água que germinava as zonas de actividade
hortícola e os lameiros. A capacidade de desenvolvimento da maioria das culturas deve-
se, em grande medida, à natureza dos terrenos que podiam ser recorridos para as mais
variadas práticas agrícolas e florestais. A agricultura centrava-se na cultivação do milho
grosso em consonância com o feijão. O milho grosso favoreceu a criação de gado
bovino, criado em estábulos. O centeio ocupava o lugar cimeiro da produção cerealífera,
dadas as condições do terreno e clima que se faziam sentir ao longo do ano na Serra da
Estrela. Pão, frutas produzidas em pomares (com particular destaque para as maçãs e
pêras) formavam a alimentação de camponeses, pastores e artesãos. A castanha era um
fruto seco de elevado gabarito e substituía o pão em determinadas alturas do ano. A
madeira advinha do castanheiro, a sua manipulação era multifacetada, contudo, estava
direccionada para a o fabrico de instrumentos agrícolas e artesanais, assim como para a
construção de habitações9.
Nas relações de propriedade, as terras de monte, campo, sequeiro e regadio
inseriam-se no suporte agrícola e pecuário, ao mesmo tempo eram a garantia de sustento
para a maior parte da população da vila de Gouveia e de avultadas rendas para os
proprietários das demais casas senhoriais e organismos religiosos. Não menos
importante era a Serra que apesar de ser um ponto de convergência comum, estava
sujeita a regulamentação específica pela Câmara Municipal, incidindo na fabricação de
carvão e/ou no acto de mondar. Gradualmente, o "Monte Aljão" ganhava projecção a
nível local, nomeadamente para os moradores da Vila. Aqui podiam usufruir,
individualmente, de pequenas parcelas de terreno, aliando este ofício ao artesanato e ao
comércio. O regime senhorial assumia alguma preponderância, porém era bastante
menor dadas as características do relevo. Em Gouveia, o Mosteiro do Espírito Santo e o
Colégio dos Jesuítas eram as principais entidades detentoras de propriedade senhorial.
A Câmara Municipal estava encarregue de gerir os bens comunitários, bem como
administrá-los10. Importa também denotar a íntima relação que existia entre agricultura
e criação de gado. Os animais apresentavam uma dupla funcionalidade, ou seja, podiam
lavrar as terras (diminuindo a intervenção humana) e de certa forma transportar

8
POLÓNIA, Amélia, "Vida quotidiana e cultura material no concelho de Gouveia na Época Moderna",
Jornadas Históricas do Concelho de Gouveia, Gouveia, C.M.G., 2001, pp. 9-11.
9
NETO, Margarida Sobral, Ob.Cit., pp. 249-251.
10
Idem, Ibidem, pp. 252-254.
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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

mercadorias volumosas. Todavia, a conexão entre estes dois elementos (agricultura e


gado) nem sempre foi pacífica.
Ovinos, suínos e caprinos recolhiam o seu alimento livremente e grande parte
das vezes acabavam por ceifar tudo o que estava em redor. Para colmatar as falhas, a
Câmara Municipal promulgou em 1755 um diploma que previa a proibição da criação
de cabras, depois das inúmeras queixas. A delineação da pastagem e o estabelecimento
de uma tabela punitiva foram as duas medidas principais, com a finalidade de devolver
a normalidade a todos os agricultores. Muitos pastores foram obrigados a levarem as
suas cabeças de gado para zonas dos arredores do concelho para de alguma maneira
criar uma certa mobilidade11. A vida das comunidades serranas distribuía-se pela
lavoura e pelas ocupações nas actividades de transformação e serviços. Homens,
mulheres e crianças trabalhavam em conjunto para o mesmo objectivo. As sementeiras,
as ceifas e a apanha da azeitona incluíam a panóplia de tarefas que lhes estavam
incumbidas. Os homens podiam varejar a azeitona e as mulheres/crianças colocavam-na
em sacos ou tinas. Eram vistos como trabalhos penosos, extremamente duros que
podiam ir desde o amanhecer até ao fim da tarde. Ainda assim podiam ser
percepcionados como momentos de socialização e convívio onde se reunia toda a
população. Nestas oportunidades de interacção podiam ser resolvidas conflitualidades
(ou não), ultimavam-se namoros mal correspondidos, cantavam e dançavam-se músicas
de índole popular, que culminavam numa farta e saborosa refeição com produtos locais.
Tal como existia o "Monte Aljão", era habitual verificar a presença de eiras e
fornos comunitários, partilhados pelos demais. Como notou Amélia Polónia, a
introdução do milho no concelho de Gouveia, e mais concretamente na vila em si,
trouxe, in extremis, uma modificação do paradigma social. Deixaram de ser feitos
pousios, houve uma clara diminuição da área cultivada e emergiram outros padrões que
deram azo à reorganização do mundo laboral segundo os agregados familiares 12. É
pertinente referir que a pastorícia não se enquadrava como um simples complemento da
actividade agrícola, fazia parte de um estilo de vida, de uma maneira de ser e de estar
que era inerente à genuinidade destas gentes, tudo gira em torno do pastoreio. Este
quadro é compatível com o dia-a-dia das pessoas, a confiança e compromisso regiam as
vizinhanças, ele que dita os trâmites da economia local. O gado propícia a extracção de
produtos para a alimentação, principalmente, leite, manteiga e o afamado queijo. O

11
Não é conveniente confundir estas deslocações com a "transumância". O primeiro elemento integra
uma norma emanada pelo poder local que surgiu pelas circunstâncias apontadas. O último aspecto
reporta-se a uma tradição que está relacionada com a climatologia regional. Cf. nota 7.
12
POLÓNIA, Amélia, Ob.Cit., pp. 7-8.
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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

estrume era utilizado como fertilizante e as peles serviriam como matéria-prima na


indústria têxtil. A tosquia mobilizava pastores e uma série de indivíduos entusiasmados
pela remuneração que se deveriam especializar na execução desta tarefa. Normalmente
ela era realizada entre o final do mês de Maio e Junho (São João), numa altura em que
as ovelhas regressavam dos pastos invernais.
A vila de Gouveia não se dedicava somente aos trabalhos rurais, também existia
uma pequena minoria que se concentrava nas actividades de transformação e prestação
de serviços. Numa primeira impressão, é esta a conclusão retirada pela maioria dos
observadores, dado o ambiente em que nos estamos a debruçar. Dentro dos grupos
socioprofissionais, a vila continha 7 alfaiates, 7 carpinteiros, 7 moleiros, 9 padeiras, 6
pedreiros e 6 sapateiros. Os cereais como já referimos eram fulcrais na alimentação da
população, em Gouveia havia uma rede de moinhos movidos pela força da água que
corria desde a Serra da Estrela, mais concretamente no lugar do "Mondeguinho". Apesar
das óptimas condições naturais, os recursos económicos eram obsoletos. Sendo a
moagem uma fonte de receitas rentável, os engenhos também eram alvo de tributação
pelos senhores poderosos. Associada à moagem dos compostos vinha confecção do pão,
nas freguesias existia mesmo uma produção caseira.
O fabrico e a venda do pão estavam a cargo de funcionários camarários. É
interessante verificar que a indústria panificadora estava integrada em complexos
familiares, onde o elemento principal desempenhava as profissões de jornaleiro,
pedreiro ou fabricante. Sapateiros, barbeiros, carpinteiros, pedreiros e ferreiros
entravam no rol dos profissionais prestadores de serviços, sendo extremamente
indispensáveis no dia-a-dia das populações13. A produção doméstica e as actividades
agro-pecuárias complementavam-se mutuamente. Em determinadas altura do ano, nas
quais havia uma quebra no trabalho agrícola, o lavrador podia fabricar calçado,
vestuário, peças em lã e linho, objectos domésticos, instrumentos agrícolas e preparação
de materiais para a construção civil. Aliava-se esta vertente do autoconsumo à venda
dos produtos em mercados locais e regionais, a fim de assegurar a subsistência familiar.
Gouveia possuía um dos mais importantes e notáveis centros de transformação e
preparação de lanifícios da Serra da Estrela. Foram aproveitadas as estruturas e o
método de fabrico existentes, a preocupação incidiu, sobretudo, na supervisão e
coordenação da fase produtiva, com o objectivo de melhorar a qualidade e a quantidade.
A fiação e tecelagem da lã requeriam a participação simultânea de homens e mulheres.
Até o fio chegar à sua composição final, havia um trabalho sequencial. No fabrico dos

13
NETO, Margarida Sobral, Ob.Cit., p. 257.
8
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

panos, congregavam-se diversos grupos socioprofissionais. Há registo de 38 cardadores,


75 fiandeiras, 9 tecedeiras, 12 tecelões, 6 pisoeiros, 11 tosadores e 16 fabricantes.
Depois de ser tosquiada, a lã era sujeita à operação de cardar. Aqui predominava a mão-
de-obra masculina pela sua capacidade física no desembaraçamento. A lavagem e
posteriormente a fiação e a tecelagem seriam feitas por mulheres. As operações mais
duras deveriam ser especializadas, muitas vezes eram necessários instrumentos
específicos, cursos de água e oficinas para esse efeito. A dimensão que estas estruturas
demonstravam implica a estratificação dos demais artífices de acordo com as
corporações de artes e ofícios. Cardadores, tecelões, tecedeiras, tosadores e pisoeiros
estavam sob regulamentação da Câmara Municipal, particularmente ao nível daquilo a
que podemos chamar "deontologia profissional", no controlo de preços e produtos e a
envolvência nas festas do Espírito Santo e Corpo de Deus. Em Gouveia, encontra-se
instalada uma irmandade de cardadores, a de São Mamede. A sua expressão numérica
justifica a atribuição de obrigações e responsabilidades tão exigentes 14.

O fabrico de peças mais grossas destinava-se ao vestuário das populações


serranas. Capuchas, capotes, saias, capas, mantas e cobertores são apenas alguns dos
exemplos da indumentária gouveense. Perante as suas características, eram usadas
sobretudo no Inverno. A menção a roupas mais frescas para o Verão poderá ser
encontrada na compra de linho e de panos com igual teor em feiras regionais. As botas
de couro e as samarras eram dirigidas aos pastores, as sedas só podiam ser compradas
por fidalgos, os panos de lã fina ficavam para as gentes mais abastadas. O designado
"fabricante" começará a aparecer no universo social e económico. Pode ser definido
como um indivíduo que concentra em si várias actividades ligadas à produção de panos,
coordenando e financiando o ciclo produtivo. No fundo, eles compravam a matéria-
prima, entregavam-a aos transformadores e seguidamente era colocado no mercado.
Emerge uma nova elite económica que não estava dependente de códigos legislativos
nem tutelares por parte da Câmara Municipal. O fabrico dos panos, na sua distribuição
geográfica, não era equitativo e este minoritário grupo de fabricantes apoderava-se cada
vez mais dos agentes económicos15.

Para que as trocas comerciais pudessem ser empreendidas, era necessária a


existência de uma fiável rede de transportes e comunicações. Desta forma, a canalização
dos produtos podia ocorrer eficazmente e evitavam-se rupturas de abastecimento nos

14
POLÓNIA, Amélia, Ob.Cit., p. 13.
15
NETO, Margarida Sobral, Ob.Cit., pp. 260-265.
9
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

variados mercados. As vias de distribuição privilegiadas eram as marítimas e fluviais,


isto porque apresentavam menores custos. A circulação terrestre deparava-se com
alguns condicionalismos, por vezes os viajantes tinham de realizar desvios e percorrer
estradas íngremes e repletas de obstáculos. Gouveia não era uma excepção à regra, a
economia também foi afectada pelas barreiras geográficas e naturais. Ainda que
estivesse afastada do litoral, a cidade não estava condenada ao isolamento. Havia duas
estradas entre Lisboa e Gouveia, a partir delas chegavam mercadorias oriundas de
Aveiro e da Figueira da Foz, referimo-nos ao peixe e ao sal. Dada a proximidade em
relação a Viseu à Guarda, era evidente o funcionamento de dois caminhos que ligavam
Gouveia a estas duas capitais distritais. Castelo Branco será fundamental na articulação
do contacto com o Alentejo e também na navegação a Lisboa pelo Rio Tejo. Assim, a
vila tinha uma posição mais apetecível para os mercadores e fabricantes poderem
efectuar a transacção de produtos, a preços mais baixos e competitivos.
O acompanhamento destes "vendedores ambulantes" e dos seus animais era
possível graças à rede de infra-estruturas edificadas ao longo dos percursos. Nestes
espaços, ficavam albergados, podiam pernoitar e ainda ser-lhes-ia fornecida
alimentação. Os grandes utilizadores destes pontos de paragem eram os almocreves,
trabalhavam por sua conta e deambulavam pelo país na distribuição de géneros
alimentares e não só, eram eles que de alguma maneira levavam notícias de carácter
generalista, a localidades remotas, onde os veículos de transmissão de conhecimento
permaneciam inoperacionais. Na zona urbana de Gouveia, segundo os registos da
décima de 1768, habitavam 7 almocreves. Numa escala menor e num raio territorial
mais limitado, decorriam as feiras ou mercados semanais, normalmente às quintas-
feiras, formavam identicamente pontos de trocas comerciais. Com um aumento gradual
dos lucros, a grande massa populacional que se dedicava à agricultura, encontrava agora
uma oportunidade para comprar vestuário e calçado ou saldar pagamentos em atraso 16.
A religião assume um papel deveras importante na vida comunitária, as romarias
e procissões confluem em toda a vida social. São marcos que possuem inerência
absoluta com o calendário agrícola, tudo gira em torno dela. A própria comunidade
orienta-se pelo rebate dos sinos, controlam-se os dias e as horas, assinalam-se os
momentos festivos e os momentos de padecimento. A vida em contexto particular está
intimamente correlacionada com o sagrado, a Quaresma era sinal de despojamento e de
abstinência total sobre o mundanismo. Nas igrejas e adros afluía a maior parte dos
habitantes locais, aqui ficavam-se a saber as principais "novidades" da época, mesmo de

16
NETO, Margarida Sobral, Ob.cit., pp. 266-268.
10
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

índole nacional. A tolerância religiosa era praticamente inexistente, em Gouveia havia


uma pequena percentagem de judeus e cristãos-novos. À semelhança do resto do reino,
também aqui ocorriam fogueiras e confisco de bens17.

Na vila, e à imagem do que acontecia no resto do território continental, a


fundação de um organismo vocacionado para o apoio social e a beneficência popular
concretizou-se. Contudo, segundo Isabel dos Guimarães Sá, é duvidosa a questão
relativamente à instalação em Gouveia de um organismo desta natureza. A confraria, ao
contrário das Misericórdias, aceitava membros de ambos os sexos e pessoas que
morassem fora do limite concelhio. No que diz respeito aos montantes para poder ser
feito o ingresso, os casais pagavam 480 réis (as mulheres solteiras ou viúvas teriam de
pagar o mesmo valor) e os restantes candidatos 800 réis. Uma das prerrogativas que
deveria ser escrupulosamente aceite era a obrigação de comparência nas cerimónias de
culto de cada um dos membros. Este aspecto incidia sobretudo nos grupos de irmãos.
Eram disponibilizados vários momentos para práticas devocionais, desta forma, a
Misericórdia abrangeria o seu campo de actuação. Os cristãos-novos encontravam aqui
a derradeira oportunidade para efectuarem uma limpeza de sangue. Todos os elementos
que pertencessem a esta instituição teriam direito a cerimónias de exéquias, ao
enterramento nos cemitérios e o acesso ao crédito. O empréstimo era feito a juros e
primava sobretudo a concessão do mesmo ao elementos da Misericórdia. Além deles, os
indivíduos de classe média eram os grandes requerentes deste mecanismo financeiro.
Importa referir que os irmãos que fizessem parte de outras confrarias das igrejas da vila
ou do concelho, também podiam usufruir das benesses misericordiosas. Na eleição para
os corpos directivos, o mais votado seria designado como "provedor" e o vice-líder
tomava o cargo de "imediato", a sua principal função era ritual. Na assembleia seguinte,
eram escolhidos o escrivão e o tesoureiro 18.

As actividades da Misericórdia eram múltiplas, os mesários encontravam-se,


pelo menos, três vezes por ano para ultimarem os preparativos de algumas celebrações
religiosas e solenes, em particular: a Procissão dos Passos, a Procissão das Endoenças e
o dia da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, a 2 de Julho. Delineavam-se os
momentos exactos para proceder à recolha do peditório pelas freguesias do concelho.
Os irmãos deveriam cumprir essa tarefa no dia 1 de Dezembro, a ausência de um dos

17
POLÓNIA, Amélia, Ob.cit., pp. 18-22.
18
SÁ, Isabel dos Guimarães, "A Misericórdia de Gouveia na Época Moderna", [s.n], Lisboa, 2006, pp. 4-
8. Este artigo, pelo facto de não ter sido publicado em livro, encontra-se disponível online.
11
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

mesários fá-lo-ia pagar uma coima no valor de 500 réis. As procissões ocorriam durante
a Semana Santa, porém, as missas por alma eram sujeitas à definição de um calendário,
este era mais um dos assuntos debatido em assembleia. Os dias santos eram
privilegiados, nesta altura as populações interrompiam a sua actividade campestre,
situação que não se verificaria no decurso da semana de trabalho. As dificuldades
económicas também eram notórias, os sacerdotes eram insuficientes e sem dúvida que a
razão principal que os votou a essa decisão se prende com o fraco rendimento que
auferiam. O número de Eucaristias começou a diminuir, os pedidos para breves de
perdão aumentaram exponencialmente junto da Sé Apostólica, a Misericórdia de
Gouveia deparou-se com os mesmos problemas que as suas semelhantes já haviam
enfrentado. A eficiência nos empréstimos era verdadeiramente nula, os registos não
eram feitos com precisão e rigor, a cobrança era deficitária e, consequentemente, o
dinheiro ia escasseando nos cofres. Para resolver este problema, foram aprovadas
medidas que procurassem regularizar a saúde financeira da casa.
A intervenção do Marquês de Pombal nestas questões não passou desapercebida,
a vontade do ministro de D. José I era a de aproximar estas instituições de assistência
com o poder central. Um dos primeiros impactos foi sentido no facto de os provedores
passarem a ser eleitos pelo rei. Ainda dentro do seu período de regência, a Misericórdia
de Gouveia não escapou a uma auditoria, foi efectuada uma inspecção à contabilidade.
As receitas advinham sobretudo dos créditos concedidos, das propriedades e das multas
pelo não cumprimento de certas demandas. No que concerne às despesas, os gastos
recaíam sobre as actividades caritativas, o pagamento de missas e celebrações litúrgicas.
Perante os pressupostos e os características supra citadas, podemos admitir que a
Misericórdia de Gouveia não apresentava qualquer relevância, o seu papel resumia-se à
organização de ritos processionais e fúnebres e à actividade de empréstimo a juros,
ficando aquém dos objectivos a que se propunha 19.
Em Gouveia, o edifício dos Paços do Concelho é um lugar cheio de História.
Aqui nasceu um importante estabelecimento religioso, falamos do Colégio dos Jesuítas.
O século XVIII não foi fácil para esta congregação, os diferendos com a monarquia
eram cada vez maiores e a sua presença incomodava o Marquês de Pombal. Na vila
gouveense mereceram alguma atenção, Dona Maria Ferreira pertencia a uma ilustre
família e aquando da sua morte, deixou em testamento o desejo de ser criada uma
Fundação, caso o filho não assegurasse descendência, deveria pertencer aos Padres
Jesuítas e na ausência deles a outros movimentos (Dominicanos, Arrábidos). 1733

19
SÁ, Isabel dos Guimarães, Ob.cit., pp. 8-12.
12
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

marca o início dos trabalhos, doze anos mais tarde vieram a habitar o novo espaço.
Catorze anos depois, e conforme a ordem de acontecimento e peripécias da História
Moderna de Portugal, o Marquês de Pombal expulsou os Jesuítas de Gouveia, mandou
extinguir o colégio e confiscar todos os bens que lhes pertenciam. Após o seu
encerramento, veio lentamente a ganhar outras finalidades. O edifício em si passou para
as mãos da Coroa, fez uma doação em nome do Colégio dos Meninos Órfãos. Voltou a
ficar inutilizável num curto espaço de tempo, em 1763 foi usado a título precário pelas
Freiras de Almeida. Uma das últimas utilizações foi a serventia de Hospital Militar, na
Guerra Peninsular. Aqui ficaram alojados elementos do exército anglo-luso, a ofensiva
era realizada no vale do Mondego, as localidades limítrofes estavam submetidas a um
domínio invariável, em determinados momentos sob alçada dos franceses, em períodos
de paz operava o Quartel General20.

O Convento de São Francisco figura nas construções arquitectónicas deste hiato


cronológico. Fica situado na estrada municipal que liga Gouveia a Moimenta da Serra,
perfila, sem sombra de dúvidas, nas mais belas edificações da Época Moderna. Durante
os anos cinquenta dos século XVIII foi alvo de remodelações e restauro, tal como nos é
dado a entender, segundo a escritura de 4 de Janeiro de 1752. Essa "reconstrução"
implicou a utilização de granito na integralidade do monumento. Nas características
principais, podemos realçar a Torre, a fachada central, que contém a imagem do orago
(São Francisco), e a imponente ala ladeada pelos extensos terrenos a ocidente. Em seu
redor realizavam-se as Procissões do Espírito Santo, bem como feiras e espaços de
compra e venda de produtos. Assumiu alguns anos depois uma função educativa, no
reinado de D. Maria I, foi enviado um parecer que mandava instalar naquele local a
Escola das Primeiras Aulas Públicas, para que as crianças pudessem iniciar a
aprendizagem da leitura, da escrita e da contagem algébrica 21.

20
GUERRINHA, José, "Capítulo IV - Cidade de Gouveia" in «Gouveia (Serra da Estrela)», Coimbra,
Gráfica de Coimbra, 2005, pp. 106-116.
21
Idem, "Conhecer Gouveia (Serra da Estrela)", Gouveia, Gráfica de Gouveia, 1985, p. 68.
13
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

Conclusão

Chegámos ao fim da redacção deste trabalho de investigação. Resta-nos agora


tecer algumas considerações finais e retirar as devidas ilações. Numa primeira análise, é
pertinente referir que uma tarefa desta natureza é extremamente benéfica, por um lado,
no desenvolvimento de técnicas e método de trabalho inerentes à construção da História
(nesta caso de índole local/regional), e de certa forma, incrementa em cada um de nós o
espírito pelo conhecimento científico e pela pesquisa. Um dos grandes problemas com
que nos deparamos na planificação e preparação de uma empresa como esta é a falta de
materiais bibliográficos e de suporte no estudo destas realidades, acabei por não ser um
excepção à regra. Muito mais haveria para dizer, mas dada a escassez de estudos e
monografias sobre este período cronológico, (Época Moderna) tal desejo não foi
possível ser concretizado.
Ainda assim, e dentro das nossas possibilidades, ficou elaborado um sucinto
trabalho que permitiu conhecer alguns elementos caracterizadores da sociedade e da
economia da vila de Gouveia, à luz do balizamento temporal definido. As distintas
categorizações sociais e económicas condicionam a mobilidade do indivíduo, daí que a
vivência no quotidiano não seja idêntica. No fundo este pequeno protótipo espelha bem
a forte hierarquização sentida no Portugal de Antigo Regime. O que diferencia cada um
é o desempenho de determinadas funções, o contacto com o exterior, a riqueza e o
prestígio, a alimentação e o vestuário. Sem dúvida que são estas as características que
fazem de Gouveia um concelho genuíno, com enorme potencial agrícola e industrial,
face aos vizinhos lugares da Beira, nomeadamente, a Guarda, Covilhã e Castelo
Branco22. Para levar por diante esta missão, servi-me dos contributos de algumas
personalidades bastante competentes (não querendo, evidentemente, desvalorizar os
restantes autores mencionados), destaco a Prof.ª Doutora Margarida Sobral Neto (uma
grande especialista na área da História Local e Regional), o Professor Eduardo Mota
("um homem da terra" que cedo se quis debruçar sobre estas matérias) e o Senhor José
Guerrinha (um destacável gouveense, detentor de um trabalho muito apreciável e
proveitoso). Findo a minha exposição, reiterando o meu agradecimento ao Professor da
Unidade Curricular por todos os esclarecimentos facultados ao longo desta demanda.
Expressa fica também a vontade de, à semelhança de Heródoto, continuar a narrar os
feitos do Homem na História, para que eles não se desvaneçam com o tempo e
perpetuem o motor histórico das futuras gerações.
22
MACEDO, Jorge Borges de, "A situação económica no tempo de Pombal - Alguns aspectos", Lisboa,
Publicações Gradiva Limitada, 1989, pp. 141-187.
14
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

Bibliografia (consultada e pesquisada)

FONTE IMPRESSA:

CAPELA, José Viriato e MATOS, Henrique, As freguesias do Distrito da Guarda nas


Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Colecção Portugal
nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, Minhografe - Artes Gráficas, 2013, pp. 308-
311.

OBRAS GERAIS E ESPECÍFICAS:

MACEDO, Jorge Borges de, "A situação económica no tempo de Pombal - Alguns
aspectos", Lisboa, Publicações Gradiva Limitada, 1989, pp. 141-187.

GUERRINHA, José, "Capítulo IV - Cidade de Gouveia" in «Gouveia (Serra da


Estrela)», Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2005, pp. 106-116.

Idem, "Conhecer Gouveia (Serra da Estrela)", Gouveia, Gráfica de Gouveia, 1985, p.


68.

SÁ, Isabel dos Guimarães, "A Misericórdia de Gouveia na Época Moderna", [s.n],
Lisboa, 2006, pp. 4-12.
Online: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/4819/1/gouveia.pdf.

POLÓNIA, Amélia, "Vida quotidiana e cultura material no concelho de Gouveia na


Época Moderna" in Jornadas Históricas do Concelho de Gouveia, Gouveia, C.M.G.,
2001, pp. 7-22.

AMARAL, Abílio Mendes do, "Os pastores da Serra da Estrela - Etnografia - Foro -
Transumância", Beira Alta, Vol. XXIX, Fasc. III, Viseu, A.D.V., 1970, pp. 355-399.

COSTA, Carvalho da, "Corografia Portuguesa e Descripçam do Reyno de Portugal",


Lisboa, 1706-1712, p. 373.

NETO, Margarida Sobral, "A vida económica e social de Gouveia na Época Moderna.
Um contributo para o seu estudo", Revista Portuguesa de História, t. XXXV, Coimbra,
I.U.C., 2001-2002, pp. 248-268.

FERRO, João Pedro, "A população portuguesa no final do Antigo Regime (1750-
1815)", Lisboa, Edições Presença, 1985.

15
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

Anexos - Imagens e cronologia

1 - Edifício dos Paços do Concelho

2 - Solar dos Serpa Pimentel (prestigiada família gouveense)

3 - Igreja de São Pedro

16
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

4 - Capela da Misericórdia

5 - Convento de São Francisco

6 - Vista panorâmica sobre a cidade de Gouveia, a partir do Monte Calvário. Ao fundo, podemos
contemplar parte da Cordilheira Central da Serra da Estrela.

17
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

7 - Apesar das dificuldades sentidas na regeneração desta actividade, ainda subsistem alguns
pastores, bem como a raça do Cão "Serra da Estrela", como podemos observar por esta fotografia.

8 - Igreja Paroquial de São Julião

EFEMÉRIDES DE GOUVEIA NA ÉPOCA MODERNA (Vide GUERRINHA, José, Ibidem, p. 95)

1714 Construção do Fontenário da Calçada dos Frades

1720 Edificação da Capela de São João no Bairro do Toural

1739 Inauguração do Colégio dos Jesuítas

1741 Instituição do mercado semanal, às quintas-feiras

1755 Construção da Capela do Senhor do Calvário

1779 Construção do Chafariz de São Lázaro

1782 Obras no Solar dos Serpa Pimentel

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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

"Memórias Paroquiais de 1758" - Vila de Gouveia | Transcrição integral

GOUVEIA (SÃO JULIÃO), Bispado de Coimbra, Concelho da vila de Gouveia,


Comarca da Guarda (pp. 308-309) - Muito reverendo senhor doutor provisor. Sobre o
que vossa mercê me manda informar, da parte de Sua Majestade Fidelíssima que Deus
guarde a respeito dos interrogatórios no papel que se me entregou insertos, o que posso
dizer é o seguinte. Esta vila de Gouveia está na província da Beira Alta, pertence ao
Bispado de Coimbra, é Comarca da Guarda, tem alguns lugares de seu termo. Tem duas
freguesias, uma de São Pedro e outra de São Julião (Mártir), desta sou eu pároco, ambas
matrizes e com sacrário. Está erecta há uns duzentos anos e a de São Pedro ainda é mais
antiga. É esta Igreja de São Julião de El-Rei Nosso Senhor D. José que Deus guarde, da
qual me fez a graça em Outubro do ano de setecentos e cinquenta e dois. Tem cento e
oito vizinhos, quatrocentas e quarenta pessoas, entre todas as que andam em o rol dos
confessados pelo preceito da Quaresma.
A dita Igreja está dentro desta vila em um alto chamado o Castelo, não tem
lugares nem aldeias que pastoreie o pároco dela. Tem sim o lugar de Rio Torto com
pároco particular, cura actual amovível ad natum. Tem alguns fregueses no lugar de São
Cosme de Alrrote, a quem dá o pasto espiritual o cura daquela freguesia, que apresenta
o reverendo vigário de São Pedro desta vila e a outros são anexos à de São Pedro. O
orago desta Igreja de São Julião é o mesmo santo. Tem cinco altares, o maior com a
imagem do dito santo debuxada em um quadro, posta na boca da tribuna. O colatral da
parte do Norte com a perfeitíssima imagem de Nossa Senhora do Rosário, o sequente a
este a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo Crucificado, e nele erecta a irmandade das
almas, e a única desta Igreja, da parte do Sul o de São Sebastião, e o sequente a este de
Santo António, ambos com suas imagens em vulto. Não tem naves esta Igreja.
O pároco é prior colado, a apresentação é de sua Majestade Fidelíssima que
Deus guarde por muitos anos. O que rende em cada um ano para o pároco em frutos
certos são cento e setenta e cinco mil réis, mais cinco menos cinco mil réis, depois que
foi pencionada para a Santa Basílica Patriarcal da cidade de Lisboa, nas três sétimas
partes que andam arrendadas em cento e quarenta mil réis, e sete alqueires de trigo em
cada um ano. E além desta pensão nos muitos anos que esteve vaga se introduziu o
Colégio dos Padres da Companhia desta vila em uma posse intrusa, sem que a Igreja
tivesse legítimo defensor, de cobrar e arrecadar os dízimos daquelas suas terras que tem
nesta vila, e no lugar de Rio Torto, filial desta Igreja que só neste passam de cinquenta
propriedades, as quais cultivam os paroquianos que o são desta Igreja, sendo-lhe dadas
de terças meãs ou por arrendamento, em cujos dízimos tem o dito colégio o lucro certo
19
[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

de cinquenta mil réis ou mais. E à vista do pároco não restam os duzentos mil réis que
Sua Santidade o Senhor Benedito Décimo Quarto (Bento XIV) arbitrou aos párocos
pelo cento pro rectore, por quanto o pé de altar é muito ténue. Trago litígio com o dito
colégio sobre a instrução desta posse. Esta Igreja tem uma ermida com a invocação de
São Mamede, um só altar, e nele o santo com sua irmandade no arrabalde da vila em um
bairro chamado São Mamede. No dia do mesmo santo a 17 do mês de Agosto, dia em
que se lhe faz a sua festa, acode em romaria alguma gente do termo ainda que pouca.
Os frutos em que mais abundância recolhem os fregueses desta paróquia são
milho, feijão e centeio. Desta vila se diz fora natural o Padre [Mestre] Inácio Martins, da
Companhia que compôs a Instrução da Doutrina Cristã, e a reduziu a método fácil para
se aprender. E também da mesma consta foi natural o Doutor Pinheiro que escreveu De
Testamentis. Não me consta tenha esta vila privilégios ou antiguidades mais que serem
obrigados os moradores da Vila de Manteigas, que dista desta três léguas, e é do
Bispado da Guarda, depois da meia-noite do dia de São João Baptista encherem um
púcaro de água na fonte da vila de Manteigas, chamada a de São Pedro e trazerem-no a
esta vila, às escadas do Pelourinho dela, com duzentos e cinquenta réis pela manhã,
antes de nascer o sol, jurando foi a dita água tomada logo depois da meia-noite, e isto
para os moradores da dita vila poderem pastar com os seus gados no limite desta vila,
nas partes da serra, por confinarem os limites um com o outro, e não poderem ser
acoimados (?). É muito antigo este contrato. Não padeceu ruína esta vila no Terramoto
do ano de 755, mas fizeram em pedaços pelo meio as cruzes que estavam sobre a casa
da Misericórdia desta vila, colégio da Companhia e convento dos religiosos de São
Francisco, e uma quinta da minha igreja que mostrou barriga. Dos mais interrogatórios
em que não falto, como também dos que dizem respeito à serra e ao rio, deles dará
notícia e relação o reverendo vigário de São Pedro desta vila por ser a primeira igreja
que a minha, e ser a sua freguesia mais extensa duas partes que a minha.

GOUVEIA (SÃO PEDRO) - (pp. 310-311) - Padroado/apresentação: Mosteiro de Santa


Clara de Coimbra; Bispado de Coimbra; Concelho da vila de Gouveia; Comarca da
Guarda - Esta vila de Gouveia é antiquíssima, fica na província da Beira, no Bispado de
Coimbra, da comarca da cidade da Guarda. Tem duas freguesias, uma denominada São
Pedro que é vigairaria e a principal, e outra de São Julião que é priorado e moderna,
pois a sua criação não excede de cento e cinquenta anos a esta parte. Esta vila é de El-
Rei, e há dela tradição que dela foram donatários os marqueses de Gouveia, e hoje ainda
conservam tão somente o título dela. Tem a freguesia de São Pedro duzentos e quarenta
vizinhos, que contam de novecentas e vinte pessoas, e a de São Julião e o mais que a ela
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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

pertence exporá o reverendo prior dela, como também se lhe ordena. Está esta vila
situada em monte e nas faldas da Serra das Estrela. E dela se avistam as mais de
povoações que ficam fronteiras na distância de duas léguas para a parte do Norte. Tem
esta vila seu termo, que compreende onze léguas, a saber, parte do lugar de Vila Cortês
que tem trinta vizinhos, o lugar de Nabainho que tem sessenta e nove, o lugar de Nabais
que tem cento e quatro, o lugar de São Paio que tem cento e quarenta, o lugar de
Nespereira que tem noventa, o lugar de Arcozelo que tem cento e noventa e seis, o lugar
de Rio Torto que tem cento e um, o lugar de Vinhó que tem cento e doze, o lugar de
Moimenta que tem duzentos e dois, o lugar de Mangualde que tem setenta, os lugares de
São Cosmade e Alrote cento e doze.
A Igreja paroquial de São Pedro está dentro da vila, e a freguesia consta somente
da maior parte dos vizinhos dela, e tem duas igrejas anexas dela que são S. Cosme de
Alrote e Nossa Senhora da Graça do lugar de Nespereira, cujos párocos ou curas
apresentam anualmente os vigários da dita paroquial de São Pedro. O orago da Igreja
principal é São Pedro Apóstolo. Tem quatro altares, a saber, o altar mor que é o do
santo patrono, o altar do SS. que tem uma irmandade e o altar de Santa Catarina, virgem
e mártir, e o altar de São Sebastião. Esta igreja está muito antiga, com pouca decência e
alguma finalidade, por cuja razão de presente se intenta reedificar de novo, e está já
obra ajustada que finda e acabada poderá importar nove ou dez mil cruzados que os
paroquianos dela liberalmente pagam. O pároco dela é vigário, como dito fica, e sendo
priorado esta igreja, no tempo do Pontífice João XXII, passou a ser vigairaria, porque
este Pontífice concedeu uma bula de união de metade dos frutos dela ao Real Mosteiro
de Santa Clara extra muros da cidade de Coimbra, da qual este é padroeiro e pároco
ficou com só meios dízimos que se assinaram por congrua. E de presente tem somente a
de cento e quarenta mil réis, porque o dito mosteiro padroeiro no ano de 738 impetrou
da Sagrada Congregação os ensinamentos cardeais, outro breve da união dos ditos
meios dízimos que tinha para sua congrua o vigário.
E com a dita congrua o pé de altar poderá hoje render a dita vigairaria duzentos e
cinquenta mil réis. Tem esta vila nos seus arrabaldes para a parte do Sul um convento de
religiosos observantes de S. Francisco, denominado convento do Espírito Santo, o qual
não tem padroeiro e é muito antigo, pois a sua erecção mostrava ser de Templários, e
hoje se acha de novo reformado com bons edifícios, tem também junto à mesma vila e a
Nascente um colégio da Companhia de Jesus, que se acha quase completo, de admirável
edifício e proporcionada grandeza, que foi fundado e dotado pelo mestre de campo desta
Vila António de Figueiredo Pereira, de menos de trinta anos a esta parte, em o qual

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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

habitam já alguns religiosos, e não consta com certeza das suas rendas, mas há
presunção de que chegarão anualmente a sete ou oito mil réis.
Tem hospital e o administra o provedor da misericórdia desta vila, pelas poucas
rendas que ela tem, tem casa de misericórdia erecta há mais de 200 anos, e terá ainda de
renda cem mil réis anualmente. Tem esta vila as capelas seguintes: a de Nossa Sra. de
Vera Cruz, a de S. Lázaro, a da Sra. do Porto, a de Santa Cruz, a de S. Mamede, a de S.
Miguel, a de S. João Baptista, todas na vila e da freguesia de S. Pedro, menos a de S.
Mamede que é de S. Julião e fora da vila e no monte do Aljão. Tem mais duas capelas,
uma da Sra. dos Linhares e outra da Sra. das Celas junto do rio Mondego. E a nenhuma
delas acorre romagem de grande concurso. Dentro da mesma Igreja estão mais 3 capelas
particulares, uma de Santo António, outra da Sra. dos Prazeres e outra da Sra. da
Alegria. Os frutos que com maior abundância recolhe são milhos e centeios, e a maior
parte dos seus moradores vivem de fabricarem (panos) da (saregação) e sapeis para
vestuário de toda a Província Franciscana.
Tem esta vila juiz de fora e câmara, com sujeição somente aos corregedores da
cidade da Guarda, e tem também candeia e conserva a mesma câmara a regalia de a da
vila de Manteigas lhe mandar todos os anos no dia de S. João Baptista antes de nascer o
sol entregar duzentos e cinquenta réis de feudo e um púcaro de água tomada na fonte de
S. Pedro da dita vila de Manteigas depois de dada a meia-noite, e não o fazendo assim
os moradores dela ficaram impedidos e perdendo a direito que têm de pastarem com
seus gados até o alto da Serra no limite desta vila de Gouveia, o que exactamente se
observa e pratica com todas as cautelas necessárias.
Tem esta vila um mercado em todas as quintas-feiras e é livre, tem correio que
da cidade de Viseu chega a esta vila no Domingo e para a dita cidade parte com as
cartas no Sábado de manhã, e nela se lançam sexta-feira até à meia-noite. Dista esta vila
da cidade capital do bispado, catorze léguas, e quarenta e oito de Lisboa, capital do
Reino, tem esta vila por regalia o monte chamado do Aljão de uma légua de longitude e
meia de latitude que confina com o Rio Mondego, e dista desta vila meia légua, mercê
que os antigos reis de Portugal lhe fizeram, cujo monte é próprio dos moradores desta,
repartido em tantas courelas quantos são os moradores da mesma. E de três em três anos
sabem e se repartem por sortes, e cada um desfruta a que lhe acontece, e por todos
chegam a render cada ano quase de duas mil medidas de centeio, e os pastos rendem
para o conselho, calçadas da vila e para as fábricas das duas igrejas e misericórdia delas.
Nela três léguas distante desta vila para a parte do Sul nascem os três grandes rios
Mondego, Alva e Zêzere que está na serra chamada dos Cântaros, que é memorável e

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[Um contributo para o conhecimento historiográfico da vila de Gouveia na Época Moderna (segundo as "Memórias Paroquiais")]

dela darão notícia os párocos mais vizinhos. A qualidade do seu temperamento é


frigidíssimo porque em muitos meses costuma estar coberta de neve. Da mesma serra é
distante desta vila meia légua pela parte do Nascente nasce uma ribeira que discorre
pelo meio dela, cujas águas muito a fertilizam, e logo no seu nascente tem pouco mais
de quinze casas de moinhos, pisões e tinte próximos a esta vila. Corre arrebatada e são
perenes as suas águas. Dentro desta vila uma boa e levantada ponte de cantaria, e em
distância de um quarto de légua tem outra na mesma qualidade na estrada real que vai
para a Província de Trás-os-Montes, e passando pelo lugar de Nespereira se vai meter
no Rio Mondego pouco mais de uma légua distante desta vila.

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